O Estado “Incendiou” o Caldeirão: um estudo acerca do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto e a responsabilização do Estado Brasileiro

July 21, 2017 | Autor: R. Rodrigues do N... | Categoria: Human Rights, Brazilian History, Transitional Justice, Brazil, Nordeste do Brasil
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VIII Encontro da ANDHEP - Políticas Públicas para a Segurança Pública e Direitos Humanos 28 a 30 de abril de 2014, Faculdade de Direito, USP, São Paulo, SP

Grupo de Trabalho: Justiça de Transição e Direitos Humanos

São Paulo, 2014

O ESTADO “INCENDIOU” O CALDEIRÃO: UM ESTUDO ACERCA DO MASSACRE DO CALDEIRÃO DE SANTA CRUZ DO DESERTO E A RESPONSABILIZAÇÃO DO ESTADO BRASILEIRO1,2 “Nada é oculto que não se descubra”. Padre Cícero do Juazeiro

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Setenta e sete anos separam 2014, ano de publicação deste estudo, de 1937, ano em que ocorreu, na Chapada do Araripe/Ceará, o fatídico massacre dos habitantes do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. O massacre foi promovido por agentes estatais que serviam aos interesses da Igreja e dos coronéis cearenses, sob o pretexto de que os camponeses massacrados – romeiros do Padre Cícero e flagelados da seca, a grande maioria composta de iletrados – seriam, na verdade, subversivos de aspirações comunistas, bem como uma perigosa turba de fanáticos religiosos. As razões que motivaram o massacre mostraram-se totalmente infundadas. Infelizmente, ainda não é possível ver qualquer tipo de efetuação da justiça promovida pelo Estado, mesmo que quase um século tenha se passou desde o cometimento das violações de direitos humanos. A própria História parece silenciar, pois poucos são os que conhecem a saga do Caldeirão e seus habitantes, inclusive dentro do Nordeste, onde a figura do Padre Cícero (personagem de importância fundamental para o surgimento e a destruição do Caldeirão) é extremamente reverenciada e difundida. Resta possível, então, notar que este estudo terá seu foco na comunicação denunciatória e no registro de um massacre cometido pelo Estado, tendo em vista que nenhuma ação de reconhecimento e reparação foi efetuada. O direito à memória e à verdade, de tão simples reconhecimento, tem sido (no mínimo) negligenciado, fato esse que atinge não só as vítimas3, seus familiares e os herdeiros4 do legado do 1

Autor: Raul Victor Rodrigues do Nascimento, graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Coautor: Fábio Wellington Ataíde Alves, juiz de Direito, mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor da UFRN. 3 Os sobreviventes do massacre, embora sejam igualmente vítimas, serão chamados de remanescentes. 4 O termo herdeiros tem um significado especial dentro deste estudo, pois engloba não especificamente os descendentes ou familiares daqueles que sofreram as violências efetuadas pelo Estado no contexto do Caldeirão. Os herdeiros seriam, além dos descendentes, aqueles que hoje procuram reviver a experiência social e, por que não, o sonho de igualdade e trabalho justo destruídos por forças estatais em 1936. Hoje, os herdeiros do Caldeirão poderiam ser bem representados (embora a eles não se restrinjam) pelos habitantes do Assentamento 1º de Abril, localizado em propriedade vizinha à do Caldeirão, assentamento este que surgiu inspirado pelo exemplo dos camponeses vitimados em 1937. A função do Caldeirão como

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Caldeirão, mas todo o povo brasileiro, o qual, sem dúvida alguma, é um dos sujeitos do direito lesado. O panorama da situação é de um profundo desinteresse e descaso por parte do Estado, que não reconhece a violação cometida e não pretende efetuar qualquer tipo de justiça para com as vítimas do massacre e seus herdeiros, prova disso é o resultado da ação ajuizada5 neste sentido. Caberá, então, assentar este estudo sobre um alicerce histórico que disponha também de sugestões capazes de permitir o reconhecimento da violação e a tão necessária efetuação da justiça. Assim, a primeira parte deste estudo será um relato histórico baseado na historiografia e, principalmente, nos relatos (obtidos majoritariamente no século passado) de vítimas diretas – remanescentes – e indiretas – seus descendentes e familiares. A segunda parte será o conjunto de sugestões e direcionamentos para a efetuação da justiça no caso, partindo do exemplo do Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, acerca de violações similares cometidas pela ditadura militar no contexto da Guerrilha do Araguaya. Não se espera que este estudo possa realizar um revés na situação, e que com isso resolva a questão que há 77 anos permanece irresoluta. Pelo contrário, se vislumbra perfeitamente os obstáculos ante a obtenção da justiça e a efetivação da memória e da verdade. Ainda assim, o esforço aqui descrito se dará no sentido de contribuir para que, num futuro, possa-se ao menos reconhecer o exemplo e a existência do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, tanto como capítulo da história brasileira, quanto como grave violação de direitos humanos perpetrada pelo Estado. 2. O CALDEIRAO DE SANTA CRUZ DO DESERTO “Se nada somos em tal mundo, sejamos tudo, ó produtores.” A Internacional

Esta parte do estudo disporá da história do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, desde os acontecimentos que contribuíram para sua criação até alguns dos fatos

exemplo e norte ideológico será mais bem descrita na seção que versa sobre o legado da experiência do Caldeirão. 5 Tal ação, que teve apelação improvida, foi arguida pela ONG SOS DIREITOS HUMANOS. Infelizmente, padeciam de defeitos, mas, ainda assim, os magistrados que a julgaram deveriam, como aplicadores da justiça, ter tido uma postura que visasse efetiva-la, ou, no mínimo, permitir sua efetivação, haja vista que os direitos lesados foram direitos humanos.

