O ESPLENDOR LUSO-BRASILEIRO NOS FINAIS DO SÉCULO XVIII E PRINCÍPIOS DO XIX: O MULATISMO MUSICAL NO BRASIL SETECENTISTA

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CONCERTO “O ESPLENDOR LUSO-BRASILEIRO NOS FINAIS DO SÉCULO XVIII E PRINCÍPIOS DO XIX” O “MULATISMO MUSICAL” NO BRASIL SETECENTISTA Notável conhecedor da realidade colonial portuguesa, Charles Ralph Boxer (1904-2000) afirmava que a mestiçagem fora uma “consequência inevitável da instalação e da manutenção do império português”, sendo o mulatismo o resultado mais “forte e visível” desse processo. Se tivermos em conta que a maioria dos músicos activos no Brasil durante o século XVIII, e mesmo no séc.XIX, eram mestiços, ocorre-nos questionar, obviamente, a razão de tal facto, estando a resposta na própria ordem social da época. Sendo a maioria homens-livres, os mulatos procuravam exercer funções não desempenhadas por negros ou brancos, numa tentativa de favorecerem a mobilidade vertical nas relações sociais. Diz-nos Maurício Monteiro que, em 1804, os músicos da Capitania de Minas Gerais, ao tempo a mais rica e desenvolvida do vice-reino do Brasil, representavam 41% de todos os profissionais liberais listados no sector terciário. Dedicando-se exclusivamente à música, ou desenvolvendo actividades económicas paralelas, os mulatos procuravam a possibilidade de ascensão social e distinção no seio de uma sociedade que lhes era, à partida, hostil. Segundo Harry Crowl, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para impedir uma distinção social entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses. Contudo, a Igreja, com as suas Irmandades e Confrarias e o Estado, com os Senados da Câmara, o Exército, ou mesmo o aparelho judicial, constituíram-se como verdadeiras máquinas aglutinadoras de pretensões sociais, sendo a música o grande denominador comum nesse ambiente de sincretismo, paradigma do Brasil colonial. Não é, pois, de estranhar que os maiores vultos da música brasileira setecentista sejam mulatos e o seu percurso musical muito semelhante. Apelidado por José Mazza, no seu Diccionario biographico de Musicos (c.1780), de “homem pardo”, Luis Álvares Pinto nasceu no Recife, na Capitania do Pernambuco, em 1719. Mazza acrescenta que, cerca de 1740, passou a Lisboa para “aprender contraponto com célebre Henrique da Silva [Negrão], tem composto infinitas obras com muito acerto principalmente eclesiásticas;compôs (ultimat.e humas exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com muito aserto”. De volta a Pernambuco, em 1761, publicou, no ano seguinte, a segunda obra teórica sobre música escrita no Brasil, Arte de Solfejar [a primeira é da autoria do Padre Caetano de Melo Jesus (175960)]. A sua veia de escritor manifestou-se na comédia Amor mal correspondido [da qual subsistem alguns trechos], levada à cena na Casa da Ópera do Recife, em 1780, e ainda em três obras didácticas hoje perdidas: Dicionario pueril (1784), Arte pequena para se aprender música e Arte grande de solfejar.

