O ESTRANHO CASO DE CERTOS DISCURSOS EPISTEMOLÓGICOS QUE VISITAM A ÁREA DE COMUNICAÇÃO

June 3, 2017 | Autor: Wilson Gomes | Categoria: Media Studies, Communication Theory, Media Research, Media theory and Research
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O ESTRANHO CASO DE CERTOS DISCURSOS EPISTEMOLÓGICOS QUE VISITAM A ÁREA DE COMUNICAÇÃO

Por Wilson Gomes A epistemologia, como todo mundo sabe, é uma parte da teoria do conhecimento que se dedica às questões relacionadas à natureza, aos fundamentos, aos limites e às condições de validade do conhecimento científico. Uma epistemologia geral das ciências humanas e sociais é meta antiga da nossa cultura. Os empiristas britânicos, por exemplo, formularam esboços de uma árvore do conhecimento reservando um lugar para as moral sciences. Desde o constituir-se da modernidade alguns filósofos acalentaram a idéia de formular uma epistemologia para as Humanidades, de forma que, no arco de tempo que vai de 1883 aos anos 60 do século passado, algumas tentativas muito interessantes foram feitas, com larga contribuição para a compreensão da particular “cientificidade” dessas áreas. São conhecidos, nesse sentido, os enormes empreendimentos de Wilhelm von Dilthey na sua Introdução às Ciências do Espírito, de Ernst Cassirer e da sua Filosofia das Formas Simbólicas, de Hans-George Gadamer no seu Verdade e Método, para mencionar tão-somente alguns nomes destacados que enfrentaram diretamente a tarefa. Se em território de epistemologia filosófica avançamos pouco, mas com consistência, o mesmo não pode ser dito, no que se refere a um discurso que veio a pouco a pouco ocupando o lugar de uma autêntica epistemologia no campo das ciências humanas e sociais, sobretudo em ambientes intelectuais menos rigorosos. Esse discurso em geral contém um conjunto de assunções, nem discutidas nem demonstradas, sobre a natureza da ciência e do procedimento científico, nas Humanidades e fora delas, com grande aceitação pelos não especialistas. Sem que ofereça nenhuma das garantias tradicionais do procedimento científico, como a demonstração argumentativa ou a comprovação empírica, esse discurso - identificável em juízos recorrentes sobre procedimentos, metas e natureza das ciências humanas e sociais - acabou por produzir a compreensão dominante sobre a “cientificidade” das nossas disciplinas. Não é uma epistemologia propriamente dita, porque dificilmente reflete criticamente sobre os seus pressupostos, é raramente conseqüente e rigorosa, nunca demonstra e dificilmente sobreviveria, portanto, a um exame rigoroso de epistemologia filosófica. Nem por isso deixa de ser eficiente. Gerou, pela repetição, um conjunto de consensos compartilhados por grupos extensos, um conjunto de pressupostos aos quais se adere sem exame e que passam a ser repetidos sem que aparentemente apresente-se dúvida ou oposição. Mesmo

porque o seu campo de ação não é o debate epistemológico, mas o jornalismo cultural, os eventos performáticos, os livros e revistas destinados a um público dotado em geral de baixas exigências argumentativas e de grandes demandas persuasivas. O seu meio de comprovação não é a demonstração, mas a reiteração; o seu princípio de prova não se orienta pela contraposição entre verdadeiro e falso, mas por cálculos demográficos (quanto mais gente afirma o princípio mais verdadeiro ele se torna) e por perspectivas de lucro retórico (as frases de efeito, a artimanha retórica, tudo voltado para a adulação dos públicos e para a captura da sua benevolência). Os ambientes intelectuais da Comunicação forneceram um meio-ambiente adequado para esse tipo de discurso. Primeiro, porque a geração mais antiga da área é ainda herdeira dos ambientes de “epistemologia revolucionária” do que Luc Ferry e Alain Renaut chamaram de “pensamento 68”1, desconfiado, entre outras coisas, de que por trás – e através - do discurso científico se localizassem estruturas de dominação social, aos quais se poderia oferecer bloqueio pela afirmação do desejo, da liberdade do indivíduo, da fantasia, da criação e pela recusa da interdição, da autoridade, da tradição, da objetividade. Segundo, porque a proximidade que a área tem com o campo artístico faz com que ainda seja muito forte nela um éthos estetizante, afirmativo de valores como liberdade, abertura, criatividade, flexibilidade, imaginação e que expressa profundo desassossego com idéias como disciplina, rigor, avaliação, prestação de contas, controle. Até bem pouco tempo atrás, a nossa área tendia a ser um campo científico com éthos artístico. Num meio-ambiente dessa natureza esse discurso possui enorme influência sobre práticas, atitudes e disposições científicas no campo das ciências humanas e sociais é enorme. E é justamente por esse aspecto que ele se torna, de algum modo, epistemológico, porque produz um efeito sobre a autocompreensão do campo que, por sua vez, vai orientar práticas e atitudes do campo científico. Materialmente, o discurso “epistemológico” a que me refiro pode ser exibido em um conjunto de teses e temas. As limitações deste seminário impõem-me uma justa restrição de tempo, de forma que vou me concentrar em três das falas dominantes da autocompreensão do campo científico das Humanas e Sociais que mais efeito produzem sobre práticas e atitudes científicas da área. Não me interessam essas falas no sentido de realizar mais uma das revisões históricas sobre a área, seus defeitos e virtudes. Muito mais, interessa-me indicar os limites que esse discurso impõe ao trabalho científico da nossa comunidade de pesquisadores e o dano que ele causa ao retardar a consolidação da área. O propósito é dado pela perspectiva de que a superação desse discurso corresponderá à superação de uma fase epistemologicamente muito frágil e cientificamente muito limitada da nossa área.

