O estranhamento em Toscani

June 4, 2017 | Autor: Camila Craveiro | Categoria: Publicidade E Propaganda, Estrategias Semioticas Da Publicidade, Criação Publicitária
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SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS INTERDISCIPLINARES DA COMUNICAÇÃO UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

X Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC Rio de janeiro, 7 e 8 de dezembro de 2004

O estranhamento em Toscani Camila Craveiro da Costa Campos Universidade Estadual Paulista

Resumo Tomando como ponto de partida o conceito do “princípio de estranhamento”, proposto no início do século XX pelo teórico russo Sklovsky, este artigo sugere pensar a desautomatização da percepção, principal conseqüência do estranhamento, em uma área outra que não a da Literatura, onde o conceito se originou, relacionando-o à Publicidade. Mais especificamente, aplicamos o conceito do formalista russo para pontuar a produção de Olivero Toscani, reconhecido profissional de criação, responsável pelas campanhas que maior visibilidade conferiram à marca Benetton até o momento presente. Da análise de algumas imagens elaboradas por Toscani, suscitam questionamentos passíveis de serem interpretados à luz do que Sklovsky classifica de “desvio de norma, deslocamento”. Afinal, como explicar uma publicidade onde o produto quase nunca é mostrado e que, ainda assim, conferiu à marca um poder de associação e lembrança, por parte do consumidor, tão efetivos? Palavras-Chave: estranhamento, publicidade, semiótica.

Sklovsky e o Estranhamento Integrante do grupo OPAIAZ (Berlim, 1914), Sklovsky surge como um dos representantes do formalismo russo. O formalismo propõe uma crítica ao utilitarismo acadêmico, demonstrando que os estudos, especialmente de literatura, buscavam respostas em várias outras áreas (Filosofia, Psicologia, Política), fugindo, assim, do tema que seria o de maior importância: a materialidade própria da obra de arte. Por materialidade da obra de arte, devemos entender o movimento no sentido da exclusão de tudo aquilo que é exterior à obra (inclusive o próprio artista), algo como “limpar o terreno”, não se prender a questões como o belo ou os objetivos da arte. Somente desta maneira pode-se mergulhar no que a obra tem de específico, tornando-se o procedimento o foco de estudo:

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(...) para eles, a “forma” implicava num conceito confuso dado a sua constante associação ao “de fundo”, algo mais confuso ainda. Daí, deslocarem a noção de forma para a noção de procedimento, a que Sklovsky dará ênfase e importância (CARAMELLA, 1998, p.90).

Sklovsky situa a especificidade da obra de arte em uma ação que ela pode ser capaz de causar no receptor – a de romper com a percepção automatizada. A percepção automatizada seria o envolvimento fácil, onde o processo de recepção requer pouco dispêndio de energia por desencadear uma identificação quase imediata, uma rápida absorção de dados. Este conceito da “economia de energia mental” é proposto por Herbet Spencer: todos os nossos hábitos estão submersos no domínio do inconsciente; a ação, tornandose costumeira, torna-se automática e a percepção é tão mais rápida quanto mais automática, quanto mais prontamente for identificado o dado novo em relação ao conhecimento já automatizado (apud FERRARA, 1986, p.34).

Em seu ensaio “A Arte como Procedimento”, Sklovsky coloca que é na ação de estranhamento, ou seja, no prolongamento do tempo de duração da percepção que o receptor é levado a experimentar a realidade de maneira nova. O identificar dá lugar ao “conhecer outra vez” (FERRARA, 1986, p.33). Rompendo com essa percepção automatizada, o artista rompe, também, com os lugares-comuns, expressos na forma de estereótipos, tão presentes na arte. Portanto, para Sklovsky não é o receptor e suas capacidades associativas que compreendem a problemática da obra, mas sim as “qualidades intrínsecas da obra de arte, capazes de solicitar respostas intersubjetivas” (FERRARA, 1986, p. 35). Ao contrário do que possamos imaginar, o estranhamento não é algo que se baseia no complexo, no difícil. Seu princípio é o de operar com o singular, de deslocar o comum, desviar a norma. Toscani “Ele fechou na publicidade o mesmo círculo que Bob Wilson fechou no cinema e que Warhol fechou na pintura” (THOMAS, apud CALAZANS, 2004, s/p).

Adentrando no universo da publicidade, há um criativo que pode ser considerado exemplo do conceito proposto pelo formalista russo ainda no início do século XX: Oliviero Toscani. Este publicitário

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X Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC Rio de janeiro, 7 e 8 de dezembro de 2004 encontrou uma forma de subverter a ordem que regia o processo de criação publicitária. Sem cair em exagero, é possível afirmar que a publicidade pode ser dividida em antes e depois de Toscani, sendo o antes, a época dos reclames e o depois, o estranhamento, a polêmica. Flávio Calazans, sobre Toscani, afirma: (...) não faz mera publicidade que torna público-publica informes do produto Benetton, sua propaganda proselitista suscita debates que fazem os fruidores comunicarem, exporem-se, assumirem posturas, propagando uma atitude de conversação, prosa (CALAZANS, 2004, s/p).

