O estatuto social dos pronomes clíticos no português do Brasil — Desafios para o ensino de uma \"nova\" língua

June 2, 2017 | Autor: E. Pereira Filho | Categoria: Linguistics
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O estatuto social dos pronomes clíticos no português do Brasil — Desafios para o ensino de uma "nova" língua Enedino Soares Pereira Filho* RESUMO Este artigo discute os motivos que levaram às mudanças no uso e à ameaça de extinção de pronomes clíticos no português do Brasil. A partir de suas origens, no latim, é possível acompanhar a trajetória dessas partículas gramaticais até o começo do século XX, quando os clíticos passam a ser substituídos por outros pronomes, proformas e, no limite, eliminados da fala e da escrita brasileiras. De que maneira, então, esse processo de mudança linguística interfere no ensino de língua portuguesa no Brasil? PALAVRAS-CHAVE: pronomes clíticos, português do Brasil, ensino

ABSTRACT This article discusses reasons for the changes in the use and the danger of extinction of clitic pronouns in brazilian portuguese language. From its origins in Latin, it is possible to follow the trajectory of these grammatical particles to the early twentieth century, when clitics are being substituted by others pronouns, proforms and, ultimately, eliminated from Brazilian speech and writing. How, then, this process of linguistic change affects the Portuguese language teaching in Brazil? KEYWORDS: Clitic pronouns, brazilian portuguese language, teaching

*

Mestrando em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo - USP. E-mail: [email protected]

O estatuto social dos pronomes clíticos no português do Brasil — Desafios para o ensino de uma "nova" língua

Introdução Os clíticos são considerados formas pronominais fracas quanto à tonicidade, quando comparados com os pronomes que exercem as funções nominativa e dativa (pronomes retos e oblíquos tônicos preposicionados). Uma das características que os levam a ser classificados assim é o fato de que não admitem coordenação, como em "*Eu te e lhe disse isso."1, e porque são usados

exclusivamente

como

partículas

gramaticais

correferenciais

e

dependentes de um verbo ou núcleo verbal para estabelecerem sentido, impossibilitando a existência de construções como "*O professor disse isso me." Além disso, por serem formas fracas, os clíticos podem exercer funções sintáticas como as de expletivo e de impessoalização, admitindo também o traço não-humano em sua interpretação referencial, o que pode contribuir para seu apagamento na sentença (GROPPI, 1997: 132-3), como veremos adiante quando falarmos sobre o "objeto nulo".

1. Um pouco de história Uma das heranças gramaticais mais perenes que o latim legou à língua portuguesa foi seu sistema de colocação pronominal. Em relação aos clíticos 2, especificamente, há ainda uma ligação direta entre as funções desempenhadas pelos casos latinos e as funções sintáticas dos pronomes em português europeu (PE). Já no português do Brasil (PB), houve muitas alterações no uso dessas partículas pronominais, devido a diversos processos de mudança sintática que serão apresentados ao longo deste artigo. Para a 1ª. e a 2ª. pessoas, o que a gramática portuguesa chama de pronomes oblíquos átonos, são aqueles que provêm dos pronomes latinos mē, nōs, tē, vōs que, sintaticamente, funcionavam como complementos verbais acusativos. Para a 3ª. pessoa, verifica-se a peculiaridade de os pronomes 1

O asterisco (*) posto no início da sentença indica sua agramaticalidade ou impossibilidade de que esta seja proferida em contextos normais de uso linguístico (N. do A.). 2 O termo clítico é proveniente do verbo grego antigo klinein "enclinar, encostar", funcionando, em português, como uma partícula gramatical dependente, ou seja, um elemento que só terá significação quando anexado ("encostado") em algum verbo. Além disso, os clíticos são correferenciais, isto é, dependem também de um núcleo nominal referente que o anteceda sintaticamente (disponível em: < http://www.etymonline.com/> consultado em: 28 set 2015).