1

FERRY, L.; RENAUT, A. Pensamento 68. Ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo: Ensaio, 1988.

Por fim, antes que me seja objetado – muito justamente – que posso estar tomando a parte pelo todo e cometendo a injustiça de, como dizem os italianos, reunir toda erva em um único feixe, destaco três aspectos: a) É verdade que nem toda a área se entregou às veleidades “epistemológicas” que descrevo. Sempre houve núcleos mais preocupados com fazer uma boa e honesta pesquisa em comunicação do que com sutilezas epistêmicas plantadas no ar, embora o prestígio distribuído no campo intelectual da comunicação tenha sempre ido em quotas mais generosas para os nossos “filósofos” do que para os pesquisadores que fazem o trabalho cotidiano da ciência; b) É verdade que a área está mudando rapidamente, com a introdução de novos núcleos e novas lideranças dotados de uma mentalidade acadêmica com diferente disposição em face do campo científico e que recebe com desconfortável suspeita as assunções epistemológicas que ainda circulam copiosas pela área; c) No interior desse discurso há intuições que, em sua origem, eram corretas; o problema é que tais intuições perderam-se no meio de intenções de pensamento insustentáveis e danosas e dificilmente podem ser separadas dos veios discursivos errôneos onde se localizam. De todo modo, concentro as falas desse discurso velho que quero analisar em três núcleos temáticos que apresentam os monstros charmosos da “epistemologia” dominante nos setores intelectuais médios. O primeiro núcleo diz respeito à tal “crise de paradigmas” que os nossos bravos “epistemólogos” diagnosticaram nas ciências em geral e nas ciências do espírito em particular e que afeta duramente a pesquisa em Comunicação. O segundo núcleo é relativo ao modo da apresentação do conhecimento e da descoberta científica e eu o chamaria da “questão do ensaio como forma”. O terceiro núcleo diz respeito ao discurso acerca da metodologia de análise e eu o chamaria de “o jargão do fim das disciplinas científicas”. É onde aparecem os discursos sobre a multi, inter, ultra e transdisciplinaridade que tanto nos perseguem.

1. Crise dos Paradigmas e Fantasias de Crise. O nome completo da questão é "crise dos paradigmas da ciência moderna". Na verdade, é um problema que circula nas liturgias dos meetings acadêmicos, como teses vistosas destinadas ao agrado do público, e em um certo número de publicações acadêmicas, como pressupostos indiscutíveis. Atualmente, o seu charme cede em face de outros frissons, como, p. ex., as discussões sobre o pós-moderno (com quem mantém interfaces inegáveis) e, em temos novíssimos sobre a ética-em-tudo. Mas já teve o seu tempo de glória e conserva muito da velha força. De qualquer forma, vale à pena mencioná-la porque ela encontra ressonâncias em outros temas contemporâneos: crise da modernidade, crise da civilização da técnica, fim do progresso, racionalidade moderna e modelos críticos da razão, reencantamento do mundo, etc. Além disso, continua ainda provocando reverberações, particularmente numa curiosa epistemologia na qual são convidados a participar todos os indivíduos

