O estouro da artéria de um cavalo húngaro

May 28, 2017 | Autor: Thiago Roney | Categoria: Literatura brasileira, Ficção, Contos, Literatura Brasileira Contemporânea
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Nova edição, revista pelo autor

EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2013

EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152

REVISÃO

Éder Fogaça e Thiago Roney

FOTO DO AUTOR

Wanessa Leal

CAPA E DIAGRAMAÇÃO IMAGEM DE CAPA A

Guilherme Peres

Batalha de Anghiari de Leonardo da Vinci

O estouro da artéria de um cavalo húngaro RONEY, Thiago 2ª Edição Dezembro de 2013 ISBN: 978-85-8273-522-0

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

Para Anne Lucy e Pantagruel

Sumário O caçador de made in’s 13 O afetuoso teorema de Martín 19 O tabelião dela 25 Domingo, o quintal de enterrar sonhos 29 O coágulo emoldurado de mamãe 35 O dia em que eu quis afogar o mundo no rio Negro 41 A caixa de sapatos 49 O caralho-de-asas chamado solidão 55 O estouro da artéria de um cavalo húngaro 61 O gozo sem vida de Joana 67 A doença do mundo 71 O dia em que comi como o faz um rico 77

“Como viver na malha da ficção chamada realidade sem o suporte da realidade da ficção?” Lino, nos escritos pós-thysanura

“A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões.” Roland Barthes

O caçador de made in’s O trabalho dignifica o Homem. A frase, talhada em madeira nobre, pendurada acima do crucifixo, balançava ansiosamente no momento dos imbróglios. O que se podia fazer com Mânfrede, meu Deus? Perguntava-me toda vez que seus olhos lacrimejavam rancor ao ouvir os resmungos do pai, como agora: – Vai trabalhar! Trabalhar! Não quero mais te ver coçando o saco em casa, entendeu? – De que valeu os anos na universidade? A Filosofia certificou-lhe vagabundo! – completou seu irmão mais velho. Para interromper as reclamações, resolvi trazer o jantar à mesa. Imediatamente, um silêncio violento tomou assento. Inconsolável, Manfredinho acabou a comida com rapidez. Sôfrego, foi para o quarto e trancou-se. Então Manoel indagou-me: – E tu, mulher, não vai dizer nada para teu filhinho? – Não, desisti. Vou renunciar a qualquer domínio sobre a vida dele. Não aguento mais. Entrego-o a Jesus – respondi com um rubor denunciante. Desejávamos alguém com valor social. A pressão diária nas refeições refletia esse zelo amoroso. Existe melhor demonstração de amor por um filho? Parece-me que não. No entanto, seus últimos comportamentos vêm me preocupando ainda mais. Como se não bastasse sua recusa ao trabalho, parece querer combatê-lo. No dia 13

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anterior, quando fui presenteá-lo com a última tecnologia em celular, tomei um susto com tamanha loucura. Mânfrede começou a falar freneticamente contra a marca do aparelho. Sobre supostos suicídios de trabalhadores da fábrica chinesa devido à carga horária longa e extenuante, os salários irrisórios, cubículos servindo de dormitórios, vidas perdidas num minuto e outras histórias sem sentido. Sua última frase ainda lateja na minha cabeça: “Mãe, como posso aceitar e usufruir de um celular feito de sangue?”. Agora tento compreender seus zigue-zagues. Sua curiosidade parece ser pela origem dos produtos ao seu redor. Nunca disse nada a ninguém, mas, na última semana, percebi a movimentação dele pela casa olhando os made in’s das coisas. E ontem, como se fosse pouco, começou a protestar. Em cada visita de um familiar, uma denúncia diferente: a camisa do tio – made in Haiti – fabricada com superexploração salarial dos comedores de barro; o carro do primo – made in Brasil – fabricado por trabalhadores enganados pela hora extra e pelo líder sindical; o remédio do avô – made in África – fabricado por trabalhadores explorados em todos os níveis humanos. E mais made in, made in, made in... nada o escapava. Será que a falta de trabalho o fez surtar? Ou foi mesmo a faculdade de Filosofia, como supõe Abelardo? Aquilo não poderia ser consequência apenas da ociosidade. Oh, Santo Deus! Peço misericórdia, pois ele não sabe o que faz. Alguns dias se passaram, até que resolvi conversar com ele. Fui até seu quarto. Abri a porta lentamente com certo receio. Hesitei. Tentei tomar coragem, mas desisti após abrir uma pequena brecha. De repente, ao olhar o chão do quarto, tomei um susto e imediatamente cuidei de fechar a porta. Mânfrede parecia estar flutuando. Suas pernas estavam a uns dois centímetros do chão. Ouvi um barulho no teto da casa. Em seguida, ele gritou meio sufocado: 14

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– Espera aííí, mãe, que estou ocupado! Quando abriu a porta, vários papéis caíram no chão. – O que foi, mãe? – perguntou-me ofegante. – Nada – respondi querendo abraçá-lo. Porém, virei de costas e fui para a cozinha. Perdi novamente a coragem. No mesmo dia, ele saiu todo arrumado com uma pasta na mão. Deu-me calafrios. Teria, enfim, ido procurar um trabalho? Curiosa, fui olhar o que estava fazendo no quarto. Cambaleei ao ler os papéis avulsos. Eram panfletos sobre os supostos males do trabalho. Traziam como argumentos dados estatísticos: oitenta por cento dos transtornos mentais são causados pelo trabalho, tantos por cento dos cânceres são causados pelo trabalho, mais tantos por cento das depressões são causadas pelo trabalho, et cetera. E ainda encontrei do lado da impressora um livro (de um vermelho demoníaco) chamado Manifesto contra o trabalho, de um tal grupo Krisis. Senti uma vertigem dolorosa. Meu Deus! Manfredinho precisa de ajuda. Quis chorar, mas mantive-me firme. Como compartilhar tudo isso com Manoel e Aberlado? O diálogo nunca foi nossa prática. Além do mais, certamente falariam que basta ele começar a trabalhar que tudo se resolveria. Resta-me rezar por ele. Deus e o tempo curam tudo, eu creio. Esperei um dia após o outro, mas nada. Os zigue-zagues se aceleravam cada vez mais. Os made in’s aumentavam geometricamente. E minha preocupação crescia no mesmo ritmo. Mas hoje me veio uma esperança, mesmo que fúnebre. Seu avô faleceu. Talvez esse acontecimento o transforme. A morte veste essa capacidade. Quando fui chamá-lo para o enterro, novamente o vi flutuando. Só que dessa vez não me assustei tanto. Diante de tanta loucura, aquilo não me comoveu mais. Fechei a porta silenciosamente e o chamei: 15

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– Manfredinho, meu filho, vamos, está na hora do enterro de seu avô. – Estou indo, mãe – ele respondeu com uma voz fraca. Quando chegou ao cemitério parou na fachada e ficou imóvel por horas. Seria a transformação ou teria encontrado algum made in? Averiguei, mas não. Apenas lia a inscrição do pórtico: Cemitério São João Batista – Laborum meta. No entanto, seu olhar estava estranho. Com o brilho daquele mesmo rancor, mas sem o vigor de sempre, um tanto desolado. Talvez fosse mesmo a transformação. Seguimos para o enterro. Parece que Deus ouviu minhas preces. Eu estava certa. A morte do avô mudou o comportamento de Mânfrede. Há uma semana ele parou de caçar made in’s. Não se vê mais nenhum zigue-zague pela casa. Ele ficou até mais carinhoso. Hoje me deu um forte abraço e disse que me amava. Com certa vergonha e estranheza, confesso, mas o fez. Para a felicidade completa da família, falta apenas ele conseguir um trabalho. O que, pelo visto, deve se realizar em breve. Fui até a banca de revistas para comprar um jornal. Já em casa, ao ler os classificados, encontrei uma vaga de emprego para professor de Filosofia do ensino médio, o que é raro. Então fui correndo avisar Manfredinho. Abri a porta do quarto de uma vez só, feliz da vida. Quando olhei aquela cena, fiquei chocada. Não acreditei no que vi. Tentei chamar Manoel, mas minha voz havia sumido. Gritei silêncio. Gritei novamente e nada da voz. Somente na terceira tentativa ela saiu violenta e desesperada da minha boca: – Manoeelll! Manoeell!... pelo amor de Deeuuss!... Mânfrede flutuava com os pulsos ensanguentados. Por que teria se enforcado, meu Deus!? A dúvida infernizava minha cabeça. 16

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Comecei a perder as forças. Minha visão foi escurecendo. Porém, antes de desfalecer completamente, ainda consegui ler suas últimas palavras deixadas a sangue na parede do quarto: “Como acreditar num mundo que tem como epitáfio Laborum meta?”

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O afetuoso teorema de Martín A memória é uma matemática dos diabos. Por acaso entrei numa rua labiríntica tentando fugir do trânsito e acabei encontrando a nossa antiga casa. A sombra do tempo começou a recolher lembranças a partir da imagem do nosso prédio em ruína. Martín é a figura mais forte na memória. Como estaria hoje o nosso peculiar Poincaré? Se ele estivesse aqui, agora, certamente calcularia todos os sentimentos petrificados ainda no ar, em cada canto da casa, em cada espaço no tempo. Muito melhor do que faço nesse instante. Quero dizer: melhor não, matematicamente diverso, pois víamos a realidade por uma espécie de lente euclidiana. Já Martín enxergava-a com outra espécie de geometria. Ainda hoje tento compreendê-lo. Mas até onde isso poderia justificar aqueles seus teoremas? Precisava ele fazer aquilo? Martín foi o cara mais inteligente que eu já conheci na vida. Era um gênio da matemática. No entanto, com o tempo, acabou se tornando um geômetra das estranhezas. Lembro-me de ver meu irmão em silêncio no canto esquerdo da sala de jantar na ocasião em que afirmávamos o valor inestimável de alguém baseado no cargo que exercia em uma grande empresa, ou quando discutíamos sobre o carro do ano e a necessidade de obtê-lo, ou ainda, no momento em que sugeríamos que ele fosse lecionar na Universidade de melhor salário. Martín apenas sorria como quem ri das peripécias de várias crianças. Certamente, vislumbrando números 19

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na fala da teatralidade familiar. A preocupação primordial de Martín era com os seus teoremas e com os problemas históricos da matemática, como a conjectura de Poincaré, na qual meu irmão trabalhou extensamente por toda a sua vida. A mãe não suportava ver tanta inteligência jogada fora; seu ócio a martirizava. Não víamos utilidade nenhuma naqueles papéis rascunhados com números e letras. “O que me move não é a utilidade, mas a beleza”, Martín dizia sugerindo que naquele garrancho maluco haveria algo de belo. Para que pudesse se dedicar à matemática, ele trabalhava apenas um turno numa escola pública. “Tenho tudo que quero e preciso”, dizia para mamãe. Não imaginávamos que ele pudesse fazer aquilo. O pai, seguindo a mesma lógica da mãe, não apoiava Martín. Quanto a mim, tive que seguir os passos da família no desprezo pelas escolhas do nosso Poincaré. Como eu poderia compreender tudo aquilo? Era muito novo para diferenciar ambições; além do mais, o argumento de nossos pais parecia infalível. Gostava apenas quando Martín me contava a história, e ele sempre a repetia pra mim, do matemático Évarist Galois, um jovem revolucionário republicano do século XIX, que morreu num duelo motivado por uma mulher e não por causa da revolução. E no leito de morte proferiu essa frase memorável ao seu irmão: “Não chore, preciso de toda a minha coragem para morrer aos vinte anos.” Ficava fascinado. Hoje tento imaginar qual seria a reação da mamãe se soubesse que ele me contava essa história. Ademais, apreciava bastante as histórias dos matemáticos ávidos pelos prêmios milionários concedidos aos que resolvessem os sete problemas do Millenium Prize. Por coincidência, ou a realidade também seja uma matemática dos diabos, ontem li no jornal que um matemático russo, Grigori Perelman, enfim, havia solucionado a conjectura de Poincaré. O mesmo recusou o prêmio de um 20

