O Estudo de um Salão de Belezas do “Posto 6”

May 24, 2017 | Autor: Laura Jardim Rios | Categoria: Antropologia, Etnografia, Etnoecologia, Etnohistoria
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

Graduação em Produção e Políticas Culturais

VP2 – LABIRATÓRIO DE PESQUISA ETNOGRÁFICA

O AFETO E A DISTINÇÃO SOCIAL O Estudo de um Salão de Belezas do “Posto 6”

Prof: Simone Vassalo

LAURA JARDIM RIOS

Rio de Janeiro 1

10 de Dezembro de 2015 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................2 Apresentação do objeto ......................................................................2 A mudança do objeto .........................................................................2

CAPÍTULO 1 – TRABALHANDO COM BELEZA .........................................4 1.1 Os profissionais e seu dia a dia ........................................................4 1.2 As clientes e os dias da semana........................................................7 1.3 Cuidado, carinho e afeto ................................................................8

CAPÍTULO 2 – DESCOBERTAS INESPERADAS ........................................12 2.1 Uma outra Copacabana ................................................................12 2.2 Uma experiência pessoal .............................................................13

CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO ...........................................................15 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................16

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INTRODUÇÃO Apresentação do objeto O presente estudo concentrou suas observações em uma salão de belezas localizado em Copacabana, na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente na região conhecida como “Posto 6”. Conforme será apresentado ao longo do trabalho, isso não é apenas um detalhe para a compreensão das dinâmicas ali observadas e seria possível descrever o estabelecimento como um “salão de bairro”, o que o difere muito dos pertencentes às grandes franquias do ramo, dos localizados em shoppings, ou daqueles “expressos”, que no geral concentram-se nos serviços de manicure e depilação. Em funcionamento há aproximadamente 15 anos, sendo os últimos 9 nas mãos da mesma dona, o salão conta com 17 funcionários, além dela própria: 7 manicures, 8 cabeleireiros, 1 atendente e 1 auxiliar. Em termos de espaço físico, há um ambiente central, onde a maioria das atividades é desenvolvida; um mezanino onde são realizadas as atividades que demandam maior privacidade, como depilação; uma pequena sala separada, para serviços que utilizem produtos com cheiro muito forte; um pequeno pátio com jardim, que serve como área comum às funcionárias; e uma cozinha, onde todos costumam fazer suas refeições diárias. Relevante para o trabalho é também o fato de que na mesma rua, na mesma calçada, da mesma quadra, existem mais dois salões de beleza, todos os três compartilhando a mesma marquise. Dando a volta no quarteirão há outros dois salões, e, seguindo a partir da esquina pela rua transversal, alguns outros podem ser encontrados a algumas dezenas de metros dali. Não houve quem soubesse dar explicação para esta concentração de salões naquela parte do bairro, mas é dado que eles existem, e que se dispõe dessa forma há algumas décadas.

A mudança do objeto O primeiro recorte pensado para este trabalho foi o estudo exclusivo das manicures deste salão. Logo nas primeiras visitas ficou claro que seria impossível compreender este grupo de forma isolada. A questão não seria apenas superar a “tentação da aldeia”, conforme defende João Guilherme Cantor Magnani, em seu texto A antropologia urbana e os desafios da metrópole. Não há de esperar que um salão de belezas seja um universo totalmente isolado dos diversos fluxos que atravessam a cidade, mas a rotina do lugar, a dinâmica observada no salão, os pequenos grupos

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formados pelas afinidades individuais, etc., nada disso era norteado pela distinção entre as atividades que cada profissional exercia ali. Ao contrario, foi possível observar que todas as pessoas que faziam parte daquele universo compartilhavam de uma mesma identidade, e atribuíam sentidos semelhantes a seu trabalho, independente de qual fosse ele. Ficou claro, então, que sutis diferenças entre aquelas que trabalhavam com as unhas, ou as que trabalhavam com os cabelos das clientes, eram apenas variações de uma mesma posição, a dos profissionais de beleza. Dessa forma definir como objeto apenas as manicures seria arbitrário e metodologicamente desinteressante. Seriam excluídas informações que fazem parte do universo delas de tal modo que vão além de meros complementos, e que na realidade constituem este determinado ambiente, seriam ainda separados membros de um grupo que compartilha de uma mesma identidade. Por este motivo o objeto da pesquisa passou a ser o salão em si, ou, mais especificamente, todas as pessoas que ali trabalham e as relações que elas constroem seja entre si, seja com as clientes ou demais pessoas que interagem com este micro-universo.