desconfiados da racionalidade e da ciência modernas, normalmente sem grande cultura epistemológica, cientistas des-encantados (a Física e a sua mauvaise conscience), deep ecologists ou místicos e poetas nostálgicos do romantismo, do medievo ou das origens. Uma “epistemologia” praticada à larga justamente por quem não gosta de ciência. Com paradoxal sisudez, todos recorrem a materiais produzidos fora do próprio âmbito de competência, empregando misticamente formas científicas herméticas (descobertas da Física cujas conseqüências ninguém compreende bem; invenções em Lógica; discussões filosóficas sobre o pós-moderno ou sobre a racionalidade; descobertas psicanalíticas, re-traduzidas poeticamente) para afirmar que os paradigmas científicos entraram em crise. O problema curiosamente nasce numa obra que, à sua época, teve algum valor epistemológico. Refiro-me à chamada teoria da história da ciência do americano Thomas Kuhn, um historiador e filósofo da ciência de razoável importância neste século. Em 1962, Kuhn publica um pequeno livro em que oferece um modelo de compreensão do desenvolvimento da ciência na história, chamado A Estrutura das Revoluções Científicas2. Segundo o modelo historiográfico de Kuhn, compreende-se o desenvolvimento da atividade científica admitindo-se uma distinção entre dois tipos de fases da ciência: as fases de "ciência normal" e as fases de "ruptura revolucionária". As primeiras se caracterizam pelo predomínio de certos "paradigmas" ou modelos, ou seja, de um conjunto - mais ou menos homogêneo e estruturado – composto por assunções teóricas e metafísicas, por práticas experimentais e por modos de transmissão dos conteúdos da ciência. Nas fases de ciência normal, os paradigmas não se discutem. Antes, são sistematicamente aplicados, ampliados e aprofundados com o propósito de produzir as explicações e as previsões científicas adequadas que o trabalho científico busca. Os momentos revolucionários são o resultado da percepção de anomalias empíricas ou conceituais no paradigma comumente aceito e acontecem quando os cientistas questionam as assunções fundamentais e buscam um novo sistema delas. O sistema ou paradigma novo possibilita um novo período de ciência normal, onde os consensos se expandem até que se dêem novas anomalias e novos dissensos e novas rupturas revolucionárias. Para que interessava a Kuhn esta noção? Para criticar algumas idéias correntes nas epistemologias dominantes à época, do Círculo de Viena e de Popper, afirmando, como historiador, que as escolhas científicas dependem muito de fatores de natureza sócio-psicológica, donde decorre a impossibilidade de se falar em termos absolutos (não relativos a uma estrutura paradigmática) da validade das hipóteses e teorias. Notemos, a esse propósito, algo que os atuais defensores de uma contemporânea crise dos paradigmas não parecem se ter suficientemente em conta: 2

KUHN, T. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987.

1) A teoria da ciência era apenas uma jovem disciplina à época da Estrutura das Revoluções Científicas e entrou em um período menos apocalíptico do que aquele de Thomas Kuhn e, mais ainda, Paul Feyerabend, que o seguiu de perto; 2) A idéia de crise de paradigmas é um modelo de explicação historiográfica. A Kuhn não interessava dizer, como fazem os nossos bravos epistemólogos - e poderia fazê-lo - que esta nossa época vive uma crise de paradigma; 3) Os paradigmas propriamente ditos nao são "epocais", são círculos de assunções, de pressuposições sedimentadas, quase como fossem uma "cultura" donde se formam habitus, aptidões e atitudes (uma ética) lógicos e psicológicos; a Kuhn interessava as formas pontuais dos conflitos de teorias (como conflitos não acerca de objetos, mas de pressupostos) nas disciplinas científicas específicas; 4) Note-se que Kuhn não parece admitir algo como um paradigma moderno ou como uma crise da modernidade, como hoje se enuncia. Kuhn diz algo bem mais simples e verdadeiro: quando cientistas se engalfinham a respeito da explicação de um fenômeno, parecem estar brigando por causa de regras e métodos de mensuração que produzem resultados diferentes, parecem estar disputando hipóteses e conjecturas etc., parece que a peleja é simplesmente pela verdade acerca do objeto, em suma. Na, verdade, se olharmos duma perspectiva de historiador, eles podem estar brigando por causa de assunções das quais provêm habitus de investigação, tendências lógicas, crenças conceituais etc. que não se explicam pelo objeto, mas fornecem o pressuposto mesmo para que um objeto se constitua pra eles. Esta estrutura prévia é um paradigma. Só isso. Há de se perguntar, então se estamos uma crise de paradigmas e o que isso significa. Antes de tudo, convém desobstruir a discussão de afirmações inadequadas ou insustentáveis. 1) Uma época não é um paradigma, portanto, trazer para dentro dessa discussão a contraposição entre modernidade e pós-modernidade, é, no mínimo, falsear o problema; 2) Estamos vivendo uma crise de paradigmas? Difícil afirmar, por duas razões: Primeiro porque cada disciplina científica pode ter assunções paradigmáticas diversas; além disso, poder-se-ia detectar uma tal crise apenas se estivéssemos vivendo uma ruptura revolucionária generalizada. Não me parece haver qualquer coisa desse tipo no ar. A ciência contemporânea dedica-se ao labor quotidiano da investigação, discute suas descobertas a partir de categorias comuns, submete-se a discussões com pressupostos comuns, publica em periódicos com compreensões comuns de cientificidade... Pode ser que pessoas mais atentas notem algum furor revolucionário varrendo convicções anteriores; eu consigo ver um tempo de ciência normal, normal demais até, com costumes