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milhão de dólares. Dei um sorriso envergonhado. Como não lembrar de Martín? Como é de imaginar, Martín passava a maior parte do tempo entre duas ocupações: ou enfurnado em papéis sobre livros ou andando a esmo pela casa. Com o passar dos anos, a desaprovação da família foi se tornando cada vez mais um desprezo pelo próprio Martín, devido à sua opção pelo ócio. “Qual a diferença entre números e letras?”, perguntávamos algo do gênero com a intenção de fazê-lo voltar ao seu mundo, quando se aproximava. Se tivesse uma pessoa que pudesse representar a solidão era Martín a partir daquele momento. Ele começou a ficar mais estranho. Somente se retirava do seu mundo para nos falar sobre algumas pesquisas bizarras que estava realizando. Ficávamos assustados. Consultamos até um médico para verificar sua saúde mental. Martín gozava de plena sanidade e ainda possuía uma extraordinária habilidade para o pensamento abstrato, segundo o psiquiatra. No entanto, suas ações eram cada vez mais absurdas. Não sabíamos se ele fazia tudo aquilo somente para chamar a atenção ou se queria irritar propositalmente toda a família. Além de estranho, seus feitos eram exagerados. Não compreendíamos, por exemplo, sua obsessão pelo quadro A origem do mundo, de Courbet, o qual Martín ficava horas da noite observando e teorizando sobre a vida, recorrendo para isso ao eterno retorno, de Nietzsche, ou ao buraco negro da astrofísica. Mesmo assim, conseguíamos ficar complacentes com suas loucuras, já que, de tempos em tempos, elas tinham seus momentos de trégua. Por exemplo, quando Martín se retirava para seu mundo à procura de solução para a conjectura de Poincaré. A complacência, no entanto, esgotou-se no dia do banheiro. Numa Quarta-feira de Cinzas, a mãe o pegou masturbando-se com o que parecia ser a imagem da Virgem Maria. Assombro geral no seio 21

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da família. “Martííínnn...”, gritou mamãe, “você está louco! Vai acabar indo para o inferno!”, sentenciou com desprezo. Mas Martín era um tanto cético para essas coisas. “Mãe...eu não acredito nisso e acho que no fundo nem a senhora”, respondeu ríspido, mas conservando certa afetuosidade. A partir desse dia, nada foi como antes. Mamãe começou a mandar ele se retirar da sala de jantar diversas vezes. Até que um dia Martín passou a não jantar mais conosco. “Obrigado, mãe, eu mesmo já não suportava mais a sala de jantar, ela cheira a desespero”, sua frase transbordou ainda mais o volume do conflito. O que antes ele dizia com pouco peso para não dimensionar a frágil geometria afetiva da família, passou a dizê-lo com maior densidade. Martín começou a falar com frequência sobre uma pesquisa bizarra. “Vou pesquisar sobre a possibilidade de um isomorfismo entre a dimensão da estupidez humana e a extensão infinita do universo”. Depois sempre nos abraçava como se fosse um leão em cio e rapidamente se retirava. Fazia isso repetidas vezes no dia. O pai ainda procurou estudar sobre os assuntos para tentar descobrir um nexo nas palavras de Martín, mas foi em vão seu esforço. Perguntávamos de que maneira calcularia essa relação como forma de verificar a sua sanidade mental. “Através dos números transfinitos de Georg Cantor, como o alefh-zero, o alefh-um, o alefh-ômega e outros metatransfinitos que eu descobri”, ele respondia com um sorriso bizarro. Tentávamos não enlouquecer com suas intervenções. E quando estávamos quase nos acostumando com aquilo, repentinamente Martín parou de falar da maldita pesquisa. Mas o apaziguamento veio acompanhado de uma estranha procura por Martín, surgindo matemáticos de toda ordem e lugares. Por vezes, colegas e professores da Universidade Federal do Amazonas, 22

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outras vezes por ilustres matemáticos de outros estados e países. Ele não recebia ninguém. Mandava dizer que estava viajando ou doente. Perguntávamo-nos como aquilo poderia ser o motivo do assédio dos matemáticos. Não acreditávamos que ele tinha conseguido prestígio com aquela pesquisa absurda. Contudo, mais tarde descobriríamos que não era por causa dela. Dias depois, antes de falar sobre sua última pesquisa, ainda recordo bem, “a distância do céu e a profundidade do inferno”, Martín rasgou alguns papéis na nossa frente e disse que um dia correríamos atrás de cada pedaço como se fosse ouro. Não demos a menor importância. Achávamos que era mais uma maluquice das suas pesquisas sem lógica, como aquela sua exagerada preocupação com a extensão do céu. “Não existe, em toda matemática, nem mesmo nos transfinitos e nos metatransfinitos, números capazes de calcular a distância do céu, o seu infinito é tão longe, estou preocupado”, disse Martín dias antes de sua morte. “Fiz essa pesquisa, pois sei que o céu é o destino de todos os membros da família, menos o meu, como bem observou mamãe; o arquiteto do calvário vai me mandar para o inferno.”, enfatizou. A partir daquele momento, desistimos completamente de entender Martín. Aproximávamo-nos dele apenas para receber seu abraço de leão no cio. Alguns dias depois, Martín passou mal e precisou ser internado. No leito do hospital, recebemos a notícia de sua iminente morte e, simultaneamente, com surpresa, descobrimos que Martín já sabia de tudo há quase um ano. “O inferno é a sete palmos do chão, cálculo simples e trivial”, disse com um sorriso generoso e, como um leão preguiçosamente no cio, abraçou cada um de nós devagar. Lamentamos imensamente sua morte, apesar de certo alívio, pois, enfim, as loucuras iriam cessar. Certas perguntas ainda afligem minha cabeça: Martín precisa23

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va rasgar aqueles benditos papéis? Não entendo o motivo de tal zombaria, precisava fazer aquilo? Dias depois de sua morte, recebemos uma correspondência do Clay Mathematics Institute pedindo para Martín enviar seu trabalho completo sobre a conjectura de Poincaré. Além disso, estavam convocando-o para fazer uma palestra pública no Instituto. Martín era o mais forte candidato a receber o prêmio Millenium de um milhão de dólares. Quando o pai terminou de ler a carta, ficamos boquiabertos. Caralho, até hoje não consigo acreditar que ele fez aquilo. Martín, o nosso peculiar Poincaré amazônico, tinha solucionado um dos sete problemas matemáticos do milênio. Saímos feito loucos atrás dos pedaços de papéis que valiam ouro. Mas não encontrávamos nada. Por que diabos Martín fez isso? Pensávamos angustiados. Até que mamãe achou um envelope branco escrito em minúsculas “o teorema de martín”. Ficamos apreensivos com a possibilidade de encontrar os papéis com a solução da conjectura de Poincaré. Um milhão de dólares, já imaginou? Contudo, quando mamãe abriu o envelope, havia apenas uma folha de papel com a seguinte frase: “Nesse nosso triste tempo, uma loucura diversa pode zerar o déficit de abraços no estoque de nossos corações”. Não sei dizer o que mamãe pensou naquele momento, muito menos papai, mas eu só pensava que Martín era um grande filho da puta.

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O tabelião dela Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino. E novamente, Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: Sicrano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino... Há vinte anos sempre a mesma rotina. Todo dia, após o expediente da repartição, eu chego a casa, leio o jornal e coloco Mahler no toca-discos. De certa forma, recuso a modernidade. Estou quase sempre com uma alegria típica da minha posição social. Por vezes, também bebo alguns copos de uísque escocês para tragar infortúnios de cunhos práticos e metafísicos. Nessas ocasiões, sempre coloco o Adágio da Sinfonia Nº 10 para acompanhar a melancolia. Porém, naturalmente, a teimosia do dia resiste e novamente ele nasce. Nas manhãs, dois momentos são primorosos para mim: encontrar o café no armário e depois tomá-lo. Assim, preparo-me para ir ao cartório enfrentar o turbilhão. Talvez daí surja a fé que eu deposito diariamente em nome do Estado. Demorei alguns anos para conseguir quitar meu imóvel. Foram necessárias milhares de carimbadas e fés. Possuo também um automóvel. Ambos de minha exclusiva propriedade. Alguns familiares, que me visitam esporadicamente, gostam bastante deles. Sempre elogiam a decoração da casa ou a limpeza e destreza do carro. Às vezes, eu apresso o tempo da visita com a intenção de ficar sozinho. Certamente algumas pessoas me aborrecem. Só as 25

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suporto por pouco tempo ou quando estou bebendo meu uísque. A bebida tem a capacidade de poetizar tudo. Talvez por isso deixo as garrafas sempre disponíveis na sala de estar. Mesmo que no outro dia ela dissolva a poesia em ressaca e remorso. Sozinho, sigo o regulamento de minhas próprias ordens. Nos finais de semana, não possuo tanta regularidade. Aprecio por vezes uma peça de teatro, um filme da minha coleção do cinema mudo, um passeio banal no parque ou até mesmo um puteiro. De certo, sempre vou à igreja aos domingos. Adoro a arquitetura sacra, nunca vi coisa mais linda. A perfeição pra mim seria ouvir Mahler na Capela Sistina bebendo um uísque escocês de vinte e um anos, com uma freira profana ao meu lado. No entanto, fico satisfeito com as belezas às quais tenho acesso. Mais um dia, Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino. E novamente, Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: Sicrano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino... E mais um dia, (...) outro dia (...) e outro (...) até que chega hoje. Chegando a casa, depois de mais um dia de repartição, fico sabendo dos acontecimentos do Brasil e do mundo. Coloco a sinfonia pra tocar. A crise econômica aprofunda-se. Plano de cortes. Austeridade. Leio notícias dos novos filmes. Tarantino. Lynch. Nada me interessa. Busco o leite, depois o café. Mexo o branco com o preto. Espirais infinitas se formam na minha xícara. De repente, olhando para aquele abismo, sinto uma inércia. Tento com uma força incomum pegar o café, mas não consigo. Minha mão não se mexe. Não acreditando naquilo, tento novamente. Mas nada. Será que ela se foi? Acho que estou perdendo-a. Não 26

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a mão, mas ela. Dizem que dia ou outro vai embora. Sem avisar ninguém. Precisava de ajuda. Levantei-me com esforço. Fui ao telefone tentar ligar para Clara. Mesmo sem o movimento do braço direito, consigo com o esquerdo, ainda que pesado, fazer pequenos movimentos e falar com ela. Clara era minha acompanhante preferida do puteiro. Uma espécie de amiga incondicional. Quando ela chegou, eu já estava completamente sem os movimentos dos dois braços. Para ela entrar, tive de empurrar a chave com o pé por debaixo da porta. De imediato, Clara abraçou-me e perguntou: – Ela se foi? Não acredito, Adolfo. Como ela pôde te abandonar? Logo tu? – E ela tem algum critério de escolha, Clara? – Não sei. Mas certamente tu não te encaixas em nenhum perfil dela. Clara abaixou a cabeça como forma de reprovação. Levantou e foi até o armário onde eu guardo os uísques. Profeticamente, trouxe uma dose no copo e colocou na minha boca: – Toma, Adolfo. Beba em um trago só. Ela pode ter ido embora, mas ainda te resta a bebida. Mahler ainda estava tocando. Só percebi porque Clara foi até o som aumentar o volume. Convidei-a para vir morar comigo. Não conseguiria viver sozinho sem os movimentos do braço e sem ela. No outro dia, evidentemente, não consegui mais carimbar e assinar o Reconheço e dou fé por verdadeira a firma de: fulano. Tabelião de Ofícios, pois a tinha perdido. Fui demitido do cartório. Voltei para casa. Pedi para Clara colocar o adágio da décima de Mahler. Depois Bach. Eu sentia que ela não havia ido embora completamente. Tentei distrair-me com o jornal. E novamente as mesmas notícias: crise econômica, demissões, greves, filmes, peças etc. 27

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Deixei de sair de casa. Nem à igreja fui mais. Meu dinheiro estava acabando. Tive de vender o carro e hipotecar a casa. Sentia que ela ainda se fazia presente, mas também se esvaía. De onde surgia ela para sustentar a mim e a todos daquela forma? E, sem aviso prévio, deixar-nos? Com o tempo, deixei até de ouvir música e tomar tragos de uísque. Ficava o dia todo imóvel na frente da televisão, que Clara ligava para mim na esperança de ajudar a fazer ela voltar. Mas parecia que piorava. Hoje senti que sua última gota caminhava dentro de mim, querendo sair por algum orifício. Passei a manhã inteira com contrações involuntárias pelo corpo. Até que, de repente, senti uma enorme dor na bexiga. Era ela. Só pedia ser. Seu último vestígio. Tinha certeza. Pedi à Clara que pegasse um vasilhame. Fomos ao banheiro. Estávamos ansiosos. Com muita dor, consegui urinar a gota dela que faltava. Uma única gota. Cristalina. Voltamos para a sala e sentamos no sofá. A televisão noticiava uma greve geral. Ficamos olhando a gota no vasilhame transparente. Eu tinha certeza, agora ela havia ido embora de vez. Praticamente desfalecido, olhando o resto dela e a televisão, digo minhas últimas palavras à Clara: – Sabe o que no fundo reivindicam nessa greve geral? – Não. O quê? – Eles não sabem, mas reivindicam... – O quê, Adolfo, desembucha. – Ela, mas uma Outra!