Enedino Soares Pereira Filho

clíticos portugueses serem provenientes dos demonstrativos latinos illum, illam, illī, tanto no caso acusativo como no dativo, visto que o latim não possuía pronomes acusativos para a 3ª. pessoa (MAURER JR., 1959: 105-7; BASSETTO, 2010: 236): Latim

Português

Pessoa

Singular

Plural

Singular

Plural





nōs

me

nos





vōs

te

vos

Illum

illōs

o

os

illam

illās

a

as





se

se

illī (dat.)

illī (dat.)

lhe (dat.)

lhes (dat.)



Tabela 1: pronomes clíticos no latim e no português

1.1. Clíticos da 1ª. pessoa O pronome mē, que no latim funcionava sintaticamente como acusativo "Nēmō homō mē salūtānt", no português funciona como objeto direto "Ninguém cumprimenta-me" (PE) / "Ninguém me cumprimenta" (PB), o que serve, igualmente para o pronome nos, da 1ª. pessoa do plural. Os clíticos de 1ª. pessoa, em português, também funcionam como reflexivos "Machuquei-me!" (PE); "Nos atrasamos muito?" (PB) e como objeto indireto "Aquele número deu-me azar." (PE); "Uma empresa nos fornece material esportivo." (PB)). Esses clíticos também podem ser utilizados com a função de pronomes possessivos, como em "Tomou-me o chapéu" (PE) equivalente a "Tomou o meu chapéu." (PB) (BECHARA, 1999: p.182). No PB, a forma pronominal a gente — originariamente de 3ª. pessoa — concorre (levando certa vantagem na língua falada) com o clítico de 1ª. pessoa nos na função de objeto direto "Nosso passado condenou a gente" ao invés de "Nosso passado nos condenou".

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1.2. Clíticos da 2ª. pessoa O pronome tē, que no latim funcionava sintaticamente como acusativo "amō tē", no português funciona como objeto direto "amo-te" (PE) / "eu te amo" (PB); e como objeto indireto: "O governo te empresta os livros", o que também serve para o clítico da 2ª. pessoa do plural vos. As formas pronominais você e vocês — formas de tratamento que se referiam à 3ª. pessoa, em princípio — concorrem com os clíticos te e vos da 2ª. pessoa singular e plural, respectivamente, em posição de objeto direto e indireto. Exemplos como "Vou advertir você" equivale a "Vou te advertir"; "A cobiça não deve confundir vocês" ao invés de "A cobiça não deve vos confundir"; "Vou dar uma chance pra você" equivale a "Vou te dar uma chance", comprovam que, no PB, houve uma neutralização das diferenças semânticas entre 2ª. e 3ª. pessoas do singular e do plural. (PEREIRA, 2006; GALVES, 2003). Mais além, é possível afirmar categoricamente que, após ser substituído pelo pronome vocês (ver acima), o clítico vos foi completamente extinto do PB falado e escrito, pelo menos, desde meados do século XX, sendo encontrado apenas em textos antigos, de caráter religioso, jurídico ou literário. Ainda a respeito dos pronomes de 2ª. pessoa, supõe-se que a partícula 'cê, evolução do pronome você, esteja se cliticizando por meio de um processo de gramaticalização3. Daí que exemplos como "'Cê pode viajar o mundo sem dinheiro.", equivalente a "Pode-se viajar pelo mundo sem dinheiro." mostram perdas de conteúdo fonético (queda da sílaba / vo /) e lexical (ausência de referência à 2ª. pessoa e indeterminação do sujeito), corroborando a hipótese de gramaticalização quanto aos aspectos fonológicos e semânticos desse termo (VITRAL & RAMOS, 1999). Por outro lado, por não ser usado em posição de complemento verbal, como em "*Eu vejo 'cê mais tarde." ou "*A gente precisa de 'cê agora.", mas somente na posição de sujeito, essa partícula faz crer para alguns autores que, sintaticamente, não há um processo

3

Segundo Hopper & Traugott (1993), o processo de gramaticalização consiste, basicamente, na perda de conteúdo lexical e no ganho de funções gramaticais, por parte de um vocábulo. Assim, esse processo seguiria as seguintes etapas: Item com significado lexical > item gramatical > clítico > afixo. No caso do ce, por exemplo, houve perdas lexicais e também fonéticas, como se vê a seguir: vossa mercê > vosmecê (vossuncê) > você > cê.