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ocorridos após seu desfecho. As obras de Veralúcia Gomes Maia6, Judson Jorge da Silva7 e Rosemberg Cariry8 fornecerão, em grande parte, o referencial teórico para esta parte do estudo, tendo em vista seu potencial bibliográfico, a profundidade dos detalhes e a autoridade dos autores enquanto pesquisadores de relevante produção acadêmica acerca do fenômeno especificado. 2.1 O Padre Cícero, o Beato José Lourenço e os romeiros do Juazeiro Cícero Romão Batista, o Padre Cícero, é um dos personagens de maior destaque dentro da saga do Caldeirão. Pode-se dizer que seu primeiro grande “milagre” – em contraposição com o tradicional milagre das hóstias que se transmutavam em sangue na boca da Beata Maria de Araújo (LOURENÇO FILHO, 2002) – foi a “transmutação” do Juazeiro, outrora mais um entre os muitos povoados nordestino, depois cidade que recebia diariamente centenas de novos habitantes. Juazeiro tornou-se o maior destino dos romeiros do Nordeste – provavelmente do Brasil. Para o Juazeiro emigravam constantemente os romeiros do Padre Cícero: multidões de flagelados, todos em busca das benções do Padre Cícero e da possibilidade de uma nova vida sem a opressão dos coronéis, da miséria e da seca. Incluído nesses migrantes estava José Lourenço (MAIA, 1987), natural de Pilões de Dentro, Paraíba. Partira para Juazeiro no ano de 1890 em busca de sua família, que havia migrado para o Juazeiro anos antes. Nos anos que se seguiriam, o “Beato Zé Lourenço” desempenharia o papel mais central dentro da história do Caldeirão. Foi o Padre Cícero quem propiciou a primeira experiência social liderada pelo Beato. Entre 1894 ou 1895 e 1926, José Lourenço e sua família arrendaram o Sítio Baixa Danta, no Crato, por conselho do Padre Cícero, segundo depoimentos de remanescentes do Caldeirão (DA SILVA; ALENCAR, 2009). Rotineiramente, o Padre enviava contingentes de romeiros para trabalhar e morar no sítio arrendado por José Lourenço, o que significava o incremento constante de mão-de-obra nos campos de cultivo e oficinas artesanais mantidas em Baixa Danta. 6

A dissertação escrita por Veralúcia Gomes Maia em 1987, para mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, parece ser o mais completo documento histórico acerca do Caldeirão, visto que registra de forma completa e detalhada fatos concernentes ao início, meio e fim do Caldeirão dentro de suas 242 páginas. 7 Além das obras escritas sobre o Caldeirão, este pesquisador, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Ceará, possui uma extensa lista de publicações que versam sobre os conflitos agrários no sertão do cariri, interior do Ceará, alguns destes abordam, inclusive, a questão do Caldeirão e seu grande legado histórico-social para os camponeses cearenses. 8 Rosemberg Cariry produziu dois documentários de grande valor histórico, social e cultural: Juazeiro – A Nova Jerusalém, de 2001, sobre a vida do Padre Cícero e seus reflexos na cidade do Juazeiro; e O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, de 1985, sobre o Caldeirão, o qual, evidentemente, teve grande mérito na construção deste estudo.

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Isto se deu porque o Juazeiro havia vivenciado um crescimento populacional extremamente acelerado em decorrência das levas de romeiros que chegavam todos os dias. Tal crescimento representava um grande aumento nas necessidades de alimentar, vestir e cuidar dos romeiros que chegavam cotidianamente e daqueles que ali já viviam (O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). Para o Padre Cícero, a resolução encontrada para a situação foi enviar esses romeiros para os sítios nas cercanias, em especial o Baixa Danta e, posteriormente, o Caldeirão. Tais necessidades – a de abastecer e a de dar destino e ocupação aos romeiros que chegavam à cidade do Juazeiro – impulsionarão as duas experiências lideradas por José Lourenço, e nortearão a execução da “política migratória” do Padre Cícero. Cabe, por fim, a descrição dos romeiros, visto que – embora muitos não sejam nomeados – foram eles os principais personagens da saga do Caldeirão, e mesmo o Beato José Lourenço (e em certa escala o próprio Padre Cícero) pode ser denotado nesta descrição, conquanto integrantes da maior parte da sociedade nordestina do século XX. A descrição do povo nordestino no século XX descreve os romeiros: eram majoritariamente pobres, a maioria de miseráveis, muitos deles doentes. Iletrados, negros e mestiços, flagelados da seca (RIBEIRO, 1995), conformados sob a doutrinação da Igreja, fustigados pelo mando e desmando dos coronéis. Assim, a grande devoção dos nordestinos pelo Padre Cícero – e pelo Beato – dá-se, em grande parte, por sua identidade comum: ambos eram nordestinos, ambos sofreram da seca e da opressão. O profano e o divino se mesclam à vista dos olhos e sobre a terra seca. 2.2 Baixa Danta e o incidente do Boi Mansinho A primeira experiência de José Lourenço ocorrera no Sítio Baixa Danta, município de Crato, Ceará. Iniciou-se entre 1894 e 1895, tendo seu fim cerca de 31 anos depois, no ano de 1926. Nutrida pela mão-de-obra dos romeiros que chegavam continuamente ao Juazeiro, a propriedade tornara-se muito produtiva, sendo guiada pelo trabalho voltado para o bem comum, assim como pela fé católica e suas expressões nordestinas características: orações, novenas, terços, rezas e procissões. Sobre a produtividade diversificada de Baixa Danta, Da Silva e Alencar (2009) aduzem que ali se realizaram extensas plantações de fruteiras, junto do cultivo de algodão, cereais e hortaliças, além de rebanhos de gado. Os frutos do trabalho eram revertidos para todos, na medida de suas necessidades. A experiência em Baixa Danta, mais que agrária, era social. Cabe, por fim, salientar que durante a Sedição de 4