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CAPÍTULO 1 – TRABALHANDO COM BELEZA 1.1 Os profissionais e seu dia a dia A maioria das funcionárias do salão já tem mais de 40 anos e trabalha no ramo de beleza desde a adolescência. Grande parte delas são nordestinas, moram em bairros do subúrbio da cidade, ou em comunidades, e enfrentam longas horas no transporte público para deslocarem-se entre sua casa e seu trabalho. De forma geral, entraram no ramo da beleza como auxiliares, sob indicações de conhecidas, ocupando-se de limpar o chão de outros salões, servir cafés, ajudar a enrolar cabelos, etc. Pouco a pouco, foram aprendendo o ofício e tornaram-se profissionais, tendo feito, no caso das manicures, a prova exigida pelo sindicato da categoria e, no caso das cabeleireiras, algum curso profissionalizante para se aperfeiçoarem. Outras ainda decidiram buscar por uma formação na área com a perspectiva de conseguirem melhores empregos do que aqueles que teriam sem capacitação alguma. Neste sentido, o ramo da beleza, de início, era para a maioria apenas uma oportunidade, não um desejo. De todas as pessoas entrevistadas, apenas duas declaram que escolheram de fato trabalhar com aquilo, que pensaram no que queriam para suas vidas e, então, fizeram essa escolha. Uma dessas pessoas disse que, ao ter sido confundido na rua com o cabeleireiro de uma senhora, que o cumprimentou com muita felicidade e atenção, decidiu seguir a profissão justamente pela satisfação subjetiva, em virtude do carinho construído por aquela atividade e pelas formas de reconhecimento do profissional, que se davam também em nível pessoal. Mas todos foram unânimes em dizer que adoravam o que faziam e que não se viam trabalhando com outra coisa. Por mais que houvesse por parte de muitos um desejo de “melhorar de vida”, não havia um plano de seguir outra carreira que não aquela. Não se pode ignorar que a consciência das limitações de acesso à outras oportunidades não seja um fator que as convença a manterem-se em suas profissões, até porque muitas já estão em idade avançada, mas o que declararam girava muito mais em torno da satisfação pessoal que encontravam naquela atividade, do que dos benefícios materiais ali obtidos. Quase todas as funcionárias daquele salão já trabalham na região do “Posto 6” há anos, às vezes décadas, tendo passado longos períodos em algum dos outros estabelecimentos daquele mesmo quarteirão, até que este tenha mudado o dono, ou algo do tipo. Aos poucos, cada uma por um caminho, foram encontrando-se naquele salão em específico; algumas há quase 10 anos, outras há aproximadamente 5. Não foi entrevistada nenhuma profissional que estivesse lá há menos tempo do que isso, embora dentre aquelas 17 pessoas houvesse algumas, dentre as quais a auxiliar e a recepcionista. Por conta deste convívio diário, e estabelecido por muito tempo, as relações eram bastante estáveis. Como elas mesmas identificavam, diferente de outros salões, havia uma baixíssima rotatividade das pessoas que trabalhavam ali, e não foram poucas 4