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Domingo, o quintal de enterrar sonhos Domingo. Mormaço. Quintal. Folhas de jambeiro no chão, já secas. Cadeiras enferrujadas. Risadas afogadas nos copos com cerveja. Depois de um sábado de muita confusão, nada como um domingo de sol. Era o que o dia estava prometendo. Alcina preparava um capitinho. E o samba de Clodoaldo comia solto. O sol era convidativo para uma briga-brincadeira. Chamei Adonis para o duelo. Rolamos, entre agarrados e golpes, no cimentado das folhas secas. Depois, cansados, paramos para beber água. Alcina, entre um gole e outro de cerveja, ainda amassava a farinha ova com os pedacinhos do peixe. Conquanto, às vezes, fazia com areia para comermos. Estava faltando apenas Bentinho para o domingo ficar completo. Fui chamá-lo para o churrasco no quintal. Ele ainda estava no quarto com raiva por causa da noite anterior. A discussão com Clodoaldo havia acabado em porrada. Os motivos foram vários, não distinguimos direito. Adonis e eu somente conseguimos ouvir palavras soltas: Alcina, Cecília, dinheiro, trabalho, farra, conta, vitamina C, cerveja, tempo, cansaço e morte. Quase sempre eles brigavam, mas nunca tinham ido as vias de fato. Havia dias, entretanto, apesar de raros, que compartilhavam a alegria da vitamina C. A discórdia começou depois que 29

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Cecília fugiu. Toda semana era a mesma coisa. Bento saía de casa com uma pasta debaixo do braço. E sempre voltava com um olhar caído, as pupilas dilatadas e uma disposição incomum para risada. Por outro lado, Clodoaldo saía para o trabalho e quase sempre voltava bêbado, gritava com o vento, chutava-nos e batia em Alcina. Até que ontem eles chegaram juntos e a embriaguez agressiva de Clodoaldo esbarrou na faceira alegria de Bentinho. O sentimento de raiva, há tempos acumulado, acabou se transformando em socos. Alcina, por isso, cuidou de fazer o churrasco para ajudar na reconciliação. Bento demorou, mas enfim apareceu. Desceu os poucos degraus que separa a casa do quintal. Beijou a testa de Alcina. Não falou com Clodoaldo. Improvisou alguns carinhos na gente. Encheu seu copo de cerveja. Fez-se, então, um silêncio impetuoso. Passaram-se vários minutos e ninguém falava. Apenas ouviam o surdo do samba. Alcina tentava falar, mas acabava desistindo. Sabíamos que aquele silêncio não era por causa da música. Era o prelúdio de algo temeroso. Ficamos apreensivos. Copos e mais copos com cerveja. O mormaço aumentava violentamente. De repente, aproveitando que Clodoaldo estava de costas para a casa olhando o fogo da churrasqueira, Bento levantou-se com fúria e foi até a cozinha pegar uma faca. Alcina, preocupada, acompanhou seus passos, e quando ele voltou com a faca na mão ela perguntou ansiosa: – Pra que essa faca, meu filho? Quando Clodoaldo virou-se para olhar, Bento movimentouse com rapidez, intencionando furá-lo no peito. Mas não conseguiu, a faca pegou apenas no antebraço de Aldo. Ele, por sua vez, deu-lhe um soco no rosto com o copo em punho. Sangue para tudo que é lado. Embolaram-se no chão. E, como se fosse o som mais terrível do mundo, começamos a ouvir a sequidão das folhas 30

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mortas sendo amassadas por eles. Olhávamos aquela cena, chocados. Alcina gritava e tentava de todas as formas separar os dois. O samba continuava rolando. Ela subitamente desmaiou. Somente depois disso a briga havia cessado. Ensanguentados, os dois levaram Alcina para o hospital. Ficamos horas e horas em casa, apreensivos. Aproveitamos para comer os capitinhos que estavam em cima da mesa. Depois de certo tempo, os dois regressaram à casa sem Alcina. Ambos estavam cheios de curativos. Intranquilos, começaram a caminhar pela casa sem se dirigirem uma única palavra um ao outro. Como se comportariam sem Alcina? O que tinha acontecido com ela? Ficamos com medo. Será que a morte visitou a nossa casa, ou vai visitar? Não conhecíamos o seu semblante. Mas parecia avisar quando chegava. Assustados, ficamos olhando para Bentinho. Não consegui distinguir no seu rosto se escorriam lágrimas ou se era o sangue de domingo. Às vezes, Bentinho chorava nos domingos lembrando-se de Cecília. Nesses dias, sempre dizia que o domingo era feito de sangue. Seu rosto me trouxe à memória uma conversa que teve meses atrás com Alcina. Sobre os saudosos domingos, quando ele e Cecília ficavam brincando de enterrar sonhos no quintal. Bentinho enterrava sempre algo relacionado ao futebol; por vezes, uma bola feita de papelão e papéis enrolados por uma fita adesiva; noutras, um papelão com desenho de uma chuteira Nike. Já Cecília enterrava papelões com autorretratos, traçados com círculo e linhas tortas como fazemos, dentro de um quadrado que representava a televisão. Mesmo em dias diferentes, ela sempre enterrava um papelão com a mesma representação, mas tentava aperfeiçoar o desenho com mais linhas em cima do círculo da cabeça. Eles enterravam seus sonhos com a esperança de os colherem no futuro; 31

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os domingos eram como um jardim. Mas, com a ausência de Cecília, parece que Bentinho fez questão de não cavar o seu de volta. Ele dizia para Alcina que Clodoaldo transformou o domingo num cemitério de sonhos, pois enterrou definitivamente os deles como mortos no mormaço de seu quintal. Enquanto olhávamos Bentinho sentado na escada, Adonis e eu esperávamos ansiosamente o ranger do portão anunciando o regresso de Alcina. Bento se levantou e foi ao quarto. Pegou o pote de vitamina C. Na volta, sentou novamente na pequena escada que separava a casa do quintal. Clodoaldo, com um copo de cerveja na mão, foi em sua direção. Ficamos aflitos. O medo de voltarem a brigar sem Alcina por perto para acalmar era o pior medo do mundo, mas surpreendentemente nada aconteceu. Aldo apenas sentou ao seu lado em silêncio. De repente, começou a ajudar Bentinho. Em um guardanapo, colocaram umas bolinhas verdes retiradas do pote de vitamina C. Depois colocaram o guardanapo enrolado na boca, mas não engoliram. Parecia que queriam mostrar, para a noite que caía, a grande força da vitamina C. Depois, por vezes, fechavam os olhos, davam ares de que estavam rezando com ela. Mas seja lá o que estavam fazendo, sempre saía fumaça de suas bocas. Então entabularam uma conversa tranquilamente. Até soltavam risadas desconexas. Não pareciam os mesmos de horas antes. Alvoroçados com a mudança, Adonis e eu resolvemos ficar mais perto dos dois para sentir a vitamina C. Cheiramos a fumaça tentando descobrir o segredo daquela transformação. Lembramo-nos de Alcina falando que vitamina C curava gripes. Não sabíamos ao certo o que isso significava. Enquanto isso, Alcina não regressava. Começamos a sentir a alegria da vitamina C. De tempos em tempos, todos nós sorríamos do nada. Nem parecia que estávamos angustiados com a ausência de Alcina. Muito 32

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menos que Bentinho tinha tentado esfaquear o Clodoaldo. Mas o efeito da vitamina C foi passando. Enquanto esperávamos a volta de Alcina, Adonis e eu começamos a divagar sobre o que estava acontecendo: ou todos nós estávamos com gripe, ou era Alcina quem encontráva-se gripada. Ou a vitamina C rezava a sorte, ou ela curava a morte. Passaram-se várias horas e nada de Alcina voltar. O domingo estava acabando, e não sabíamos do que ele era feito. Minutos atrás Bentinho e Aldo ainda estavam em uma estranha harmonia. Mas depois de um silencio violento, os olhos de Bento começaram a insinuar novamente um ódio por Clodoaldo. Será que Bentinho nunca vai esquecer do dia em que viu Clodoaldo em cima de Cecília antes de ela sumir? Alcina tinha falado que Bento não podia acreditar numa coisa que viu sobre o efeito de vitamina C. Adonis e eu sempre ficamos confusos com essa história. O que tinha de errado naquela situação toda para Bentinho ter tanto ódio assim de Clodoaldo? Alcina já havia anunciado em uma das várias brigas que Cecília não tinha fugido de casa por culpa dele. Nunca conseguimos entender direito tudo isso e acho que nunca vamos conseguir. Mas uma coisa aprendemos naquele momento: a vitamina C trazia uma conciliação, mesmo que inconciliável. Ainda estávamos todos no quintal esperando o regresso de Alcina e sentindo os últimos efeitos da vitamina C, quando, subitamente, ouvimos um ranger diferente surgir do portão de nossa casa. Bentinho e Clodoaldo se levantaram apreensivos. “Parece o barulho que fazia quando Cecília abria o portão”, Bentinho sussurrou. Viramos para a parte da frente da casa com curiosidade. Quando olhamos para o portão, não acreditamos no que vimos. Meu Deus. Não era possível. Bentinho estava certo. O domingo realmente é feito de sangue.

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O coágulo emoldurado de mamãe Mamãe não fez o planejado, que merda. Tantos anos dedicados à forma e ao estilo. “Reparem bem no parafuso ao cuspirem nos ônibus, meninos”, dizia em forma de mãe algo do gênero toda vez que nos ensinava suas peculiares estripulias. Mamãe era diferente, naturalmente, mas nem por isso deixávamos de chamá-la de mãe. Nem dávamos importância para o que os outros meninos falavam dela. A especialista em literatura polaca era PhD em nos ensinar travessuras. O que digam os concursos de arrotos promovidos por ela no jantar. O pai ficava puto, mas no final sempre ria conosco ao ouvir os resultados. Éramos, Carlos e eu, na época, escoteiros da imaturidade materna e amigos-irmãos. Seguíamos, com harmonia, as divertidas orientações de mamãe até a merda do dia do parafuso. Nesse dia, para nos auxiliar na mira do nosso peculiar esporte de cuspir nos ônibus, ganhamos parafusos distintos: um cônico com cabeça Estrela e outro cilíndrico com cabeça Allen. O primeiro, mamãe tinha dado a Carlos; o segundo, a mim. Foi quando surgiu nossa desavença. De modo natural, um começou a querer o parafuso que não lhe pertencia. Devido ao nosso eterno desejo de almejar ser o outro, ou pelo menos ser o mais parecido. Naquela época, um desejo ambíguo por causa da irreverência de nossa pré-adolescência um tanto incitada por mamãe. Acreditávamos, ainda, na existência de certo privilégio para um de nós. Nossa 35