Juazeiro Baixa Danta provisionou a cidade do Padre durante o conflito (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009). Pouco depois, foi invadida e arrasada por jagunços. O incidente do Boi Mansinho, ocorrido em 1921 (CORDEIRO, 2006), marca o declínio da experiência social executada por José Lourenço em Baixa Danta. É também um prenúncio do que findaria a segunda experiência (a do Caldeirão), tendo em vista a “similaridade” dos interesses que propiciaram sua eliminação. Antes de tudo, porém, é importante ter especial cuidado com a apresentação dos fatos, para que se separe a verdade do mito e o difamatório do real, para que se efetuar, desde já, a verdade e a justiça à memória dos envolvidos. O Boi Mansinho teria sido confiado (ou presenteado) a José Lourenço pelo Padre Cícero. Era um belo animal9; manso, logo despertaria o afeto e os especiais cuidados do Beato e seus seguidores. Transformara-se, também no reprodutor do rebanho do Sítio Baixa Danta (O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). Tais cuidados, porém, despertariam a atenção de Floro Bartolomeu, braço direito do Padre Cícero e líder político do Juazeiro. Acusado de promover culto ao touro (e de rivalizar com o culto ao Padre), José Lourenço é preso e o boi é sacrificado em praça pública. Aqui a preocupação vem à tona, tendo em vista que o incidente do Boi Mansinho, majoritariamente, é historicamente retratado como uma expressão do fanatismo e da superstição. De certa forma, é inclusive uma espécie de difamação, pois descreve a figura de José Lourenço e seus seguidores como a de verdadeiros lunáticos doentios, capazes de venerar, no seio de um dos centros religiosos mais “cristãos” do Nordeste e em pleno século XX, a figura animalesca de um boi, utilizando-se de suas fezes, urina e lascas dos cascos como remédios e relíquias. O próprio Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro (1995, p.356), perpetuou o mito: “José Lourenço do Caldeirão, no Ceará, dirigia o culto a um boi milagreiro, cuja urina era recolhida, com veneração, como medicina eficientíssima contra qualquer enfermidade”. Lourenço Filho (2002, p. 79) é irônico ao dizer que “todos se prosternavam em adoração, porfiando em lhe cambiar o alimento, que variava das mais frescas ervas aos mingaus, papas e bolos. O boi ruminava, e agradecia com milagres...”. 9

Não há, tampouco, consenso acerca do boi. Segundo Araújo Gomes (2009), era um touro de raça. Maia (1987) aponta que seria um animal mestiço, concepção da qual Lourenço Filho (2002) partilha e vai além: seria um “garrote mestiçado de zebu” (p.78). Considera-se importante conhecer uma descrição apurada do Boi Mansinho porque, aparte seu suposto caráter sagrado, teria exercido sua “fascinação” junto a José Lourenço e seus seguidores por ser uma representação da bonança e da fartura, tendo em vista o quanto era raro, e até inusitado, camponeses terem em seu rebanho um animal de raça, no Nordeste do século XX.

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Este estudo filia-se ao entendimento de Maia (1987), Cordeiro (2006) e Araújo Gomes (2009), no sentido de que o incidente do Boi Mansinho teria sido mais do que um combate ao “fanatismo”. Sacrificar publicamente o boi “milagreiro” fora, em última análise, uma forma de reafirmar e assegurar a relação de dominação exercida entre o coronel (Floro Bartolomeu) e seus dominados (o Beato e seus seguidores). Para o opressor, a prosperidade de Baixa Danta, encaminhando-se para uma justiça social sob a liderança do Beato (DA SILVA; ALENCAR, 2009), era uma ameaça crescente. Para livrar-se dos “fanáticos”, a propriedade é vendida em 1926. Os seguidores de José Lourenço são desapropriados sem receber indenização alguma pelas benfeitorias realizadas, direito expressamente previsto pelo Código Civil de 1916 em seus artigos 1112 e 111310. Por outro lado, o próprio incidente do Boi Mansinho compôs, desde já, uma violação de direitos fundamentais garantidos pela Constituição de 189111 – Art. 11, II e Art. 72, §3º- à época em vigor. Já se descortinaram aqui os elementos de maior influencia junto à saga do Caldeirão: i) o trabalho para o bem comum integrado à fé como promotor da justiça social e da humanização dos oprimidos; ii) a Igreja como opositora dessa humanização; iii) o Estado e seus agentes como violadores de direitos, influenciado por interesses particulares; iv) a ocorrência constante de violações de direitos e a total ineficácia e a inobservância das normas que deveriam realizar sua promoção. 2.3 Nascimento e triunfo O Caldeirão surge com o fim da comunidade no Sítio Baixa Danta, em 1926. O Padre Cícero, então, direcionaria os camponeses expulsos, liderados pelo Beato, para uma propriedade sua no sopé da Chapada do Araripe, o Caldeirão12. A comunidade 10

Código Civil de 1916: Art. 1.112. As benfeitorias necessárias ou úteis, não abonadas ao que sofreu a evicção, serão pagas pelo alienante. Art. 1113. Se as benfeitorias abonadas ao que sofreu a evicção tiverem sido feitas pelo alienante, o valor delas será levado em conta na restituição devida. 11 Constituição de 1891: Art. 11. É vedado aos Estados, como à União: II. estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 3º - Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum. 12 O nome da propriedade, segundo Judson Jorge da Silva e Francisco Amaro Gomes de Alencar, é “proveniente das formas geológicas denominadas de Caldeirão, que são

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terminaria abruptamente dez anos depois, desmantelada por foças do governo em 1936, dois anos após a morte de seu “padrinho”, o Padre Cícero. Em 1937, remanescentes da comunidade seriam massacrados na lôbrega noite de 11 de maio. Nas palavras de Eleutério, filho de Severino Tavares, o pregador do Caldeirão: Eu fui com o beato para o Caldeirão. Em agosto de 1926. Nesse tempo não tinha nada. Era só as mata fechada. Eu e o meu pai, Severino Tavares... Aquilo ficou a coisa mais bonita do mundo. Era tanta plantação! Ali ninguém passava fome. O beato dava as ordens e todo mundo trabalhava. Era muita terra, tudo plantada. Lá era tudo na ordem. Não tinha uma desordem. Tinha reza e penitência. Cada família recebia aquele tanto de comida. Em 26 a polícia foi lá e acabou com tudo... Tudo... Ainda hoje eu não gosto nem de falar sobre isso... (RAMOS, 1998, p. 6).