as que definiram a dinâmica daquele lugar como a de uma casa habitada por uma grande família. Como evidência disso elas citavam o fato de umas irem às festas de aniversário das outras, saírem às vezes aos finais de semana, conhecerem seus companheiros, filhos e, até mesmo, netos; e o fato de tecerem com freqüência comentários jocosos, em especial quando estavam na cozinha, ou se arrumando para irem embora, afastadas do ambiente principal onde localizavam-se as clientes e a dona do estabelecimento. Nestes momentos em que elas não mais exerciam sua função de manicure ou cabeleireira, nestes momentos em que não havia uma diferenciação da posição ocupada e todas se sentiam entre iguais, o conteúdo das conversas mudava. Surgiam alguns comentários sobre as clientes que nunca haveriam de ser feitos em frente a elas, algumas piadas e observações sutilmente maldosas e provocativas sobre as colegas, que eram prontamente respondidas da mesma forma, com certa ironia e uma aspereza velada, mas sem agressividade alguma. Nestes momentos ficava claro o quanto seus comportamentos, suas gestualidades, até mesmo o tom de suas vozes podiam assumir duas formas distintas: uma a ser adotada como profissional do salão; outra a ser adotada como colega de trabalho; uma mediada pela posição ocupada em uma teia de relações hierarquizadas; outra pela posição ocupada em um convívio entre pares.1 Era quase como se houvesse uma esfera pública, aquela compartilhada com as clientes e a dona do salão, e uma esfera privada, a da cozinha, aquela onde havia uma maior liberdade para despirem-se de sua postura profissional. A mesma metáfora da família era adotada quando falavam dos conflitos existentes entre a equipe. Segundo as funcionárias, havia alguns atritos recorrentes, mas, assim como em uma família, eles eram resolvidos “cara-a-cara”, no mesmo instante, para que depois tudo prosseguisse em harmonia. Segundo elas, houve casos de duas pessoas que ficaram até uma semana sem se falar, mas não havia inimizades concretas, não havia alguém, ou algum sub-grupo, que se empenhasse em prejudicar ou tirar vantagem de outro sub-grupo. Houve, no entanto um relato recorrente de que a recepção às novas profissionais era sutilmente hostil. Não souberam explicar direito quais as práticas envolvidas nesse distanciamento imposto às novatas, e tampouco um momento como esse pôde ser observado, mas ao que parece havia uma desconfiança dos velhos membros do grupo sobre os novos, os quais eram gradualmente inseridos conforme demonstravam que não iriam impor algum tipo de concorrência desleal e que estavam dispostos a colaborar para manter o que já estava tacitamente estabelecido. De forma geral, os conflitos narrados eram de duas naturezas. Uma delas referiase a certo tipo de territorialidade sobre as clientes. Era inadmissível que uma profissional tentasse seduzir a cliente de outra. Se uma freqüentadora que habitualmente

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Em seu trabalho realizado com deficientes auditivos, Magnani cita que eles adotavam comportamentos diferentes de acordo com o contexto em que estavam inseridos; que quando estavam em um grupo onde todos eram surdos e, portanto, compartilhavam das questões a isso atreladas, uma dada dinâmica se desenvolvia, e ela era completamente diferente daquela desenvolvida quando eles estavam inseridos em um contexto maior, convivendo com pessoas que eram externas àquele universo. Muito semelhante a isso foi o observado no salão: a dinâmica quando as funcionárias estavam exclusivamente entre seus pares era totalmente distinta daquela que se desenhava quando elas estavam inseridas no mesmo contexto que suas clientes e sua chefe.

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fizesse unha com certa manicure tivesse que fazer com outra por causa de limitações de agenda, isso não era um grande problema; mas havendo horário disponível com aquela que normalmente pegaria tal serviço, sua execução por outra profissional poderia causar atrito. No entanto essas situações eram encaradas como inerentes àquela atividade e como algo mais freqüente entre as manicures do que as cabeleireiras, havia certo grau de normatização dessas práticas eventuais. Todas diziam que uma dos motivos de gostarem de trabalhar naquele salão era justamente que ali isso não acontecia com tanta freqüência, e que em outros estabelecimentos isso se dava na forma de uma concorrência muito mais desleal. Inclusive um dos fatores de desconfiança quando chegava um novo membro ao grupo era justamente por não se saber se ela iria respeitar estes espaços tacitamente estabelecidos com o tempo. Outro tipo de conflito não tinha nenhuma relação com certo tipo de decoro profissional, mas sim com elementos que elas reconheciam como “regras básicas de convivência”. A geladeira da cozinha era compartilhada e, as vezes, uma comia a refeição que outra havia deixado guardada lá. Havia casos ainda nos quais uma profissional fazia a unha ou o cabelo da outra, mas na hora de demandar uma reciprocidade do gesto, a outra colocava desculpas para não fazê-lo. Nos dois casos, as profissionais entendiam que aquilo não seria certo em qualquer contexto, desrespeitar o espaço (ou o bem, a comida) de outra pessoa era inquestionavelmente errado; assim como não ajudar quem lhe tivesse ajudado. Independente do tipo de conflito, de sua causa ou proporção, a regra fundamental acerca disso era resolvê-lo logo. Dessa forma, não eram raras discussões entre elas quando isoladas dos clientes, ou, ainda mais, comentários aparentemente impessoais, que indiretamente faziam críticas às quem tivessem cometido certo tipo de “delito”, mas não foi presenciada nenhuma briga mais exaltada, e nenhuma delas alegou ter realmente problemas com alguma das colegas. Era nítido, e elas reconheciam, que havia algumas “panelinhas”, no sentido de grupos menores que conversavam mais entre si do que com outras, que saíam com mais freqüência juntas, etc., mas por todas foi dito que isso se daria apenas em função de afinidades pessoais, e que não gerava impacto sobre as dinâmicas de trabalho. Também não ficou claro de que forma os conflitos eram desfeitos, se havia algum tipo de compensação, apenas foi dito que eram logo resolvidos. Declararam também, repetidamente, que a dona, uma mulher muito séria e de poucas palavras, não permitia que qualquer inimizade crescesse dentro daquele ambiente e que era totalmente proibido fazer qualquer crítica ou comentário maldoso em frente às clientes. Mas a princípio parece que ela não mediava as desavenças, apenas determinava que elas não poderiam existir, ou serem manifestas, além de determinado limite que não ameaçasse a harmonia ali estabelecida.

