O Estado Islâmico veio para ficar?

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“O Estado Islâmico veio para ficar”? Ou: “como fazer um título chamativo e não dizer nada”.

Youssef Cherem [email protected]

2014 A análise de José Antônio Lima na Carta Capital (http://www.cartacapital. com.br/internacional/o-estado-islamico-veio-para-ficar-7652.html) deixa nas entrelinhas o subtexto de que “a origem de todo mal” são os EUA. Abaixo alguns comentários sobre o texto. “Por trás da nova postura da Casa Branca [se distanciar e não tomar partido nas revoltas árabes; depois disso, aceitando islamistas no poder no Egito; e não ter envolvimento direto na Síria] estava uma constatação bastante óbvia: as ditaduras e monarquias absolutistas do Oriente Médio são as maiores responsáveis pelo radicalismo do islã.” A posição dos EUA, pelo contrário, foi justamente o oposto dessa: por miopia ou por cálculo político, podemos discutir. As ditaduras e as monarquias eram vistas como o baluarte contra o islamismo militante e extremista. Sem ver isso, o autor distorce a dinâmica da “Primavera Árabe”. Se fosse verdade que a Casa Branca pautou suas atitudes a partir dessa suposta constatação “óbvia” (que teria demorou aí uns 40 anos para os americanos perceberem), seria fácil perceber que as monarquias do Golfo, especialmente a Arábia Saudita, deveriam ser o principal alvo da política americana na região. Mas agora parece que há uma “nova” visão: são as ditaduras e, em menor medida, as monarquias, que detêm o avanço do islamismo armado/militante. Acontece que essa “nova visão” não é nova. “Se Arábia Saudita e Irã não chegarem a um acordo ao menos tácito sobre como os Estados sírio e iraquiano devem ser estruturados, não há a menor perspectiva de fim para esses conflitos.” Mas não foi dito no mesmo texto que o EI pode ser até derrotado militarmente, com ou sem ajuda dos EUA? O mais difícil é perceber exatamente o que a Arábia Saudita quer. Se for regimes alinhados de alguma forma com suas decisões de política internacional ou com a expansão de

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seu poderio econômico e “cultural” (leia-se: wahabismo), então não há mesmo perspectiva de “entendimento”. Mas é interessante essa visão do autor de que Estados (mesmo aos frangalhos, como o Iraque e a Síria) deveriam ter o aval de duas pretensas potências de médio porte para resolver suas guerras civis, “na conversa”. Finalmente, a afirmação de que Assad é “mais temido e odiado” que o Estado Islâmico se baseia em um artigo – http://jihadology.net/2014/08/27/guest-post-manbij-and-the-islamicstates-public-administration/ – que não afirma isso de forma alguma. Afirmar também que o governo “xiita” de Bagdá é “mais temido” que o Estado Islâmico é um exagero. Uma reportagem de um médico que está “em cima do muro”, desconfiando de (e desconfiado por) todos os lados no conflito, não é um termômetro para uma afirmação de um sentimento geral, uma “escolha” de que o Estado Islâmico seria preferível ao Estado iraquiano. “Em sua busca para destruir o Estado Islâmico, os EUA estão reafirmando as estruturas que promovem o radicalismo, dando às ditaduras locais o pretexto da guerra ao terror para ampliar a repressão política e podem reforçar o papel do Estado Islâmico como o representante e defensor dos sunitas desprivilegiados. É a receita do desastre contínuo.” Então, seria melhor não fazer nada? Os EUA e outros já estão fazendo pouco. Eles têm sido bastante cautelosos em só pensar uma estratégia contra o EI com apoio direto dos países sunitas, justamente para não dar voz àqueles que argumentariam que se trata de um ataque deliberado e existencial aos sunitas. De que “ditaduras locais” está falando? Existe uma diferença entre “repressão política” e uma guerra civil. A própria guerra civil já aumenta a repressão política. Os baathistas e os partidários de Maliki não precisam de ajuda americana para ter ”mais repressão”. Os sauditas, os egípcios e quase todos os outros não precisam de pretextos para continuar com a repressão. Os EUA são o pretexto para tudo: se os EUA te apoiam, isso é pretexto para a repressão; se o governo é contra os EUA, isso também é pretexto para a repressão. Existe um argumento bem falho de que um ressentimento em relação à posição política marginalizada dos sunitas (no Iraque; em menor medida na síria) se traduziria diretamente em apoio ao EI. Isso torna inválida a conclusão de que um ataque ao EI seria percebido imediatamente como um ataque aos sunitas em geral. O “desastre contínuo” já está ocorrendo, e qual seria a alternativa a “não fazer nada” que o autor propõe? Nada foi dito sobre ações concretas, como conter o avanço do EI, como e quem apoiar, como cortar o financiamento do EI e estrangulá-lo economicamente, como criar uma coalizão de atores dispostos a eliminar o EI (coalizão difícil e de ação limitada, mas uma coalizão, apesar de tudo). Essa posição é uma posição típica sorrateira e cínica de quem assiste de camarote o desenrolar dos acontecimentos no Oriente Médio, como o governo brasileiro.

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