O Estado, a Democracia e a Educação. Ou, o Buraco é muito mais em baixo

July 19, 2017 | Autor: Ralph Bannell | Categoria: Political Economy of Education
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Capítulo 20 Estado, a democracia e a educação: ou o buraco é muito mais em baixo1 Ralph Ings Bannell Esperar da sociedade mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo mera tolerância – de um mandato que estimule as instituições de educação formal a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental (Mészáros) A transcendência positiva da alienação é, em última instância, uma tarefa educacional (Mészáros) I.

Introdução

Tanto a pesquisa apresentada na primeira parte desse livro, bem como os fenômenos analisados nos outros artigos nessa segunda parte, partem do pressuposto de que a escola pública deveria ser um lugar de democratização e inclusão social dos meios populares. No entanto, todas as análises mostram as dificuldades enfrentadas pelas escolas – em vários países no mundo, na Europa e na América do Sul – em promover esses objetivos. Não acho mera coincidência que os problemas detectados sejam parecidos em contextos tão diferentes, nem que as escolares públicas desses países não estejam conseguindo superálos. Acho, pelo contrário, que isso mostra que o “buraco é muito mais embaixo”, como se diz no Brasil. Ironicamente, a análise apresentada nesse artigo foi elaborada ao longo dos quatro anos do projeto de pesquisa apresentado na primeira parte deste livro. Aquele projeto teve como objetivo principal compreender as percepções dos pais dos alunos das escolas cujos ingressos são prioritariamente da favela de Rocinha, no Rio de Janeiro, acerca da escola de seus filhos. Além disso, como está explicado nos capítulos do livro, foi realizada uma série de investigações empíricas sobre o cotidiano das escolas, bem como sobre instituições da sociedade civil, tais como o Conselho Tutelar, na promoção do direito dos alunos à educação básica. O que chamou a minha atenção ao longo desses anos foi a falta de respostas concretas da Secretaria Municipal de Educação diante dos resultados da pesquisa apresentados a ela em

1

Agradeço o Institute of Education, Universidade de Londres, por me conceder um “visiting fellowship”, no mês de janeiro de 2014, durante o qual escrevi esse artigo.

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várias ocasiões. Nada de significativo mudou no que se refere à gestão escolar, embora a pesquisa tenha mostrado problemas sérios que poderiam ser resolvidos facilmente. Além disso, mostrou claramente a tensão normativa mencionada pelo Benjamin Moignard no seu artigo nesse volume, bem como os conflitos presentes no cotidiano escolar, foco do estudo de Daniel Míguez e, em outros termos, no de Pedro Silva também. Não há espaço aqui para sublinhar os vínculos entre as outras análises apresentadas nesse livro e a do presente artigo. Portanto, deixarei o leitor fazer essas pontes durante a sua leitura. Nada disso despreza o estudo feito. Pelo contrário, produziu bastante evidência empírica para fortalecer a análise desse capítulo, na opinião de seu autor2. No entanto, meu foco mudou ao longo dele, para concentrar no que considero as causas principais que determinam as políticas públicas sobre a educação no Brasil (e em outros países), que não estão sob o controle dos docentes e diretores das escolas, menos ainda dos alunos e suas famílias. Por isso, concentro na relação entre a acumulação e expansão do capital e a organização dos sistemas públicos de educação, especialmente nas últimas duas décadas. Começo, então, com uma constatação de István Mészáros, de que não há dúvida que “o impacto da incorrigível lógica do capital sobre a educação tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema [do capital]” (Mészáros, 2007: 201)3. Sem dúvida, as “modalidades de imposição dos imperativos estruturais do capital no âmbito educacional” têm mudado ao longo da história, resultando em consequências diferentes dependendo do período histórico em questão, as últimas décadas sendo um período de reestruturação do capital na escala global, com consequências globais na esfera de educação. Igualmente óbvio, como Mészáros também indica, a educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao proposito de não só fornecer conhecimentos e o pessoal necessário à maquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhuma alternativa à gestão da sociedade, seja na forma “internalizada” (isto é, pelos indivíduos devidamente “educados” e aceitos) ou através de uma 2

Deveria ser explicitamente exposto aqui que o teor dessa análise não está compartilhado pelo outro coordenador geral do projeto ora em foco, Marcelo Burgos. Essa diferença reflete tanto diferentes perspectivas teórico-conceituais como expectativas com relação à possibilidade de alcançar a democratização da sociedade brasileira, e a inclusão social dos meios populares, através da escola pública brasileira. No entanto, recomendo a experiência de trabalhar com pessoas com perspectivas diferentes, que ajuda na compreensão da realidade e dos problemas que apresenta. 3 Os próximos dois parágrafos dessa introdução e a próxima secção desse artigo foram elaborados em cima do meu artigo “O Estado democrático e a educação”, in R. L. Rodrigues (Org) Educação escolar no século XXI. Juiz de Fora: UFJF, 2013, com alterações.

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dominação estrutural e uma subordinação implacavelmente impostos. (ibidem: 202)

hierárquica

e

O que é diferente hoje em dia, comparado com períodos anteriores, é que a educação virou uma mercadoria muito lucrativa. Vemos isso em todos os níveis de educação, do infantil até a pós-graduação. Então, é esse fenômeno que gostaria de analisar um pouco nesse texto, focando em como a educação pública está, também, fortemente envolvida na criação de novos mercados para “produtos” educacionais. Meu argumento será que a lógica do capital - mediado pelo Estado - determina cada vez mais a educação formal no Brasil, portanto dificultando muito a possibilidade da transcendência da alienação pelo viés da educação pública. A partir dessa análise, exploro a relação entre democracia e educação através de uma crítica ao pensamento de John Dewey no seu livro homônimo, que celebra seu centenário em breve. Essa escolha não é arbitrária porque o pensamento de Dewey teve – e ainda tem – muita influência no Brasil, através da sua divulgação e elaboração, inclusive na prática, por Anísio Teixeira e o movimento chamado de Escola Nova. Além disso, é um exemplo claro de um pensador que, apesar de suas observações agudas sobre as consequências nefastas da desigualdade na sociedade da sua época, não foi capaz de desenvolver uma análise que penetrasse nas causas dos problemas que destacou, portanto, elaborando uma utopia educacional impotente.

II.

Capital e o Estado O Estado está implicado na reprodução do sistema do capital porque está implicado no que Mészáros (1995: 108-109) chama as mediações de segunda ordem desse sistema. Essas mediações são4:



a família nuclear;



os meios de produção;



o dinheiro;



os objetivos de produção orientados a expansão e acumulação do capital e não a satisfação das necessidades humanas;



a separação do trabalho do controle social;



o próprio Estado enquanto agente na economia global; 4

É importante notar que, para Mészáros, as sociedades do tipo soviético, por mais que não fossem capitalistas, porque tinham expropriado a propriedade privada, não conseguiram superar essas mediações de segunda ordem do capital, portanto, perpetuando o sistema do capital numa outra forma. Ver Mészáros (1995).

