O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE: AS MÚLTIPLAS ANÁLISES DE UM CONCEITO

June 24, 2017 | Autor: M. Baêta Neves Barbé | Categoria: Friedrich Nietzsche
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Revista Eletrônica de Filosofia da UESB Ano 3 • Número 1 • Janeiro-Junho de 2015 • ISSN: 2317-3785

O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE: AS MÚLTIPLAS ANÁLISES DE UM CONCEITO.

Moreno Baêta Neves Barbé

Especialista em Filosofia Contemporânea – UFAL / Professor de Filosofia – UFAL/Unidade Penedo E-mail: [email protected]

RESUMO: O conceito do Eterno Retorno, cunhado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, foi anunciado como um dos elementos mais fundamentais de seu pensamento e de sua filosofia. Contudo, apesar da importância expressada pelo filósofo em suas obras, o Eterno Retorno tornou-se um conceito inconcluso. De fato, numerosas foram as interpretações levantadas ao referido conceito, cujas narrativas podem avaliar seus elementos no campo ético e/ou abordarem sua concepção numa perspectiva metafísica. O objetivo de nosso artigo visa expor algumas das múltiplas análises que se debruçaram sobre o referido conceito, mapeando as suas distinções e singularidades. Palavras-chave: Nietzsche, Eterno Retorno, Interpretação Conceitual. ABSTRACT: The concept of the Eternal Return, crafted by the German philosopher Friedrich Nietzsche, is announced as one of the most fundamental elements of his thinking and his philosophy. However, despite the importance expressed by the philosopher in his works, the Eternal Return became an inconclusive concept. In fact, numerous interpretations have been raised to that concept, which narratives can evaluate their elements in the ethical field and /or address their approach in a metaphysical perspective. The goal of our article aims to expose some of the multiple analyzes that have been looked into that concept, mapping their distinctions and singularities. Keywords: Nietzsche, Eternal Recurrence, Conceptual Interpretation.

E se tudo já existiu: que achas tu, anão, deste momento? F. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p.164.

1.

INTRODUÇÃO

O conceito do Eterno Retorno, cunhado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche,

foi anunciado como um dos elementos mais fundamentais de seu pensamento e de sua filosofia. Contudo, apesar da importância expressada pelo filósofo em suas obras, o Eterno

Retorno tornou-se um conceito inconcluso, devido ao caso de doença e consequente morte Barbé, Moreno Baêta Neves • O Eterno Retorno de Nietzsche: As Múltiplas Análises de um Conceito • Página 70

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de Nietzsche no ano de 1900. De fato, numerosas foram as interpretações levantadas ao

referido conceito, cujas narrativas podem avaliar seus elementos no campo ético e/ou abordar sua concepção numa perspectiva metafísica. O objetivo de nosso artigo visa expor

algumas das múltiplas análises que se debruçaram sobre o referido conceito, mapeando as suas distinções e singularidades.

Assim, no sentido de obtermos um maior nível de clareza a respeito do conceito

nietzschiano do Eterno Retorno e destacarmos as suas respectivas diferenças interpretativas, pretendemos realizar o seguinte percurso discursivo: I - Inicialmente, a nossa escritura

apresentará uma análise contextual e histórica do conceito, dado a importância de definirmos quais foram as reflexões e experiências vividas por Nietzsche que lhe possibilitaram a invenção do referido conceito; II – em seguida, delimitaremos as principais interpretações filosóficas à

respeito do complexo Nietzsche-Eterno-Retorno, em especial, a partir das análises cunhadas

por Roberto Machado em sua obra, “Zaratustra: Tragédia Nietzschiana” (MACHADO, 1997) e, também, pelas análises desenvolvidas por Scarlet Martton em seu livro, “Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos” (MARTON, 1995); III – E, por fim, recuperaremos

as leituras realizadas por Gilles Deleuze, a partir de sua original interpretação partilhada em seus livros, “Nietzsche e a Filosof ia” (DELEUZE, 1976) e “Nietzsche” (DELEUZE, 2001).

2. O ETERNO RETORNO: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO

O conceito do Eterno Retorno foi desenvolvido por Nietzsche em momentos

singulares de sua vida. Do ponto de vista de sua construção, o conceito surge primeiramente

para o filósofo como um pensamento abissal nos anos de 1881, cuja apreensão, de acordo com o pensador alemão, nos causaria um horror indizível (NIETZSCHE, 1995), sendo

respectivamente enunciado em 1882, em seu livro “A Gaia Ciência” (NIETZSCHE, 2001) a partir de seu aforismo “O maior dos pesos” (§341).