As ferramentas, os insumos e os animais que os camponeses traziam consigo após a expulsão do Sítio Baixa Danta foram de fundamental ajuda para a estabilização e o início das atividades na nova propriedade. Em poucos anos, a produção do Caldeirão – nos moldes comunitários do trabalho voltado para o bem comum orientado pela fé – viria propiciar-lhes a autossuficiência em matéria de víveres e de determinados bens (CORDEIRO, 2006). Na região em que imperava o sistema de “servidão” coronelista, a independência do Caldeirão era ousada e perigosa. Da Silva e Alencar (2009) esboçam uma descrição da diversidade produtiva do Caldeirão. Ali se faziam roupas de tecido produzido nos teares manuais da propriedade, com o algodão cultivado em seus próprios campos; bem como ferramentas de trabalho, panelas, sabão, baldes, artefatos de couro, frutas, carne, açúcar, rapadura, farinha, leite e derivados. As oficinas especializadas compunham uma pequena indústria dentro do Caldeirão. Só se recorria ao comércio externo para a compra de remédios e de querosene, para iluminação. A grande seca de 1932 veio consagrar o triunfo do Caldeirão enquanto experiência social. Centenas de sertanejos flagelados, fugindo da seca, partem para as grandes cidades em busca de esmolas, onde se amontoam nos subúrbios. A solução encontrada pelo governo cearense para impedir os “riscos da mobilidade” dessa massa “perigosa” foi criar campos de concentração nas maiores cidades, onde deveriam acolher, alimentar e cuidar dos sertanejos fustigados pela seca (NEVES, 2001). Acabaram sendo alcunhados com o título de “currais do governo”. escavações realizadas pela força das águas nas rochas, ocasionando a dissecação do relevo e formando espécies de reservatórios naturais que acumulavam água inclusive nos tempos de estiagem, favorecendo a agricultura no local” (2009, p. 130).

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O Crato sediou o maior “curral do governo”, que chegou a abrigar cerca de 60 mil sertanejados (NEVES, 2001). Ali, muitos morriam diariamente, seus corpos sendo enterrados

em

grandes

valas

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A

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mortis

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empanzinamento pelo único alimento disponível: farinha de mandioca, já que a corrupção dos políticos do Crato desviava a verba do governo federal que era destinada à compra de alimentos e subsídios para os sertanejos dentro dos campos de concentração (O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). O Caldeirão, que também sofrera os efeitos da seca, se manteve graças a sua própria estrutura agrícola e social, tendo tido condições para alimentar cerca de 500 flagelados que recorreram ao seu amparo (DA SILVA; ALENCAR, 2009). O Caldeirão triunfara. Triunfara sobre os coronéis, com seus grandes rebanhos de gado e de servos perdidos e dispersos; por sobre a servidão semifeudal, com a liberdade e a humanização; por sobre a seca, com a manutenção e a promoção de uma vida digna. Em relato colhido por Cordeiro, as palavras de um remanescente são consoantes: Lá tanto fazia um, como todos. Era de todo mundo. Não tinha isso de dizer esse é mais meu... Era tudo uma coisa só, era tudo igual, não tinha isso de um ser mais merecido do que outro, não. Repartia. Partia o boi todo para os trabalhadores, né?. Os moradores cada um ia e pegava para fazer suas comidas... Eu achava muito bom. Todo mundo achava. Se não fosse [assim], o povo não queria ficar lá. Mas, ele também não obrigava rezar. Ele dizia: vamos rezar. Quem quisesse rezar, rezava. Ele não obrigava a rezar, não. Amanhecia o dia cada um sabia o que fazer. O primeiro que se levantava era ele, ia para a roça, aí, os outros iam atrás dele (M.T.M./f/reman./set.-2000). (CORDEIRO, 2006, p. 10).

Tudo isso devido ao seu sistema de produção agrícola, onde os frutos da produção eram igualmente compartidos, e todos se encaixavam em alguma atividade, na medida do seu potencial e das suas capacidades. Ainda que talvez jamais houvesse sequer escutado o nome de Marx e Engels, o Beato José Lourenço aplicara preceitos socialistas de maneira espontânea nas experiências que liderara. Veralúcia Maia endossa tal concepção, ao dizer que: Podemos compreender então que a forma de produção agrícola do Caldeirão era uma forma deveras revolucionária dentro das condições sociais do Brasil e particularmente do Nordeste. Não era apenas uma forma de produção onde existiam associações cooperativistas. Era um sistema cooperativista dentro do próprio grupo, o que vale dizer que já praticavam um sistema socialista mesmo sem conhecer as formas já existentes no mundo, tanto práticas como teóricas (MAIA, 1987, p.121).