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e o mercado global Vou dar somente alguns exemplos de cada mediação. A família nuclear é objeto de

políticas sociais que tem como objetivo fortalecê-la como o fundamento da vida em sociedade. O sistema jurídico tem a família como um dos seus pontos focais, não somente no direito da família, mas como mediadora da lei como um todo. A obrigação dos pais de educar seus filhos é um exemplo disso. Políticas sociais também miram a família como a unidade básica de ação, seja na provisão de benefícios sociais ou na provisão de serviços, inclusive educacionais. Além disso, no Brasil, por exemplo, os valores e comportamento da família nuclear estão sendo fortalecidos por instituições religiosas, muitas das quais tem ligações fortes com o Estado através do Congresso, onde a bancada religiosa é uma das mais fortes. No nível estadual e municipal essa influência pode estar mais forte ainda. Por exemplo, o ensino de religião nas escolas públicas virou lei no Rio de Janeiro recentemente. Com relação aos meios de produção, o Estado atua diretamente no fortalecimento dos meios de produção do capital. Isto foi visto com clareza cristalina nos últimos anos com a intervenção dos Estados europeus, e outros, para prevenir o colapso do sistema financeiro mundial. Foram os mesmos Estados que relaxaram os regulamentos que controlaram o capital financeiro, a partir de 1973 (Harvey, 2011: 281), especialmente nos Governos de Reagan e Thatcher, que permitiu uma onda de especulação que culminou numa crise sem precedentes e, depois que estourou, utilizaram dinheiro público para sanar as contas dos bancos privados para salvar o sistema. Assim as personificações do capital incluem não somente os capitães da indústria e do sistema financeiro, mas também os ministros de Estado e suas equipes que controlam a política econômica desses países, incluindo o Brasil, além, claro, dos dirigentes de instituições internacionais tais como o FMI, Banco Mundial, e etc. Além disso, há o investimento direto do Estado nos meios de produção, principalmente na construção da infraestrutura necessária para o funcionamento do capital privado ou na concessão de contratos para o setor privado explorar determinados serviços. Vemos isso, no Brasil, na queixa dos empresários com relação à suposta falta de investimento do Governo em infraestrutura, a concessão de rodoviárias, aeroportos e de óleo (o pré-sal) ao setor privado e na construção da infraestrutura necessária para a copa do mundo de futebol e as olimpíadas, que acontecerão em 2014 e 2016 respectivamente. O papel do Estado não se restringe a contratos de concessão para a construção e exploração, mas também abrange a concessão de licenças ambientais, o retiro pela força das moradias que estão no caminho e a repressão brutal pela polícia de manifestações contra esses eventos e suas consequências. Outros exemplos seriam a 447

concessão de crédito e manipulação de impostos para estimular produção e consumo, bem como a infraestrutura social necessária para produzir mão de obra qualificada para o mercado de trabalho, inclusive sistemas públicos de educação. Com relação ao dinheiro, é evidente hoje em dia que o capital financeiro é o elemento dominante no sistema do capital, e que assumiu formas tão complexas e mistificadoras que nem aqueles que controlam o sistema monetário internacional são capazes de entender como funciona. Isso é evidente quando o FMI, junto com o banco central europeu e os bancos centrais dos países envolvidos, não é capaz de elaborar um plano que tire a Europa da sua crise atual. Talvez seja mais correto dizer que sabem, sim, mas qualquer solução que acaba com a dívida soberana dos países europeus – bem como a dívida de $17 trilhões dos EUA - seria inaceitável para o capital financeiro, que depende dessas dívidas para sua expansão e acumulação. O Estado é implicado nisso na medida em que, apesar da ‘independência’ dos bancos centrais, esses bancos – junto com o FMI, que é financiado pelos mesmos Estados – elaboram políticas que aumentam a dívida enquanto jogam milhares de pessoas no desemprego, diminuem os gastos sociais e pensões e reduzem a qualidade de vida das camadas mais pobres das suas sociedades. E tudo isso com a conivência dos Governos dos países que estão enfrentando o colapso dos seus sistemas bancários. Além disso, os próprios bancos centrais são responsáveis para o crescimento dessas dívidas impagáveis! Eles fabricam dinheiro, fornecendo crédito que não tem nenhuma garantia, com juros é claro, portanto criando uma dívida que é, matematicamente, impagável. 5 Com relação aos objetivos da produção, políticas do Estado vão tentar estimular o crescimento do PIB a qualquer custo, por exemplo, quando o Governo brasileiro reduziu o imposto de carros, portanto estimulando seu consumo num país cada vez mais urbanizado e com problemas sérios de transito. Essas políticas são claramente determinadas pelo imperativo de expansão e acumulação do capital, sob o discurso ideológico de que somente assim seria possível criar empregos e melhorar a vida da população, quando, na verdade, as necessidades humanas não estão contempladas. Além disso, o Estado estimula e reproduz uma cultura de consumo através de suas políticas econômicas, seu apoio a grande mídia de massa e, é claro, seus sistemas escolares.

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De fato, a dívida do governo dos EUA é criada pelo Federal Reserve, seu banco central (uma instituição privada e não pública) como mecanismo central para a acumulação do capital via o sistema bancário e a criação de crédito. Ver o filme “The Money Masters” (http://www.youtube.com/watch?v=HfpOWBz_mw&feature=player_detailpage#t=5).

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Quanto ao papel do Estado enquanto agente na economia global, vemos nas guerras de comércio e brigas sobre ‘protecionismo’ na Organização Mundial de Comércio, entre outras instâncias, como os Estados se enfrentam agressivamente para tirar a maior vantagem com relação aos outros. “Mercados livres” e tratados comerciais são propostas com claras intenções de favorecer um Estado com relação aos outros e até blocos regionais, como a União Europeia ou o MERCOSUL, não são suficientes para conter brigas entre seus membros por uma posição vantajosa com relação aos demais para a produção e venda de seus produtos e serviços. Além disso, há intervenções no território de Estados alheios – como, por exemplo, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos da América – para assegurar o fornecimento de produtos primários (nesse caso, óleo) e para criar oportunidades de negócios para suas companhias transnacionais. Por final, vemos como algumas companhias transnacionais, que podem contar com a proteção de seus Estados de origem, dominam esse mercado, enquanto outros são forçados a negociar as migalhas do bolo de uma posição de fraqueza. A falta de controle social pelo trabalho é vista cada dia na medida em que o trabalho assalariado é forçado pelos imperativos do capital a jornadas de trabalho cada vez mais longas e com a erosão da legislação trabalhista que ainda existe em alguns países, onde foi construída com muita luta. Cada dia na televisão, empresários exigem a “flexibilização” das leis trabalhistas, algo apoiado pelo Estado, tanto legislativo, como executivo e judiciário, sob o pretexto do chamado ‘custo Brasil’ e a consequente falta de competitividade. A cena diária de ônibus superlotados com trabalhadores dormindo por falta de sono e viajando quatro horas ou mais para chegar ao trabalho e voltar para casa é testemunha da falta de controle social do trabalho e o total controle do capital sobre as vidas das pessoas. Por final, o mercado global. Essa mediação pode ser ilustrada através do mercado para serviços educacionais. Na Inglaterra, por exemplo, muitas companhias envolvidas na indústria de serviços educacionais pertencem a companhias estrangeiras ou são financiadas por estrangeiras. Além disso, seus serviços são vendidos no mundo todo. Como Ball (2007: 82) diz: “o Estado-Nação não é mais a escala apropriada para conceitualizar e pesquisar políticas educacionais ou o fornecimento de serviços educacionais nacionais – educação é um negócio global”. Na medida em que Estados são os agentes principais na procura e compra desses serviços, são profundamente implicados nesse mercado global.6

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Ball (ibidem: 67) documenta que, em 2003, a exportação de serviços educacionais da Inglaterra alcançou um valor de £8 bilhões, companhias inglesas expandindo para mercados além mar.