preguiçosos e arraigados, com distribuição em formas tradicionais de prestígio e reconhecimento. Ao contrário, a coisa é tão plácida e serena que quem trabalha mais próximo do campo científico gostaria mesmo que os pesquisadores disputassem algumas das suas convicções de fundo, ao invés de gastar tantas energias com a mesquinha disputa por fundos para pesquisa e por prestígio e distinção nas áreas de conhecimento. Provavelmente exagero, mas a única inquietação no ar no campo científico nesse momento é saber se o PT vai fundir Capes e CNPq, se os fundos setoriais vão incluir as ciências humanas e sociais e coisas administrativas que tais. Crises administrativas supõem, pelo contrário, ciência normal e paradigmas comuns. 3) As mudanças do mundo comportam necessariamente crises de paradigmas científicos? O historiador disse que é possível, mas não disse que isso necessariamente se dá. Mesmo porque mudanças no mundo são sempre muito difíceis de avaliar quando elas ainda estão em processo. Hoje – e provavelmente apenas hoje – sabemos que a Renascença incidiu (ou refletiu, tanto faz) uma ruptura com a Idade Média tardia. Mas o fato de que as comunicações se tornaram centrais na sociedade contemporânea pode ser avaliada como uma crise dos paradigmas da modernidade ou como a vitória e reforço da civilização da técnica, a vitória dos engenheiros, a reafirmação da própria modernidade? 4) Crises não se instituem ou se superam por decisões conceituais de concílios de sábios. Não é porque o último ensaio, mesmo que seja o ensaio com a teoria da moda, afirma ou supõe que as assunções teóricas e as práticas comprobatórias da ciência que se pratica está em crise que uma crise, efetivamente, está em curso no mundo real. Se há uma crise, ela deve poder ser mostrada em processo na ordem da realidade. Mas nas nossas áreas temos o hábito das profecias autorealizáveis. De tanto produzir ensaios afirmando que há uma crise ou ensaios comentando os ensaiadores que afirmaram a crise, passamos a construir uma delas. Presos na nossa própria armadilha literária, acreditamos estar lidando com o mundo sem que, na verdade, levantemos os olhos para além da nossa própria conversa sobre ele. Infelizmente, o discurso da crise de paradigmas, de fato, provoca uma crise. Não uma crise de paradigmas, mas uma crise de bons costumes científicos. Antes de tudo porque dá sentido ao discurso da desobrigação: da desobrigação de se estabelecer princípios metodológicos rigorosos, que dê, aos nossos enunciados científicos, bases empíricas controláveis publicamente pela comunidade dos cientistas; da desobrigação de lidar na prática científica com conceitos normativos como objetividade (mito!), verdade (positivista!), coerência, demonstração e prova? Afinal, repete-se incessantemente, para que tudo isso, se essas são práticas e categorias que fazem parte de um paradigma velho e superado, que pode ser classificado com as duas ofensas-chave desse jargão, a saber, como «cartesiano» e «positivista»? Engata-se freqüentemente a nisso a afirmação tão charmosa da superioridade do trabalho criativo da arte acima do labor penoso da pesquisa, bem como a

afirmação tão libertária de que a obrigação de quem pratica as Ciências Humanas ou Sociais é criticar a realidade e a própria ciência para transformar sociedade e mundo. Os procedimentos tediosos e disciplinados do trabalho científico, a paciência do conceito, de tudo isso se dispensa.