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O Caldeirão passou a ser, ele mesmo, alvo de romarias. Os romeiros do Caldeirão, mais que norteados pela fé, voltavam-se para o Beato José Lourenço em busca de uma vida nova. Severino Tavares, uma espécie de pregador do Caldeirão, foi responsável por isso, em suas viagens pelo Nordeste. Os romeiros do Caldeirão, tanto ricos quanto pobres, eram provenientes principalmente do Rio Grande do Norte (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009), e procuravam o Caldeirão para se agregar à experiência de trabalho e fé. Ironicamente, o fim do Caldeirão decorre de seu sucesso enquanto experiência revolucionária capaz de contestar e ultrapassar as amarras do latifúndio dos coronéis. Seria o seu sistema de produção, um “socialismo” concebido independentemente por meio da prática, o responsável por captar a atenção dos agentes de Vargas – temeroso de qualquer ameaça comunista à estabilidade de seu governo – e o descontentamento dos coronéis, cuja relação de poder fora duramente afetada. No sucesso do “socialismo” do Caldeirão os coronéis encontraram um bode expiatório. 2.4 Condenação e fim Em 20 de julho de 1934, morre o Padre Cícero, deixando o Caldeirão sem seu “padrinho” e defensor. Pior ainda: em seu testamento13, o taumaturgo dos sertões, no lugar de deixar a terra como herança para José Lourenço e seus seguidores, transfere a propriedade para a Ordem dos Salesianos. O fim da força política do Padre Cícero inicia também o fim do Caldeirão, visto que ela era responsável por manter a comunidade incólume frente ao já muito sensível incomodo dos coronéis e da Igreja. Dois anos depois, o Caldeirão seria destruído por forças militares do Estado. Cordeiro (2006) assinala que a invasão, em 1936, ocorreu num momento importante para o Caldeirão: com mais de mil habitantes, organizavam-se as ruas, urbanizava-se a comunidade, construíam-se casas e erigia-se a igreja (única construção que permaneceu, vale salientar). Até mesmo uma educação básica era fornecida (O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985), por moças letradas provenientes do Rio Grande do Norte – Marina Gurgel, por exemplo – cujas famílias se agregaram ao Caldeirão depois de ouvir a fama da comunidade. 13

Não tenho ascendentes vivos nem tampouco descendentes, e assim julgo poder dispor de meus bens, que livres e desembaraçados se acham, de acordo com as leis do meu País e do modo por que desejo e como se segue e o faço na plenitude de minhas faculdades e da mais livre e espontânea vontade: – Primeira – Deixo para a Ordem dos Padres Salesianos todas as terras que possuo nos sítios Logradouro, Salgadinho, [...] o sítio Baixa Danta, no município do Crato; as fazendas Letras, Caldeirão e Monte Alto, [...], com todas as benfeitorias e gados nela existentes; (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 157).

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Segundo Araújo Gomes (2009, p. 9), “a igreja, através do bacharel [e deputado] Raymundo Norões Milfont, representante jurídico dos padres, solicitou a reintegração de posse do sítio do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto,” ainda que o José Lourenço e sua comunidade houvessem demonstrado interesse em comprar a propriedade. Paralelamente, a “ameaça comunista” que permeou a ditadura Vargas fez com que fossem promovidas investigações policiais em torno do Caldeirão. A investigação, sob o comando do capitão José Bezerra da Polícia Militar do Ceará, intensificou-se após a chegada de três caixotes de conteúdo suspeito no Caldeirão, oriundos da Alemanha. Dizia-se que estariam cheios de armas14 e munição. Depois, descobriu-se que as caixas continham, na verdade, três imagens15 sacras (O CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985), encomendadas para compor o altar da recém-construída Igreja de São Inácio de Loyola. A suspeita mostrou-se infundada com após uma inspeção em busca das tais “armas”. Segundo Veralúcia Maia, o pretexto para o fim do Caldeirão veio com a deflagração da Intentona Comunista em Natal (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009), no dia 23 de novembro de 1935. Sabendo que grande parte da população do Caldeirão era oriunda do Rio Grande do Norte, seria de grande risco à estabilidade do governo manter impune tal massa de “subversivos” no seio do Ceará. Então, no Palácio da Luz, em Fortaleza, encontraram-se representantes da Igreja, do governo e da sociedade civil16 para determinar o destino do Caldeirão. Eles, então, ouviram os relatos produzidos pelo capitão José Bezerra. Ele afirmava que as forças públicas precisavam agir com rapidez para evitar o surgimento de uma nova Canudos. O argumento do capitão preenchia a necessidade de uma lógica maior. O fim do Caldeirão estava decretado (ARAÚJO GOMES, 2009, p. 9).

A polícia invadiu o Caldeirão em 11 de setembro de 193617. Forças policiais militares e civis18 adentraram na comunidade, prenderam a maioria dos homens na

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As únicas armas no Caldeirão eram machados, foices e enxadas, todas eram ferramentas de trabalho, além de uma velha espingarda de caça que pertencia ao Beato (MAIA, 1987). 15 Além da estátua de São Inácio de Loyola estavam as de São José e Nossa Senhora da Conceição (JOSÉ LOURENÇO, 2009). 16 O governador do Estado do Ceará, Meneses Pimentel; o chefe da polícia do Ceará, capitão Cordeiro Neto; o Bispo do Crato, Dom Francisco de Assis Pires (JOSÉ LOURENÇO, 2009). 17 Importante saber que a comunidade teve mais de uma década de existência, o que lhe garantiria, pelas Constituições de 1934 e 1937, a usucapião pro labore da terra, conforme seus artigos 125 e 148, de mesmo texto: “Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele a sua

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casa de engenho, outros foram cativos em suas casas, outros ainda foram concentrados no cruzeiro. Destruíram as plantações, mataram os animais do rebanho, queimaram as casas e saquearam bens de valor (CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). Nenhuma vítima foi feita, com exceção de Maria Vieira19, órfã, que, segundo relato de remanescentes, ateou fogo ao próprio corpo temendo ser violada. O desrespeito, entretanto, foi flagrante: Você nem imagina. Você é muito novo pra saber o que foi aquilo. Eu num gosto nem de falar. Você acredita que fizeram a maior sujeira, lá no quarto de oração do Beato!? Pois é... Fizeram, lá no quarto de oração, um aparelho sanitário. A polícia fez isso. Eu nunca consigo esquecer isso! (RAMOS, 1998, p. 367).

