O Estranho Caso do Espião Carvalhão

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O Estranho Caso do Espião Carvalhão

por Pedro Borges Graça

Mais um caso na longa lista de escândalos do longo consulado de Júlio Pereira, Secretário do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), muito a propósito alcunhado “O Sobrevivente” pelos seus correligionários. Desta vez, trata-se de um funcionário do Serviço de Informações de Segurança (SIS) com trinta anos de casa que, segundo as notícias desta semana, foi apanhado em flagrante a vender um envelope com segredos alegadamente da NATO a um congénere russo, em Roma, a troco de outro envelope com dez mil euros. Nota-se nos jornalistas, articulistas e demais fazedores de opinião uma certa excitação e quase deslumbramento por finalmente termos uma “história de espiões a sério”, como aquelas dos filmes, com romance pelo meio e tudo. Até foi possível ver o Observador a citar o Correio da Manhã, porventura ciente de que este último terá acesso privilegiado a um conhecimento superior e operativo. Ainda para mais, o nome do espião foi logo conhecido do público e de imediato também a sua cara por efeito de ser mais um dos milhões de aficionados do Facebook, o que não é muito apropriado para um espião mas acontece com muitos outros. Aliás, a caça ao espião no Facebook é um desporto muito concorrido entre os iniciados à escala internacional, compreenda-se, dos serviços secretos. E por falar em iniciados, de seu nome Frederico Manuel Carvalhão Gil, o espião é maçom, da Loja Delta do Grande Oriente Lusitano, embora não me pareça lícito confundir a Maçonaria com estes ditos maçons, digamos, perdidos nas trevas Portanto, temos um cidadão duplamente mergulhado no mundo dos segredos à portuguesa, e esta circunstância repete outras do passado recente relativamente a escândalos de espionagem de maçons portugueses virados agentes secretos e vice-versa, envolvendo também cidadãos russos, como no escândalo Silva Carvalho. As últimas notícias referem aliás fontes da Maçonaria, em concreto da mesma loja de Carvalhão Gil, que afirmam terem vindo a estranhar o comportamento do “irmão”. Mas estranho também é o tratamento mediático deste caso, que podemos atribuir à tal excitação jornalística ou à ignorância/mistificação que geralmente grassa na imprensa a propósito dos serviços secretos ou talvez mesmo, vá-se lá saber, a interesses e guerras ocultas de agentes secretos virados maçons e vice-versa, ou ainda, o que não seria de admirar, a desinformação ou manobras de diversão alimentadas pelos próprios serviços para desviarem as atenções da verdadeira substância do caso. Atenção: não confundir esta dúvida metódica com qualquer teoria da conspiração! Vamos lá então dar asas a esta dúvida metódica e deixar voar o pensamento em quatro direcções.