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1.2 As clientes e os dias da semana Assim como as funcionárias, que há anos trabalham naquele estabelecimento, ou em outros da mesma região, a maioria das freqüentadoras tornou-se cliente daquele salão, ou das profissionais que hoje trabalham nele, há muito tempo. No dia a dia encontra-se mais senhoras, muitas delas bastante idosas, moradoras do “Posto 6”, que mantém aquela rotina com o máximo de rigor, independente de festas e eventos comemorativos que demandem maior cuidado com a aparência. De segunda a sextafeira, portanto, o público é composto por estas mulheres, donas de casa ou aposentadas, que construíram ali relações duradouras e estáveis. Aos Sábados, dia que o salão fica mais cheio, o perfil das freqüentadoras muda. Há mais jovens, há pessoas que nunca estiveram ali e estão a procura apenas de um serviço do qual necessitam, há freqüentadoras esporádicas que só aparecem em virtude de algum evento específico, como casamentos, formaturas, etc. Nesses dias as freqüentadoras habituais não vão muito, pois lhes desagrada a agilidade imposta às funcionárias pelas agendas lotadas, não há tempo para o cuidado habitual. Aos Sábados as relações ali estabelecidas parecem mais funcionais: precisa-se estar bonita para uma ocasião e isso é providenciado, apenas. É como se neste dia não transparecesse a característica de “salão de bairro” que nos outros momentos é notória. De forma geral, as observações contidas nesse trabalho referem-se mais às relações construídas de segunda a sexta-feira. Por uma questão prática, que é a pressa com que as atividades são desenvolvidas aos Sábados, de forma a ser quase impossível conversar com as pessoas nesse dia, e por uma questão subjetiva, já que, nas entrevistas realizadas, as manicures e cabeleireiras falam muito mais das suas relações com as clientes de longa data, que freqüentam o local durante a semana, do que daquilo que fazem e das pessoas que encontram nos Sábados lotados. Em uma primeira análise, todas as pessoas estão lá pelos mesmos motivos, mas observando mais cuidadosamente, há uma grande diferença entre a contratação de um serviço de beleza e aquelas relações de proximidade construídas com as clientes mais fiéis, o que ficará mais evidente na próxima seção. Uma particularidade deste salão é a grande proporção de pessoas idosas que o frequenta. As manicures e cabeleireiras, de forma geral, atribuem este fato ao local onde estão, já que Copacabana é um bairro conhecido por ter uma das maiores populações de idosos da cidade do Rio de Janeiro. Mas, por quase todos terem trabalhado a maior parte de suas vidas em um raio de poucos quarteirões, não souberam dizer se em salões de outros bairros o perfil é o mesmo, ou diferente; apenas com outras pesquisas seria possível compreender se esse é um fenômeno deste mercado ou deste estabelecimento. Quando perguntado às funcionárias sobre variações no volume de trabalho e rendimentos ao longo do tempo, ao que se esperava uma resposta em virtude de crises e sazonalidades, o principal fator apontado para essas mudanças foi o falecimento das clientes. Segundo elas, a “reposição” não se daria na mesma proporção que a perda vinha se dando. O aumento dos salões expressos, a “falta de tempo dos jovens”, a busca por vidas mais práticas, e até mesmo o advento das escovas definitivas, são os 7