2. O Ensaio como Forma O título dessa segunda parte é o mesmo de um célebre texto de Adorno, em que este louva a forma do ensaio como modo de apresentação do pensamento. A idéia de ensaio, entretanto, é mais velha, se bem que a convicção de que o conhecimento científico encontra no ensaio a forma ideal da sua apresentação seja recente. "Ensaios" como forma de designação de certo modo de escrita, são conhecidos desde 1580, através de Michel de Montaigne. Modo de escrita e gênero literário que consistia em dar a público um conjunto de pequenas composições sobre uma variedade de assuntos - de canibais a carruagens e dos versos de Virgílio à educação das crianças - com tópicos curiosos, com títulos vistosos e indiossincráticos, com falas mais ou menos informais. Um século após Montaigne, livros com esse título começaram a se multiplicar, alcançando o auge da moda no século 19 e no início do século 20. Stuart Mill, William James, Sigmund Freud, todos eles publicaram o que chamaram de ensaios. Século XX a dentro e encontramos tratados de grande densidade, como O Ser e o Nada” de Jean-Paul Sartre, também eles chamados “ensaios”. O que se queria dizer com esse termo? Peter Burke, num recente ensaio sobre ensaios3, diz que “Montaigne o escolheu em parte por modéstia ou uma afetação de modéstia, alegando que o que publicara eram simples «tentativas» literárias (o sentido original do termo francês «essai»). Elas eram o equivalente literário dos esboços de um artista. Eram informais, informes mesmo, próximas à língua falada, mais para exemplos de conversa do que produtos literários acabados (...) Ele apresentava-se como quem simplesmente pensa em voz alta, talvez para ser capaz de referir aos censores (...) que não se comprometia seriamente com tudo o que dizia no livro. Ou talvez porque quisesse arrancar seus leitores de suas confortáveis conjeturas sobre o mundo, porque pensava que a certeza era impossível e que todos nós, filósofos inclusive, somos incapazes de alcançar qualquer conclusão firme. Convicções provisórias”. Na tradição posterior, até os nossos dias, os ensaios são escritos ligeiros e possivelmente superficiais, «uma expressão de opinião que não se baseia em pensamento rigoroso nem pesquisa extensiva, uma discussão de um tópico que pode parecer trivial, um estudo fácil de ler e também fácil de escrever, produzido para uma determinada ocasião, como uma coluna de jornal, sem muita esperança de ser lembrado uma semana mais tarde». 3

No caderno MAIS! da Folha de S. Paulo, 13/05/2001 p. 19.

Em seu texto de elogio do ensaio4, Adorno no fundo sustentava que poucas convicções se baseiam em fundamentos tão firmes que não tenham de ser modificadas ao longo do tempo e que, portanto, a forma do ensaio é perfeitamente adequada a esse princípio. Provavelmente, o exagero da forma única do tratado é o que motiva a defesa do ensaio por parte do filósofo. De todo modo, como gênero o ensaio é associado tanto a uma forma de ler quanto a uma forma de escrever. O modo ensaístico de ler desconfia de afirmações grandiosas ou aparentemente objetivas. Nessa perspectiva é evidente que não considero o ensaio como um mal em si. Ao contrário, o ensaio é um excelente gênero de escrita onde pode se aliar a destreza do conceito e a facilidade da escrita. Mesmo a prescindir de autodeclarados “ensaios” que em nada se distinguem dos tratados, a história nos deu maravilhosos ensaios. O problema é que as ciências humanas e sociais tendem a deslocar o ensaio para o centro da cena, como forma única de discurso no campo, de modo que se à época de Adorno se justificava a importância de reivindicar que ele se tornasse uma forma alternativa de apresentação do pensamento, em nosso tempo o problema parece ter se tornado justamente o contrário. Acho que precisamos que um novo Adorno escreva algo como “O artigo como forma” ou “A tese como forma”, porque o ensaio deixou de ser forma alternativa a ser empregada em determinadas circunstâncias para se transformar em forma dominante empregada em todas as circunstâncias. Teses, dissertações, papers, artigos, tudo isso vai sendo substituída por uma forma única e uniforme do ensaio. O problema se localiza em dois aspectos: a) há dimensões associadas à formulação do conhecimento científico dos quais a forma ensaio não pode dar conta ou, pelo menos, não pode dar sempre conta; b) a preferência pelo ensaio como forma não é casual, refletindo, antes, uma autocompreensão do campo científico. Examinemos. Segundo uma epistemologia normal, em todas as disciplinas científicas os pesquisadores estão envolvidos numa atividade de incremento do conhecimento e de administração dos estoques adquiridos. Por “administração” entendo, aqui, desde a atividade constante de “teste” do conhecimento presumido (através da descoberta de novos instrumentos ou para confrontar o que já se sabe com o que constantemente se descobre) até a atividade de aplicação do conhecimento adquirido na resolução de problemas da ordem da realidade. Ao lado deste aspecto, há aquele, ainda mais decisivo, do incremento dos estoques cognitivos, que está ligado naturalmente à descoberta científica ou à invenção conceitual. Todas as disciplinas cercam-se de especial cuidado e atenção com a realização e a apresentação da descoberta científica. Cuidados que se concentram, sobretudo, na atenção dada aos meios para a realização da descoberta ou 4