Neste aforismo nos deparamos, grosso modo, com a cena hipotética e enigmática

de nosso encontro com o demônio que questiona se seríamos capazes de viver e suportar uma vida em que cada experiência de prazer, de dor, dos próprios pensamentos e de todas

as escolhas feitas se repetiriam eternamente. Cada instante, cada sequência de atos, cada

elemento existente nesse mundo, retornaria uma vez mais impondo o desafio de desejarmos

vivê-los como a mais sublime afirmação ou de amaldiçoá-los como a força mais destrutiva de nossas vidas, tal como Nietzsche enunciou:

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[...] “Você quer isso mais uma vez ou incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você deveria estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2001, p.230).

Podemos também encontrar a referência ao conceito, de maneira pontual, na obra

datada de 1886, “Além do bem e do mal: Prelúdio a Uma Filosof ia do Futuro” no aforismo de número 56. Onde afirma:

[...] o ideal do homem mais exuberante, mais vivo e mais afirmador do mundo, que não só aprendeu a se resignar e suportar tudo o que existiu e é, mas desse tê-lo novamente, tal como existiu e é, por toda a eternidade, gritando incessantemente “da capo” [do início], não apenas para si mesmo, mas para a peça e o espetáculo inteiro, mas no fundo para aquele que necessita justamente desse espetáculo – e o faz necessário: porque sempre necessita outra vez de si mesmo – e se faz necessário – Como? E isto não seria circulus vitiosus deus [deus como círculo vicioso]? (NIETZSCHE, 1992 p.59).

Mas, a apresentação organizada do conceito é inscrita no ano de 1885 em

“Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém” (NIETZSCHE, 1978a) e, posteriormente, em alguns de seus fragmentos póstumos entre os anos de 1881 a 1888.

Ressaltamos que o Eterno Retorno é considerado muitas vezes um conceito deveras

problemático, pois apesar de sua supervalorização ou do hiperbolismo dada pelo próprio

autor, a respeito da importância do conceito para todo o seu pensamento, de fato, o caso

é que não temos a sistematização e/ou a análise clarificada de Nietzsche sobre o conceito, ocorrendo que, por vezes, o Eterno Retorno nos parece enigmático, tal como nos aponta Deleuze:

Não devemos esquecer que os dois conceitos fundamentais, o de Eterno retorno e o de Vontade de [poder], são apenas introduzidos por Nietzsche e não foram objeto nem das exposições e nem dos desenvolvimentos que Nietzsche projetava (DELEUZE, 2004, p.141).

3. O ETERNO RETORNO: AS INTERPRETAÇÕES CONCEITUAIS ÉTICA E COSMOLÓGICA

Assim, os estudiosos da obra de Nietzsche1 distinguem dois planos básicos em que

1 E nisto podemos destacar interpretações diferidas como no caso da análise de: Roberto Machado em seu Zaratustra: tragédia nietzschiana (MACHADO, 1997) que opta por uma perspectiva ética; Scarlett Marton em sua obra Nietzsche das For-

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o conceito do Eterno Retorno pode ser interpretado: numa linha teremos o seu entendimento enquanto conceito ético, a partir dos capítulos de Zaratustra: Da visão e do enigma e O

convalescente2; numa segunda linha, a perspectiva cosmológica do conceito contida na obra inconclusa e postumamente publicada, A Vontade de Poder.3

A interpretação ética do conceito fundamenta-se a partir dos supracitados da

obra “Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém”, cujas referidas passagens

conta-nos, respectivamente, que durante a solidão e a peregrinação do personagem trágico, Zaratustra havia despertado o pensamento do Eterno Retorno sem, contudo, entendê-lo

plenamente, pois o eterno retorno implica na constituição de novas relações de si para com a vida, com a vontade e a superação dos valores negativos cultivados historicamente pela

humanidade (ascetismo, niilismo e o ressentimento) através dos novos valores enunciados por Zaratustra. Pensamento-conceito que somente se “aclara” no momento em que Zaratustra

narra seu encontro com o anão, personagem representante do espírito de gravidade e da má

consciência4. O anão, que está relacionado ou metaforizado como o ser que representa a

consequência do fim do sustentáculo metafísico-cristão pelo enunciado da morte de Deus. Este assola Zaratustra com suas palavras de chumbo e seu desejo de dizer não – deve-se agir

perpetuamente por negação. Desse modo, o anão zomba, argumenta, sobe nos ombros do peregrino trágico e escarnece de sua caminhada, de sua vontade:

“Ó Zaratustra”, cochichava, zombeteiro, pronunciando por sílabas, “ó pedra da sabedoria”! Arremessas-te para o alto, mas toda a pedra arremessada deve – cair! Ó Zaratustra, pedra da sabedoria, pedra de fundo, destroçador de estrelas! A ti mesmo arremessastes tão alto; mas toda a pedra arremessada – deve cair! Condenado a ti mesmo e ao teu próprio apedrejamento, ó Zaratustra, bem longe, sim, arremessastes a pedra – mas é sobre ti que ela cairá de volta (NIETZSCHE, 1978a, p. 165). ças Cosmológicas aos Valores Humanos (MARTON, 1990) e Wolfgang Müller em A doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche (MÜLLER, 1996) apresentam o problema do Eterno Retorno a partir da compreensão cosmológica; por Gilles Deleuze que problematiza o Eterno Retorno como conceito pertencente ao universo do devir e da diferença em seu Nietzsche e a Filosofia (DELEUZE, 1975); e Heidegger em sua obra Nietzsche: Tomo II (HEIDEGGER, 2000), onde avalia o conceito como expressão metafísica do pensamento de Nietzsche. 2 Cf. Os referidos capítulos podem ser consultados respectivamente nas páginas 164 e 222 em: NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a. 3 No sentido de evitarmos ambiguidades ou má compreensão do conceito de Vontade de Poder (Wille Zur Ma-

cht), oras traduzido como Vontade de Potência, desejamos destacar que seguiremos as recomendações de Scarlett Marton e empregaremos a primeira nomeação, pois ao usarmos o termo potência, em detrimento de poder, poderá ocorrer o caso em que o leitor remeta, equivocadamente, ao conceito aristotélico de Potência. Nesse contexto, em uma perspectiva nietzschiana, o significado de Wille deve ser compreendido enquanto impulso, tendência, disposição, já o termo Macht, em conjunção com Wille, será definido como ação de criação, de formar algo, de produzir ou fazer. Logo, o conceito de Vontade de Poder é uma força ativa e plástica de transformação, invenção e que se desdobra e se interpela pelas outras forças existente na realidade. Para uma compreensão mais acurada do conceito, Cf. MARTON, Scarlett. A Terceira Margem da Interpretação. In: MÜLLER, Wolfgang Lauter. A doutrina da vontade de poder. Trad. Oswaldo Giacóia. São Paulo: Annablume, 1997. 4 Gilles Deleuze em sua monografia sobre Nietzsche, define a má consciência do seguinte modo: “A má consciência: é o meu erro. Momento da introjecção. Tendo tomado a vida como um engodo, as forças reativas podem voltar a ser elas mesmas. Interiorizam a falta, dizem-se culpadas, viram-se contra si mesmas”. In: DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2001, p.25.

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Sucessivamente, Zaratustra partilha com o espírito pesado o enigma do Eterno

Retorno e mostra que a gravidade é fruto dos homens que fazem da vida peso, aniquilando

as potências criativas e leves da vida. Ao contrário do ressentimento, da má consciência, do ascetismo e do niilismo – os maiores males morais que assolam a humanidade – a vida para Nietzsche é um vasto terreno em que as forças, contidas em nossa realidade, lutam

intempestivamente para a construção do que somos, de como nos tornamos, de como nos inventamos. E se há dor, gozo, pesadume, dança, instinto, razão, guerra e paz, tudo se

concretiza mediante as forças que atuam e atravessam o mundo para formá-lo positiva ou negativamente.

Nesta perspectiva, a primeira linha que expõe o valor ético do Eterno Retorno

dar-se-á pela condição inescapável de que a vida é o próprio universo da multiplicidade, da diferença e do conflito, afirmá-la ou negá-la nos precipita ao desafio de existirmos mediante

ao tenso jogo dos valores de acolhermos a sua positividade ou negatividade e levá-lo até as

últimas consequências – tal como o demônio se expressou em O maior dos pesos5. Ou, ainda, como Nietzsche afirmará em seus escritos póstumos:

Meu ensinamento diz: viver de tal modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa, - pois assim será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto sentimento, que se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto sentimento, e não receio nenhum meio! Isso vale a eternidade! [§27 da primavera-outono de 1881] (NIETZSCHE, 1978b, p. 390).