principais fatores apontados para que não haja novas clientes fixas na mesma quantidade que as antigas, e que a perspectiva seja que queda no volume total de freqüentadoras, em especial daquele tipo com quem se constrói certa lealdade. 1.3 Cuidado, carinho e afeto Dentre todos os funcionários do salão, o único homem, cabeleireiro, gay, paraibano, foi o primeiro a demonstrar interesse ao saber que havia alguém ali para observá-los. Ele já havia trabalhado com demonstração de produtos para o ramo, e nessa atividade cabia-lhe ensinar aos profissionais da área como utilizá-los. Com seu tom professoral fez questão de explicar aqueles que seriam os princípios de se trabalhar com beleza. Questões como a estética e a auto estima apareceram logo, mas quando ele começou a falar de suas experiências pessoais, indo além do que aprendera nos cursos que sempre buscava fazer, surgiu a questão do cuidado e do carinho, gerando afeto. Assim como ele, as manicures e as cabeleireiras acabavam chegando sempre aos mesmos pontos. Sua satisfação em trabalhar na área não se dava pelo simples prazer em manusear aqueles instrumentos, em chegar a resultados interessantes com os cortes e penteados que faziam, ou mesmo em deixar as pessoas mais bonitas. Todas falaram de sua satisfação por estabelecerem relações carinhosas com as clientes, em dar e receber estes gestos amigáveis, o que gerava afeto. Para as duas partes envolvidas, profissional e cliente, era bastante óbvio o quanto ir ao salão fazia parte de um “cuidar de si”. Era recorrente que as mulheres que não tinham o hábito de fazer as unhas semanalmente descrevessem a si próprias como desleixadas, e que as senhoras que chegavam com as raízes dos cabelos brancos aparecendo achassem aquilo quase vergonhoso. Havia toda uma preocupação em adequar-se às normas sociais: estar bem apresentável, com os cabelos aparentemente saudáveis, com unhas feitas que aludissem à mais perfeita assepsia; tudo isso compunha para as freqüentadoras a imagem de si que era apresentada aos outros. Era nítida também a satisfação de ambas as partes com a certeza de que as mulheres saíam de lá mais bonitas do que haviam entrado, mais seguras, caminhando de forma mais altiva e, por isso mesmo, mais realizadas e felizes consigo e com a pessoa que lhes havia proporcionado aquilo. Nesses dois aspectos repousavam algumas das motivações para que se freqüentassem o salão, bem como o ponto inicial das relações estabelecidas entre uma parte e outra. Aparentemente, o que fazia com que mulheres no geral freqüentassem salões de beleza como um todo era isso, mas esses dados não explicam porque essas mulheres em específico freqüentam exatamente este salão, e dentro dele realizam seus procedimentos com determinadas pessoas. Portanto, esses dados explicam a função do salão de beleza na sociedade, mas não o seu sentido para os indivíduos. Sendo assim, uma análise funcional-estruturalista 8

somente permitiria essa primeira camada de interpretação, na qual os salões de beleza como um todo, cumprem com determinado papel na vida social, a qual é a mesma em todos os casos; mas somente com uma compreensão mais aprofundada do sentido atribuído àquelas práticas faz-se possível compreender as especificidades deste objeto em particular, considerando que ele é composto por pessoas e contextos específicos2. Isso corrobora com a ideia de Geertz (1978) que uma etnografia teria sempre um resultado incompleto, antes de tudo por não poder equiparar a natureza de todos os possíveis objetos, e em segundo lugar por se referir a uma rede sobreposta de significados, já que o significado do salão de belezas é um, mas o das relações construídas especificamente neste estabelecimento é outro, o qual ainda pode ser distinto, neste caso, para as clientes ou para as funcionárias. Há uma segunda dimensão neste processo, a dimensão afetiva. Como já foi dito, este pode ser classificado como um “salão de bairro”. Isso não significa que sua infraestrutura física seja precária, mas sim que a partir dele se constroem relações “bairristas” com as adjacências, quase comunitárias em alguns sentidos. Não seria possível, apenas com esse estudo, dimensionar até que ponto salões com perfis diferentes reproduzem ou não esta característica. Mas, ao menos neste caso, ela é bastante nítida, principalmente porque a maioria das pessoas que trabalha lá já está na região do “Posto 6” há décadas, tendo trabalhado anteriormente em algum dos outros salões daquela mesma rua, daquele quarteirão, ou em algum dos que ficam logo depois da esquina. As clientes, da mesma forma, muitas vezes conhecem as mulheres que fazem suas unhas e cabelos há muitos anos, e juntas mudam de salão quando elas mudam de empregador. Uma das cabeleireiras disse ter começado a trabalhar no “Posto 6” aos 12 anos, ainda como auxiliar, sem carteira assinada. Aprendeu com as profissionais daquele salão e hoje, aos 62, mantém-se no mesmo quarteirão atendendo em grande parte as mesmas clientes, com exceção daquelas que já faleceram. Uma manicure, mais discreta quanto a sua idade, afirma estar há 40 anos na região, tendo também começado como auxiliar durante a adolescência, e da mesma forma lamenta as clientes que já perdeu de velhice. O momento de fazer as unhas ou os cabelos não era apenas o de cuidar-se e sentir-se mais bonita, era também o momento de conversar, era a brecha para fazer pequenas reclamações da vida que, no fundo, nem sempre há com quem compartilhar. A proximidade dos encontros freqüentes, da mínima distância estabelecida com alguém que mantém contato com parte de seu corpo, e os anos, às vezes décadas, pelos quais estes momentos se repetiam com as mesmos profissionais, acabava por criar uma