Toscani conseguiu, ao trabalhar temas comuns, ligar a imagem da marca Benetton a valores universais, dando-lhe também um ar de verdade, honestidade. Em suas campanhas, são discutidos, principalmente, os direitos humanos em suas violações. São as guerras e seus mortos, a fome, a pobreza, a doença do século (AIDS), as questões raciais, as imposições católicas, o diferente. Suas imagens, apesar de simples, conseguem realizar aquilo que Sklovsky definiu como o prolongamento da percepção: o choque faz com que o receptor olhe a imagem até conseguir retirar dali um significado, o que não se configura enquanto um dado pronto. E Toscani segue, assim, deslocando. Desloca, primeiramente, o conceito de publicidade. Em suas campanhas, onde está o produto? Como se realiza a ligação marca-produto, se este quase nunca aparece? Como se constrói a identificação com o receptor, se a linha da campanha perpassa temas tão diferentes? A quem se dirige? Desloca a noção de arte. Por se tratar de um fotógrafo e a fotografia ser considerada arte, ao se propor trabalhar o discurso publicitário, o fotógrafo deixa de ser artista? Ou invertendo, se é arte não pode ser publicidade? Toscani considera-se um artista, que tem em Luciano Benetton a figura do mecenas, como na época do Renascimento o tiveram pintores do porte de Michelangelo, por exemplo. Outro ponto intrigante: as criações de Toscani utilizam-se corriqueiramente do formato outdoor, fato este que concorre para a afirmação do teor publicitário. Entretanto, a Bienal de Veneza expôs as fotos de Toscani enquanto Arte. Vejamos, abaixo, um exemplo de uma campanha Benetton que trata da AIDS:

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www.benetton.com/campaigns

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Antes de entrarmos no conteúdo da foto-campanha, voltemos à questão do deslocamento. Esta foto foi comprada por Toscani por, segundo ele, conter um conceito muito forte sobre a AIDS que ele gostaria de trabalhar em sua campanha como forma de conscientização. Trata-se de um jovem chamado David Kirby, aidético, rodeado por sua família, em seu leito de morte. Essa “apropriação” tira o mérito do artista (enquanto seu fazer-artístico)? E mais, a foto ilustrada com a logo da Benetton pode ser considerada uma criação publicitária? É atuando nesses pontos-limítrofes que Toscani se destaca em meio a outros geniais da publicidade. Em relação a seu conteúdo, pode-se afirmar que não há como fugir os olhos desta foto. Seu impacto consiste antes na crueza da realidade exposta do que em algo extremamente complexo. A doença é mostrada não em sua necessidade de prevenção, mas no que ela tem de mais fatal: a impossibilidade da cura, a debilitação do doente, o sofrimento da família. Pontos verdadeiros, contudo escondidos, acobertados na grande maioria das campanhas sobre o tema. Desvio da norma, princípio de estranhamento.

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O tema preconceito é aqui trabalhado de maneira delicada. Não que a foto de órgãos seja agradável aos olhos, mas ela chama a atenção para algo além da aparência, assim como nas discussões de cor: o fato de que internamente somos iguais, feitos da mesma matéria. E nada melhor para representar isto do que o coração, órgão comumente associado como sendo depositário da alma e dos sentimentos.

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Costume tradicional em algumas culturas, a ama de leite, ou seja, a mulher que amamenta o recém-nascido na falta do leite da mãe, é colocada aqui de maneira afetuosa. O recado - a quebra de barreiras de preconceito - é passado sem que haja necessidade de um longo e grave discurso sobre a igualdade entre os povos. Isso é feito através de uma imagem suficientemente atraente ao olhar.

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X Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC Rio de janeiro, 7 e 8 de dezembro de 2004 As diferenças religiosas surgem como proposta desta foto. O espaço retratado trata-se de uma homenagem aos mortos na Guerra do Vietnã, simbolicamente, um cemitério. À primeira vista, mostra-se como um cenário homogêneo pontilhado de cruzes brancas. Uma observação mais atenta e percebe-se a estrela de Davi, símbolo do judaísmo, como o objeto diferente. A conotação que se pode dar é que, sem distinções de credo, as pessoas compartilharão de um mesmo destino, a morte. A pergunta que se coloca é: dessa forma, por que não seria possível uma convivência pacífica em vida?

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Um ponto que remete à Igreja Católica: os votos de castidade de seus representantes. Em uma época onde casos de pedofilia e homossexualismo envolvendo padres são noticiados com freqüência cada vez maior, Toscani discute a possibilidade do amor carnal, próprio dos seres humanos, entre o clero. O beijo sugere certa inocência, mas o contraste das cores das vestimentas (o preto e o branco) acaba por caracterizar a proibição, o pecado, a violação. Vários são os exemplos entre as criações de Toscani que poderíamos utilizar, a fim de ilustrar a relação estreita dele com o conceito do estranhamento em Sklovsky. Entretanto, deixaremos as análises

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X Simpósio de Pesquisa em Comunicação da Região Sudeste - SIPEC Rio de janeiro, 7 e 8 de dezembro de 2004 das fotos da Benetton por hora, sob o risco de nos delongarmos. Gostaríamos apenas de ressaltar a tese de que a maneira que Toscani trabalha a venda de vestimentas de moda difere-se, pontualmente, daquela que outras grandes marcas o fazem, por ele ter sido o pioneiro na realização de algo singular.

Referências Bibliográficas: CARAMELLA, Elaine. História da Arte: Fundamentos Semióticos. EDUSC: Bauru /SP, 1998. FERRARA, Lucrécia. Estratégia dos Signos.2º ed.Ed.Perspectiva: São Paulo, 1986. CALAZANS, Flávio. A arte midiática subliminar emToscani. http://www.duplipensar.net/principal/2004-04-benetton-toscani.html (capturado em 25/09/2004). Imagens: www.benetton.com/campaigns (imagens capturadas em 26/09/2004).

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Mini-Curriculum Camila Craveiro da Costa Campos. Mestranda em Comunicação Midiática pela Unesp/Bauru. Coordenadora do curso de Publicidade e Propaganda da Faculdade Araguaia (Goiânia/GO) e professora das disciplinas de “Teoria da Imagem” e “Mídia” desta mesma Instituição. Endereço Residencial: Rua T-44 nº 50, apto. 1103, Setor Bueno. Goiânia – GO Cep 74210150 e-mail: [email protected] (62)274 4313 (62) 96071967

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