Em 1762, Álvares Pinto foi eleito Mordomo da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento, no Recife e, em 1766, nomeado capitão do Regimento de Milícias. Acumulando funções de mestre-decapela da Igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento e da Igreja de São Pedro dos Clérigos, desde 1778 [cargo do qual viria a ser confirmado apenas em 1782] é nesta última igreja que Álvares Pinto promoveu a fundação da Irmandade de Santa Cecília (c.1788), à imagem da existente na capital do reino, tendo sido o seu primeiro Juiz. Viria a morrer, no Recife, em 1789. Escritos em 1776, os Divertimentos Harmônicos resumem-se a cinco momentos musicais [a 3 (os dois primeiros) e a 4 vozes (os três restantes)], de temática mariana, em que as virtudes de Nossa Senhora são exaltadas, como mãe do Salvador e filha de Jerusalém. Próprios para o período litúrgico do Advento, os Divertimentos apresentam uma construção musical semelhante, com a entrada das vozes em imitação sucessiva, residindo o seu principal interesse nos jogos “Harmônicos” que Álvares Pinto obtém. São as dissonâncias, as progressões harmónicas e os contornos intervalares das melodias que conferem enorme graciosidade a esta pequena obra musical. Como outra face de um mesmo espelho temos o português André da Silva Gomes, nascido em Lisboa em 1752. Aluno, provavelmente no Seminário da Patriarcal, do “sabio e experimentado Mestre” José Joaquim dos Santos (1747-c.1801), nas palavras do próprio compositor, Silva Gomes toma parte na comitiva do 3º bispo de São Paulo, Dom Frei Manuel da Ressurreição (1718-1789), a convite do prelado, para ir ocupar as funções de mestre-de-capela da Sé paulistana, em finais de 1773. Apesar de elevada à condição de cidade em 1711, São Paulo era, á época, uma vila de poucos recursos contando, no censo de 1778 com 5.103 habitantes. O aparelho musical da Sé resumia-se a um órgão, oferta de D. João V (1689-1750) em 1746, cujo titular era Inácio Xavier de Carvalho e de apenas “quatro moços do Coro”, sendo a voz de baixo assegurada pelo organista ou pelo próprio mestre de capela. André da Silva Gomes substitui o Cabido, sempre com faltas crónicas de dinheiro, na tentativa de inverter esta situação. Ensinou música gratuitamente a dezenas de crianças [casado com a viúva Maria Garcia de Jesus, em 1775, e não havendo filhos desta união adoptou dezasseis crianças] e procurou, através do seu salário de mestre de capela e das gratificações como mestre de música das festas da Ordem Terceira do Carmo, da Irmandade do Santíssimo Sacramento [onde viria a ingressar como irmão em 1813] e do Senado da Câmara para contratar mais cantores e instrumentistas. A obra de Silva Gomes não pode, nem deve, ser desassociada da rivalidade civil-eclesiástica existente em São Paulo, concretamente no entendimento estético-músical diferenciado entre os sucessivos prelados, adeptos de um “stilo antico” e dos governadores, “a italiana”. Como reflexo evidente deste facto, e estando economicamente dependente de ambos, Silva Gomes acabou por desenvolver um corpus musical híbrido, mais ao sabor das encomendas do que de uma linguagem individual. Consequência provável destas contingências estéticas, Silva Gomes nunca encarou a sua função de mestre de capela como a única possibilidade de exercício profissional, procurando complementar o