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mentora, então, com sua sabedoria e generosidade, deu-nos sua primeira aula sobre a diferença e a forma: “meninos, prestem atenção, os dois parafusos possuem a espiral. Vejam, ela é igual nos dois parafusos. Mas não devemos somente seguir a espiral quando formos mirar o cuspe. O importante é justamente a diferença da forma, do estilo, tanto do cuspe como dos parafusos. Isso representa o que faz de vocês únicos, ou seja, vocês mesmos. Ou seus arrotos são iguais? Os cuspes, por acaso, atingem a mesma distância e viscosidade? E o mau cheiro é idêntico?” Lembro que rimos uma das melhores risadas de nossas vidas. Aquele dia da merda do parafuso foi na realidade um dia maravilhoso. Cara, que saudades... Mamãe não fez o planejado, puta que pariu. Parecia que ela pensava tudo em prol da gente. Dias antes do dia do parafuso, havíamos feito o campeonato de rasgar dicionários. Uma vez por semana competíamos. Era um campeonato que não tinha um vencedor, mas vários. Líamos em cada abrir aleatório do livro uma palavra e seu significado e depois rasgávamos. Apesar da memória empoeirada, recordo que entre as palavras que aprendemos naquele dia estava justamente a viscosidade e idêntico. Fato esse também responsável pela carga de sentimentos da fabulosa risada sobre a diferença dos parafusos. Era mamãe ensinando de modo sutil sobre coincidências e acaso. Na época não sabíamos como era ser um vencedor nesse campeonato. Chegamos a cogitar que o vencedor era quem acabasse com o maior número de dicionários possíveis. Mas mamãe sempre comprava mais e o campeonato permanecia interminável. Com o tempo, percebemos que os vencedores éramos todos nós. No entanto, para ser bem sincero, na hora da competição nem nos importávamos com isso, pois a diversão daquilo era maior que qualquer pódio. Cara, que saudades... Mamãe não fez o planejado, que merda. Papai não sabia do 36

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plano. O que deve tê-lo magoado. Logo ele, que dizia ser o mundo um mar de mágoas. Vai ver mamãe queria confirmar essa tese, mas não teve chance. A vida foi mais rápida. Apesar disso, papai não é cinzento. Possui certa alegria. Um homem de poucas palavras e muitas molduras. Além de costurar pessoas, costura imagens. A fotografia é sua paixão. Quando não estávamos com a mentora de molecagem, capturávamos instantes de diversos ângulos com o pai. Ou diversas formas, como diria mamãe. Acho que foi aí o elo invisível dos dois. Às vezes, quando estávamos comendo ou estudando, ele vinha com a máquina e falava: “vamos emoldurar os momentos?”. Clique. Capturava-os. Papai era nosso Instagram. Tirava as fotografias e, depois de reveladas, colava-as na porta do banheiro. Nos momentos de reflexão, olhávamos seu olhar do nosso eu. O que acabava nos instigando a apurar o nosso olhar. Havia momentos do pai, por exemplo, que parecia um só momento. Capturávamos toda vez. Tenho até hoje várias fotografias da mesma fotografia. Clique. Lá estavam eles: papai e o Gombrowicz como soldados romanos desafiando o insondável. Bastava uma noite, um Belchior e umas cervejas para tal desatino. Até hoje não sei se papai havia dado esse nome ao cachorro para zombar de mamãe ou se em homenagem ao polaco-argentino. Talvez com ambas as intenções. Vejo a admirável fotografia do tempo. Cara, que saudades... Mamãe não fez o planejado, puta que pariu. Hoje a fotografia é diversa daquele tempo. Carlos e eu estamos adultos. Ambos, os antigos escoteiros amigos-irmãos, escondem-se em casas separadas pelo casamento. Cada um carrega ainda o seu parafuso. Nem que seja numa gaveta empoeirada de artigos antiquados, ou na gaveta traiçoeira da memória. No entanto, já não cuspimos nos ônibus que passam embaixo das passarelas (sequer andamos nelas). Não 37

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rasgamos mais os dicionários. Muito menos usamos os parafusos para mirar alguma coisa. Os arrotos agora são libertados vergonhosamente no banheiro. As fotos pularam da porta do banheiro para as telas translúcidas dos computadores. Quanta solidão... “Aponta para o horizonte”, dizia mamãe com o parafuso na mão. Chego a ouvir sua voz grossa. Quanta distância... Cara, que saudades... Mamãe não fez o planejado, que merda, puta que pariu. Mamãe morreu. Antes, porém, deixou um pouco mais dela num papel sobre a mesa: Meus amores, Morrer também é estilo e forma. Se a vida o é, por que morrer também não o seria? Meninos, (é claro que para mim continuam meninos) a espiral do parafuso acaba. A minha já dura oitenta e três anos. Está mais do que bom para alcançar o horizonte, não acham? Espero que continuem cuspindo a vida, cada um da sua maneira. Amor, meu eterno companheiro, acima de tudo perdão e obrigado por participar dessa louca jornada de capturas em movimentos. Não compartilhei com você meu plano, pois bem sei que não o aprovaria. Além do mais, quero minha própria forma de morrer. Espero que entenda. Meu conforto é que você ainda tem o Gombrowiczinho. E como ele é o filho, você ainda vai ensiná-lo o caminho das pedras para a contemplação do intangível. Amo, peculiarmente, todos vocês de uma única forma, a minha. Manuel Obs: alguns minutos atrás fechei todas as janelas, coloquei o 38

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gás de cozinha para vazar e enchi um copo de água com parafusos pequeninos para beber. Digam-me, se não é uma bela forma de... Papai ainda havia chegado a casa antes de ela tomar a água parafusada, porém já se encontrava morta. Somente depois da autópsia ficamos sabendo que mamãe não morreu por causa do gás. E sim, em decorrência de um acidente vascular cerebral. Que merda, mamãe não fez o planejado. Contudo, sem saber, deixava seu último ensinamento: a facticidade também é uma forma. Agora há pouco, para tentar aliviar o barulho ensurdecedor da urna funerária ao cair na tumba, papai lia a carta para todos. Ouvi sua voz envelhecida. A voz das memórias capturadas. Ao terminar de ler, o homem de poucas palavras apenas acrescenta a velha lembrança do dia em que a conheceu. Mamãe na mesa operatória conversava com o médico. E este dizia sobre sua paixão pela fotografia. Então finalizou com a frase proferida por ela antes de fazer sua cirurgia de circuncisão: “a vida é um coágulo emoldurado por todos nós”. Cara, quantas saudades...

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O dia em que eu quis afogar o mundo no rio Negro Sozinho, encolhido no canto do quarto, eu soluçava de tanto chorar. Andava por esses dias com raiva do mundo. Triste com o que estava acontecendo com o papai. Por não fazer nada para ajudá-lo, fiquei aborrecido até com a mamãe. Tão chateado estava com ela que ficava calado quando falava comigo. Quanto ao papai, coitado, eu não suportava vê-lo na cama daquele jeito. Chorava, chorava, chorava e saía correndo para o meu quarto aos soluços. Desejava que o mundo fosse, assim, feito a nossa casa, em cima do rio, para que um dia, como hoje, eu pudesse empurrá-lo pro fundo do Negro para ele se afogar e sumir de vez. “Isso é por papai, seu mundo filho da mãe”, diria. Mas não era o mundo todo que eu queria que fosse como nossa casa. Por exemplo, o mundo daqui, do Lipe, do Carlinhos e do Zizico, meus amigos do São Raimundo, que não tinham nada a ver com isso, não queria que sumisse. Mas o mundo de lá, do Polo, do Distrito, para onde levam o papai e os pais dos meninos todos os dias num ônibus com ar-condicionado. Era esse mundo que eu queria que fosse uma palafita. “Julinho, Julinho... abre a porta pra mamãe, os homi da loja chegaram com a nossa LCD.” Com poucas lágrimas, mas ainda com os olhos inchados, fui com raiva abrir a porta. Os gritos dos carros lá fora entraram em casa com tudo, quando os homens carregaram a nossa nova televisão até a sala. O barulho era devido 41

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ao caminhão da loja estar empatando a passagem dos carros para a ponte rumo ao centro de Manaus. Depois que eles foram embora, não demorou muito e mamãe chamou as amigas chatas do bairro, até a mãe fofoqueira do Zizico, para assistir à novela na LCD. Estranha felicidade a de mamãe: mostrar para as invejosas da rua, como dizia ela mesma, as coisas novas compradas para a casa. As velhas chatas começaram a comentar, ao olharem a nossa nova televisão, quando iriam comprar uma também. “Depois de pagar minhas dívidas com os bancos, comprarei a minha”, disse a mãe do Carlinhos. Mamãe conseguia comprar tudo porque não tinha dívidas, pois pagava com um cartão como fez com a TV. Um cartão de plástico. Pensava que só existia dinheiro de papel, mas não, tem esse, assim, de plástico que chamam de cartão. Ela comprou até um celular pra mim com esse dinheiro. Mas, mesmo assim, continuei com raiva dela. Não adiantava tentar me fazer feliz com essas coisas, enquanto papai está lá na cama doente sem poder ir trabalhar. Não entendo. Como mamãe pode ficar rindo para a LCD com a mesma alegria de quando via o papai chegar do trabalho à noite? Estava ficando cada vez mais aborrecido com ela. Mamãe era quem me consolava quando estava triste, chorando, como há instantes. Mas hoje não me deu a mínima atenção, estava hipnotizada pelas cores daquela tela. Vou ficar de mal com ela por um bom tempo. Preocupado, fui tentar ver como estava o papai. Ao chegar perto do quarto, ouvi uns gemidos: “ai, caralho.” Quando abri um pouco a porta, vi-o com um alicate grande na mão batendo na sola do pé e gritando “ai, caralho, essa porra dói”. Meu Deus, a dor que o papai sentia era tão forte que ele estava batendo nela. Coitado. Quando vi o sangue escorrendo, não aguentei, saí correndo pro meu quarto chorando. Chorei, chorei, chorei até soluçar. Foi quando, enfim, mamãe veio ao meu encon42

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tro perguntar o que tinha acontecido. Então, engoli o choro e fiz cara de mau. Cruzei os braços e não falei nada. Estava com raiva, muita raiva da mamãe, sobretudo, do mundo. Do mundo de lá, do Distrito. “Trabalho no Distrito”, dizia papai, quando não falava Polo. Continuei mudo. Como pode o mundo e mamãe não fazerem nada para ajudar o papai? Ainda mais naquele estado, tendo de bater na dor até sangrar? “Não vai responder nada mesmo, Júlio da Silva Costa?”, mamãe perguntou, dizendo meu nome completo. Quando fazia isso era sinal de que estava brava comigo. Eu estava achando era bom que ela ficasse com raiva. Onde já se viu não ajudar o papai? Mantive minha cara de mau, mas curvei meu olhar pra baixo com certo medo. “Vai logo, menino besta, antes que eu te dê umas porradas, o Carlinhos tá lá na frente te chamando”, ela disse rapidamente querendo voltar à sala para não perder a novela. Saí voado do quarto para me encontrar com o Carlinhos e falar sobre a dor do papai e a minha raiva do mundo. – Carlinhos, tu não sabe, mano, papai ficou uns dez dias lá em casa sem ir trabalhar. Não conseguia andar direito. Estava com a perna com gesso, sabe? Aquela massa branca como da goma de tapioca, só que dura. Papai quase perdeu o pé. Foi a máquina lá do mundo do Distrito, aqueles troços que colocam coisas e saem outras coisas, como papai um dia falou, acho que foi isso. Não sei o que aconteceu, acho que os homens de lá, que o papai não gosta, colocaram ele onde botam as coisas, porque ele saiu outra coisa nesses dias. A perna com goma de tapioca e pé todo ferido. Chorei que só quando vi. Sabe Carlinhos, se o mundo do Polo estivesse aqui, na beira do rio, e fosse uma palafita, eu afundava o mundo dos homens que o papai não gosta de tanta raiva que fiquei. Passou os dez dias e papai voltou a trabalhar. Mas no início dessa semana, não foi de novo, acho que por causa da dor. Ele 43

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pegou o alicate de mexer no carro, agora há pouco, e bateu com tudo no seu pé até sangrar. Acho que a dor é tão forte que ele bate na filha da mãe. Ainda tá lá em casa com o pé ensanguentado. Coitado, tendo de bater na dor com o alicate de tão doída, mano. Nem os remédios acabam com ela, eu acho. – Carlinhos fez uma cara de assustado e disse: – Caramba, Julinho. Tô com pena do seu pai, mano. Olha só, pede pra ele passar azeite na perna, vovó fala que é bom pra essas coisas. – O pior é que a mamãe não faz nada, Carlinhos. Tá em casa agora com sua mãe assistindo à novela na nossa nova TV. Tu viu? – Vi, mano, muito doida a televisão, deve ser boa pra jogar videogame, né? – ele respondeu com brilhos nos olhos. – Deve sim, Carlinhos, mas não consigo pensar nisso agora. Fiquei conversando mais um pouco com Carlinhos, depois voltei para casa. Só tinha vontade de chorar. Passei pela sala fazendo cara de mau. A mãe de Carlinhos perguntou pra mamãe o que eu tinha. Ela não soube responder. No meu quarto, triste, agachado no canto da cama, comecei a chorar. Não sabia o que fazer. Como poderia ajudar o papai? Até que depois de um tempo me lembrei do azeite. Enxuguei as lágrimas e decidi ir ao quarto dele para lhe falar do remédio que a avó do Carlinhos usava. Mas quando abri a porta do quarto não encontrei ninguém. Então saí chorando atrás da mamãe na sala. Perguntei, soluçando, onde estava o papai, se os homens do mundo de lá tinham pegado ele. Ela se assustou ao me ver chorando daquele jeito, mas quando ouviu minha pergunta, sorriu e respondeu: – Deixa de besteira, Julinho, teu pai não foi pro Distrito, não. Foi ao pronto socorro rapidinho – quando ouvi isso, pus-me a chorar mais. 44