Adorno, Th. W. “O ensaio como forma”. Em: Gabriel Cohn (ed.). Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986.

invenção (a chamada metodologia da pesquisa), que devem oferecer confiabilidade dos resultados, fecundidade e, sobretudo, permitir a verificabilidade (ou falseabilidade) do que se assume como conhecimento verdadeiro. Nesse sentido, a realização da descoberta tem a sua sorte profundamente associada à apresentação da descoberta científica, à medida que esta última é que permite que a comunidade dos cientistas possa testar, examinar, explorar o presumido conhecimento para refutá-lo ou admiti-lo até que algum teste venha examiná-lo de novo. Assim, a apresentação da descoberta não é um ato segundo e prescindível da descoberta científica, mas a completude do mesmo ato de descobrir. Conhecimento novo é aquele que se submete continuamente a testes, depois de apresentado, e sobrevive a eles. A apresentação é condição fundamental para a sua testabilidade e, portanto, para a sua cientificidade. Eis porque as comunidades científicas ritualizaram a apresentação da descoberta e estabeleceram modos tradicionalmente confiáveis de sua apresentação discursiva. O ritual de apresentação se dá fundamentalmente nas revistas científicas e nos seminários, simpósios, convênios e outras formas de reunião dos pares. A forma discursiva tem sido o artigo científico (a fórmula, o paper são formas do artigo) e a tese acadêmica. Ora, a escolha do ensaio como forma dominante é para mim sintoma de recusa - recusa do padrão discursivo do artigo e recusa das formas-padrão dos rituais de apresentação da descoberta, que o campo das ciências humanas e sociais apresenta num jargão de epistemologia revolucionária. Não me parece uma recusa conseqüente nem que se possa defender numa argumentação demonstrativa, mas é uma recusa que alcança consensos sólidos e extensos. Os seminários de apresentação da descoberta pouco a pouco cedem lugar a uma espécie de show para uma audiência de não cientistas, onde não se destaca a apresentação daquela pesquisa que comporta a descoberta mais expressiva, mais rara, mais relevante, mas o ensaísta mais brilhante e o ensaio com mais brilho discursivo. Os nossos simpósios são espaços para a performance dos cientistas. As nossas revistas são peças literárias, destinadas a um grande público imaginário, prenhe de títulos de fantasias, vistosos e cintilantes, com que seduzimos discípulos e flertamos com a poesia. Como disse, parte considerável dos que ocupam o campo científico na área se concebe artista. Afinal, qual o formato literário (nem diria discursivo) adequado para a performance verbal que não o ensaio? Que o gênero literário rende mais em beleza formal? O artigo, a tese e o relatório de pesquisa são textos, por sua própria natureza, muito chatos. Apóiam-se em procedimentos demonstrativos, na cadeia de razões, no moduns ponens, numa lógica rigorosa e em procedimentos semânticos cansativos voltados para dar conta de distinções sutis, adversativas delicadas, orações subordinadas em cadeias difíceis de acompanhar. Exigem concentração e supõem competência na matéria em questão: duas propriedades que não correspondem às sensibilidades formadas em época de cultura de massa, onde prazer e concentração são considerados