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de cliticização. Para eles, o 'cê seria, portanto, apenas um pronome lexical fraco, mas não um clítico (PETERSEN, 2008; OTHERO, 2013). Assim como a gente, você e vocês, vistos anteriormente, o pronome lhe — originariamente de 3ª. pessoa — também é usado como objeto direto, se referindo à 2ª. pessoa do singular exclusivamente, e predominantemente por falantes oriundos das regiões Norte e Nordeste do Brasil, como em "Quando você for à Telebahia, ela já vai estar lhe esperando." (NOLL, 2008: 82).

1.3. Clíticos da 3ª.pessoa Os clíticos o/a de 3ª. pessoa, no português, provêm dos demonstrativos latinos illum/illam, respectivamente, e desempenham a função de objeto direto. Do ponto de vista fonológico, algumas particularidades podem ser atribuídas a eles. Vejamos: (1) na posição pré-verbal (próclise) esta partícula ocorre normalmente, como em "A maçã? Não a comi." (PE); (2) já na posição pós-verbal (ênclise), ocorre assimilação4 do / r / ao / l /, como em "O carro está a sua disposição. Você pode pegá-lo quando quiser." (PB); (3) o mesmo ocorre diante do fonema / z /, como na célebre afirmação de Jânio Quadros, ao comentar o motivo de sua renúncia à presidência da república, em 1961: "Fi-lo porque qui-lo!", em que / z / tanto em fiz como em quis é assimilado pelo / -l / completamente; (4) Quando o clítico acusativo de 3ª. pessoa está diante de / m /, como em "Minha esperança? Mataram-na!" (PE), também ocorre assimilação5 do / l / pelo / -n / também para tornar eufônica a junção do verbo ao pronome;

4

"O pronome arcaico lo ainda se conserva nas formas verbais terminadas em -r, -s e -z: amarlo > amallo > amá-lo; fêz-lo > fello > fê-lo" (COUTINHO, 1970: 255). 5 "Nas formas verbais terminadas em -m, o l sofre a influência desta nasal, transformando-se por assimilação em n: ouviramlo > ouviram-no [...]" (Idem, Ibidem)

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(5) Diante de todos os outros fonemas, estes pronomes não apresentam nenhuma alteração fonética na posição enclítica ou proclítica: "Os bilhetes? Encontrei-os na gaveta. Coloco-os lá novamente?" "As gavetas? Deixei-as fechadas. Não quero que as abram." (PE). Os clíticos acusativos de 3ª. pessoa o/a, se apresentam foneticamente idênticos aos artigos definidos o/a. Isso porque ambos têm a mesma origem "no latim vulgar: lat illum > lo > o (pronome e artigo)" (VIARO, 2011: 246). Em relação à preposição a, especificamente, mais que a similaridade fonética com o clítico a, pode ocorrer uma aproximação sintática entre estes dois elementos em orações infinitivas preposicionadas e, consequentemente, o fenômeno fonológico denominado crase6, que dificulta a pronúncia e a compreensão de construções do tipo “A bicicleta é um sucesso, por isso consumidores estão a a comprar constantemente." O problema de eufonia é ainda maior quando o verbo ao qual o clítico se vincula também se inicia pelo fonema / a /: "Megassena acumula e todos se sentem obrigados a a acertar.". Nos dois casos, a solução encontrada pela tradição gramatical foi, justamente, a ênclise (...a comprá-la...; ...a acertá-la.). Daí que, tanto no PE quanto no PB culto, a ênclise é predominante em orações infinitivas com a preposição a diante de clíticos de 3.ª pessoa desde o século XIX (OLIVEIRA, 2011). O clítico de 3ª. pessoa lhe, originário do demonstrativo latino illī, pode ser usado como pronome possessivo: "Roubei-lhe um beijo. (PE) = Roubei um beijo dele." (PB). O lhe também pode exercer a função de objeto indireto: "Entreguei-lhe as chaves." (PE) equivalente a "Entreguei as chaves a ele. / pra ele." (PB) e, como visto na seção anterior, o clítico lhe também pode exercer função de objeto direto ao se referir exclusivamente à 2ª. pessoa singular.