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Esses são somente alguns exemplos de como o Estado está implicado na reprodução das mediações de segunda ordem do sistema do capital. É por isso que o Estado moderno é, essencialmente, um Estado capitalista. O que é importante frisar é que sistemas escolares, tanto públicos quanto privados, estão implicados em tudo isso. Vemos como Governos estão muito preocupados hoje em dia com os rankings internacionais, elaborados a partir de sistemas internacionais de avaliação, como a PISA. A preocupação é a de aumentar a competitividade do país perante os competidores pelo investimento em capital humano. O mesmo se aplica às formas de avaliação nacionais, como o SAEB e o Prova Brasil, no Brasil, bem como aquelas adotadas nos estados e municípios, como, por exemplo, no Município do Rio de Janeiro7. Nos últimos 30 anos, mais ou menos, houve uma mudança profunda na estrutura e o papel do Estado, como consequência da chamada “globalização” e do novo regime de acumulação de capital. Nas palavras de um comentador, “não é que o Estado se tornou impotente, mas que é constrangido a utilizar seu poder para avançar o processo de comodificação (...) Daqui para frente a sociedade seria cada vez mais moldada em maneiras que servem às necessidades de acumulação de capital” (Leys, in Ball, 2007:6). III.

Educação e capital

A escola é uma instituição do Estado – ou, no caso da escola privada, regulada pelo Estado – que regula, junto com outras instituições estatais e não-estatais, obviamente, o tipo de relação que se estabelece entre trabalho e capital. Exatamente por isso, numa sociedade capitalista somente poderia ser uma instituição que regula essa relação pela lógica do capital. Faz isso não somente pelo ensino de conhecimento necessário para o modo de produção capitalista, mas também pelo ensino, também no chamado currículo oculto, de valores, práticas culturais e princípios condizentes ao bom funcionamento do capital e a sujeição do trabalhador aos seus imperativos. Mas, além disso, faz isso pela compra de produtos e serviços do setor privado para uso nas escolas. Essa é uma característica relativamente nova, estimulada nas ondas de privatização de sistemas escolares ao redor do mundo nas últimas duas décadas. Obviamente, esse fenômeno vem sendo estudado por sociólogos de educação ao longo desse período. No Brasil, desde o início dos anos 1990, a crítica do neo-liberalismo e suas implicações para a educação é um tema central na pesquisa educacional.8 Na Inglaterra, análises importantes de Stephen Ball e outros vem expondo as relações entre capital, a política 7

Para uma análise parcial das políticas públicas da educação do Município do Rio de Janeiro, ver K. Russo e R. Bannell (2011). 8 Ver, por exemplo, Gentili (1995), Gentili e Silva (1994), Frigotto (1995), entre muitos outros.

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neo-liberal e políticas educacionais, inclusive a dimensão global desse fenômeno.9 Por esse motivo, vou simplesmente dar alguns exemplos recentes. O primeiro exemplo vem da Inglaterra. A penetração do setor privado na educação pública é extensa. No seu estudo de 2007, Ball afirma que somente no programa de construção de escolas o faturamento foi entre £5 e £8.5 bilhões e a terceirização de serviços educacionais um valor de £1.5 bilhões por ano. As companhias que fornecem provas de desempenho de alunos (não somente para Inglaterra, mas para o mundo todo) faturaram um total de £317 milhões. Ball afirma: O setor privado agora é embutido no coração e corpo da educação estatal em todos os níveis, no negocio do dia a dia da tomada de decisões, desenvolvimento de infraestrutura, capacitação e fornecimento de serviços. (...) Além disso, a elaboração de políticas do Estado é determinada rotineiramente, monitorada ou feita por provedores privados na forma de consultarias, avaliações ou revisões. (...) Através desses envolvimentos, redes de relações sociais são estabelecidas entre políticos, servidores públicos e companhias (incluindo organizações de caridade e voluntárias) que influenciam e informam o pensamento sobre políticas educacionais. (...). Com essas redes, as distinções entre conselho, apoio e lobbying para negócios são, às vezes, difíceis de perceber. (Ball, 2007: 41) Agora os EUA e com foco numa companhia envolvida na provisão de serviços educacionais: a companhia chamada Pearson, que era originalmente uma editora. Começou a comprar várias outras editoras, inclusive algumas das mais importantes no mundo. Também, comprou instituições que elaboram testes, tanto psicológicos, para transtornos etc, como para avaliar o desempenho de alunos em várias áreas de conhecimento, bem como testes de proficiência. Para expandir seu império mais ainda, desenvolveu sistemas de processamento e análise de dados e materiais didáticos. Por final, comprou uma das redes maiores das chamadas “Chartar Schools”, um tipo de escola nos EUA que é financiada pelo Estado, mas gerenciado por instituições privadas10. Tudo isso em pouco mais de uma década. Bem, qual o resultado disso? Agora, é a maior companhia na avaliação educacional nos EUA, 25 dos estados utilizando somente seus produtos. No Reino Unido, é dono da maior instituição de avaliação do desempenho de alunos que não é estatal. Também, é uma das maiores fornecedoras de materiais didáticos nos EUA, utilizados em muitos estados da federação. Assim, controla a maior parte do currículo e avaliação nos EUA.

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Ball (2007); (2012). Na Inglaterra, escolas chamadas “free schools” foram estabelecidas a partir de 2010 com a mesma estrutura de financiamento e gerenciamento. 10

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É um negócio grande! Recentemente faturou £2.6 bilhões, com lucro de £500 milhões. E quem são as acionistas dessa companhia? Os irmãos Koch, por exemplo. Também incluiu o governo de Gadafi em Líbia, antes de ser derrubado. E quando outra companhia tentou oferecer materiais didáticos alternativos para o mesmo público foi processada e eliminada do mercado, junto com a instituição financeira que forneceu o venture capital. Mais que isso, há vínculos fortes entre Pearson e pessoas que atuam nos sistemas de ensino, além de lobbies no Congresso e pessoas chaves em universidades importantes (inclusive a diretora de uma das mais importantes escolas para a formação de professores, naquele país, em New York). Além disso, foi responsável pelo design do sistema de avaliação do desempenho de professores da universidade de Stanford, uma das mais importantes do país. (Por acaso, é claro, a unidade que avaliou a validade desse sistema é também financiada pela Pearson!). Assim, influencia reformas educacionais, das quais – coincidentemente, é claro! – é beneficiada pela venda de seus produtos. Por exemplo, dois projetos recentes em educação nos EUA – Common Core Standards e Race to the Top – embora rejeitados por 53% dos professores nas redes americanas, foram adotados pelo Estado, acarretando num acréscimo de 20 vezes em número de testes aplicados aos alunos, da educação infantil até o final do ensino médio. Outra coisa relevante. Embora cada estado supostamente desenvolva suas próprias iniciativas na área de educação, os materiais e testes fornecidos pelo Pearson são os mesmos! Um resultado disso é que o ensino de história nos EUA está indo na direção da direita, na opinião de especialistas. Além disso, a partir do ano que vem, Pearson vai administrar o processo de licenciamento de professores no estado de New York, coincidentemente o Estado onde a diretora de uma das mais importantes escolas superiores de formação de professores é consultora para Pearson.11 Agora o Brasil. Pearson também opera no Brasil, com oito filiais e uma gama de materiais didáticos, impressos e on-line. Também oferece Btec - Programas de aprendizagem profissional com certificação internacional – desenvolvidos pela Edexcel, empresa do grupo Pearson com sede em Londres que, segundo sua propaganda “é o maior órgão de certificação autorizado pelo governo britânico para desenvolver programas educacionais de curta e longa duração”. Além disso, oferece outros cursos de educação profissional para professores, como educação a distância (EAD) e cursos de inglês como língua estrangeira. 11

Como a autora de quem peguei esses dados disse: “ironicamente, o argumento do mercado livre criou um sistema sem competidores”. Ver Jennifer Job (2012).