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– O que foi, menino? Para de chorar! Teu pai não tem nada, não; deve ter ido apenas pegar um remédio. Só isso. Vai já voltar – mamãe falou, enquanto acenava para eu sair da frente da televisão. Chorando, fui correndo para o quarto. Como podia mamãe sorrir daquele jeito enquanto papai estava no hospital? Acho que essa nova televisão está deixando-a maluca. Tudo isso por causa do Polo. O mundo de lá é mesmo um filho da mãe. Se o Distrito fosse uma palafita como nossa casa, eu juro que ia chamar o Lipe, o Zizico e o Carlinhos agora mesmo para afundá-lo no meio do rio Negro. Mas não podia fazer nada. Depois de muito chorar, comecei a rezar. Prometi a Deus que não iria mais fazer cara de mau pra mamãe e nem olhar a irmã do Zizico pelada se papai voltasse bem do hospital. E ainda perguntei a Ele por que o mundo de lá existia. Mas, como sempre, não respondeu nada. A escuridão da noite, misturada com o negro do rio, indicava que já era tarde. Mamãe já estava assistindo à segunda novela depois de ter feito miojo com salsicha para o jantar. Enquanto papai não voltasse, estava decidido não comer. Senti um frio na barriga. Comecei a chorar novamente, quando, de repente, ouvi o barulho dos passos dele no assoalho. O ranger das tábuas pareciam ser os únicos solidários com minha angústia naquela casa. Papai entrou mancando, observei de longe. “Será que ele vai perder a perna”, pensei. Depois, ouvi mamãe dizendo a ele que eu estava chorando feito um bebê recém-nascido por causa de sua ausência. Na hora me deu uma raiva. Quis ir lá gritar com mamãe, mas fiquei calado. Papai devia estar furioso com sua indiferença. Quando percebi que vinha atrás de mim, fui para o quarto. Papai abriu a porta e me viu encolhido no chão com os olhos vermelhos de tanto chorar. Antes que ele começasse a falar alguma coisa, fui logo desabafando: 45

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– Pai, juro, se o mundo de lá do Distrito fosse, assim, uma palafita eu ia afundar ele, pra nunca mais fazer mal algum com o senhor – depois que eu disse, ele sorriu e, não sei por que, abraçou-me. – Oh, meu filho, não chore. Estou bem – ele disse, acariciando minha cabeça. – Por que então o senhor estava no pronto socorro? Era por causa da dor? Vi o senhor batendo nela com o alicate. Estava sentindo no pé, né? Dói muito, pai? – perguntei, soluçando. Papai soltou um sorriso maior. – Julinho, meu filho, pare com isso, estou bem, vá jantar, vá... – disse, beijando minha testa. Papai foi para a sala novamente. Fiquei sem entender o motivo do sorriso. Será que ele está realmente bem? Mas por que então foi ao hospital? Acho que não quer falar tudo, para não me fazer chorar. Ele começou a conversar com a mamãe. Então resolvi ir para cozinha jantar somente para ouvir a conversa dos dois. – Mário, o que tu foi fazer no pronto socorro? Tua perna já não estava boa? – mamãe perguntou. – Sim, mas fui lá só pegar um atestado, não quero ir pra merda do Distrito amanhã, nem depois. Aquilo é um inferno. Peguei três dias, minha nega. Agora só na semana que vem. – papai disse sorrindo. – Sério? Como conseguiu? – Furei com um alicate a sola do pé que tinha acidentado. – Seu pilantra! – mamãe disse sorrindo. Papai chamou o mundo do Distrito de inferno, de merda. Sabia que o mundo de lá não prestava. Eu estava certo. Depois que ouvi aquilo de sua própria boca, não pensei duas vezes, deixei o prato com miojo na mesa e fui, imediatamente, ao quarto do papai 46

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atrás da caixa de ferramentas. Comecei a procurar um alicate. Eu sabia que ele tinha dois. Procurei, procurei até que encontrei. Fiz questão de guardá-lo numa caixa debaixo da minha cama. Como o mundo do Distrito não é uma palafita, eu precisava me prevenir para quando fosse adulto como papai. Tinha, de alguma maneira, de guardar a arma que me salvaria no futuro de todos os males de lá, daquele mundo do outro lado do centro, o mundo do Polo Industrial de Manaus.

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A caixa de sapatos Boaventura me chamou novamente. “Mas agora”, ele disse, “é importantíssimo”. Passou o pássaro da bagunça na minha memória. No chão: carpetes molhados, cuecas, edredons, CDs, livros, havaianas, sapatos, desodorantes, pelos, cocôs de Clarice, garrafinhas de plástico, pelos, filmes piratas, pelos, cocôs de Clarice, pelos, frigobar, pelos, caixas de remédio, pelos, papéis de exames, pelos e cabelos esparramados. Na cama: toalha molhada, roupas sujas, controle remoto, livros, edredom, cinto, smartephone, notebook, ausências e pelos. Sobre a cômoda: pentes, canetas, livros, cuecas, sacos, perfume, poeira, remédios, televisão e mais medos. Nas gavetas: roupas bêbadas empilhadas de incertezas. Imagine o cenário. Recuso-o há meses. Espero que para sempre. Suspiro. Preparo-me para o ignóbil. Antes de bater à porta, ouço ruídos de violoncelo. Uma melodia parece tocar. Bato à porta. Ele abre e entro na quitinete. De súbito, tomo um susto quando vejo tudo em ordem, além do movimento daquela melodia. Boaventura me indicou a poltrona. Com a mão no bojo da barba, pediu para eu sentar e ouvir a música. Ele, na minha frente com certa distância, declinou os olhos. Com as mãos, começou a reger o nada. Os movimentos revelavam consonância. Depois de alguns minutos, ele parou de repente e lançou olhares ao redor; em seguida a música parou. Estávamos na sua quitinete de apenas um cômodo hexagonal. Ele sondou todas as paredes até fixar o foco em mim. 49

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Sincronizou o dedo indicador no botão back e disse num fôlego: “ouça novamente, só que dessa vez sinta”. Então repetiu a música. Boaventura parecia outro. Não lembrava aquele ser agachado no canto do quarto meses atrás. Imóvel. No cume de nossa separação. Sabe quando o amor torna-se demasiado amoroso e a paixão acaba? Pois é, assim estava a nossa relação, mas até que isso poderia ser mudado com um esforço comum. Contudo, o que realmente não suportava mais eram seus medos. Boaventura não era assim. Parecia que depois de me conhecer ele começou a colecionar todos os medos do mundo. Nem cuidadoso ele era, coisa que sempre fui e sempre o ficava protegendo. Lembro até que eu ficava puta com ele quando falava que eu parecia com sua mãe, a protetora contra o mundo. Mas eu não tinha nada a ver com ela. Acho que ele apenas não se conformava com sua morte. O câncer, oh doençazinha filha da puta. Mas, enfim, não aguentei mais aquele homem parado em casa. Estava absolutamente cansada da sua imobilidade diante ao mundo. A cena dele no canto tinha sido patética. Lá estava com o peito sobre as coxas abraçando as pernas no canto do quarto. Em uma de suas mãos, era possível ver um livro meu esquecido. Ele nunca havia se interessado pela matéria de meu trabalho. Ser e Tempo: o título estava meio apagado devido à ação do tempo, mas ainda era possível ler. Parecia que na minha ausência ele havia lido o livro dessa vez. E, talvez, dado uma interpretação peculiar, pois quando perguntei o que ele fazia ali respondeu lacônico: “tô aprumando os espaços”. Logo identifiquei sua performance. Então falei para ele parar de atuar comigo. Que eu não fazia parte de nenhuma peça sua. Que tão pouco havia palco ali. Mas ele sempre dizia que o palco era o mundo. Nesse dia, para pôr fim aquela minha visita forçada, fui logo perguntando o que ele queria. “Apenas devolver seus últi50

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mos livros”, disse. Mas era mentira, quando me abaixei para pegar o livro do Heidegger ele pulou no meu braço dizendo: “então, devemos partir?” Em seguida o empurrei e perguntei com raiva pra onde, somente depois percebi que no desespero da solidão ele citou uma fala de Esperando Godot. Foi quando me estressei e fui embora. Aqui estou eu de novo. “Mas agora”, disse há instantes, “é importantíssimo”. Dessa vez parecia que me convidava para ouvir os acordes dessa música híbrida entre o jazz e o tango, que somente depois reconheci ser acordes de Piazzolla. Não estava acreditando, Boaventuda estava ouvindo Piazzolla. Antes ele não tinha disposição para música. Há mais de um ano que ele estava enfurnado naquela quitinete sem fazer absolutamente nada. Até o teatro havia deixado de lado. Nem escrever peças escrevia. As tão sonhadas adaptações ficaram na gaveta. Boaventura ficava apenas com seu medo, pelos, cocôs de Clarice e toda aquela sua bagunça ao redor. Acho até que tinha dias que não se levantava da cama e ficava apenas vendo Clarice, a lagartixa de estimação, andando pela parede da quitinete. Fico pensando o quanto Boaventura teve sorte de ter ganhado de herança da mãe esse prédio de quitinetes onde construiu no térreo o seu teatro. Se não fosse o dinheiro dos aluguéis, como ele viveria nesses tempos de imobilidade? Não sei. Como saber? O palco é o mundo. Dá-se um jeito. Mas o que será que Boaventura quer comigo? Não compreendo o motivo desse importantíssimo. Será que quer resignar-se? Falar que superou os medos? Voltar ao palco da paixão? Neste momento, Boaventura parece outro. A música do Piazzolla continua a tocar. No entanto, agora ele não rege o nada, apenas toca um acordeon invisível. Parece querer falar alguma coisa com a música. “Ano: cinquenta e nove. Motivo: morte do pai”, disse em tom diminuto, no contratempo da canção, o motivo da com51

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posição do Piazzolla. Depois continuou: “Quando faremos a peça da morte de nossa paixão? Ou do nascimento de nosso amor?” A força da música deu um tom de ternura a sua pergunta. Senti um soco no estômago. O tempo parecia ter parado. Mas num lapso a música acaba novamente. Fiquei assustada com tanta mudança. Ordem, melodia e movimento. Aquela quitinete era outra quitinete. Medos? Não, não vi nenhum pelo no chão. Remédios? Não, nenhuma pílula na cômoda. Cocôs de Clarice? Também não. Tudo limpo e bem arrumado. Na mais absoluta ordem. A própria Clarice não havia passado nem se quer uma vez pela parede. Balancei. É reconquista, na certa. Logo depois da música perguntei com o carinho de antes: – O que é isso Ventura? – É Deus, Clara, Deus – ele respondeu com o vigor de uma encenação, depois deu um leve suspiro e finalizou com brilho nos olhos: – Deus é uma Deusa, Clara, Deus é uma ondulatória sonora em Adios Nonino de Piazzolla. Senti vontade de pular nos seus braços, mas me detive. Ele sabia que eu gostava quando falava desse jeito. Recordei o Ventura que conheci na época das peças do absurdo. Fixei os olhos nele. Sentiu a música?, perguntou-me com os olhos. Respondi com um rubor encabulado que sim. Em seguida, o silêncio tomou tons diversos. Então sua voz o rasga com alegria: – Estou de volta aos palcos. Com aquela adaptação do Ionesco, O rinoceronte. Terminou a frase com um carinho desconhecido no bojo da barba. Não acreditei. Havia tempo não subia no palco e a adaptação estava empacada. Suspirei e cocei minha nuca. Silêncio novamente. Quando ia perguntar o que era importantíssimo para eu ter 52

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que aparecer aqui tão rápido, ele pegou uma caixa de sapatos em cima da cômoda e me entregou. Engoli a vontade. – É o que restou de nós e de você – ele disse com uma alegria estranha – pode ir embora não tomarei mais seu tempo – finalizou. Fiquei sem ação e me encaminhei para a saída. Na caixa, lacrada com fita adesiva no seu entorno, reconheci sua letra, para Clara com carinho, Boaventura. Abrindo a porta da quitinete ele me faz um último pedido: “Olhe o interior da caixa somente quando chegar a sua casa, por favor.” Sem entender direito tudo aquilo, saí da quitinete e vim direto para a casa. A cena e a música persistiam na minha cabeça. Ordem, melodia e movimento. Já no meu quarto, através do Youtube, encontro Deus. Começa a tocar pela terceira vez a música do Piazzolla. Vou reconstruindo a imagem daquele Boaventura. Então me lembro da caixa de sapatos. Pego-a e coloco sobre minha coxa. Sem hesitar, arranco a fita adesiva e cai um papel que estava grudado nela. Ordem, melodia e movimento. O que será que aconteceu com Ventura? Pego o bilhete e começo a ler o recado: “Meu erro foi cair no seu tablado, o palco deve ser sempre o do mundo”. Apreensiva, levanto a tampa com curiosidade. De repente, surge a voz de Ventura na minha cabeça quando vejo o interior da caixa de sapatos com surpresa: “É o que restou de nós e de você”. Começo a tentar entender tudo com certo tormento. Quando vejo, com agonia, as centenas de pelos circunscrevendo o corpo raquítico de Clarice é que começo a supor o porquê da ordem, melodia e movimento. Será que os pelos e os medos provinham de mim?