1.4. A partícula se O pronome latino sē, que exercia nesta língua a função reflexiva "Amat sē", em português, cumpre essa mesma função, e seria equivalente a "Ama a

6

CRASE é a fusão de dois sons vocálicos idênticos. Ex.: pede (lat.) > pee (arc.) > pé; dolore (lat.) > door (arc.) > dor. (COUTINHO, 1970: 148)

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si mesmo" ou "Ele se ama". Com o passar do tempo, outros dois significados distintos lhe foram atribuídos: o de partícula apassivadora: "Alugam-se casas." equivalente a "Casas são alugadas." e de indeterminação do sujeito em "Alugase casas." equivalente a "Quem aluga casas? Alguém aluga casas.". O uso do se, no entanto, não se restringe à 3ª. pessoa. No PB, ele também é usado para se referir à 1ª. pessoa (singular e plural), apontando para um processo de neutralização semântica em que este clítico deixa de atribuir referência a pessoa, passando a ser usado genericamente com todas as pessoas discursivas. Exemplos como "Eu se molhei."; "Nós se encontramos na escola.", são cada vez mais comuns em falantes brasileiros não-escolarizados e escolarizados (SILVEIRA, 2007). Alguns estudiosos falam na possibilidade de que o se reflexivo — pronome fonologicamente fraco — tenha se "fossilizado", isto é, deixado de ser compreendido pelo falante como complemento verbal para ser interpretado como parte inerente do verbo; deixando de ser clítico para ser um mero afixo verbal (NUNES, 1995). Há também a hipótese de que esteja havendo um processo de gramaticalização dos clíticos (OLIVEIRA, 2004), cujo limite seria sua completa extinção, como aliás, já acontece em alguns contextos linguísticos e extralinguísticos mencionados anteriormente. De fato, os clíticos que exercem função reflexiva estão desaparecendo em alguns contextos linguísticos e regiões do Brasil. É o caso, por exemplo, do norte do Estado de São Paulo e sul de Minas Gerais, onde, muitas vezes, observa-se construções como "Eu arrependi."; "Ele suicidou." ao invés de "Eu me arrependi."; "Ele se suicidou." , respectivamente. Por outro lado, no Nordeste brasileiro, é possível encontrar a reduplicação de clíticos reflexivos, como em "Ele se revoltou-se." (Idem, Ibidem), o que reforça a ideia de que o se inerente — que funciona como clítico reflexivo anexado a um verbo chamado "pronominal" — esteja sendo compreendido pelo falante como mero afixo verbal expletivo, daí a necessidade de se colocar outro clítico reflexivo junto a esse verbo. No entanto, esse tipo de construção não ocorre somente com clíticos reflexivos, como em "Minha mãe me mandou eu para escola."; "Eu te vi você no trabalho." (DINIZ, 2007: 2-3), o

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que aponta para a complexidade do sistema de colocação e referência pronominais do PB.