Muitos foram enviados para a capital do Estado, onde ficaram cativos do DEOPS20 (Departamento de Ordem Política e Social) de Fortaleza, para interrogatório em torno

morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória devidamente transcrita”. Obviamente, e mais uma vez, José Lourenço e seus seguidores figuram “insujeitos” de direitos. 18 Liderada pelo capitão José Bezerra, auxiliado pelo general José Góes de Campos Barros (JOSÉ LOURENÇO, 2009). 19 Segue o impactante relato, colhido por Ramos (1998, p. 374): Vi quando uma moça se queimou, Maria. Maria Viera era uma moça do Piauí, uma moçona bonita. Porque ela era como eu, num tinha pai nem mãe, num tinha ninguém. Eu tava assim em pé, quando ela chegou e disse assim: - Marina, os soldados tão dizendo que toda moça que num tiver nem pai nem mãe, eles vão carregar tudo pra Fortaleza, pra fazer o que quiserem! Marina o que é que a gente faz? Eu digo: - Maria, nós vamos fazer o que Deus nos ensinar pra nós fazer (RAMOS,1998). Aí ela saiu. Eu vi quando ela saiu com a garrafa na mão. Eu nunca pensei que ela ia se queimar. Ela foi se queimar no pé do cruzeiro! Lá mesmo no pé do cruzeiro do cemitério, ela se ensopou de gás e tocou fogo com medo de ir simbora mais os soldados. Quando eu vi foi o fogão e o povo dizendo: - Oh! Virgem Maria, tem uma pessoa se queimando. Eu corri, quando eu cheguei lá, ela já tava toda queimada. Os soldado correram tudim, quando chegaram aí disseram: - Olhe, essa moça se incendiou. Agora... Depois, com pouco mais vão dizer que foi nós que botemo gás e tocamo fogo na moça, mas vocês são testemunhas que foi ela com as mão dela. Chegou um sargento e disse: - Tá satisfeita? - Tô sim senhor. Num tô no pé do Cruzeiro? Aí ele respondeu: - Tá. - Pois pronto, tô satisfeita. - Quer acabar de morrer? - Quero. - Você quer morrer de tiro ou de cacetada? - Do que vocês quiserem me matar. Mas eles num mataram não. Ela morreu mesmo da queimadura, porque queimou toda mesmo. Ela ainda tava falando, num sei porquê. Mas queimou! Tava queimada os óio tudo descendo sangue, toda sapecada, que a roupa pegou fogo. Tava só aquele horror! Ela dizia que tava satisfeita porque morria por Deus. Morria no pé da Cruz (Marina Gurgel, 1989). 20 Espécie de polícia política que tinha por função identificar, neutralizar e punir qualquer ação ou movimento contrário à ordem política vigente, no caso, a ditadura de Vargas.

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da “ameaça comunista”, dentre eles estava o pregador Severino Tavares (CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). José Lourenço, avisado com antecedência, fugiu e não foi encontrado. O Caldeirão, enquanto centro urbano, terminara. A comunidade, porém, persistiria até o massacre. Humilhados, alguns dos remanescentes juntaram-se, sob a liderança de Severino Tavares. Em 10 de maio de 1937, o capitão José Bezerra realizou uma diligencia onde21 estavam acampados os seguidores de Severino Tavares, tendo em vista que a massa de remanescentes incomodava a população do Crato. Realizou-se a desforra: o capitão José Bezerra e seu filho – que também estava presente na ocasião – foram mortos (ARAÚJO GOMES, 2009), Severino Tavares ficou gravemente ferido, vindo a morrer pouco depois, e outros 200 foram vitimados22 (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009) segundo dados oficiais da polícia; 700 pelos dados não oficiais (DA SILVA; PIANCÓ, 2005). A desforra provocou violenta repercussão midiática. Os jornais, usualmente difamatórios do Caldeirão, demandavam uma ação enérgica do Estado. Essa ação veio na madrugada de 11 de maio de 1937, quando, por determinação de Eurico Dutra, ministro da Guerra do governo Vargas, a polícia militar do Estado, representada por duzentos homens, e dois aviões23 enviados pelo Ministério da Guerra, comandados pelo capitão José Macedo, atacaram os remanescentes do Caldeirão dispersos na Chapada da Araripe (ARAÚJO GOMES, 2009). Maia discorre acerca do ataque: No dia 11 de maio, foi mandado o tenente Assis Pereira, com 30 homens, para o Juazeiro. O Governo do Estado preparava a 1ª Companhia do 1º BC da Força Pública para deixar Fortaleza nos trens da RVC, sob o comando do 1º tenente Abelardo Rodrigues. O Chefe da Polícia partiu no mesmo dia de avião para o Cariri. Os aviões eram constituídos de Paraíba, Chaco e C38 sob o comando do Capitão José Macedo. Levavam, além dos comandantes, três FM e munição (MAIA, 1992, p.42).

Os mortos, estimados em mil, teriam sido enterrados em uma vala comum, embora outros tantos cadáveres tenham sido deixados insepultos. Um dos ex-prefeitos do Crato admitiu ter encontrado, num só ponto da região, dezesseis crânios de crianças

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Segundo Araújo Gomes (2009, p. 10) “se achavam homiziados em Rasgão e Mata dos Cavalos, no sopé da Serra do Araripe, distante quatro léguas do Crato”. 22 Seus corpos teriam sido incinerados, tendo em vista que os sertanejos não poderiam sepulta-los em razão da quantidade de cadáveres (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009). 23 Há controvérsias sobre como se deu o utilização dos aviões, inclusive se houve bombardeio ou não.

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(CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, 1985). Assim termina a saga do Caldeirão, embora José Lourenço tenha persistido e, durante toda sua vida, tentando recriar a bem-sucedida experiência do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Os sertanejos e romeiros, pessoas de simplicidade, pereceram à míngua, no meio da madrugada, depois de reiteradas e contínuas violações perpetradas pela mão do governo. Primeiro, a opressão dos coronéis e da seca. Em segundo lugar, o incidente do Boi Mansinho. Depois, a expulsão de Baixa Danta, ao que se seguiu a destruição do Caldeirão, e o massacre apoteótico. Por fim, o silencio e o descaso do Estado. A trágica violação permanece, ainda que muito tempo tenha se passado, e nada foi feito para que a situação sofresse alguma modificação.

