O estrago vai ser grande – Caderno Opinião – Jornal O Globo – 27/07/2012

June 20, 2017 | Autor: Filipe Monteiro | Categoria: Ciencia, Conhecimento, Tecnologia, Inovação, Progresso
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O estrago vai ser grande – Caderno Opinião – Jornal O Globo – 27/07/2012


Preocupação e espanto são palavras adequadas para definir os sentimentos
que rondam entidades cientificas e empresariais, chocadas com os repentinos
cortes orçamentários no setor de Ciência, Tecnologia e Inovação em 2012 no
Brasil. Para além dos problemas que foram expostos nos últimos meses sobre
os possíveis danos causados pela redução desses recursos, é plausível
argumentar que ao tolher os crescentes investimentos da última década, o
governo interrompe uma trajetória exitosa da produção cientifica
brasileira, ainda que isto não seja um fato óbvio para muitas pessoas.
O processo de inovação, em qualquer campo de investigações, é longo e
demorado. Demanda recursos financeiros e persistência intelectual. O
estabelecimento de um grupo coeso e profissionalmente estável de
cientistas, seja em que área for, é tarefa de longa duração e normalmente
exige o esforço de gerações inteiras. Os resultados que daí advém trazem
benefícios para a indústria, o comércio, a educação, enfim, a sociedade em
geral. A partir de certo patamar de desenvolvimento, no qual o Brasil
parecia ingressar nos últimos anos (Já alcançamos a 13ª posição no ranking
mundial da produção científica), estaríamos diante de uma verdadeira
Revolução Científica.
Obviamente, não me refiro aqui às mudanças monumentais da ordem de uma
revolução copernicana ou de uma revolução pasteuriana. Dinheiro público não
foi, definitivamente, o elemento determinante para Nicolau Copérnico
descobrir que a Terra girava em torno do sol ou para Luís Pasteur levar
adiante seus experimentos de fermentação, muito embora este último tivesse
se cercado de aliados na França de Luís Napoleão Bonaparte para angariar
fundos e o apoio da prestigiada Académie des Sciences. Atenho-me às
reorientações de procedimentos laboratoriais, à redefinição de cálculos e
teorias, à adaptação de novos equipamentos, enfim, a uma série de ações que
visam o progresso da ciência.
Atitudes inovadoras dessa natureza, quando apoiadas pelo poder público de
forma sistematizada, criam novos conhecimentos e novas tecnologias, novas
substâncias, vacinas e remédios que podem salvar vidas e engrandecer toda
uma nação. Mas para ocorrer o "pulo do gato", o esperado momento "eureca" é
preciso que os pesquisadores tenham garantias concretas e estáveis para o
seu trabalho em longo prazo - uma questão deveras sensível, sobretudo em
países como o Brasil que não cultivaram, ao longo da História, uma forte
tradição de financiamento privado e/ou filantrópico no campo científico.
Por aqui, praticar ciência e transmitir conhecimento exige, para o bem e
para o mal, comprometimento de homens públicos e agentes do Estado.
Só com a prática científica diária, com suas ricas polêmicas e
controvérsias, surgem, inesperadamente, "quebra-cabeças" verdadeiramente
desafiadores, diria com muita propriedade Thomas Kuhn, sociólogo e
historiador das ciências. Ao desvendá-los e solucioná-los, o pesquisador
revoluciona o seu mundo, e com ele a sociedade à sua volta. Uma nova teoria
para explicar o comportamento humano, uma proteína que nunca antes fora
identificada, um corpo celeste que muda de status, um maquinário novo para
o dia-a-dia da dona de casa.
Os métodos, os estilos de pensamento, a rotina de pesquisa, os grupos de
discussão, só fazem sentido quando há uma perspectiva de continuidade no
horizonte. Quando mestres e orientandos enxergam a possibilidade de passar
adiante toda a constelação de dados e informações que fazem parte da sua
tradição de estudos e análises. É dessa ciência, ou como definiria Kuhn,
dessa "ciência normal", cotidiana, ininterrupta, teimosa, que surgem as
"revoluções" que cumprem e renovam uma promessa de progresso não só para os
próprios cientistas, mas para a população do país em que ocorrem.
A preparação adequada do corpo científico, a credibilidade dos
profissionais que participam da empreitada, enfim, o legado que ficará para
as gerações posteriores depende não só do esforço coletivo de todos, mas
também do aparato institucional a que estão ligados. O que está em jogo,
portanto, é mais do que simples recuos ou contingências financeiras
eventuais. A atual mobilização das sociedades profissionais das mais
diferentes matrizes – abrangendo desde historiadores e zoólogos até
farmacêuticos e astrônomos –, a petição pública elaborada pela Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência e o alerta enfático de sua
presidente, Helena Nader, na abertura da 64ª reunião anual da SBPC, esta
semana, é um sinal de que o estrago, se não for prevenido, será grande.

Filipe Pinto Monteiro é bolsista da Fiocruz e doutorando do Programa de Pós-
Graduação em História das Ciências e da Saúde
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