Ainda, noutra linha, temos o Eterno Retorno enquanto conceito cosmológico,

onde avaliará o problema do ser e do tempo a partir da perspectiva de sua cosmovisão do devir e da Vontade de Poder. Para a realização da análise, propomos, inicialmente, recuperar a compreensão do conceito e, em seguida, apresentaremos algumas características do conceito de Vontade de Poder; e, por fim, estabelecermos o seu importante vínculo com o Eterno

Retorno.

Como explicitamos anteriormente, se para Nietzsche a realidade é constituída

pela tensão/conflito das forças existentes no mundo e que toda força somente é força por que ela está sempre relacionada com outra – definindo a sua natureza (se ela é ativa ou

reativa) e a sua qualidade (afirmativa ou negativa) -, então, o filósofo compreenderá que, fundamentalmente, o resultado dessas relações será nomeado por vontade e que o princípio plástico que a impulsiona e que a modela será chamado por Vontade de Poder. Tal como 5 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Trad., Notas e Prefácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 230.

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Nietzsche enunciou: “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” – e não sobre “matéria” (sobre nossos ‘nervos’, por exemplo -): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconheça ‘efeitos’, vontade atua sobre vontade – e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito de vontade. – Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintivamente como a elaboração e ramificação de uma forma básica de vontade – a Vontade de Poder [...], então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como Vontade de Poder (NIETZSCHE, 1992, p.43).

A Vontade de Poder, assim, não deve ser determinada/entendida como um impulso

ou desejo de um ser dominar o outro, de possuir poder – nesse viés, ela seria o grande

instrumento de reforço e solidificação dos valores estabelecidos enquanto vontade negativa

-, do mesmo modo se deve evitar a ideia do conceito ser o fundamento do mundo como em

uma metafísica – a Vontade de Poder é qualidade da vontade. Pois, de acordo com o filósofo, se há Vontade de Poder, que desdobra em e através de nossas ações, que amplia ou degenera a nossa capacidade de inventar a vida, que acolhe afirmativamente as forças trágicas e alegres

ou se esfacela ao niilismo, ela será permanentemente poética e pluralista na medida em que

o próprio ser poderá experimentar ou desviar da multiplicidade das forças do mundo e de suas consequências em nossa existência.

De todo modo, quando afirmamos que a Vontade de Poder e os conflitos de forças

estão intimamente ligados com o mundo e o ser, estamos determinando, de muitas formas, as disposições das forças e a possibilidade delas se efetivarem num kósmos temporalmente definido. Tal como Scarlett Marton nos esclarece a respeito da consequência destas relações propostas pelo filósofo trágico:

Admitindo que a soma das forças permanece constante no mundo, Nietzsche postula, que, embora múltiplas, elas são finitas. Num tempo infinito, só haveria, então, duas possibilidades: ou o mundo atingiria um estado de equilíbrio durável ou os estados por que ele passasse se repetiriam (MARTON, 2005, p.211).

E para Nietzsche, o caso do equilíbrio das forças é refutado na medida em que as

mesmas são frutos de conflito e diferença. Contudo, vale recuperarmos uma questão: como o filósofo chegou à conclusão da repetição do tempo? De acordo com as análises de Wolfgang Müller (MÜLLER, 1997), essa concepção parte de uma inspiração “científica” do Eterno

Retorno, na perspectiva que ao contrário de se avaliar repetição temporal do ponto de vista

do sujeito no nível empírico, o Nietzsche conceberá o devir como agente condicional do Barbé, Moreno Baêta Neves • O Eterno Retorno de Nietzsche: As Múltiplas Análises de um Conceito • Página 75

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tempo e levará as consequências ao plano cósmico e sua implicação para os atos e elementos

contidos no mundo como um todo - logo, o devir impele a repetição das forças, em suas qualidades distintas.

Nietzsche entende que o tempo, as forças cósmicas, o mundo, estão permanentemente

em estados de fluxos, mudanças, transformações ou, mais especificamente, a realidade sempre devém ou é sendo devir. Nesse caso, ao defender o devir como conceito/força constitutiva do tempo e das diferenças nele desdobradas, o autor de Zaratustra apresenta um problema

referente ao seu possível caráter infinito. Assim, torna-se válido recuperamos, rapidamente, uma análise a respeito do problema supracitado. Quando nos referimos ao passado (e o

pensamos/enunciamos a partir das experiências vividas ou estudadas pela narrativa histórica6),

sempre estabelecemos uma quantidade de ações, eventos, situações distribuídas num lugar

e num tempo específico. Contudo, se levarmos até as últimas consequências essa operação, o passado poderia ser desmembrado interminavelmente até o ponto em que não existiriam

seres, corpos, vida orgânica até o “infinito imaginável”. E se, ao contrário, avançássemos no

tempo, rumo ao futuro, possivelmente, o tempo cessaria de correr, de fruir, aberto a novos espaços e mudanças, os quais são virtualidades possíveis. Ao que parece nada impediria do

devir atuar nesse contexto temporal, já que ao compreendermos o tempo como infinito,

as experiências seriam desiguais ou distintas temporal e qualitativamente. Entretanto, Nietzsche, em sua hipótese cosmológica, argui que:

Se é correto que o mundo seja pensado como uma determinada quantidade de força e como um determinado número de centros de força - e toda outra representação permanece indeterminada e, em consequência, no grande jogo de dados de sua existência. Em um tempo infinito toda possível combinação se teria alcançado uma vez, em algum momento; mais ainda, se se teria alcançado infinitas vezes. E posto que entre cada combinação e seu próximo “retorno” hão de ter passado todas as combinações mesmo possíveis em absoluto, e cada uma destas combinações determina a sucessão inteira de combinações na mesma série, com isso estaria demonstrando um ciclo de séries absolutamente idênticas: o mundo como ciclo que já se repetiu infinitamente muitas vezes e que joga seu jogo in infinitum (NIETZSCHE, 2008, p.604-605, tradução nossa).

De acordo com os intérpretes dialogados neste escrito, a perspectiva defendida

pelo filósofo, em sua obra póstuma, expõe que o devir somente se institui na circularidade do tempo e na medida em que se repete (infinitamente) pelas diferenças – impulsionadas

pela Vontade de Poder - pertencentes ao mundo, as suas forças e à própria existência humana, podendo alcançar o seu mais alto grau de diversidade e conflito.

6 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração Intempestiva: Sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

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4.

DELEUZE LEITOR DE NIETZSCHE

Como vimos no início deste trabalho, a meta da nossa é a explicitação das diversas

perspectivas interpretativas referente ao conceito do Eterno Retorno. Assim, se vimos como

as análises do referido conceito nietzschiano é proposto em suas formas ética e cosmológica, por outro lado, enveredaremos nas análises de Gilles Deleuze que apresentará o conceito

a partir de sua obra Nietzsche e a Filosof ia (DELEUZE, 1976) e Nietzsche (DELEUZE, 2001).

Para Deleuze o Eterno Retorno não é concebido enquanto uma doutrina ou mesmo

uma proposta científica, mas, antes por se tratar de um conceito inconcluso, o Eterno Retorno

será o enunciado que supõe a crítica à ideia do estado final ou do equilíbrio das forças. Pois, de acordo com o filósofo da diferença:

Lembremo-nos, notadamente, que o eterno retorno não pode ser considerado como dito ou formulado por Zaratustra; ele é antes ocultado nos quatro livros de Zaratustra. O pouco que é dito não é formulado pelo próprio Zaratustra, mas ora pelo “anão”, ora pela águia e a serpente. Trata-se, pois, de uma simples introdução, que pode mesmo comportar disfarces voluntários (DELEUZE, 2001, p.141-142).

Assim, o filósofo argumenta que a referida crítica se fundamenta exatamente a partir

do entendimento do que significa devir, o qual é o grande elemento diferencial tanto para as ações quanto para o tempo. E, nessa compreensão, Deleuze afirma que, se existe a condição

da infinidade temporal, proposta pelo conceito do Eterno Retorno, ela se dá exatamente

porque o devir nunca poderá ser o devir de algo ou que se deslocará para algo (quer seja um ser ou uma finalidade), ele sempre devém e, inefavelmente, gera as transformações que lhe cabem. Ao compreendermos as experiências temporais pelo devir, vale destacar que, em

nosso tempo presente, quando passamos do momento atual para o passado ou para o futuro, percebemos que essa mesma atualidade não cessa de terminar, o tempo se distende e se diferencia pelo próprio devir, pois de acordo com Deleuze:

A infinidade do tempo passado significa apenas o que o devir não pôde começar do devir, que ele não é algo que se tornou. Ora, não sendo algo que se tornou, também não é um devir algo. Não tendo sido tornado, já seria aquilo que ele se torna e se se tornasse algo. Isto é, o tempo passado sendo infinito, o devir teria atingido seu estado final se tivesse um

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estado final (DELEUZE, 1976, p.33).