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Seria possível aqui fazer uma paralelo entre o objetivo deste trabalho com a proposta de investigação apresentada no texto de Clifford Geertz, Uma Descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura, uma vez que foi buscada justamente uma interpretação das práticas ali desenvolvidas, para além das meras atividades propriamente ditas e de suas funções (que no caso giraria em torno da estética e do cuidado de si) dentro de um contexto maior.

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relação de intimidade suficiente para que fossem expostas questões não apenas pessoais, mas íntimas, por parte das clientes. Por outro lado, a distância nitidamente marcada pela relação profissional, pelo pertencimento à diferentes classes e diferentes posições naquela dinâmica, criava entre ambas um limite. Às manicures e cabeleireiras somente cabia ouvir e aconselhar, não havia, portanto, espaço para julgamento. Escutar o que elas tinham a dizer, retribuir a confiança com conselhos apaziguadores, isso era permitido; mas fazer críticas, julgarlhes moralmente, reprovar comportamentos ou diminuir os pequenos dramas ali apresentados era tacitamente proibido. As manicures e cabeleireiras tornavam-se assim confidentes das clientes e, a partir disso, construía-se um tipo muito específico de amizade. As posições na estrutura social mantinham-se rigidamente respeitadas, não havia cliente que, por exemplo, frequentasse a cozinha do salão, tampouco manicure que fosse convidada para os aniversários das freqüentadoras, mesmo que para estes elas se arrumassem naquele estabelecimento e comentassem com as profissionais sobre suas festas. Mas os assuntos compartilhados eram ilimitados, e, sob o manto de um decoro profissional que os blindava de julgamento, as intimidades eram expostas. Essa intimidade sem julgamento, associada à satisfação de sentir-se bonita e ao o conforto das breves massagens feitas nas mãos e nos couros cabeludos, construíam um ambiente de cuidados, que se traduzia em carinho por parte das profissionais, e que era retribuído por parte das clientes, gerando, assim, afeto. É esse afeto que explica, neste caso, porque essas mulheres em específico freqüentam exatamente este salão, e dentro dele realizam seus procedimentos com determinadas pessoas. Mas este era um afeto circunscrito a um código de ética específico daquele universo. A relação equilibrava-se em não serem confundidos os limites profissionais e pessoais, por nenhuma das partes. Existia um ponto até onde a cliente podia chegar em sua exigência como consumidora, bem como uma barreira quanto a até onde a manicure podia ir como confidente, e as diferentes posições ocupadas por cada uma das partes tornavam-se evidente pelas regras implícitas àquela situação. Não importava os motivos, uma manicure ou cabeleireira nunca poderia colocar uma cliente na frente da outra que tivesse marcado antes, independente de quanta “liberdade” elas tivessem entre si. Assim como a atenção dedicada pelas profissionais era em certa medida condicionada ao pagamento de gorjetas, embora os serviços tivessem sua qualidade garantida independente disso. Uma das cabeleireiras contou, muito chateada, sobre uma cliente de longa data que por acaso fora ao salão em uma quarta-feira, dia de sua folga. Acabou cortando o cabelo com outra profissional e, por motivo qualquer, preferiu continuar a ser atendida por esta nova pessoa. Tempos depois, casualmente, a profissional que folgava às quartas trocou seu dia de descanso e encontrou com a cliente no salão, prestes a realizar o serviço com sua colega. A cliente, mesmo que teoricamente estivesse apenas exercendo 10