3. LEGADO E JUSTIÇA “Você vê como é as coisas: antigamente a gente foi perseguido e hoje é todo mundo querendo que a gente fale”. Marina Gurgel, vítima, remanescente e professora do Caldeirão

O relato histórico anteriormente descrito é o ponto de partida para se auferir o que foi feito com relação ao direito à memória à verdade, assim como a justiça para todos aqueles que tomaram parte da comunidade. De antemão, é mais que possível declarar que as poucas iniciativas provenientes do Estado para sua realização foram ínfimas e extremamente pontuais. A violação continua, na medida em que nada é feito. Assim, se concluirá esta parte com sugestões de formas de reparação e, consequentemente, efetuação da justiça. 3.1 Expressões da justiça Abrão e Torelly (2010) concluem que o processo de justiça transitória após uma abertura democrática é composto por, ao menos, quatro dimensões fundamentais: i) reparação; ii) fornecimento da verdade e construção da memória; iii) regularização da justiça e reestabelecimento da igualdade perante a lei; iv) reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos. Adiante, os autores expõem uma visão otimista acerca da implementação de tais medidas, ainda que reconheçam serem elas incompletas. O Caldeirão não total ficou à margem desse processo. No plano da memória, a Assembleia Legislativa do Ceará, na figura seu canal de televisão, a TV Assembleia, produziu excelente documentário que une a historiografia 13

tradicional acerca do Caldeirão e as correntes minoritárias, contando com depoimentos riquíssimos. Chamado Caldeirão de José Lourenço, o documentário foi produzido em 2009 e está disponível no YouTube24, tendo Veralúcia Maia como sua revisora histórica, bem como o depoimento de Marina Gurgel, professora do Caldeirão, e dos descendentes de Severino Tavares, entre outros. A iniciativa, que com toda certeza contempla o aspecto do fornecimento da verdade e da construção da memória, tem papel importante ao reforçar a imagem de que José Lourenço não era um fanático, fetichista, lunático ou qualquer predicado pejorativo com que foi alcunhado. O próprio incidente do Boi Mansinho, tradicionalmente mais uma difamação ao Beato, é exposto em sua faceta caluniosa com base nas falas de pesquisadores, descendentes e remanescente (CALDEIRÃO DE JOSÉ LOURENÇO, 2009). Por outro lado, a experiência do Caldeirão funciona como verdadeiro legado para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Estado do Ceará25. Judson Jorge da Silva e Ana Roberta Duarte Piancó (2005) são aqueles que melhor exprimem essa realidade quando tratam da experiência do Assentamento 10 de Abril, no Crato/CE, assentamento que hoje tenta recriar a experiência do Caldeirão, após verdadeira saga na qual tentaram ocupar a propriedade original, foram expulsos e, depois de protestos, receberam a propriedade vizinha ao Caldeirão para morar: Os trabalhadores que ocuparam o Caldeirão em 1991 reivindicavam as terras como que lhes sendo de direito, não por serem descendentes diretos dos antigos moradores, mas por se identificarem com a luta e como camponeses que também haviam sido expropriados e que desejavam retornar para o trabalho com a terra. Sendo o Caldeirão um espaço que historicamente pertenceu a uma comunidade camponesa e que se encontrava abandonado, desejavam (re)conquistá-lo (DA SILVA; PIANCÓ, 2005, p. 7).

José Lourenço tem papel patronal em se tratando dos movimentos que contestam a estrutura social arvorada no latifúndio. O Assentamento 10 de Abril foi percursor do movimento que reaviva a memória do Caldeirão. Prova disso é a criação de um assentamento no município de Barro/CE, o qual foi nomeado José Lourenço (INCRA, 2013) em honra ao Beato visionário e seu exemplo. Percebe-se que a memória do Caldeirão e as reparações se efetuam de maneira quase independente por aqueles que são, incontestavelmente, seus herdeiros.

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Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2014. 25 Embora pudesse perfeitamente nortear qualquer movimento social similar no Brasil – e até mesmo na América Latina, dada todas as similaridades culturais e históricas.

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Reafirma-se que essas reparações são pontuais, pouco expressivas e ainda menos eficazes do que deveriam ser, visto que, em se tratando da efetuação de direitos humanos e do direito à memória e à verdade, se restringem a um número pequeno de pessoas. Ao se tratar das reparações, é de se reconhecer sua importância, ao passo que se reconhece também a necessidade de uma expansão, para que as reparações que abarcassem tanto as vítimas e seus familiares, quanto os herdeiros de seu legado, de um modo mais eficaz e, sobretudo, realmente justo. 3.2 A ausência e a necessidade de justiça A justiça tem se mostrado mais ausente que efetiva em se tratando do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. As poucas reparações às vítimas e as poucas efetivações do direito à memória e à verdade retratam um Estado omisso e uma situação de descaso. O espaço temporal que separa 1937 da atualidade não é grande o suficiente para justificar a inoperância do Estado, muito menos para apagar os efeitos de cada violação, sejam eles jurídicos ou não. Antes de tudo, reconhece-se que as vítimas e seus familiares poderiam recorrer à justiça, e que sua pretensão poderia, por sua vez, ser devidamente satisfeita no quadro da jurisprudência interamericana do Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil. O que não se deve ignorar são as características próprias dos sujeitos envolvidos: os apontamentos26 de Garth e Cappelletti (1988) com relação ao acesso à justiça teriam condições de ser cumpridos de fato? É difícil falar de acesso à justiça quando aqueles que dela necessitam sequer reconhecem-se como sujeitos de direito. O referido Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil, mais conhecido como Caso da Guerrilha do Araguaia, resultou na condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH), no ano de 2010, pelo desaparecimento forçado de pessoas e por execuções extrajudiciais realizadas no contexto da Ditadura Militar. Tal sentença, para Ventura e Cetra (2011, p. 27) “põe em questão a natureza da transição para a democracia ocorrida no Brasil, baseada no silêncio e na impunidade em relação às

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Os apontamentos de Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988) acerca do conceito de acesso à justiça jamais seriam satisfeitos sob uma realidade concretamente opressora como aquela: para os habitantes do Caldeirão o acesso a qualquer magistrado já não seria fácil, imagine-se, então, (1) o acesso a uma justiça realmente acessível a todos que tivesse (2) resultados justos em plena década de 30. Pode-se dizer, de maneira geral, que, se o acesso à justiça já era demasiado tímido para aqueles que tinham consciência de seus direitos, pra os “inconscientes”, então, seria inexistente. Engana-se aquele que pensa que a situação sofreu modificações capazes de sanar o problema.