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Não vou rever a literatura no Brasil sobre a privatização de educação, amplamente conhecido no país, mas simplesmente mencionar alguns exemplos recentes da penetração do setor privado na educação pública. Primeiro, no Rio de Janeiro. Sabemos que a Secretária da Educação do Município, entre 2009 e 2013, contratou várias fundações, desde o início de seu mandato, incluindo a Fundação Roberto Marinho, A Fundação Civita, o Instituo Ayrton Senna e a Fundação Itaú, para fornecer programas e materiais didáticos para a rede municipal. A quantidade de dinheiro público repassado para essas organizações é considerável. Estima-se que, somente para a Fundação Roberto Marinho, foram mais que R$ 100 milhões de reais nos últimos anos. Não tenho dados para essas fundações, nem para seus programas. O governo municipal não fornece tais dados. Também, quando o Ministro de Educação convidou a Secretária Municipal do Rio de Janeiro para assumir um cargo federal, a intenção foi claramente de desenvolver essa política no nível nacional. Não foi implementada (ainda!), o que indica que há uma luta no interior do próprio governo, mas é uma luta que o setor privado está vencendo. Recentemente, um novo projeto da Secretaria Municipal da Educação desta cidade, denominado GENTE (Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais) abriu sua primeira escola, na favela Rocinha, com 12 empresas privadas fornecendo o equipamento, recursos didáticos e formação continuada dos professores para essa escola. Além da UNESCO, o Instituto Ayrton Senna e o Instituto Natura, sem fins lucrativos, outras empresas envolvidas são do ramo de tecnologia e informática, inclusive Microsoft e a empresa Mind Lab, cujos materiais são todos desenvolvidos na base da neurociência e o princípio de aprendizagem pelo cérebro. Grandes fundações operam nos EUA há muito tempo, claro, tais como as fundações Rockerfeller, Carnegie e Ford, essa última também muito ativa no Brasil há bastante tempo. Uma fundação brasileira relativamente recente é a Fundação Lemann, do investidor chefe do fundo 3G, Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, encabeçando uma lista de 124 brasileiros que acumularam patrimônio equivalente a R$544 bilhões, cerca de 1.3% do PIB, segundo a revista Forbes. Essa fundação investe milhões por ano em projetos educacionais, um exemplo recente sendo oferecer cursos de treinamento para professores brasileiros – escolares e universitários – na Universidade de Stanford, com a expectativa de que retornem para o Brasil e, através de um mecanismo de multiplicação, resolvam os problemas educacionais do país. Outro exemplo. Recentemente, a prefeitura de Belo Horizonte fechou uma parceria público-privada (PPP), com a construtora Odebrecht, para a construção e manutenção dos prédios, bem como a manutenção das instalações elétricas e hidráulicas, segurança, limpeza, 453

sustentabilidade ambiental e compra de mobiliário de 34 escolas na rede municipal até o fim de 2014, com duração de contrato de 20 anos. Além disso, o contrato inclui a manutenção das 37 escolas municipais já existentes para o mesmo período. Tudo conta com o apoio do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), segundo o qual o investimento total no programa será de R$ 190 milhões, dos quais o BDMG financia R$ 96 milhões. Ou seja, dinheiro público indo para uma empresa privada.12 Podia continuar, mas acho o que foi descrito é suficiente para mostrar como o capital já penetrou no sistema público de educação ao longo dos últimos anos no Brasil e no mundo como um todo. Por que isso está acontecendo? A justificativa ideológica é a de melhorar a qualidade de educação no Brasil, a mesma que em outros países. No entanto, há evidência que iniciativas desse tipo têm o efeito oposto. Na Suécia, por exemplo, o governo recentemente abandonou um programa de privatização escolar, um dos primeiros no mundo - e o modelo para os “free schools” da Inglaterra - por causa dos resultados desastrosos. Além disso, os programas de “academy schools”, inaugurado na Inglaterra pelo governo de Tony Blair, junto com o sistema de inspeção escolar do Ofsted (também terceirizado para empresas privadas), parecem não ter elevado o desempenho dos alunos, mesmo pelos critérios do próprio sistema, menos ainda por outros critérios. Tudo isso está acontecendo – no mundo como um todo – nas últimas décadas como um mecanismo para a expansão e acumulação do capital: expansão pelo mundo, dominada por poucas empresas e estimulada por governos preocupados em atingir e manter a posição de seu país no mercado global, mas, nesse caso, um novo mercado educacional, que tem no conhecimento uma mercadoria central para muitas economias hoje em dia, especialmente na Europa.13 Nos últimos 30 – 40 anos o capital vem buscando novas oportunidades para expansão e acumulação. A explosão das chamadas indústrias financeiras é um exemplo disso. A expansão do mercado educacional é outro. O que é importante frisar é o envolvimento do Estado em todo isso. Como Ball (ibidem: 82) diz, com referência à Inglaterra, mas se aplica a todos os Estados hoje em dia, No centro de tudo isso está “a onipresença do estado” (...) e o trabalho do “governo esperto” (...): o estado como o fazedor de mercados, iniciador de oportunidades, como modernizador e remodelador. Isso não é o fim do estado ou da educação estatal mas o início, real e simbólico, da emergência de um tipo 12

Esse tipo de parceria vem sendo desenvolvido na Inglaterra há muito tempo sob o nome de PFI (public finance iniciative). Ver Ball (2007). 13 Por uma análise desse fenômeno na educação superior, ver Robertson (2008).

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diferente de estado e de educação estatal e um tipo diferente da relação entre educação e o estado.

IV.

Democracia e educação

Na secção anterior tentei descrever algumas das modalidades da imposição dos imperativos estruturais do capital no campo de educação. No entanto, isso não quer dizer que a educação – no sentido formal – não tem uma função na tentativa de superar esses imperativos estruturais. Mészáros, o autor com quem comecei minha discussão diz que “a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical”. A primeira constatação pode ser ilustrada pelo poder da mídia hoje em dia de formar a chamada opinião pública. A mídia de massa está cada vez mais aberta no seu apoio à ideologia do capital. Assim, é uma força ideológica muito mais poderosa que qualquer instituição formal de ensino e uma das “determinações educacionais gerais da sociedade como um todo”. Obviamente, o mercado é outra, com sua insistente propaganda que incentiva um consumo desenfreado de mercadorias. Além disso, o Estado incentiva esse consumo em nome do crescimento econômico, como já vimos. A segunda constatação na citação acima pode ser confirmada pela interferência do capital, através das instâncias de regulação do Estado, nas instituições de ensino, desde a educação infantil até a universidade, como vimos. As tentativas do capital de regular o ensino, tanto no seu conteúdo como na sua organização, nunca foram tão fortes como agora e não somente no Brasil. Mas, se poderia dizer que a educação formal não é a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital, podemos dizer que é uma força – mesmo se não primária – para sua superação? Esse foi e ainda é o sonho de muitos educadores, senão com o objetivo de transcender o sistema do capital pelo menos no sentido de promover igualdade social e democracia. Uma ideia, fortemente representada na obra de John Dewey, por exemplo, é que a escola é central na construção de uma cultura democrática e de um Self democrático, que poderiam frear ou eliminar as consequências mais negativas de uma sociedade desigual. Essa ideia tem suas raízes na defesa da escola pública no republicanismo Frances e, no Brasil, foi reelaborada no manifesto dos pioneiros da Escola Nova, em 1932, bem como no subsequente desenvolvimento da educação pública sob a direção de Anísio Teixeira, discípulo de Dewey. Depois da ditadura, foi renovada mais uma vez na constituição de 1988. A pergunta que se impõe, então, é: Será que a escola pública é uma instituição que pode promover a democracia e a igualdade social? Acho isso uma utopia não realizável sem modificar as estruturas profundas 455