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Primeiro: como é que soubemos o nome do espião quase em tempo real? Como o caso não era conhecido nem estava a ser seguido por nenhuma imprensa, pode deduzir-se que não se tratou de uma fuga de informação mas objectivamente de uma oferta de informação à imprensa por alguém de dentro do SIRP, do Ministério Público ou da Polícia Judiciária para o caso se tornar conhecido. Qual a razão? Eis a questão! De todo o modo, essa revelação da identidade do espião português não foi acompanhada da revelação da identidade do espião russo. Para todos os efeitos, é um cuidado criterioso. Qual a razão? Eis outra questão! Segundo: em que medida é que o SIS é receptor de documentos classificados relevantes da NATO quando os destinatários usuais são o Centro de Informações e Segurança Militar (CISMIL) e o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED)? Ou o SIS anda a meter o nariz onde não é chamado, pois não tem legalmente competência para tratar das vertentes militares e externas das informações, ou então o agente do SIS convenceu alguém presumivelmente do SIRP? - a dar-lhe esses documentos da NATO. Terceiro: mas como é que a imprensa e consequentemente o cidadão comum podem ter a certeza de que os documentos passados pelo espião português ao espião russo eram realmente da NATO? Pelo “facto” de as tais fontes, que ofereceram a informação, terem dito isso? O princípio da dúvida metódica é aqui essencial para tomarmos consciência de que existem outros cenários plausíveis para o que aconteceu, ou melhor, para o que tem vindo a acontecer desde uma data que também desconhecemos. Uma questão prende-se precisamente com a extensão temporal e profundidade da operação russa de recrutamento do espião português e o plano de recolha de informações que lhe foi destinado, para além de não sabermos se tem actuado sozinho ou também sustentado numa rede construída por si ou outrem. Outra é a de que existem porventura alvos apetecíveis em Portugal que não propriamente segredos militares e tecnológicos e mesmo financeiros; por exemplo, como potencial santuário ou ponto de passagem de terroristas radicais islâmicos ou presumíveis terroristas ou “antagonistas” provenientes de países do antigo espaço soviético; ou - quem sabe? – de cidadãos bem informados sobre interesses relevantes provenientes de países de língua portugueses. Outra ainda, sem esgotar as possibilidades, é a do acesso clandestino a documentos classificados trocados pelos serviços portugueses com serviços congéneres, como por exemplo o Reino Unido ou os Estados Unidos ou a Alemanha, para só citar alguns. Enfim, múltiplos cenários podem ser imaginados por quem não detém o conhecimento do que se passou e passa efectivamente, sendo o pior cenário certamente este último pois afecta significativamente o fluxo de informações com os serviços congéneres. Na verdade, o facto relatado pelas notícias é que o espião Carvalhão - a toupeira - foi detectado por serviços estrangeiros - resta também saber quais - que por sua iniciativa alertaram os serviços portugueses, o que desde logo tira o mérito que se quer atribuir ao SIRP. Quarto (e porventura mais importante): por que é que as notícias não sublinharam o escândalo relativamente ao facto ineludível - pelos vistos supostamente - de que estamos perante mais um caso de agentes secretos virados maçons e vice-versa? Esta, quanto a mim, é entre quatro a ponta principal do escândalo, e deveria ser a pedra de toque do debate imprescindível e urgente sobre a relação promíscua entre agentes secretos e maçons que tem caracterizado crescentemente o SIRP desde a segunda metade do anos 90, sobretudo quando entre esses maçons – na verdade embaraçosos para a Maçonaria enquanto veneranda 2

instituição - se encontra um determinado número daqueles que consideram que estão especialmente vocacionados para lidarem com segredos e portanto naturalmente destinados a serem responsáveis pelos serviços secretos de Portugal. Pelos vistos esses agentes secretos virados maçons e vice-versa não sabem lidar muito bem com segredos: ou os expõem a escândalos ou os vendem. Em suma, o cidadão verdadeiramente livre e tão só obediente da sua própria consciência não poderá aceitar sem reservas este “pronto-a-pensar” do caso do espião Carvalhão. No meio de tanta excitação na imprensa nos últimos dias só encontrei um caso de bom senso: o artigo de opinião de José Manuel Diogo no Jornal de Notícias do dia 29 que começa assim: “há histórias em que é difícil acreditar. Esta é a crónica de uma delas”. Mas neste “campo de actividade” muitas estórias engoliu e divulgou a imprensa nos últimos anos em Portugal; que me lembre desde que o SIS passou a ser conhecido como “a firma pereira”, glosando-se assim um título de um livro de um notável escritor italiano radicado em Portugal. Curiosidade simbólica: o protagonista desse romance existencial era um velho jornalista, passivo perante uma conjuntura de opressão e manipulação da opinião pública, que, não obstante tardiamente, acorda e denuncia a situação, estafada, transformando assim o seu futuro. Uma andorinha não faz a Primavera mas um bando faz, sobretudo se pensar sem obediência e escrever sem grilhetas.

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