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O caralho-de-asas chamado solidão A princípio pensei ser uma espécie de charme a escolha pela solidão, como cerne da vida de escritor, feita por Enzo Juan da Silva. No entanto, depois descobri ser apenas um chavão do espírito performático desses seres. Solidão pra lá, solidão pra cá. Não é sempre a palavra preferida dos escritores? A solidão é a essência da minha escrita; A solidão é imprescindível para a minha literatura: não são sempre esses os jargões em qualquer entrevista? Pois é, sei que essas frases parecem bonitinhas à primeira vista, era assim também que Enzo falava, mas não passam de lugares-comuns no teatro literário. Antes eu ficava doidinha após ver suas entrevistas no Youtube. Aquele ar sublime. Aqueles trejeitos. Aquelas palavras. Aquela solidão. Tudo era um encanto. Contudo, depois daqueles encontros, não consigo mais ver nenhum charme na dita solidão. Era fanzaça do cara. Li todos seus romances e contos. Tive certa dificuldade para entrar em contato com ele, mesmo não sendo tão conhecido; publicava por editoras pequenas e quando, enfim, consegui conhecê-lo, putz, uma negação. Nunca imaginaria que um gênio na literatura pudesse ser tão desprezível.

*** Pensei em convidá-la para o curso sobre o Drummond que estou organizando, mas ela não deve ter tempo para literatura. Pos55

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sui apenas uma folga na semana. Nesse dia, de modo religioso, ela sempre vem beber uma cerveja aqui no bar do Cabelo. Talvez para poder suportar mais uma semana naquele ar sufocante do shopping center. Hilda deve ser espetacular na cama. Pense numa ruivinha linda balconista do McDonald’s. Sempre tive tara por trabalhadoras de fast-food. Não sei, mas acho que na hora de foder elas devem fazer um espetacular slow food pra compensar essa vidinha de pressa, pra não dizer de merda, de vender simulacros de lanche. Hoje Hilda está radiante. Estamos trocando olhares há meia hora. Com esse olhar, essa cerveja, como não ficar com um tesão dos diabos? Ela levantou um pouco a saia e mostrou sua linda perna. Pra que tanta perna, meu deus? Meu pau começou a ficar duro. Ela insinuou que vai mostrar sua ruivinha. Pego levemente no meu pau. Ela dá um sorriso malicioso e, por debaixo da mesa, começa a mostrar a hildinha com um olhar safadinho. Aí não resisto e começo a bater discretamente uma punheta por debaixo da minha mesa. Vaivém. Vaivém. Caralho. E no vaivém lembrei de Drummond. Drummond, não. Do seu poema. O vaivém da vida e da punheta ficou mais vistoso. Poema de sete faces. Vaivém. “As casas espiam os homens/ que correm atrás de mulheres./ A tarde talvez fosse azul,/ não houvesse tantos desejos.” Continuava a olhar a ruivinha por debaixo da mesa com um tesão dos diabos. Meu imaginário girava como redemoinho, com imagens de mim dentro dela. Dela me chupando. E da porra do poema do Drummond transfigurado. E o vaivém ia cada vez mais rápido. O bar estava quase vazio. Nem pegava mais o aperitivo do perigo. A imagem da poesia era maior. No ápice do gozo, o redemoinho afunilou na minha cabeça com os malditos versos modificados do Drummond: “O bonde passa cheio de bucetas:/ bucetas brancas pretas e amarelas./ Para que tanta buceta, meu Deus, pergunta meu coração./ Porém meus olhos não perguntam nada”. Gozei. Pingos 56

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colaram instantaneamente na superfície debaixo da mesa, melando ainda minha calça e cueca. A ruivinha se fechou e acabou o show. Depois do gozo fabuloso, duas coisas começaram a intrigar-me: por que não consumamos o ato fisicamente e só ficamos naquele quase virtual? E por que as palavras são carregadas de pudor?

*** O Enzo me deixava molhadinha só com palavras impressas naquelas folhas amareladas. Aquele conto safadinho, daquela Hilda que poderia ser eu, arrepia-me até hoje. Os livros do cara me excitavam até o espírito. Gostava daquela sua frase da solidão, pois desconfiava que fosse uma espécie de saudade. “A solidão, às vezes, é uma saudade fudida de nós mesmos”. Achava genial. Pensava: como não transar com esse cara? Mas o negócio foi broxante. Estava toda feliz no dia do primeiro encontro. Tinha pintado tudo: unha, cabelo, alma e o caralho a quatro. Havíamos começado a conversa sobre as diversas cenas literárias. Estava tudo em sintonia até que o cara começou a ir de tempos em tempos ao banheiro. Com trejeitos intranquilos começou a não dar a mínima atenção para mim ali na mesa, mesmo depois de me achar maior gostosa. Eu puxava o máximo de assunto tentando recompor o bom momento do começo. Perguntei sobre o processo criativo e sobre o ato de escrever. Foi quando ele conseguiu deixar o meu espírito molhadinho de novo. Respondeu parecendo que tinha decorado um escrito. Mas depois disso o resto da noite foi decepcionante. Parecia que o cara queria transar é com o banheiro. Voltava se mordendo todo. Foram cervejas e banheiros em cima de cervejas e banheiros. No final, a coisa foi um fiasco. Pensei que poderia ser apenas uma noite ruim. 57

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Que nada. Descobri que quase todos os dias Enzo estava ali entre cervejas e banheiros.

*** Não sei o que Hilda queria comigo. A mulher era neurótica. Não parava de falar. Acho que Hilda não existe, só pode. Devia ter sido paranoia da droga, associando uma imagem a minha personagem. Não lembro muito bem. A mulher ficava me perseguindo (ou será que era o conto que não saía da minha cabeça?). Talvez quisesse que eu fosse seu marido. Aí não rola. A solidão é imprescindível para o meu fazer literário. Recordo vagamente ela dizendo que pensava que minha solidão era uma espécie de aura metafísica. “Que porra nenhuma”, respondi com a intenção de despachá-la, “o mais importante para um escritor é viver a vida, essa é a sua solidão fundamental, e isso pressupõe a solteirice”. Depois disso ela ficou furiosa. Mas, porra, a mulher não saía do meu pé. Se não me engano, foi a última vez que nos encontramos. Sua despedida foi uma frase digna de colocar num conto: – Enzo, vou te falar, gosto pra caralho dos teus livros. Amo até. Negócio sublime. Mas tu, cara, é um cuzão.

*** “Ah, Hilda, preciso da solidão”. Precisa da solidão um caralho! Como é que o cara inventa tal desculpa pra não ficar comigo? E aquela punheta não valeu de nada? Pra que então dizer que eu era gostosa e inteligente? Pra depois ficar com aquele papinho de solidão. Que filho da puta! Admito, no entanto, que continuo achando-o foda como escritor. Sabe como deixar meu 58

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espírito molhadinho. Mas, porra... só o espírito não vale. Gosto de literatura pra caralho, mas gosto de pica também. Nosso último encontro foi ridículo. De novo: solidão pra cá, solidão pra lá. Esse caralho-de-asas não parava de sair de sua boca. Quem era ele pra ter tanta saudade assim de si mesmo? Não era isso a solidão? E eu que pensava que a solidão de escritor era uma aura metafísica como a solidão de Deus. Porra nenhuma. A solidão de Enzo era composta de cervejas e banheiros. Ele praticamente comia cocaína e vomitava solidão todas as noites, e ainda dizia que isso era viver. Que cara idiota. Fico me perguntando: como pode um gênio na literatura ser na realidade um grande cuzão? E antes que essa imagem afete a impressão que eu tenho de sua literatura, vou tentar guardar na memória apenas o Enzo Juan da Silva do meu imaginário, aquele refletido nos seus textos. Já na realidade, na vida cotidiana, vou atrás de outro cara. Um cara que possa compartilhar o caralho-de-asas comigo. Quem sabe um dia eu conheça o carinha que escreveu O estouro da artéria de um cavalo húngaro?

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O estouro da artéria de um cavalo húngaro Balões dançavam tontos sob a longa lona azul e amarela. Narizes vermelhos provocavam risos. O cheiro forte de margarina misturava-se com o odor do calor. Os milhos desabrochados perdiam o viço na pipoqueira. Uma menina patética dizia ao namorado que trocaria seu saco de pipocas por ele. O desengonçado sorria e pedia-me um saco das doces. Não aguentei toda aquela insuportável alegria. – Parei de trabalhar por hoje – respondi guardando os sacos e fechando a pipoqueira. – Como, se acabou de abrir? – o garoto perguntou assustado. – Acabou meu saco – respondi impaciente. Para tentar melhorar meu dia, fui até o Sebo do Barbosa procurar uns livros de contos húngaros. Mas, antes de ir à seção de literatura, o Seu B. resolveu puxar uma conversa comigo: – Haverá contos de amor na sua grande obra, Lino? – a ironia dele demonstrava sua descrença na publicação de meu livro. – Não, seu Barbosa. O amor é um poço de frivolidades e uma temática batida pela verve adolescente dos poetas menores. – Porra, Lino! O amor é o tema universal dos grandes escritores. – Seu Barbosa, sua leitura é superficial. Os mestres quando utilizavam o amor era para falar da sua tragédia. Pense, por exem61

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plo, em Shakespeare – ele olhou-me curvado e, como todo velho, começou a fazer uns tiques. Continuei: – Além do mais, basta-me a patética cena diária de um casal comprando pipoca para o filho entre um sol escaldante e uma felicidade postiça. Não, não vou escrever sobre as futilidades do amor. – Algum conto, então, sobre pipocas e palhaços? – disse, num tom maior de escárnio, levantando levemente um sorriso irritante. – Obviamente não. Quem leria um pipoqueiro que escreve sobre amor, pipocas e palhaços? – É por isso que não consegue publicar nada – ele disse, misturando um desprezo na acentuada chacota. – Meu livro será pra você um mar de incompreensões. Minha literatura será o estouro da artéria de um cavalo húngaro jorrando sangue com vodca russa na cara dos meus contemporâneos! – respondi de forma peremptória, como se fosse a descrição na orelha do meu livro. Chegando até a prateleira reservada para contos, deparei-me com aquele ser aparentemente miserável. À primeira vista, fitei -a com cólera e certo nojo, pois era raquítica e medíocre. Embora conservasse tais características, inexplicavelmente, minutos depois, comecei a encantar-me com ela. Feminina de uma vida insignificante. Além disso, como não gostar de um primeiro encontro desses? Resolvi comprar uma antologia de contos húngaros e levá-la para um café. Que clichê miserável, estaria entorpecido pelo amor? Pensei enquanto folheava o livro e olhava com ternura para ela. Os acontecimentos foram revelando uma dimensão rara do amor. Sem as futilidades convencionais. Em apenas um mês já estávamos completamente apaixonados. Ainda lutei com uma força descomunal pensando ser a mesma idiotice que aflora em todo 62