do sistema do capital, embora a escola possa contribuir para esse fim. Vou elaborar minha análise através de uma discussão do pensamento de Dewey. No seu livro Democracia e Educação, John Dewey (1944:2) afirma que educação é uma necessidade da vida. “Com a renovação da existência física vai, no caso de seres humanos, a recriação de crenças, ideais, felicidade, miséria, e práticas. A continuidade de qualquer experiência, através da renovação do grupo social, é um fato literal. Educação, no sentido mais abrangente, é o meio para essa continuidade social da vida.”14 Podemos concordar com essa afirmação, bem como a ideia de que novos membros de uma comunidade estão iniciados nos interesses, propósitos, informações, habilidades, e práticas nos membros maduros; se não o grupo não continuará sua vida característica. (…) Essa transmissão ocorre pelo meio de comunicação de hábitos, pensamento, e sentimentos dos mais velhos aos jovens. Sem essa comunicação de ideais, esperanças, expectativas, padrões, opiniões, dos membros da sociedade que estão se despedindo da vida em grupo para aqueles que estão começando a entrar nela, a vida social não sobreviveria. (Ibidem: 3) Mas a questão central é: Será que a vida característica em sociedades capitalistas – e outros que sofrem dos imperativos do capital – está destruindo as próprias condições da sua sobrevivência? Dewey, como muitos pensadores anteriores que construíram uma utopia educacional, embora muito sensível aos problemas da sua sociedade, achou que poderiam ser resolvidos sem mexer nas estruturas econômicas e políticas do sistema do capital. É importante observar que Dewey achou que “Se não há garantia da transmissão profunda e genuína, o grupo mais civilizado recairia num barbárie e, depois, numa selvageria” (ibidem: 3-4). Mas eu diria: pelo contrário; se não nos esforçarmos para mudar o que está transmitido, a barbárie seria o resultado inevitável. No entanto, o ponto geral que Dewey faz me parece certo, ou seja, que “entendimento comum dos meios e fins de ação é a essência de controle social. É indireto, ou emocional e intelectual, não direto e pessoal (…) Alcançar esse controle interno através da identidade de interesse e entendimento é o negócio da educação” (ibidem: 39-40). O problema é que o “entendimento” que existe é falso e que não poderia ter identidade de interesses e entendimento verdadeiro sem resolver as desigualdades profundas na sociedade de classes, não importa quanto trabalho está feito nas escolas para alcançar esse fim. Dewey achou que a educação poderia ser utilizada para criar reciprocidade de interesses e entendimento onde não existe em sociedades que não são, segundo sua definição, comunidades. Tais sociedades são permeadas com relações desiguais, tais como entre pais e 14

As traduções da obra de Dewey são minhas.

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filhos, professor e aluno, empregador e empregado, governador e governado. Por mais que pessoas interajam nessas sociedades, não compartilham propósitos e interesses em comum. A chave aqui é comunicação, que, segundo Dewey, segura participação num entendimento mútuo, portanto, criando disposições similares – como maneiras de responder, expectativas e requerimentos, disposições emocionais e intelectuais. I ideia central é a de que se pessoas conhecessem uma meta comum e todos muito se interessassem por ela tanto que regulariam suas atividades à luz dela, então formariam uma comunidade. A possibilidade de desenvolver uma comunidade depende, é claro, do ambiente (environment) na qual acontece, para usar um termo do próprio Dewey. Portanto, uma das funções sociais da educação mais importantes na teoria dele é a de fornecer um ambiente simplificado, para, aos poucos, levar o aluno a um ambiente cada vez mais complexo. Além disso, é a função da escola eliminar dentro dela, na medida do possível, os aspectos problemáticos do ambiente social existente, para não influenciar a mente do jovem. Assim, seria possível, na opinião de Dewey, “estabelecer um médium purificado de ação” dentro da escola. O que não é desejável seria eliminado do ambiente escolar, o que é “madeira morta do passado” e o que é “perverso”. A escola tem o dever de eliminar do seu ambiente tais coisas e assim fazer o que pode para contrapor sua influência no ambiente social ordinário. Na seleção do melhor para seu uso exclusivo, ele tenta reforçar o poder do melhor. Na medida em que uma sociedade se torna mais esclarecida, percebe-se que é sua responsabilidade não transmitir e conservar todas as suas realizações, mas somente aquelas que permitem uma sociedade futura melhor. A escola é sua agência principal para alcançar esse fim. (Ibidem: 20) Outra função social da escola, segundo Dewey, é a de oferecer um equilíbrio de elementos no ambiente social, permitindo que cada aluno entre em contato com um ambiente mais largo e não ficar preso nas limitações do grupo social no qual nasceu. Dewey reconhece o que hoje em dia chamamos da pluralidade ou diversidade das sociedades, sendo uma coleção de grupos diferenciados. Os grupos identificados por Dewey são a família, uma cidade pequena ou um grupo de amigos numa comunidade, um grupo de negócios ou um clube, entre outros. Além desses grupos, ele identifica grupos raciais, de afiliação religiosa e grupos divididos economicamente, observando que “dentro da cidade moderna, a despeito de sua unidade nominal, provavelmente há mais comunidades, mais diferenças de costumes, tradições, aspirações e formas de governo ou controle, que existiam num continente inteiro numa época anterior” (ibidem:21). No entanto, sua análise não contempla a divisão de sociedades em classes sociais. Ou, melhor dizendo, reconhece a existência de classes sociais em conflito entre 457

si, mas não inclui na sua análise as causas desse conflito no modo de produção capitalista. A questão que precisa ser feita é: Quem controla esse ambiente – dentro e fora das escolas – no qual jovens são educados? Como muitos liberais antes e depois – John Rawls e Jürgen Habermas são exemplos - Dewey reconhece o pluralismo de valores e até o multiculturalismo das sociedades contemporâneas, mas ignora a estrutura de classe social e como essa determina a educação dos jovens. Dewey dá ênfase na diversidade porque acredita, nas palavras de uma comentarista, que “experiência e conhecimento como perspectiva são inerentemente pluralísticos. Qualquer Self incorpora, pela sua própria natureza, tanto a conformidade à perspectiva do grupo como a criatividade da sua perspectiva individual e única” (Rosenthal, 2002: 214) O crescimento do Self é um processo de interação entre essas instituições, tradições e padrões de vida do grupo – pela comunicação -, que condicionam a emergência da perspectiva do indivíduo. Por sua vez, essa perspectiva pode condicionar a do grupo, portanto formando a dinâmica de uma comunidade. Assim, Compreender sua própria postura em relação a qualquer assunto é entender que é inerentemente uma perspectiva e a luz que outras perspectivas podem dar a ele. O desenvolvimento da habilidade para criar tanto como responder construtivamente à criação de perspectivas novas, bem como com simpatia, é o crescimento do self (Rosenthal, ibidem: 216). Se o crescimento do Self e da comunidade necessita uma compreensão simpática de uma variedade de interesses diversos, então uma sociedade democrática seria a melhor para o desenvolvimento de ambos, permitindo um intercâmbio de interesses e perspectivas entre os membros de um grupo e entre grupos. Também, um Self democrático seria tanto um produto como um determinante de tal comunidade. No entanto, Dewey é ciente dos perigos de uma sociedade desigual, que pode impor a perspectiva dos dominantes aos outros. De fato, é interessante ver Dewey analisar aspectos do que poderia ser chamado da “internalização” de valores, expectativas, interesses e etc. pela educação15. Também é interessante vê-lo reagir negativamente à frustração de oportunidades e talentos de indivíduos numa sociedade caracterizada por divisões e conflitos, inclusive entre classes sociais. No entanto, não é capaz de penetrar mais fundo para expor as causas desses efeitos que ele identifica com tanta sensibilidade. Ele chega mais perto disso quando afirma: Os modos de controle mais pertinentes e de maior influência são aqueles que operam de momento a momento continuamente sem (…) a nossa intenção deliberada (…) Os hábitos atuais do uso dos produtos de arte humana e os 15

Esse conceito é central à análise de educação em Mészáros. Ver Antunes(2012), para uma explicação.