seu direito como consumidora, começou logo a inventar justificativas, pois sabia que tinha infringido certo tipo de código. Ao relatar esse fato, a cabeleireira deixou muito claro que isso poderia vir a acontecer, nada impedia que a cliente tivesse preferido outra pessoa, mas havia lhe faltado lealdade. Essa era a mágoa envolvida ali. Se a cliente tivesse conversado com ela, se tivesse avisado, explicado, tudo teria ficado bem. Era como se houvesse o compromisso de se desmanchar a relação antes de estabelecê-la com outra pessoa, retribuindo assim todo o cuidado que fora dedicado nas idas ao salão.

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CAPÍTULO 2 – DESCOBERTAS INESPERADAS 2.1 Uma outra Copacabana Na cozinha esquentavam-se quentinhas. Poucas eram as funcionárias que levavam comida de suas casas. Ao serem questionadas de onde viriam tais refeições, uma lista de fornecedores surgiu, todos eles também do “Posto 6”. A maioria dos alimentos eram preparados por mulheres que moravam ali, esposas de porteiros cujas casas ficavam anexas às garagens dos prédios onde moravam as próprias clientes do salão, e cujos filhos entregavam os pedidos nos pequenos comércios da região. As pessoas que trabalhavam ali não tinham dinheiro para comer nos restaurantes que serviam aos moradores dos confortáveis apartamentos daquele lugar, portanto surgiu toda uma rede de alimentação a preços populares, uma vez que muitos outros estabelecimentos dos mais diversos ramos acabavam gerando essa demanda a partir de seus funcionários. Partindo dessa informação, toda uma nova teia de relações foi apresentada. Revelou-se que entre os prédios de classe média alta, entre as senhoras bem-vestidas e os senhores de terno, havia todo um universo paralelo de habitantes e freqüentadores rotineiros daquela região. Tais pessoas ocupavam os mesmos espaços, mas não a mesma classe que a maioria dos moradores de Copacabana. Estavam fisicamente próximos a eles, mas distantes em termos da posição que ocupavam nesta teia de prestadores e consumidores de pequenos serviços diversos, cada um de um lado deste processo. Esses universos co-existiam geograficamente, mas havia uma baixíssima permeabilidade entre eles, e as funcionárias do salão pertenciam àquele que era compartilhado pelos porteiros e zeladores que moravam nos fundos dos prédios, pelas babás que dormiam nos apartamentos onde trabalhavam, pelos empregados dos pequenos comércios ali localizados. Além da distinção em função das posições sociais ocupadas havia também uma questão cultural. Neste sentido é possível citar a ideia de habitus de Bourdieu (1983), e compreender que o distanciamento era marcado não apenas por fatores econômicos, não apenas pelo reforço das hierarquias sociais, mas também por fatores referentes ao estilo de vida de cada um desses grupos, de forma a ficar evidente uma dominação simbólica e não apenas econômica neste caso. Entre essas pessoas, que faziam parte de uma mesma classe e compartilhavam este mesmo habitus, haviam relações de ordem muito mais comunitária do que aquelas estabelecidas com os senhores e senhoras ricas a quem prestavam-se os serviços ou vendiam os produtos de necessidade diária nos estabelecimentos da região. Neste caso a única forma de mediar o contato era através do dinheiro. Já no botequim da rua, o prato executivo tinha preço diferenciado para pessoas que trabalhassem por perto, e a conta 12

poderia ser paga mensalmente, quando estes recebessem seus salários. As unhas da filha do porteiro do prédio ao lado, que levava as quentinhas feitas pela mãe, eram feitas de graça na cozinha do salão, e o zelador que aos finais de semana complementava sua renda fazendo frete em sua caminhonete não se importava em ajudar as conhecidas que estivessem de mudança. Em virtude dessa descoberta, algo que antes parecia um mero detalhe ganhou novos contornos. Um catador de papelão que roda as ruas durante a noite, deixava seu carrinho todos os dias estacionado em frente ao salão. A tábua que lhe servia de base era apropriada como banco pelas funcionárias, que ficavam sentadas na rua conversando enquanto descansavam e esperavam a próxima cliente chegar. Observando melhor foi possível perceber que naquele momento, enquanto estavam ali sentadas no carrinho do catador, se cruzavam com conhecidos a todo momento, e ali eles paravam por alguns minutos para conversar. A rua era para os pertencentes àquela “Copacabana paralela” o espaço de comunhão, já que muitos se quer moravam ali, ou trabalhavam juntos, ou compartilhavam algo além da proximidade física entre si e do distanciamento que lhes era imposto pelas classes mais altas.