adversários inconciliáveis. É preciso, então um texto desconcentrado, descompromissado, paradoxal e interessante ou belo e doce, a quase-poesia do ensaio. Ou, se me permitem, de um certo tipo de ensaio. E porque isso é possível em nossas áreas, por exemplo, e não em outras áreas científicas? Por que ainda nos faltam comunidades científicas rigorosas, e se não nos faltam tradição de pesquisa de boa qualidade, faltam-nos até mesmo os instrumentos do reconhecimento do pesquisador no campo. Sabemos o que é um bom professor ou um bom palestrante e sabemos quem são os bons professores e os bons palestrantes, mas não demonstramos ainda saber nem apreciar quem são os bons pesquisadores. Em nossas áreas, dificilmente se chega a formar autênticos campos científicos, onde prestígio e distinção se estabeleçam a partir da acumulação de capital científico. Formamos, sobretudo, campos intelectuais, onde as redes de relações principais são de tipo pessoal e o reconhecimento se dá, sobretudo, pelo bem falar, pelo domínio de assembléias não especializadas, pelos ensaios de leitura fácil e interessante. Nessa mentalidade, o «interessante» em geral nos bastaria; estaríamos dispensados de solicitar, além disso, o «verdadeiro» e o «relevante». Não é que nos faltem grupos e instituições dedicadas à pesquisa; o que talvez ainda nos falte seja uma extensa comunidade de controle da pesquisa, uma consolidada comunidade científica no sentido mais rigoroso do termo. Assim, parece coerente que o ensaio ainda se apresente como forma predominante de formulação do discurso das «novidades» na Comunicação. Com as devidas e felizes exceções de praxe, em nossa área temos sempre a desconfiança de que não há uma comunidade de pares para quem escrevemos ou falamos, isto é, uma comunidade capaz de apreciar a demonstração apoiada em procedimentos empíricos ou experimentais rigorosos ou em procedimentos discursivos bem fundados logicamente. Por isso, preparamos discursos para congressos onde quase nunca supomos uma comunidade de especialistas, de pessoas com alta competência no assunto e capazes de reagir, rejeitando o que falamos ou conduzindo-o para um patamar superior. Não há retorno dos pares, os textos que escrevemos parecem nunca lidos porque ninguém costuma criticar ninguém e quando há atrito na área, já se sabe que raramente é um confronto científico. Não nos dedicamos ao atrito de pensamento. Atritos, se os há, só se põem no nível pessoal. Em princípio não haveria graves problemas em se recorrer à forma do ensaio, desde que ela fosse suficiente para garantir um dos requisitos básicos da apresentação do conhecimento novo, a saber, a garantia de uma base de controle, de teste do presumido conhecimento – que é o caminho obrigatório para a sua admissão como conhecimento aceito, ainda que provisoriamente, como verdadeiro. Na forma do ensaio – ou, pelo menos, desse tipo de ensaio que descrevo - não temos como garantir uma autêntica apresentação da

pesquisa e da descoberta, o que temos é uma exibição das destrezas retóricas do palestrante ou do escritor. A primeira conseqüência grave disso é que a comunidade dos que falam sobre o conhecimento se distingue cada vez mais fortemente da comunidade dos que pesquisam e descobrem. Palestrantes e cientistas se apartam e se estranham. É fenômeno típico de nossas áreas que comunidade acadêmica e comunidade científica sejam duas entidades autônomas. Fala do conhecimento quem não o produz cientificamente e, nos simpósios, a descoberta não encontra espaço nem escuta. A comunidade de controle desaparece do horizonte e com ela fica a Comunicação ainda a girar em falso sobre o já descoberto, numa autofascinação tautológica e improdutiva, da mera repetição cuja novidade consiste freqüentemente num truque estético e no fogo fátuo da retórica esvaziada de sentido e de base na realidade. O ensaio, infelizmente, torna-se

ainda uma forma de autoengano.

3. O fim da disciplina O terceiro álibi epistemológico da área situa-se ao redor do discurso sobre o fim das disciplinas, do elogio da porosidade metodológica e da flexibilidade das ferramentas conceituais. Tudo vazado num jargão revolucionário, um discurso que gira sobre si mesmo, coerente enquanto texto e eficiente enquanto fórmula, sem que precise, entretanto, confrontar-se com a realidade. O que temos é uma grande variedade de argumentos referidos a epistemologias contemporâneas, normalmente apoiados no louvor indiscutível de práticas científicas designadas por categorias como “interdisciplinaridade”, “transdisciplinaridade”, “multidisciplinaridade” e outras assemelhadas. Os termos e categorias, que, no interior das discussões epistemológicas, referem-se a fenômenos específicos, aqui comparecem como palavras-deordem, capazes de produzir efeitos de convencimento sem precisar se submeter à fadiga da demonstração e do encadeamento de razões. Em geral, são termos conduzidos por um jargão de epistemologia renovadora grandiosa, mas empregados para dar fumos de ruptura e de modernidade a procedimentos científicos defeituosos. Antes de tudo, serve para justificar a ausência de especialidade, isto é, o conhecimento de alta complexidade sobre objetos e métodos num campo específico de problemas no interior de uma ou mais áreas de conhecimento. Em segundo lugar, serve para justificar a ausência de obrigações de contribuição específica no trato com os fenômenos que são objeto precípuo da própria área de conhecimento. Em suma, o discurso serve para dar ares de atitude de ruptura revolucionário à não-especialidade e à dispersão temática. Em primeiro lugar, o não ser especialista se justificaria pela atitude inovadora de romper com a compartimentalização do saber, presumivelmente levada a termo por uma racionalidade instrumental dominante no paradigma moderno.