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materiais primários da natureza são, sem dúvida, o modo de controle social mais profundo e prevalente. Quando crianças vão à escolar, já têm “mentes” – já têm conhecimento e disposições de julgamento que podem ser ativado (appealed to) através da linguagem. Mas essas “mentes” são os hábitos organizados de respostas inteligentes que adquirem previamente enquanto colocam coisas em uso em conexão com a maneira pela qual os outros as usaram. O controle é inescapável; satura a disposição (das pessoas) (….) A mente enquanto uma coisa concreta é precisamente o poder de entender coisas em termos do seu uso. A mente socializada é o poder de compreendê-las em termos do seu uso em situações compartilhadas com outros. E a mente nesse sentido é o método de controle social. (Ibidem:26-33, grifos meus). Essa citação mostra quão perto Dewey chegou a identificar o modo de produção como o nexo de controle social. Ele elabora essa linha de pensamento dizendo que é o ambiente social que fornece as condições educativas do cotidiano e direcionam a formação mental e a disposição moral do jovem, não importa qual seja a situação. É por isso que ele enfatiza tanto a educação formal como uma espécie de correção à formação distorcida que o jovem poderia ter no seio da sociedade. Isso mostra sua capacidade de perceber a relação entre sociedade, educação e alienação, mas sem ser capaz de ir além da superfície do problema e analisar suas causas mais profundas. No que se refere à sua concepção de democracia, Dewey dá ênfase não a uma forma de governo, mas à possibilidade ou não de um intercâmbio de experiências, obstruído por relações sociais conflituosas. Quando isso acontece, segundo Dewey, a ação se torna rotineira na parte da classe subalterna e “impulsiva, sem direção e explosiva” na parte da classe no poder. Para Dewey, democracia é primariamente um modo de viver juntos, de compartilhar uma experiência comunicada. A extensão no espaço do número de indivíduos que participam num interesse de tal maneira que cada um tem que referir sua ação a dos outros, e considerar a ação dos outros para dar direção e propósito à dele, é equivalente à quebra das barreiras de classe, raça e território nacional que impedirem que homens percebam o sentido pleno de sua ação. Esses pontos de contato mais numerosos e variáveis denotam uma diversidade maior de estímulos aos quais um indivíduo tem que responder; consequentemente, estimulam a variação de sua ação. Asseguram a liberação de poderes que permaneçam oprimidos enquanto as incitações à ação são parciais, como tem que ser num grupo que, na sua exclusividade, se fecha a muitos interesses (ibidem:87) Mas, como é possível alcançar uma situação de intercâmbio e reciprocidade de interesses se a organização social e econômica de uma sociedade coloca grupos e classes em relações conflituosas e antagônicas?

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Imediatamente depois de citar a concepção de escravidão de Platão, como uma relação “onde homens são engajados numa atividade que serve à sociedade, mas cujo serviço eles não entendem e no qual não tem nenhum interesse pessoal”, Dewey critica o gerenciamento científico do trabalho, prevalente na sua época nos EUA na forma de Taylorismo, como inibindo a reciprocidade de interesses entre trabalhadores e os donos das indústrias. Essa crítica da rotina mecânica imposta pelo Taylorismo e Fordismo é notável, como é também sua crítica da falta da atenção aos fatores humanos e relações sociais no processo de trabalho em indústrias. Isso resulta num estreitamento da inteligência, segundo Dewey, à questão de produção técnica e distribuição de mercadorias. Outra consequência, segundo essa análise, é a “ausência da mente e a distorção correspondente da vida emocional”. Quase uma análise de alienação. No entanto, ele responde a essa situação invocando outro tipo de ciência de gerenciamento, que “descobre as relações de homem com seu trabalho – inclusive suas relações com outros no processo de trabalho – que vai engajar seu interesse inteligente no que está fazendo”. Mais uma vez, Dewey identifica problemas do trabalho alienado sem analisar suas causas reais, as reduzindo a uma questão da ciência de gerenciamento. Outra causa identificada é um “espírito (que) é encontrado onde um grupo tem interesses “próprios” que o fecha à interação plena com outros grupos, acarretando no fato de que seu propósito prevalente é a proteção do que tem, em vez da reorganização e progresso através de relações mais amplas” (ibidem:86), citando a divisão entre ricos e pobres como exemplo desse espírito e contrastandoo com uma situação ideal na qual grupos tem reciprocidade de interesses.16 No fundo, a concepção de democracia de Dewey parece próxima a de Habermas17. Ambos apostam no reconhecimento de interesses compartilhados entre indivíduos e grupos através de um processo de comunicação. No entanto, há diferenças importantes entre os dois autores. No caso de Habermas, o mecanismo principal seria uma democracia deliberativa, na qual uma formação discursiva de opinião pública e uma vontade política na esfera pública criaria um poder comunicativo, que influenciaria os que tomam as decisões, tais como 16

Dewey até chega a dizer que “toda época expansiva na história da humanidade tem coincidido com a operação de fatores que tendem a eliminar a distancia entre povos e classes previamente fechados uns aos outros. Até os supostos benefícios da guerra, na medida em que são mais que supostos, vêm do fato que conflito entre povos pelo menos força o intercâmbio entre pessoas e, portanto, acidentalmente permite que aprendam uns dos outros, e assim expandir seus horizontes. Viajar, tendências econômicas e comerciais, têm quebrado muito as barreiras externas; trazer povos e classes mais para perto uns dos outros e mais propensos a se conectar entre si” (ibidem:86). O problema, claro, é que esses fatores são determinações principais na reprodução e fortalecimento do sistema do capital, portanto reduzindo mais ainda a possibilidade de uma reciprocidade de interesses entre os trabalhadores e os donos de capital. 17

Aliás, Habermas cita Dewey com aprovação (em Habermas, 1996: 306).

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membros do legislativo e executivo.

Tal processo deliberativo é fundamentado num

pressuposto moral universal, embutido em linguagem. O que assegura um possível consenso em torno de interesses em comum é uma estrutura profunda de fala que é neutra em relação aos interesses, valores, desejos e etc. dos participantes em processos democráticos. O Self democrático, em outras palavras, é um Self distanciado de seus próprios desejos, crenças e valores, e motivado somente pela força do melhor argumento. No caso de Dewey, por outro lado, é um processo onde há numerosos e variados pontos de interesse compartilhados e o reconhecimento de interesses mútuos como fator de controle social. Nesse caso, o Self democrático não é ‘raso’, como na teoria de Habermas, mas ‘profundo’, ou seja, não se distancia do conteúdo de seus desejos, crenças, valores e etc. Outro elemento central à concepção de democracia de Dewey é uma mudança em “hábito social – seu ajustamento contínuo através do encontro com situações produzidas pelo intercâmbio variado”. Aqui uma reciprocidade de interesses pode ser motivada racionalmente, mas ancorada em aspectos concretos e substantivos da subjetividade da pessoa e não somente em um procedimento formal.18 No entanto, nem Habermas ou Dewey criticam o sistema econômico capitalista ou o Estado democrático de direito. Em ambos os casos, a proposta é a de que uma reciprocidade de interesses pode ser construída através de comunicação e diálogo.19 Habermas – explicitamente – e Dewey – implicitamente – pressupõem que não há equivalentes funcionais ao mercado capitalista e ao Estado constitucional de direito em sociedades complexas. Portanto, o único papel do socialismo seria o controle das suas consequências mais negativas em vez de transcender esse sistema de organização social e econômico. Dewey chega mais perto de uma análise mais correta quando diz que o “alargamento das preocupações compartilhadas” e “a liberação de uma diversidade maior de capacidades pessoais”, características de democracia, na sua opinião, não são o resultado de deliberação e esforço consciente, mas “foram causadas pelo desenvolvimento dos modos de manufatura e comercio, viajem, migração, e intercomunicação que flui do comando da ciência sobre energia natural” (ibidem:87. Grifo meu). Nota-se o verbo no passado aqui, que pressupõe que essas características são uma realidade, ou seja, que os EUA na época dele já tinham alcançados uma organização socioeconômica que permitiu uma abertura de questões compartilhadas e a 18

Rosenthal (2002) desenvolve uma análise muito interessante das diferenças entre as concepções do Self democrático e do processo democrático em Habermas e Dewey, mostrando a superioridade da concepção de Dewey da de Habermas. 19 Para uma crítica de Habermas, ver Bannell (2013).