2.2 Uma experiência pessoal Eu sou moradora do “Posto 6”. Minha avó reside no mesmo apartamento há quase 40 anos. Eu o freqüentava quando criança e agora moro nele também. O salão de belezas estudado é meu vizinho, e da janela vejo o pátio com jardim onde as manicures e cabeleireiras passam o pouco tempo livre que tem. De vez em quando é possível ouvilas conversando. Já me sentei no carrinho do catador de papelão para falar com colegas que passaram na porta do meu prédio para dar um oi, e algumas vezes fiz as unhas com Tânia, uma das funcionárias do Le Bourbon. Conversando com as mulheres de lá, descobri que minha tia avó, já falecida, foi a primeira cliente de Alice, e que Nice ganhara da minha mãe a tartaruga que meu irmão tivera quando criança, mas com a qual não pudemos ficar. Fazer este trabalho foi literalmente observar o familiar. Não há nada mais próximo a nós do que a rua de nossas casas, mas descobri que uma distância gigantesca me separava daquelas pessoas, principalmente pelo fato de eu estar inserida no universo de suas clientes, não de suas iguais. Acessar esse universo, ainda que parcialmente e por pouco tempo, foi algo que só começou a acontecer quando justamente Tânia, que se orgulhava em me apresentar como neta da Dona Ima, sua cliente de longa data, me levou até a cozinha, que era o ambiente onde as funcionárias do salão estavam blindadas das regras que lhes eram impostas no convívio com as clientes. A inserção naquele espaço foi o gatilho que disparou toda uma nova rede de conexões possíveis como chave interpretativa para uma 13

igualmente nova rede de relações eu descobrira, de forma que realizar este trabalho foi mais do que estudar um objeto, mas sim desvelar uma outra dimensão do meu bairro e passar assim a compreender as relações nele estabelecidas em virtude de uma complexidade muito maior do que eu jamais pudera imaginar.

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CAPÍTULO 3 – CONCLUSÃO O estudo do objeto em questão revelou que as funcionárias daquele salão de belezas compartilhavam mais do um ofício, mas sim uma identidade, tanto em função da natureza de seu trabalho, quanto da convivência dos membros do grupo, e da forma como estes se relacionavam com as clientes. Ficou claro que as atividades ali desenvolvidas extrapolavam as questões referentes à estética e as convenções sociais quanto a apresentação pessoal e ao cuidado de si. Neste sentido, o salão de belezas, por ter características específicas que o diferem daqueles “expressos”, por exemplo, é mais do que um espaço de prestação de serviços, é também o espaço de construção de relações sociais estáveis e duradouras que são atravessadas por elementos afetivos, tanto no caso do contato funcionáriafuncionária, quanto, e principalmente, no caso do contato funcionária-cliente. Apesar disso, o afeto é mediado por regras específicas em virtude do pertencimento às diferentes classes por parte dos indivíduos que compartilham deste sentimento, especialmente quando se fala daquele desenvolvido entre prestadora e consumidora do serviço, havendo concomitantemente um elemento de aproximação e outro de distinção entre elas. Em virtude desta distinção, a qual se dá entre as moradoras dos apartamentos de Copacabana e todas as outras pessoas que coexistem neste bairro como funcionários ou habitantes de outros tipos de moradia, uma rede paralela de relações é estabelecida entre essas pessoas que compartilham de um mesmo habitus. Dessa forma é possível pensar este salão como um ponto de interseção entre duas redes que coexistem espacialmente, mas tem pouca permeabilidade entre si: aquela à qual pertencem as freqüentadoras do salão e aquela à qual pertencem suas funcionárias. Por isso, neste ponto de intercessão, surgem códigos de conduta e formas de agir específicas, o que leva as manicures e cabeleiras a comportarem-se de uma forma quando estão em convívio com as clientes e outra quando estão isoladas delas, em contato apenas com seus pares.

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