2. Particularidades do PB: A substituição dos clíticos por pronomes lexicais e por expressões nominais A utilização de pronomes lexicais em posição de complemento verbal, ao invés de clíticos, estabeleceu uma forte concorrência entre essas duas subcategorias e, em alguns contextos linguísticos e regiões, fez com que o falante do PB abandonasse completamente o clítico em prol do pronome lexical (convencionalmente usado na posição de sujeito). Construções como "Ele vai pegar eu." ao invés de "Ele vai me pegar."; "Eu considero tu um amigão." ao invés de "Eu te considero um amigão."; "Eu vou ajudar ele." ao invés de "Eu vou ajudá-lo."; "Quem salvou nós?" ao invés de "Quem nos salvou?" são comuns na fala de brasileiros de todas as classes sociais e diversas regiões do país desde meados do século XX (CÂMARA Jr., 2004), além de estarem ganhando espaço na modalidade escrita do PB. O mais interessante é saber que esse tipo de colocação não é exclusivo do PB nem tampouco de épocas mais recentes, porquanto no português arcaico dos séculos XIII e XIV já havia construções como "pois vio ele e seus companheiros [...]"; "Disse ao alcaide... que enforcarian ell... "(SILVA, 2006: 172). O uso anafórico de um mesmo nome ou de uma expressão nominal equivalente a um nome já mencionado no discurso também são estratégias que substituem os clíticos no PB: "O guarda sinalizou para que eu encostasse o carro e depois pediu pra eu desligar o carro." (ao invés de ...desligá-lo); "Coloquei duas balas de menta na boca e depois cuspi essa porcaria no lixo." (ao invés de ...as cuspi no lixo). É certo, todavia, que o uso de expressões nominais gera um efeito argumentativo impossível de se obter com o clítico, como neste último exemplo. Mesmo assim, não podemos deixar de analisar os processos de nominalização e referenciação como maneiras de substituição e consequente eliminação do uso de clíticos no PB.

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3. Mais particularidades do PB: a próclise em detrimento da ênclise A colocação dos clíticos no português arcaico — do século XII ao XVII era predominantemente pré-verbal (proclítica), assim como o é no PB, atualmente. Desse modo, supõe-se que a língua portuguesa que chegou ao Brasil — quando este foi ocupado pelos portugueses, no século XVI — tenha sido ainda esse português arcaico proclítico, diferente do PE moderno, que a partir do século XVIII torna-se essencialmente pós-verbal (enclítico). Isso fez com que a herança medieval portuguesa perdurasse e tornasse o PB uma variedade distinta do PE e de outras variedades da língua portuguesa (GALVES & LOBO, 2009: 176; CASTILHO, 2010: 191). O ritmo e a entonação do PB parecem ter contribuído bastante nesse processo histórico. O fato de a maioria dos clíticos serem iniciados por uma consoante, como me, te, lhe, se dá certo relevo fonético a essas partículas, tornando-as pronomes semitônicos, ao invés de átonos. Como se sabe, ao contrário do PE, o PB enfatiza as sílabas pre-tônicas de suas palavras, reduzindo as pós-tônicas, como no registro informal /regional em [kwanu] para "quando" ou [valva] para "válvula". Junte-se a isso o peso dos clíticos semitônicos e teremos a colocação proclítica, como em [mja.tra.'paj] ao invés de "atrapalho-me" ou [sjaw.te.'ro] no lugar de "alterou-se" (AZEREDO, 2010: 259; BORTONI-RICARDO, 2004: 101). O fato de a maioria dos clíticos no PB não serem necessariamente átonos pode ter contribuído, também, para a drástica redução no uso dos clíticos de 3ª. pessoa o/a (estes sim átonos) que, por apresentarem pouco relevo fonético, praticamente desapareceram da fala dos brasileiros, ao passo que as formas semitônicas desse mesmo clítico de 3ª. pessoa -lo/-la ainda perduram no discurso formal altamente monitorado, em contextos linguísticos e sociais restritos (ver item 2, seção 1.3).