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mundo, mas fui percebendo a relação única e sublime entre seres tão distintos. Cada dia pesava mais a sincronia entre mim e ela. Quando percebi, thysanura já estava morando em casa. Ela tinha se tornado minha primeira e única leitora até então. Todo dia, quando regressava à noite, encontrava-a debruçada no rascunho do meu primeiro livro. Seu silêncio por sobre meus contos era maravilhoso. Compreendíamo-nos no silêncio. E foi através dele que escutei atentamente seu pedido. Poderia parecer estranho, mas achei fabuloso. Preparei-me para executar o plano. Minha inquietação às vezes atrapalhava a primeira parte do pedido: escrever sobre nossa história. Como representar mais fielmente a essência de nossa realidade e sublime relação em um conto? Era a pergunta que me inquietava. A segunda etapa seria mais difícil, naturalmente. Não pelo ato em si, mas por causa da saudade que sentirei dela. Conforta-me que poderei matá-la nas derradeiras páginas de meu livro. Esta última etapa do pedido me mostrou a dimensão do amor até então desconhecida. Uma profundidade nesse abismo para além da superfície dos frívolos amores espalhados por aí. Mas, como sempre, ligada à tragédia. Escrevi o conto e mostrei a ela. Deitada por sobre os papéis, queria comê-los de alegria. Enfim, estava em um livro. Dizia estar cansada de ler os mesmos personagens de sempre. Falou que meu livro iria estourar. Olhando para thysanura compreendi tudo aquilo. Eu tinha realizado seu sonho. Agora, como no final do conto, terei de executar a segunda e última parte do plano. Antes, porém, deixei-a ler seu nome novamente no papel. Andou letra por letra. t-h-y-s-a-n-u-r-a. E, chegando ao ponto final, comecei a socá-la na cabeça com o exemplar da antologia de contos húngaros, conforme pedido, até sua morte. Aquele momento valeu por toda minha 63

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precária existência. Uma morte esteticamente perfeita. Em transe e sem dor. Com o livro pronto, enviei-o para as editoras. No mês seguinte, recebi várias propostas. E, com apenas três meses de publicação, fiquei em primeiro lugar em vendas do gênero em todo o país. Caralho, thysanura estava certa. Agora poderia viver de literatura. Pensei ao saber da notícia. O seu Barbosa estava surpreendido com meu sucesso. Mas uma coisa o agoniava: – Tu falaste que não escreveria sobre pipocas, palhaços e amor. Que porra é essa? E esse conto fabuloso sobre essa tal de thysanura? Que mulher maravilhosamente louca você inventou. – Preciso te falar uma coisa – respondi sorrindo. Contei a ele que não havia inventado nada. Tudo tinha de fato acontecido e tentei tratar o mais fielmente no livro. Inclusive, disse que a livraria do conto era realmente a sua e tinha conhecido thysanura aqui. Ele me olhou assustado. Falou que eu estava louco. Ainda disse que contaria tudo à polícia, caso fosse realmente verdade. Não acreditei no velho Barbosa, além do mais, quem não aceitaria o nosso distinto amor nesse mundo melado de amores fáceis? No outro dia, para minha surpresa, a polícia bateu em minha casa com um mandado de prisão e uma gravação da conversar que tive com o seu Barbosa. Perguntaram-me onde havia escondido o corpo de thysanura. A princípio, não quis responder. Queria mantê-lo comigo. No entanto, depois, quando cheguei à delegacia, resolvi entregar o corpo dela. Imediatamente, trouxeram-me para cá, onde estou agora, para uma avaliação médica. Encontrei o meu lugar nesta casa de saúde mental. Nunca me adaptei mesmo ao mundo. Aqui não se vê mediocridade e nem o poço de frivoli64

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dades dos amores lá de fora. Compartilhamos um amor sublime de histórias surpreendentes. Só de pensar que ganhei tudo isso graças à thysanura, fico desatinado de saudades. Conheci outras aqui, confesso, mas não iguais a ela. Hoje meu livro continua sendo o mais vendido do gênero. O que revela uma miséria nos homens. Uma vez que todos clamavam pela minha prisão num primeiro momento. Agora que estou aqui me chamam de louco. Mas continuam lendo freneticamente meu livro. Não, não compreendo. Se não for uma indigência de espírito, o que pode ser? Por que não aceitam na realidade o que admiram na ficção? Ou seria o contrário?... Na verdade, o que querem esconder é seu total desconhecimento sobre a parte sublime do amor. Só conhecem a parte frívola, fútil, melosa. Por isso, nunca aceitarão que um fudido pipoqueiro, como eu, tenha-o encontrado. Ainda por cima numa mera thysanura.

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O gozo sem vida de Joana Verdes, azuis, brancas e amarelas voavam formando uma aquarela. Joana contava: “...vinte e nove, trinta, trinta e uma…”, enquanto colocava-as no pote transparente. Possuía uma coleção delas no quintal da casa. A cabeça vazia não é a oficina do diabo, como diz o ditado popular. A contagem das borboletas fez Joana ter uma ideia. Foi para o quarto. Ligou o vídeo pornô das atrizes ucranianas para aprender. Começou uma recontagem das borboletas. Tirando-as do pote e colocando dentro de si. Agora sentia a espiral da aquarela. Um arco-íris interno. Saiu de casa e foi ao encontro de José. Raimundo sentiu molhar sua cueca. Era seu sêmen. Ejaculava sem gozar. O trabalho intenso da britadeira era o motivo do gozo não gozado. Apesar de sempre acontecer, o peão da construção civil não conseguia se acostumar. Ele parou a máquina. Olhou aquele ambiente inseguro do trabalho. Uma megaconstrução de um centro comercial do Amazonas numa área de terra fofa e molhada. Repleta de palmeiras e buritizeiros. Lembrou-se das consequências causadas pelo gozo. Principalmente para sua mulher, Joana. Naquele mesmo momento, do outro lado da cidade de Manaus, Joana gozava de verdade. Um gozo esplêndido. Cheio de vida. Até José saltou espantado ao vê-la ejacular. Caralho, a mulher goza borboletas!, pensou. Do lado de fora do terreno baldio, 67

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via-se uma espiral colorida. Joana sentia-se uma famosa atriz pornô ucraniana. Enquanto ele acreditava ser o responsável por aquele gozo fabuloso. Após o sexo casual, ela foi contar sua descoberta do orgasmo múltiplo para sua amiga Jurema. – Sempre soube que minhas coletas de borboletas iam servir para alguma coisa, Ju! – disse Joana, após a explicação de tudo para sua amiga. – Que maravilhoso! Confesso que achei você meio louca quando fiquei sabendo da coleção de borboletas – disse Jurema, espantada. – Ju, acredita que já estou amigada com o Raimundo há vinte anos? – Sério, Jô? – Sim, já não aguento mais! O homem antes não negava coro. Agora tá foda. Sempre com a mesma ladainha. Além do mais, tá uma merda lá em casa. Sempre brigamos. Raimundo foi ao banheiro. Retornou com força ao trabalho. Só pensava no final do mês. Para receber o salário e poder comprar a comida dos meninos e beber aquela cerveja ouvindo o grande Waldick Soriano com os amigos. Sua única válvula de escape. E quem sabe se animar mais e conseguir suprir as necessidades de sua nega. Respirou grande otimismo. Começou a manusear a britadeira com mais alegria. Preciso de pouco para ser feliz, pensou. O ambiente de trabalho era totalmente inseguro, como é de costume. Ele estava próximo a uma barragem e aconteceu o previsível: ela desabou. Raimundo foi soterrado juntamente a outros peões. Tentaram salvá-los, mas foi em vão. Todos morreram nesse acidente previsto. Nessa noite, Joana não ouviria mais a ladainha diária de Raimundo. O telefone tocou na casa do recém-finado e Joana recebeu a notícia do falecimento. O homem do recursos humanos da empre68

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sa informou ainda que providenciaria o pagamento de uma indenização para a família, além de um cala-boca a mais para a esposa não comentar nada com ninguém sobre o acontecido. O mesmo homem já havia cuidado de molhar as velhas mãos calejadas de dinheiro sujo dos jornais de Manaus. Tudo para que mais um grande empreendimento fosse construído sem notícias de mortes. Joana sentiu uma coisa estranha ao saber da tragédia. Uma espécie de dor e alegria simultaneamente. Desligou o telefone. Imaginou como seria boa a vida sem Raimundo. Foi imediatamente contar borboletas. Sentiu vontade de transar. Ligou para José e marcaram um encontro. Terminou a contagem meio tensa e saiu de casa. Chegou ao centro da cidade à noite. Desceu a Avenida Eduardo Ribeiro. Parou na frente do arrogante Teatro Amazonas. Olhou seu cocar e por detrás viu aquela lua triste e fria. Ouviu tocar o sino da igreja São Sebastião como se fosse o som da solidão. Sentiu a noite. Entrou no motel barato procurando o prazer. Transaram na cama e depois sobre a pia do banheiro. Então, Joana gozou. Não o gozo de antes, quando Raimundo estava vivo. Mas um gozo estranho, fraco, triste; sem pudor, sem vida e sem adultério. Atordoado, José viu as borboletas, que voaram novamente para fora dela em forma de espiral, mas só que dessa vez numa aquarela de sangue.

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A doença do mundo Úrsula mudou repentinamente. Pintou as frases pessimistas da parede do quarto. Emudeceu a voz de Carlos Gardel. Cancelou as compras semanais das caixas de copos. Até a vassoura de nossa casa deixou de varrer os cacos de vidro. No início fiquei feliz, embora julgasse elegante sua terapia: cantar o tango cambalache e quebrar copos de vidro contra a parede. Tudo isso para amenizar o inimaginável sofrimento de suas crises. Ela sofria de desânimo. Dizia ser a doença do mundo. Para o psicanalista, era neurose depressiva. Ele utilizou uma abordagem incomum para fazer o diagnóstico. Analisou o nosso quarto, no qual, na parede frontal da cama, onde era o antigo alvo dos copos, liam-se duas inscrições de Úrsula. As frases resumiam seu sentimento e crença sobre a humanidade: O Homem é uma máquina de sinistros. Quem dentro do vazio dessa esponja azul criadora de lírios patéticos não sentiria uma puta saudade do Nada? Passaram-se anos para desaparecer o desânimo. Tinha me afeiçoado com facilidade ao rito do tango e dos copos devido a sua beleza, naturalmente. Aquela mulher, uma espécime de Sue Lyon mulata, quebrar o pavoroso ritmo dos dias, dando asas a copos ao som do tango em sua linda voz, era uma cena digna de ser filmada. O que não quer dizer um menosprezo de minha parte por sua dor, mas a cena era linda. Quanto à esperança de 71

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cura da doença do mundo, havia renunciado por causa do longo período. Até que um dia, subitamente, Úrsula virou ânimo. Achei um tanto estranho. Mas, mesmo assim, conservei a ideia da causa ter sido a psicanálise. Como se fosse uma comemoração, ela me convidou para irmos ao bar. Ao sentarmos à mesa, lembrei-me do nosso primeiro encontro. Suspirei minha alma num só fôlego quando havia me aproximado dela: – Com licença, senhorita, qual o seu diretor de cinema favorito? – Kubrick, por quê? Está fazendo uma pesquisa pro bar? – ela respondeu estampando sutilmente um sorriso, o que havia me tranquilizado. – Não, não – respondi um pouco envergonhado, mas logo emendei com elegância – Que ironia. Só falta o teu filme predileto ser o que dá nome ao bar. – É... gosto da ultraviolência – ela disse com o mesmo gracejo inicial. – Posso lhe pagar um leite? – perguntei puxando uma cadeira e ansioso na investida. – Não bebo leite... mas aceito um chá – ela disse murchando um pouco o sorriso – Como pode não beber leite se teu filme preferido é... – ela me interrompeu dizendo com certa tristeza: – Tenho intolerância à lactose e alergia a outros componentes do leite. Após um silêncio desajeitado, fizemos o pedido: um leite e um chá. Talvez por ter sido incomum, foi uma noite memorável. Úrsula nunca se consolou de não poder beber leite, mesmo procurando 72