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liberação de uma diversidade de capacidades pessoais. Ora, por mais que haja uma maior consciência de diversidade e de questões sociais dentro da população dos EUA, não poderia ser dito que se estende à maioria da população. Mais que isso, é difícil concordar com a afirmação que a sociedade da sua época favoreceu a liberação de capacidades pessoais dos trabalhadores. Mais uma vez, Dewey é ciente disso quando diz, na sua discussão dos objetivos de educação, que Acima de tudo, a constituição industrial da sociedade é, como todas as sociedades que já existiram, cheia de desigualdades. É a meta de educação progressiva participar na correção de privilégio injusto e depravação injusta, não perpetuá-los. Onde o controle social quer dizer a subordinação de indivíduos à autoridade de classe, há perigo que a educação industrial seja dominada pela aceitação do status quo. Assim, diferenças de oportunidades econômicas determinam o futuro de indivíduos. (Ibidem:119-120, grifos meus). Diria que essa situação permanece até os dias de hoje, apesar de um século de tentativas de corrigir esse privilégio e depravação pela educação. E como, desde a discussão de Dewey, as reais causas disso permanecem encobertas, sua solução não poderia apontar para o que é necessário para superar esses problemas. Num momento de seu argumento, Dewey diz que “na medida em que uma sociedade se torna democrática, a organização social quer dizer utilização das qualidades específicas e variáveis dos indivíduos, não a estratificação em classes” (ibidem:97). Se isso for verdade, então poderíamos concluir com confiança que não vivemos em sociedades democráticas. No mesmo texto, ele pergunta: “será que é possível para um sistema educacional ser conduzido por um estado nacional e, ao mesmo tempo, os fins do processo educacional não serem restringidos, constrangidos e corruptos?” (ibidem:97) E continua: “internamente, a questão tem que enfrentar as tendências, devidas às condições econômicas atuais, que divide a sociedade em classes, algumas das quais meramente ferramentas para a alta cultura das outras. Externamente, a questão se relaciona com a reconciliação da lealdade nacional, do patriotismo, com a devoção superior às coisas que unem homens em fins comuns, sem consideração às fronteiras políticas nacionais” (ibidem:98). Minha opinião é que nenhuma dessas questões pode ser resolvida pela educação pública no contexto atual das chamadas sociedades capitalistas avançadas, porque tal educação é restrita, constrangida e corrupta pela lógica do capital.

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Além de compreender os problemas da sua sociedade na medida em que impedem o desenvolvimento de capacidades pessoais, Dewey também teve insights sobre o papel da educação, como no seguinte trecho. Uma sociedade que faz provisão para a participação no seu bem de todos os seus membros em termos equitativos e que assegura reajustamento flexível das suas instituições através das formas diferentes da vida associada é democrática. Tal sociedade deve ter um tipo de educação que dá aos indivíduos um interesse pessoal nas relações sociais de controle, e os hábitos de mente que asseguram mudanças sociais sem desordem. (ibidem:99) Concordo com essa definição de democracia e, em parte, com esses objetivos para educação. Agora, precisamos nos perguntar se o sistema político nas chamadas ‘democracias ocidentais’ é, de fato, democrático e se a educação formal pode contribuir para esse tipo de educação. V.

Democracia e o papel da escola hoje em dia

Não seria uma surpresa para o leitor descobrir que sou muito cético com relação a essas duas perguntas. Como sugeri no início desse artigo, utilizando as palavras de Mészáros, “o mais ‘avançado’ é a sociedade capitalista, o mais é centrado unilateralmente na produção de riqueza reificada como um fim por si só e na exploração das instituições educacionais em todos os níveis, das escolas fundamentais até universidades” (Mészáros, 2007: 294). Tentei documentar esse fenômeno na segunda secção desse artigo. Um dos efeitos disso – além da expansão e acumulação do capital pela Indústria de Serviços Educacionais - é a restrição do que Harvey (2010: 123) chama de “concepções mentais do mundo”. Alguns exemplos seriam a falta da consciência histórica de indivíduos, bem como sua consciência estética, para mencionar somente dois aspectos da formação humana plena, distorcidos ou marginalizados em sistemas escolares contemporâneos. O horizonte temporal de indivíduos é restrito (Mészáros, 2007: 310), restringindo as alternativas de formas de vida imaginadas às que são compatíveis ao sistema do capital. A falta da experiência estética também restringe a imaginação de indivíduos e a rica experiência emocional que o contato com a arte pode fornecer. Claro, essas são hipóteses e não fatos comprovados, mas não tenho dúvida que poderiam ser comprovadas. Outra hipótese é a da distorção da cognição. Por mais que o corpo – bem como o ambiente social e natural – esteja sendo colocado no centro das teorias cognitivas nas ciências cognitivas e da psicologia do desenvolvimento, hoje em dia, a compreensão da cognição que subjaz os currículos e práticas escolares – na maioria dos casos – é cartesiana e kantiana, 463

pressupondo um sujeito desprendido (Taylor, 1989). Junto com isso existe uma ênfase nas capacidades cognitivas que podem ser mensuradas facilmente, tais como aquelas necessárias para a matemática e as ciências naturais. Com isso vemos a marginalização das humanidades em sistemas escolares e universitários no mundo todo. Além disso, a ênfase que Dewey deu à ciência da administração ocupa um lugar central da organização escolar e na formação de professores, testemunhada pela preocupação com liderança, eficiência de sistemas burocráticos e accountability de professores, diretores, secretários e outros envolvidos na provisão de educação. Avaliações de todos os tipos são vistas como instrumentos para melhorar a qualidade da educação, pela responsabilização dos agentes envolvidos na provisão desse serviço social. A terceirização das funções na escola – com exceção das funções pedagógicas, mas, como já vimos, até essas são terceirizadas em muitos contextos20 – também é vista como uma maneira de melhorar a qualidade da educação. É verdade que o conceito de experimentação de Dewey é algo mais profundo, que abrange o envolvimento de todas as capacidades do indivíduo na sua constituição, enquanto a ciência da administração é restrita a poucas capacidades e competências do trabalhador. No entanto, o tipo de experimentação pretendida por Dewey não seria possível numa sociedade dividida em classes sociais, porque o processo de produção não exige um trabalhador polivalente, por mais sofisticados que sejam alguns dos processos envolvidos na produção de bens e serviços. Além disso, no plano político, sociedades ‘democráticas’ contemporâneas não promovem a constituição do Self democrático, no sentido de Dewey. Para isso acontecer, um livre intercâmbio de ideias, interesses, práticas e etc. seria necessário, algo impossível numa sociedade regulada pelos interesses do capital. O papel da mídia de massa, com seu apoio quase irrestrito ao capital mostra isso claramente. Além disso, a maneira pela qual a administração cívica enfrenta o conflito gerado pela desigualdade social e a imposição dos imperativos do capital é outro exemplo. No mundo todo, manifestações estão reprimidas violentamente pela polícia, e legislação anti-protesto é votada por legislativos também orientados pelos interesses do capital. Em tais sociedades, não é possível “providenciar para a participação no seu bem em termos equitativos de todos os seus membros e (…) assegurar o ajustamento das suas instituições através da interação das formas diferenciadas da vida 20

Ball cita um consorcio de companhias trabalhando no mercado de gerenciamento de escolas públicas, na Inglaterra, bem como donos de escolas privadas, reclamando da falta de controle que tem sobre o ensino e aprendizagem das escolas sob seu gerenciamento: “empreendedores líderes em educação acreditam que a iniciativa das Academias não os dá suficiente controle e querem estender contratos PFI para cobrir ensino e aprendizagem” (Ball, 2007: 55).