4. O objeto nulo Uma das inovações mais interessantes do PB no tocante à colocação dos clíticos é o chamado objeto nulo ou categoria vazia, que nada mais é do que o não preenchimento de um complemento verbal com um clítico ou

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pronome equivalente. Uma condição essencial para que haja esse tipo de construção é a correferencialidade, isto é, o clítico a ser apagado deve ser necessariamente uma retomada de um nome mencionado anteriormente: "Eu peguei os cacos de vidro e Ø joguei no lixo." ao invés de "Eu peguei os cacos de vidro e os joguei no lixo.". Em princípio, explicações semânticas apontam para o uso do objeto nulo em referência a seres inanimados, indefinidos e no plural (PEREIRA, 1981; TARALLO, 1983). Já Duarte (1986) encontra casos que se referem a seres animados, inclusive com o traço [ + humano], como em "João ajudou a Maria após o acidente, mas o Pedro não ajudou Ø.". Há também estudos que não consideram a existência do objeto nulo, interpretando o não-preenchimento por clítico correferencial como uma elipse do sintagma nominal e não como um objeto nulo (CYRINO, 2000). Socialmente, é provável que o falante médio brasileiro (escolarizado e socialmente integrado) tenha receio de usar o clítico por este parecer muito formal e, fatalmente, artificial aos ouvidos "mais apurados"; ou mesmo por não saber usá-lo conforme as prescrições gramaticais; ou, ainda, por temer usar um pronome lexical, como em "Eu peguei os cacos de vidro e joguei eles no lixo.", que para falantes doutrinados, sobretudo, pelo ensino escolar e, por extensão, pela gramática normativa, pode parecer inculto, reles, inadequado, enfim, desprestigiado em determinados tipos de registro de língua mais monitorados. O fato é que essa série de dúvidas pode levar o falante (temeroso de errar) a eliminar qualquer possibilidade fônica ou gráfica nesse ambiente sintático em prol do objeto nulo, que ainda passa despercebido por quase todos, pois não costuma ser discriminado pela escola nem descrito pelas gramáticas e livros didáticos (DUARTE, 1986).

5. As gramáticas e os clíticos As gramáticas normativas brasileiras mais antigas tendem a concordar sobre as regras de uso dos clíticos. Em sua maioria, elas recomendam a ênclise como posição "normal" dos clíticos na sentença em português (ROCHA

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LIMA, 1972; SAID ALI, 1927; SILVEIRA, 1923; PEREIRA, 1907), deixando subentendido que a próclise seria uma exceção, utilizada apenas em contextos linguísticos restritos, como diante de advérbios e conectores específicos. Entretanto, gramáticas influenciadas pelo método histórico-comparativo e por teorias funcionalistas tendem a não se posicionar a esse respeito, postulando que os clíticos podem ser colocados tanto antes quanto depois da sentença, ou seja, num contexto de variação (CASTILHO, 2010; RIBEIRO, 1900; RIBEIRO, 1881). Já as gramáticas mais modernas ou contemporâneas abarcam posições teóricas e opiniões ideológicas bem diferentes entre si. Há aquelas que descrevem a norma do PE como padrão correto a ser reproduzido na fala e escrita brasileiras e, em seguida, descrevem o processo de variação e mudança na colocação dos clíticos que ocorre no PB como algo excepcional e restrito "ao linguajar brasileiro" "vulgar e familiar" e "inadequado" do ponto de vista da norma (HAUY, 2014; BECHARA, 1999; CUNHA & CINTRA, 1985). Por fim, há aquelas que apresentam uma descrição mais próxima da realidade linguística brasileira atual, usando como parâmetro a fala culta urbana e a escrita contemporânea disseminadas, sobretudo, em programas televisivos, na internet e em jornais e revistas impressos e virtuais (BAGNO, 2012; AZEREDO, 2010). Em geral, há uma grande resistência, por parte da gramática normativa, em aceitar a mudança linguística que, a partir de meados do século XIX, colocou os clíticos do PB num patamar bem diferente daquele observado no PE. Desse modo, criou-se uma situação de diglossia7 na qual a variedade padrão do PE — no tocante ao uso dos clíticos — é apresentada como correta a ser utilizada pelo falante brasileiro, em detrimento do vernáculo deste. Apesar de alguns avanços, o sistema educacional brasileiro ainda tende a concordar com o ponto de vista da gramática normativa, dificultando assim o processo de ensino-aprendizado do português do Brasil como língua materna dos