Já a dispersão temática é apresentada como o ato extremamente contemporâneo e revolucionário de não obedecer ao confinamento disciplinar moderno, explodindo as fronteiras disciplinares na direção, justamente, da interdisciplinaridade, transdisciplinaridade e/ou multidisciplinaridade. O discurso da interdisciplinaridade é respeitável cientificamente e designa um fenômeno importantíssimo para a superação de um ponto cego da ciência contemporânea, que é efetivamente demasiado compartimentalizada e que se dotou de um volume de informações que supera a possibilidade de ser controlado num ambiente disciplinar específico. Infelizmente, na Comunicação como em várias outras disciplinas se trata em geral apenas do jargão da interdisciplinaridade e não de práticas saudáveis de cooperação científica. Uma retórica que não tem bastado para transformar os procedimentos científicos das áreas de conhecimento em práticas efetivamente interdisciplinares. Muito pelo contrário. O que se verifica na maior parte das vezes, apesar da grandiosidade do discurso, é que a nossa prática científica mais comum é de mera justaposição disciplinar. Isso quando não lhe falta, o que é ainda mais grave, um eixo disciplinar qualquer. Em geral esquecemos um princípio da autêntica teoria da interdisciplinaridade: tanto a interdisciplinaridade quanto a multidisciplinaridade supõem e solicitam disciplinas fortes com condição de sua possibilidade. E como supõem a interação de duas ou mais áreas de conhecimento - no interior da mesma classe (interdisciplinaridade) ou entre classes diferentes (multidisciplinaridade) na árvore do conhecimento -, pressupõem identidade disciplinar clara. Nesse sentido, as interações entre as disciplinas científicas hão de vir – e ser bem-vindas – após a consolidação disciplinar e não contra a

consolidação disciplinar. Nas nossas áreas, freqüentemente a “interdisciplinaridade” é usada como hábeas corpus contra as exigências de severidade metodológica, contra o rigor na fundamentação e contra a solicitação de restrição ao campo científico ou, pelo menos, de priorização deste.

A questão da interdisciplinaridade comparece como argumentum princeps de uma retórica que se quer apoiada em boa epistemologia. Falta ao argumento, em primeiro lugar, a explicação do que propriamente quer dizer com interdisciplinaridade. De fato, se por interdisciplinaridade se quiser caracterizar o olhar disciplinar (de um historiador, filósofo ou engenheiro eletricista) sobre objetos comuns a uma área, todas as áreas de conhecimento são potencialmente interdisciplinares. No caso da Comunicação Social, todas as abordagens analíticas – quando não também os procedimentos metodológicos científicos - empregados na área são provenientes de outras áreas de conhecimento, mesmo aqueles empregados por pesquisadores cuja formação se realizou inteiramente na área. O que há em nossa área na verdade é o fenômeno que poderia se chamado de “deslocamento disciplinar”. Consiste no fato de um filósofo, por exemplo, realizar pesquisa filosófica com os objetos tradicionais da Filosofia (p. ex. o

conceito x no filósofo y na Escola z) só que na área de Comunicação, onde não se encontra a sua comunidade de controle e onde a má pesquisa filosófica não é confrontada e verificada por competências de pares. Isso acontece em nossa área, por fortuna cada vez menos, com semioticistas, filósofos, lingüistas, pesquisadores de letras, de história das ciências, de ciências cognitivas, das artes. Nada há de interdisciplinar nisso ainda que o jargão da interdisciplinaridade sirva para encobrir e dignificar a sua fragilidade.

O elogio do ensaio como forma, o discurso da crise de paradigmas e o jargão da interdisciplinaridade são ao mesmo tempo sintoma e causa das fragilidades epistemológicas que dificultam a consolidação da nossa área. De um lado, refletem a ausência de comunidades de controle forte, refletem o distanciamento da sociedade da ciência (e, portanto, a inexistência da sociedade como instância de cobrança de desempenho) e a ausência de consolidação do campo. Por outro lado, produzem uma cultura acadêmica e uma mentalidade científica, no interior das quais são gerados e alimentados modos anti-científicos de reconhecimento, princípios anti-científicos de consagração e formas não científicas de capital vigente no campo da Comunicação. Claro, são apenas discursos, portanto, abstrações. Mas quando as abstrações produzem efeitos na realidade é melhor levá-las a sério. Principalmente nesses momentos em que a metafísica dominante perde capacidade de gerar consenso e vê esvaziada a sua hegemonia. Uma epistemologia conseqüente da Comunicação, entretanto, precisa dar-se conta dos fantasmas que ainda nos assombram.

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