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associada.”(já foi citado antes; por isso, não achei necessário citar de novo) Portanto, a sociedade brasileira não é democrática, nem pelos critérios de Dewey ou Habermas – e menos ainda pelos critérios de Marx. Que tal a segunda pergunta mencionada acima: será que a educação formal pode produzir um “tipo de educação que dá aos indivíduos um interesse pessoal nas relações sociais de controle, e nos hábitos de mente que asseguram mudanças sociais?” Acho muito improvável hoje em dia pelo fato de que sistemas escolares são dominados pela lógica do capital, como analisado acima. Não pode ser esperado que um sistema determinado pelas imposições do capital abra espaço pelo desenvolvimento de conhecimento, valores e expectativas que vão romper com essa lógica. Ora, com esse comentário não estou pressupondo um postulado abstrato, ou seja, que a educação formal nunca poderia ter um potencial emancipatório. Não estou dizendo que há uma conexão necessária entre a escola pública (e privada) e a reprodução do sistema do capital. O argumento tem como objetivo principal mostrar que essa conexão é, de fato, forte hoje em dia nos sistemas escolares com os quais estou familiarizado. A relação é contingente, sem dúvida, mas não é menos importante por conta disso. Mas, como qualquer mercado, é sujeito a contradições e fraturas. Como Ball (ibidem: 83) diz: “é importante não exagerar o grau de ordem e pensamento dentro do mercado. Existem muitas contradições dentre e entre políticas, e brechas entre retórica e prática. Dentro do entusiasmo pela privatização há muitas inconsistências e experimentos – ‘discursos de chance, processos de busca, transferências de políticas e lutas sociais’”. Atrás dessas inconsistências e contradições há o que David Harvey, na sua análise do enigma do capital (Harvey, 2010: 121ss), chama de “esferas de atividade”, que contribuem para a circulação e acumulação de capital. Essas esferas são embutidas em arranjos institucionais, inclusive nas estruturas do Estado. Entre as sete esferas necessárias e mutuamente determinantes na reprodução do sistema do capital, destaca-se a que ele chama de “concepções mentais do mundo” – estruturas do conhecimento e normas culturais e sistemas de crença (ideologias políticas e religiosas). Mais uma vez, podemos ver uma semelhança com a concepção da “mente” em Dewey, discutida acima. A diferença é que Harvey incorpora esse conceito na sua análise aguda da circulação e acumulação do capital, mostrando como é essencial para a reprodução do sistema do capital. Com relação a essa esfera, Harvey diz que “mudanças em concepções mentais tem todo tipo de consequência pretendida e não-pretendida para formas tecnológicas e organizacionais aceitáveis, processos de trabalhos, relações para 465

com a natureza, relações sociais, bem como arranjos institucionais” (ibidem: 123). Por isso a educação, no sentido mais amplo, é tão importante para a superação do sistema do capital, porque mexe nessas concepções mentais e, portanto, pode produzir consequências – algumas não pretendidas - que operam como determinantes da reprodução ou da superação do sistema do capital. A escola pode ter um papel na mudança das concepções mentais dos jovens? Bem, em primeiro lugar, a escola ensina capacidades básicas necessárias para uma compreensão crítica do mundo. Vivemos num mundo de alienação, mas alguns são capazes de compreender sua posição alienada, mesmo não sendo capazes necessariamente de mudá-la. Isso não seria possível sem a aprendizagem de capacidades básicas, tais como leitura e escrita. Podemos incluir nessa lista conceitos básicos de ciências e matemática, embora haja maneiras diferentes de ensinar a ciência, algumas mais progressivas que outras21. Mesmo aqui há influências ideológicas fortes, como mostra a luta entre a evolução natural e o criacionismo. Até conceitos básicos de matemática são contestados por aqueles que defendem sistemas de crenças diferentes daqueles incorporados nas estruturas do conhecimento europeias.22 No entanto, quando chegarmos às ciências sociais e humanas a questão é bem mais complexa. A influência das ideologias políticas é muito forte nessas estruturas do conhecimento. O exemplo da história talvez seja o mais óbvio, mas a geografia também é um campo de conhecimento disputado, ambas as disciplinas centrais no currículo escolar. Ora, seria um milagre se sistemas públicos de ensino em países capitalistas promovessem um conteúdo nessas disciplinas que realmente ajude o aluno construir uma consciência histórica e uma compreensão da sua sociedade. Isso não foi o caso em minha escolarização, qualquer consciência temporal que consegui construir sendo resultado de experiências de aprendizagem fora da escola. Diria a mesma coisa com relação à consciência estética. Por isso, a educação extra-escolar é tão importante. Conclusão Nesse artigo, tentei mostrar como a expansão e acumulação do capital – especificamente nas últimas décadas - levou à sua incorporação pelos sistemas escolares na Europa, América do Norte e no Brasil, pelo menos: nas formas organizacionais e tecnológicas; nas relações sociais; nos arranjos administrativos e institucionais; no processo de produção do 21

Para uma discussão do ensino de ciências com relação ao conceito de cidadania, por exemplo, ver Prata e Bannell (2011). 22 O pensamento educacional pós-colonial na América do Sul é um exemplo disso. Ver a coletânea editada por Candau (2009).

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conhecimento e do trabalho; e nas concepções mentais do mundo aceitáveis e necessários para esse processo. As consequências disso estão sendo reveladas agora em todos esses países, além de outros, principalmente a regulação e reprodução da vida diária nos interesses do capital, com consequências humanas cada vez mais catastróficas. Algumas foram pretendidas por aqueles que têm como objetivo e interesse a reprodução do sistema do capital; outras nem tanto. São essas outras, junto com a aprendizagem extra-escolar fornecida pelos grupos lutando para superar o sistema do capital, que precisam ser nosso foco de atenção, para estimular uma mudança nas esferas de atividade que determinam a reprodução e transformação da sociedade, especialmente as concepções mentais do mundo. No entanto, diferente de John Dewey, não é possível pensar que mudanças nas concepções mentais do mundo seriam suficientes para promover uma transição para outra organização socioeconômica, nem ignorar como tais concepções são determinadas pelas outras esferas de atividade e como a escola é implicada nessas esferas. Por isso, é preciso analisar essas outras esferas de atividade para entender suas contradições e brechas, permitindo a ação que pode romper com a lógica do capital e começar a instalar outra lógica – nos interesses da sobrevivência da humanidade. Referências ANTUNES, C. (2012) A Educação em Mészáros: Trabalho, Alienação e Emancipação. São Paulo: Autores Associados. BALL, S. J. (2007) Education plc. Understanding private sector participation in public sector education. London: Routledge. BALL, S.J. (2012) Global Education Inc. New policy networks and the neo-liberal imaginary. London: Routledge. BANNELL, R.I. (2013) O Estado democrático e a Educação. In R. L. Rodrigues (Org.) A Educação Escolar no Século XXI. Juiz de Fora: UFJF. CANDAU, V.M.F. (Org). (2009) Educação Intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras. DEWEY, J. (1916) Democracy and Education. An Introduction to the Philosophy of Education. New York: Free Press. FRIGOTTO, G. (1995) Educação e a Crise do Capitalismo Real. São Paulo: Cortez. GENTILI, P. (1995) Petrópolis: Vozes.

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