7

"Situação em que uma comunidade de fala possui duas ou mais variedades de uma mesma língua usadas por falantes sob diferentes condições [...] usualmente uma dessas variedades é avaliada como 'alta' [prestigiada] enquanto a(s) outras(s) como 'baixa(s)' [desprestigiada(s)] [...]." (CAMPBELL & MIXCO, 2007, p.45 - Tradução nossa)

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brasileiros com as peculiaridades que a tornam diferente daquela língua que lhe deu origem.

6. Implicações educacionais da mudança linguística É sabido que, desde meados do século XIX, o Brasil não mantém nenhum tipo de relação político-econômica com Portugal, seu colonizador, dum modo que aquele país fosse dependente deste 8. Atualmente, a irrelevância geopolítica de Portugal no cenário internacional e a "importância" brasileira nesse quesito, colocam ambos em posições antagônicas, fazendo com que suas relações ancestrais — marcadas por uma mistura de violência e passividade — não passem de mera curiosidade histórico-cultural. Correto? No que concerne à política e à economia, sim. Porém, no que diz respeito ao legado linguístico português, os brasileiros ainda não passamos de súditos coloniais subservientes que tentamos, continuamente, reproduzir sem muito sucesso a norma linguística da antiga metrópole. Historicamente, o advento das gramáticas normativo-prescritivas no século XVI e o surgimento da escolarização de massas no século XIX em Portugal e no Brasil, respectivamente, contribuíram para impor limites teóricos rígidos ao uso de clíticos pronominais. Contudo, o que se vê realmente no Brasil é a mais completa "infração" das regras que prescrevem esse uso, ao passo que em Portugal isso ainda é respeitado. Essa dicotomia demonstra um certo insucesso no processo de escolarização brasileiro que ainda insiste em ensinar

o

padrão

de

colocação

pronominal

lusitano



constituído

essencialmente por ênclises átonas e clíticos acusativos de 3ª. pessoa — sem refletir o modo como os pronomes são de facto usados no português falado e escrito no continente americano (BAGNO, 2012). A maioria das estratégias sintáticas sugeridas pela gramática normativa no tocante à colocação de clíticos são, de certa maneira, antinaturais para o falante brasileiro, que depende quase exclusivamente da escolarização para

8

Conferir o processo de abertura dos portos às nações amigas e do Tratado de aliança e amizade, ambos realizados em 1810, entre Brasil e Inglaterra (N.do A.).

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dominá-las. O uso da ênclise, por exemplo, que é rigorosamente prescrito — sobretudo quando o verbo aparece na primeira posição (início de parágrafos, sentenças, orações, frases etc.) — é algo inexistente no PB falado. Do mesmo modo, os clíticos de 3ª. pessoa o/a que, assim como a ênclise, quase inexistem no PB falado já há algum tempo (Idem, Ibidem), sendo que alguns resquícios deles só são encontrados em textos escritos antigos formais e na fala culta de alguns poucos indivíduos escolarizados e de mais idade. No mais, é através da escola que o usuário do PB pode entrar em contato com essas "joias raras" da língua lusitana e, nesse ponto, a situação torna-se por demais complexa. Como foi dito anteriormente, as gramáticas normativas e, por extensão, os livros didáticos brasileiros, em sua maioria, insistem em adotar a norma escrita do PE como padrão de ensino do português no Brasil, criando com isso uma

situação

de

diglossia.