seu rendimento com o exercício de outras actividades, ou cargos. Assim, pleiteou e obteve as Provisões de Capitão das Milícias (1789) e depois de Tenente-Coronel (1797), a Provisão da Serventia do Ofício de Escrivão da Intendência e Conferência da Real Casa de Fundição de São Paulo, a de propriedade do Ofício de Escrivão de Órfãos e, por fim, de Professor Régio de Gramática Latina (1803). André da Silva Gomes viria a morrer em 1844, com a provecta idade de 92 anos. Das obras hoje em concerto, merecem particular atenção os dois ofertório quaresmais em audição, Confitebor tibi Domine e Laudate Dominum bem como o salmo vespertino, Laudate Pueri. Em ambos é notório o estilo galante napolitano de David Perez (1711-1788) e Sousa Carvalho (1745c.1800), fazendo uso de uma estrutura que consiste na alternância das intervenções corais e de solos virtuosos, em jeito de ritornelo musical. Muito curiosa é a configuração melódico-ritmica do acompanhamento do órgão nas passagens solísticas dos ofertórios, em jeito de baixo de Alberti, próxima das sonatas para tecla de António Pedro Avondano (1714-1782). Diametralmente oposto, o responsório de 6ª feira santa, Popule meus, em estrutura homofónica e fundamentalmente silábica, desenvolve-se mais em termos harmónicos do que melódicos, numa procura da acentuação do pathos do texto lamentativo. ∞ Quando, a 22 de Janeiro de 1808, a esquadra portuguesa aportou em São Salvador, ao fim de 54 conturbadíssimos dias de viagem, uma página da História de Portugal era virada. Seguindo um antiquíssimo plano, gizado nos tempos da Restauração, em 1641, para o garante da autonomia do império português, no caso de invasão da metrópole, o então ainda príncipe regente, D. João de Bragança (1767-1826) ordenara o embarque imediato de toda a corte e erário público para a distante colónia do Brasil. É o próprio general Junot quem, nas suas quase diárias missivas ao imperador Bonaparte nos informa que, ao chegar a Lisboa, se precipitou para o Alto de Santo Amaro na esperança de ainda avistar a esquadra na barra do Tejo. Mas já se haviam feito ao vento os navios, tacticamente fora do alcance dos canhões do forte de São Julião da Barra. Ficaria para a história, e enraizado na cultura popular, o dito “ficou a ver navios!”. Instalada, em definitivo, na cidade do Rio de Janeiro, em Março de 1808, a corte portuguesa recriou-se nos trópicos. Um dos homens que mais contribuiu para o amenizar de toda esta mudança foi o então mestre de capela da Sé do Rio de Janeiro, o padre José Maurício Nunes Garcia. Este mulato [filho de um alfaiate branco e de uma filha de escravos forros], como muitos na corte gostavam de fazer notar esse “defeito vísivel”, rapidamente caiu nas graças do príncipe regente. Nomeado mestre da Capela Real, a 26 de Novembro de 1808, com direito a “ração de creado particular” [o que, na prática, o equiparava a todos os servidores da Casa Real], é-lhe concedido, no ano seguinte, o hábito da Ordem

de Cristo, processo moroso concluído apenas em 1810, depois de uma série de intrigas cortesãs que obrigaram a intervenção directa do príncipe D. João. A chegada, em 1811, de Marcos Portugal (17621830), afastaria, definitivamente, Nunes Garcia da esfera da Capela Real. Desde esta data, passariam a ser a Ordem Terceira do Carmo e a Irmandade de Santa Cecília as principais instituições a encomendarem-lhe composições. Retirado da lista da Casa Real em 1821, por arbítrio do então regente D. Pedro (1798-1834), Nunes Garcia apelaria, num tom pungente “ehá sette mezzes que o Sppe sofre nas necessidades por esta Causa”. Não obtendo resposta e escasseando as encomendas, viria o compositor a morrer em 1830, num estado de extrema miséria. As duas obras em audição datam de períodos diferentes da vida do compositor. O Miserere, para 4ª feira de “Trevas” [Santa] foi escrito em 1798 poucos meses antes da nomeação de José Maurício Nunes Garcia como mestre de capela da Sé do Rio de Janeiro, onde, na infância fora “moço de coro”. Sendo uma das raras obras do compositor que pressupõe a alternância com o cantochão, desenvolve-se em onze partes, contrastantes entre si, alternando solos com tuttis, numa textura marcadamente silábica. Quanto à Missa dos defuntos, foi composta em 1809, para a Capela Real, provavelmente para a Solenidade dos Fiéis Defuntos. O essencial da linguagem musical de Nunes Garcia permanece, os uníssonos, as harmonias rebuscadas, as alternâncias constantes entre tonalidades maiores e menores, progressões suspensivas, mas nota-se um refinamento a que não será alheio o facto de nesse mesmo ano ter sido nomeado Arquivista da biblioteca musical do Palácio de Queluz, também ela empacotada e remetida para o Brasil. Exemplo disso são os andamentos ternários, galantes, ao gosto napolitano, tão grato ao gosto da real pessoa, como é o caso do Gradual, de fugattos, na conclusão do Offertorio ou ainda nos arcaizantes versos a duo, como o Hostias, ou o Requiem aeternam na Communio.

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