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graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado, ou com seu beneplácito”. No caso, o Estado brasileiro foi condenado por uma violação extremamente similar à do Caldeirão, embora, quantitativamente, as vítimas do Caso Gomes Lund tenham sido menores que as do Caldeirão. Por que não vislumbrar no Caldeirão mais uma oportunidade de efetivar os tratados internacionais de Direitos Humanos? Por que reconhecer a violação cometida no âmbito da Guerrilha do Araguaia e desconhecer as violações perpetradas contra José Lourenço e seus seguidores? Enquanto Estado Democrático de Direito, o Brasil não deve esquivar-se das respostas dessas questões. Da mesma que forma que o Brasil passou a reconhecer a necessidade de indenizar e prestar assistência médica e psicológica às vítimas aos familiares dos envolvidos na Guerrilha do Araguaia (MOURA, 2012) e como reconheceu a necessidade de instalar um programa permanente e obrigatório sobre Direitos Humanos no Exército, deverá reconhecer a necessidade de reparar as violações perpetradas contra o Beato José Lourenço e seus seguidores. Araguaia e Caldeirão possuem violações semelhantes demais para que um seja reconhecido, e outro, não. Reconhece-se a que a única ação judicial movida favoravelmente às vítimas do Caldeirão até então – o Processo Nº 0011788-04.2008.4.05.810027, ajuizado pela ONG SOS Direitos Humanos – ou continha defeitos ou não cumpriu com os requisitos. É importante reafirmar, entretanto, que a iniciativa de efetuar a justiça não precisa necessariamente partir das vítimas. Deveria, de fato, provir do próprio Estado, a quem cabe a responsabilidade dessas violações. Em se tratando da do direito à memória e à verdade, é importante mencionar, no âmbito de sua efetivação, que o Caldeirão sequer aparece dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais do ensino da disciplina de História (MEC, 1998), muito embora Canudos e o Cangaço estejam ali incluídos. É importante mencionar que os parâmetros não representem uma obrigação rigorosa a ser seguida, sendo mais uma orientação aos professores para a elaboração de seus programas. Ainda assim, excluir o Caldeirão e incluir o Cangaço, por exemplo, não parece razoável. Muito importante também é não esquecer os dois outros pontos de Abrão e Torelly (2010) – regularização da justiça e reestabelecimento da igualdade perante a lei; reforma das instituições perpetradoras de violações contra os direitos humanos. Com 27

Disponível em: < http://www.trf5.jus.br/processo/0011788-04.2008.4.05.8100>. Acesso em: 12 abr. 2014.

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relação ao primeiro ponto, a organização e as disposições da justiça brasileira sofreram inúmeras mudanças desde 1937. Atualmente, é plenamente possível que as vítimas e seus familiares possam recorrer à justiça para reclamar seus direitos, o que não exime – como dito anteriormente, a responsabilidade do Estado. A satisfação do segundo ponto – a reforma das instituições que perpetraram as violações – significa um desafio. O Caldeirão é, em última análise, um conflito enraizado na distribuição de terras. Darcy Ribeiro (1995) muito discorre acerca da situação do camponês sertanejo, pois do latifundiário do Nordeste decorreram inúmeros males sociais que perduram até hoje: a coisificação, a desumanização, a miséria, a ignorância, etc. Efetuar mudanças apenas no Exército (como no Caso Guerrilha do Araguaia) e na Polícia seria pouco eficaz e meramente paliativo. A título de recomendações, por fim, cabe dizer que o Estado deveria: i) indenizar adequadamente as vítimas e seus familiares, assim como lhes prestar assistência médica e psicológica; ii) encontrar, identificar e sepultar adequadamente os restos mortais dos mortos no massacre; iii) realizar a construção de monumentos à memória de José Lourenço e do Caldeirão; iv) incentivar produções artístico-culturais em torno do Caldeirão; v) incluir ou instruir os professores brasileiros no sentido de que se lecione e trabalhe a temática do Caldeirão nas escolas. Por outro lado – ao se considerar a situação dos herdeiros do legado do Beato e de seus seguidores (tendo em vista que o Caldeirão era uma grande comunidade heterogênea) como sendo também, por exemplo, aqueles que hoje vivem no Assentamento 10 de Abril e no José Lourenço – seria perfeitamente cabível recomendar: i) o oferecimento de subsídios, insumos, capacitações e incentivos aos assentados; ii) o suporte técnico e teórico para que, na medida do possível e do interesse dos sujeitos, se recrie a experiência do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto.

CONCLUSÃO A responsabilidade do Estado brasileiro é inegável. Inegável também tem sido o descaso. A justiça – como objetivo desta República – não necessita, e nem deveria, estar atrelada somente à provocação particular. O Estado, enquanto violador, pode, mais do que isso, deve realizar o que estiver ao seu alcance para reparar as violações que cometeu, muito embora tenha gerado feridas profundas incapazes de cura. Mas que se revelem! Que as chagas infligidas pelo Estado se mostrem e que se valorizem como sendo as cicatrizes naturais de um processo de aprendizado e crescimento real. 17

Não se espera – e dificilmente se esperaria – que este estudo tenha grandes consequências e repercussão imediata. Pelo contrário: ele visa atender e promover o direito à memória e à verdade, reforçando o registro de relatos de vítimas e seus familiares, como também reforçando o registro da própria história, objetivo que aqui se concretiza. Enquanto oprimidos, José Lourenço e seus seguidores realizaram uma revolução plena sob condições adversas. Talvez este estudo inspire-se em seu exemplo para que, possivelmente um dia permita a efetuação da justiça onde ela ainda não existe.

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