Apesar

de

extensas

e

reconhecidas

internacionalmente, as pesquisas (sócio)linguísticas brasileiras que constatam e demonstram a mudança linguística na utilização de clíticos no PB ainda são pouco conhecidas por nossas escolas e, pior que isso, são muito desrespeitadas sobretudo pelos veículos de comunicação e imprensa ultraconservadores atuantes no Brasil que as consideram instrumentos ideológicos de esquerda cujo objetivo principal seria desorganizar o ensino tradicional de língua portuguesa9. Do mesmo modo, linguistas e pesquisadores que atuam no campo das ciências da linguagem são vistos por jornalistas e gramáticos ligados à grande mídia como diletantes responsáveis pela precarização do ensino de gramática normativo-prescritiva em prol de um valetudo epistemológico que mais confundiria que esclareceria os estudantes10.

9

Ver projetos de descrição do português falado no Brasil como NURC, PEUL, VARSUL etc. Desde que se instaurou no ensino universitário brasileiro, nos anos 1960, a linguística nunca obteve espaço nas mídias de massas para divulgar e discutir cientificamente problemas no ensino de língua portuguesa no Brasil. Os meios de comunicação sempre preferiram gramáticos conservadores que defendem uma norma culta ou padrão virtual em detrimento dos usos linguísticos reais dos brasileiros. Como ilustração disso, reproduzimos a seguir a visão de um desses gramáticos que "[...] Em novembro de 2001, na reportagem de capa da Revista Veja, intitulada 'Falar e escrever bem, eis a questão', [...] dirigiuse ofensivamente a pesquisadores da área de linguagem que defendem a integração de outras variedades no ensino de língua portuguesa como uma corrente relativista e esquerdistas de meia pataca, idealizadores de 'tudo o que é popular – inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do 'povo'" (Disponível em: http://www.alab.org.br/noticias/destaque/80-polemica-em-relacaoa-erros-gramaticais-em-livro-didatico-de-lingua-portuguesa-revela-incompreensao-da-imprensa-epopulacao-sobre-a-atuacao-do-estudioso-da-linguagem - Adaptado). 10

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Cabe, pois, às instancias que regulam o ensino de língua portuguesa no Brasil compreenderem que as mudanças ocorridas no uso dos clíticos no PB não constituem mais exceções às regras observadas no PE, mas sim a própria regra de uma variedade americana da língua portuguesa. Afirmar que a língua escrita oficialmente no Brasil deve seguir a norma linguística do PE pelo fato de que esta seria mais "castiça" ou "sofisticada" que o PB, do ponto de vista morfossintático, não passa de um preconceito histórico em relação ao modo como a população brasileira usa a língua portuguesa. Cientificamente, é impossível comparar

valorativamente

duas

variedades linguísticas

tão

autônomas que, apesar de terem uma mesma origem, hoje são extremamente diversas nos planos histórico, geográfico e estrutural, o que já foi comprovado e demonstrado por pesquisas científicas inquestionáveis. A partir de uma atitude política de valorização e de difusão ad infinitum da língua portuguesa do Brasil, restaria somente implementar essas mudanças ao ensino. Nada além.

Enedino Soares Pereira Filho

Referências AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. 3ª.ed. São Paulo: PubliFolha, 2010. BAGNO, Marcos. Gramática Pedagógica do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. BASSETO, B. F. Elementos de Filologia Românica. vol.II: História Interna das Línguas Românicas. São Paulo: Edusp, 2010. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. BORTONI-RICARDO,

Stella

Maris.

Educação

em

língua

materna:

a

sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. Ele como acusativo no português do Brasil. In: _____ . Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. CAMPBELL, Lyle & MIXCO, Mauricio. A glossary of historical linguistics. Salt Lake City : University of Utah Press, 2007. CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Nova Gramática do Português Brasileiro . São Paulo: Contexto, 2010. COUTINHO, I. de L. Pontos de Gramática Histórica. 7. ed. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. CUNHA,

Celso;

CINTRA,

Lindley.

Nova

Gramática

do

Português

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