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tomar uma variedade de chás, sentia que o prazer era diferente. O bar serve laticínios e todo tipo de chá aos seus clientes. Pedimos ao garçom o de sempre, o chá de Úrsula e o meu leite. Conversávamos com ânimo quando, estranhamente, ela começou a suar frio, como um viciado na iminência da droga, toda vez que fitava o meu copo. Nunca, em todos esses anos, havia visto aquela expressão em seu rosto, aquele olhar fugidio. Parecia abstinência. Era natural ela me ver tomando leite, seja em casa ou no bar. Como a noite estava ótima, e não queria dissipar o ânimo, preferi não perguntar nada sobre sua agonia. Saímos do bar cambaleando alegrias fortuitas. Com o fim do desânimo, Úrsula mudou também sua rotina. Começou a frequentar duas vezes por semana uma clínica médica particular. Voltava sempre com uma sacola térmica grande e colocava algo no frigobar-cofre que tinha acabado de comprar para o quarto. Comecei a ficar curioso, mas respeitei sua privacidade. Hoje me deparei com uma situação insólita na refeição matinal. Úrsula, animada, saboreava um líquido branco semelhante ao leite. O que seria? Sentei-me à mesa sem falar nada. Olhei-a desconfiado. Então, ela falou com ternura: – Bom dia, amor! Vou colocar seu leite para esquentar. – Bom dia, meu bem – tentei responder com naturalidade. – Como vão as coisas? Tudo bem? – perguntei esperando uma novidade. – Sim, não poderiam estar melhores! – ela respondeu, com brilhos nos olhos, depois de beber mais um gole do líquido esbranquiçado. Sem comentar nada sobre ele. O café da manhã correu com aparente tranquilidade. O líquido tinha virado sua bebida principal. Bebia todo dia. Tomava-o naturalmente como se fosse leite. Sempre animada, pas73

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sou até a levar sua garrafa térmica para o bar, não tomava mais os chás. Por algum motivo, não havia me informado que bebida misteriosa era aquela. Também não quis perguntar, pois parecia ser a responsável pela cura da doença do mundo em Úrsula. Para que saber o conteúdo de uma alegria? É sempre fútil, em sua maioria, o essencial é a forma. Além do mais, pela frequência na clínica, talvez os especialistas houvessem fabricado um laticínio especial, ou então a medicina tivesse encontrado a cura da intolerância à lactose e o líquido pudesse ser um leite preparado com os novos medicamentos. Quem sabe com isso Úrsula quisesse me fazer uma agradável surpresa. Assistimos pela décima vez ao filme preferido dela, só que agora, incrivelmente, bebendo leite. De modo óbvio, Úrsula com o seu peculiar líquido misterioso. No final, jogamos par ou ímpar e eu perdi. Ela foi para o quarto dormir. Enquanto o perdedor ficou com a tarefa de arrumar tudo e lavar a louça. Aceitei com resignação. Nada pagava ter visto a felicidade dela ao assistir Laranja Mecânica tomando leite. Talvez seja essa a agradável surpresa. Um acontecimento um tanto surreal para o nosso hábito. Comecei então pela cozinha. Lavei toda a louça. Depois fui para a sala. Catei as pipocas do chão e arrumei as almofadas do sofá. Voltei à cozinha. Quando fui recolher o lixo, encontrei o rótulo da garrafa de leite da Úrsula. Fixei os olhos nele. Apesar de não estar mais tão curioso, mesmo assim quis confirmar minha hipótese. Ele estava meio amassado, mas de imediato consegui ler as letras em maiúsculas: CLÍNICA OSWALDO CRUZ. Minha suspeita parecia se confirmar. Peguei o rótulo e comecei a desamassá-lo para continuar a ler as miudezas: CLÍNICA OSWALDO CRUZ / Banco de sêmen / 300 ml. Subitamente, levantei-me assustado e me pus a ler novamente incrédulo: CLÍNICA OSWALDO CRUZ / Banco 74

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de sêmen / 300 ml. Não acreditei. Porra, o leite dela era sêmen! Fiquei rodando pela cozinha meia hora sem saber o que fazer. Caralho, caralho, Úrsula bebia sêmen! Fui atordoado para o quarto. Ela estava dormindo. Que merda! Úrsula bebia sêmen! Como poderia? Não dava para acreditar. Senti náusea e nojo. Fui ao banheiro. Comecei a escovar os dentes com um apreço incomum. O branco do creme dental me enjoou. Meu estômago se embrulhou todo. Cuspi o creme e vomitei. Caralho, Úrsula bebia sêmen! Tomei um banho rápido tentando compreender aquilo. Fui para a cama. Deitei ao máximo afastado dela. Não conseguia dormir. Caralho, Úrsula bebia sêmen! Era a única coisa que conseguia pensar incessantemente. Até que o cansaço me dominou e dormi. Na manhã seguinte não comentei nada. Com dificuldade, tentei seguir a rotina como se não soubesse coisa alguma. Comecei a procurar lógica naquilo novamente. Será que ela queria experimentar coisas novas? Um prazer novo? Por qual motivo não bebia o meu sêmen? Por que haveria de ser a porra dos outros? Que relação isso tinha com a doença do mundo? Era engolindo sêmen o modo de acabar com o sinistro humano? De não sentir saudade do Nada? Passaram-se vários dias e não encontrava resposta satisfatória. Úrsula seguia com o ânimo a todo vapor. Enquanto eu fui ficando cada vez mais abatido. Conforme o tempo passava, eu lembrava cada vez mais as antigas frases de Úrsula no quarto. Não tinha vontade de fazer nada. Como um Bartleby confuso, fui recusando ir ao trabalho. Minha inanição era cada vez maior. Um desânimo foi me assolando profundamente. Não tinha sequer coragem de revelar à Úrsula o que eu sabia, ou perguntar as suas razões. Ela por sua vez não fazia a mínima questão de explicar os acontecimentos, como se tudo que vinha ocorrendo fosse a coisa mais banal de nossas vidas. Quem sabe eu tenha contraído a 75

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doença do mundo? Será que todos nós somos acometidos por ela? Alguns, porém, possuem a capacidade de incubação? Comecei a ficar com medo. Pensei em consultar o psicanalista, mas fiquei receoso. Será que acabaria igual à Úrsula? Com esse pavoroso ânimo inconsistente e esbranquiçado? Não, não, eu não poderia ceder à doença do mundo, mas também me entregar a esse ânimo seminal seria um absurdo. Se ela quer se embriagar com sêmen, beleza, vá fundo, não vou é ficar doente por causa disso. No outro dia, acordei cedo e antes de Úrsula com a resolução de esquecer tudo aquilo. Fui imediatamente em direção à cozinha. Abri a janela. Ao entrar os raios solares, senti uma estranheza em meu corpo, certo desequilíbrio. Então abri a geladeira à procura da caixa de leite. Foi reconfortante encontrá-la no seu lugar. No entanto, após colocar o leite no copo, senti um profundo esvaecimento. Pensei em desistir. Mas, quando olhei para o reflexo do sol na nossa sede, soube de alguma maneira que aquele desânimo um dia cessaria com uma nova ilusão.

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O dia em que comi como o faz um rico Talvez isto seja a felicidade. Caso não seja, que vire. A excitação se faz presente. Estou fazendo tudo com um prazer raro. Hoje teremos um peixe sem espinha. Confesso que a técnica utilizada, neste momento, é adaptável. Os ossos são até mais fáceis de encontrar. Corto o mais rente possível para não perder nenhuma carne. O peso maior justifica a intensidade do sangue. Faço tudo com precisão. Também pudera, carrego o saber desde o nascimento devido à tradição familiar, além dos conhecimentos científicos adquiridos na Universidade. Sinto agora falta do cheiro. O cheiro é característico. Recupero neste momento a minha infância. Principalmente, a imagem do pai no ofício. A felicidade seria a memória? Ou seria a falta dela? Hoje a felicidade se revela para mim no registro, na lembrança do cheiro e no ato. Papai era peixeiro. Desde cedo, começou a ensinar-me as habilidades das mãos para com os peixes. Primeiro, aprendi a escamá -los. Nessa época, eu odiava o cheiro exalado da bancada. Mamãe dizia: “Relaxa, Bino, é só o pitiú”. Então me calava. Descobri ser o cheiro característico dos peixes. Depois, conheci todas as suas partes. As nadadeiras ou barbatanas, a cabeça, o espinhaço, o lombo, entre outros pedaços. Aprendi também que as espinhas são ossos do corpo do peixe. Desde então chamava-os só de ossos. A terceira tarefa que aprendi é a mais nostálgica e interessante: os cortes. O 77

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pai era especialista em dois tipos: em ticar e em tirar a espinha. A primeira técnica consiste em cortar várias vezes o peixe em toda a sua extensão. Cortes paralelos e com certa profundidade. Com objetivo de quebrar os ossos em forma de “Y” existentes no lombo do pescado e facilitar a catá-los no ato de comer. A segunda, que faço agora, consiste na retirada de todo o espinhaço do corpo do peixe, preservando apenas os ossos da costela por causa da facilidade de catá-los, ficando em grande parte somente a carne. Podendo, assim, comê-la sem preocupação. Recordo que, no final de minha adolescência, fazia tudo meio atrapalhado e papai sempre ralhava comigo. A saudade é destrinchada aos poucos. Fico pensando se papai saberia tirar este espinhaço como estou fazendo agora. Com isso, lembro apenas de uma amargura do meu passado: não podia comer peixe sem espinha. Pois, segundo papai, era frescura. Coisa de rico e japonês. – Um manauara tem que comer peixe ticado! Ele falava com seu regionalismo besta. Passei toda minha adolescência querendo comer como os ricos. A mãe falava-me para estudar bastante, fazer medicina e então ganhar muito dinheiro. Seguiu em mim uma confusão de desejos: ser peixeiro ou médico? Corto neste momento a carne que reveste o osso mais longo do espinhaço. O que o pai acharia de mim agora? E mamãe, estaria orgulhosa de seu médico? Não entendo por que papai não me aceitou como eu era. E para que me expulsar de casa de tal maneira? Lembro quando ele falava que a felicidade era o amor. E, no entanto, não aceitava suas formas. Parece-me mais palpável a felicidade ser o que sinto nesse momento. Corto a parte dos ossos laterais e rumino como conheci Pedro (comigo, agora). Lembro 78

T H I A G O

R O N E Y

a primeira vez que o vi, quando eu caminhava até a faculdade. Já faz algum tempo. Seu cheiro chamou-me mais atenção. Ele também era peixeiro como meu pai. Foi com nossa relação que consegui superar minha antiga dicotomia: ser peixeiro ou médico. Convivemos harmoniosamente até hoje. Olho para ele e continuo tirando o espinhaço. Virei um cirurgião ortopedista renomado. Ontem, voltei do doutorado. Fazia-o na Oxford University nos Estados Unidos. Por causa disso, fiquei alguns anos sem poder comer o peixe de minha região. Situação angustiante. Voltei com a imensa vontade de comê-lo como faz o rico – sem espinha. Um plano de toda uma vida. Porém, Pedro não gostava assim. Preferia o peixe ticado. Eu havia telefonado, um dia antes, pedindo para preparar um peixe sem espinhas. Nós dois celebraríamos meu doutoramento e nosso aniversário. No entanto, quando cheguei a casa, recebi duas notícias desastrosas: só havia peixe ticado e Pedro tinha deixado de ser peixeiro. Abracei-o com prazer e ódio. Cafunguei seu pescoço. Ao cheirá-lo, não sentia mais o pitiú característico de peixeiro. Imediatamente veio a imagem de meu pai tirando espinha de um Tambaqui. Não pensei duas vezes. Empurrado por um prazer incomum, comecei a executar o que estou finalizando agora. Satisfeito e feliz, termino de tirar o espinhaço com perfeição. De tal forma que nem papai faria melhor. Pego um balde com água e jogo-a por sobre a mesa para limpar o sangue. Guardo os ossos numa caixa ao lado. Com um pano, acabo de limpar o resto dos vestígios sanguíneos. Olho com admiração aquilo. Certamente, papai aprovaria minha habilidade e mamãe estaria orgulhosa de mim ao verem o corpo de Pedro, sem os ossos, estirado na mesa da cozinha. E, enfim, sem desaprovação nenhuma, hoje comerei como o faz um rico – sem espinhas. 79

Este livro foi composto em Electra LT Std pela Editora Multifoco e impresso em papel pólen 90 g/m².

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