Nesse contexto, para Deleuze, o peso argumentativo de Nietzsche sobre as forças

do devir na constituição do tempo se amplia na medida em que o filósofo alemão afirma que se há a possibilidade da inexistência do devir no universo pela permanência e fixidez de toda

realidade, previsivelmente, todo o seu curso temporal se estancaria no ponto de partida –

pois, não haveria mudança do/no tempo. Compreensão que podemos considerar a partir da seguinte proposição de Gilles Deleuze:

O instante atual não sendo um instante de ser ou de presente “no sentido estrito”, sendo o instante que passa,  força-nos apensar o devir, e a pensálo precisamente como o que não pôde começar e o que não pode acabar de tornar-se (DELEUZE, 1976, p.33).

Partindo desta abordagem, o filósofo francês conclui que se o tempo não deviesse,

não existiria passado-presente-futuro, pois para que o tempo se constitua é preciso que o

presente coexista consigo mesmo e que esteja em relação sintética entre o passado e o futuro. Deste modo, Deleuze explica que o Eterno Retorno é a resposta ao problema da passagem temporal do passado ao presente e do presente ao futuro, bem como suas interpelações pela

força do devir. Pois, não é o ser ou tempo que retorna e se repete infinitamente – dando-nos

a equivocada ideia que o Eterno Retorno é o retorno do mesmo -, mas, sobretudo, o tempo ao retornar através das forças do devir que edifica o momento em que o ser se constitui enquanto agente afirmativo do/no devir. E será essa mesma afirmação que nos possibilitará

realizar a passagem do que somos (ou do que identifica o ser) para a diferença do que nos tornamos (ou do que afirma a multiplicidade do ser). Ainda, no contexto exposto, vale

recuperarmos a proposição de Deleuze, a qual afirma que “[...] o eterno retorno deve ser pensado como síntese do tempo e suas dimensões, da diferença e sua repetição, do devir e

do ser que se afirma [no] devir, síntese da dupla afirmação. O eterno retorno depende de um outro princípio que não o da identidade” (DELEUZE, 1976, p.34).

Outro ponto avaliado por Deleuze pode ser contraposto à proposta interpretativa

do Eterno Retorno pelo mecanicismo ou pela via cosmológica e/ou “científica” – explicitada

anteriormente. Para Deleuze, o grande problema da perspectiva científica do Eterno Retorno está vinculado diretamente com a falsa questão do idêntico ou do Estado Inicial/Final do

tempo. Pois, de acordo com o filósofo da diferença, se se aplicarmos essa noção aos escritos

de Nietzsche, veríamos que o ciclo do tempo se repetiria interminavelmente e supondo que nele esteja contido algum grau de experiências determinadas, não ocorreria mudança estrita

entre o Estado Inicial do Tempo para com o seu Estado Final - nem sequer uma única Barbé, Moreno Baêta Neves • O Eterno Retorno de Nietzsche: As Múltiplas Análises de um Conceito • Página 78

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diferença atravessaria o ciclo - a repetição seria de caráter de generalidade e não de diferença (DELEUZE, 2006).

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nosso percurso, apresentamos algumas das principais problematizações

existentes sobre o conceito do Eterno Retorno e as relações interpretativas estabelecidas

pelas perspectivas ética, cosmológica e enquanto uma criação voltada ao território da

diferença pelas forças do devir. Apesar das múltiplas divergências e distinções conceituais, compreendemos que o pensamento de Nietzsche, expresso a partir de sua filosofia, nos permite realizar um exercício analítico de seus conceitos de modo pluralista e instigante; tal como Deleuze explicitará em seu escrito “O Pensamento Nômade”, onde expõe que o discurso

filosófico de Nietzsche é um autêntico aparelho semiótico, o qual está aberto a multiplicação de interpretações e de novos significados:

Nietzsche o coloca muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a esta força. Desta maneira não há problema de interpretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o texto de Nietzsche, procurar com qual força exterior atual ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia (DELEUZE, 1985, p. 61-62).

Assim, as particularidades podem ser reconhecidas nos diversos planos conceituais

expostos, mas, ressaltamos, que todos os caminhos interpretativos (quer seja, em específico, sobre o conceito de Eterno Retorno ou quer seja, de maneira geral, no conjunto da obra de Nietzsche) agenciam o repertório nietzschiano como um modo filosoficamente crítico ao pensamento e vida, os quais nos possibilita refletirmos sobre os aspectos positivos e

negativos da realidade. Permitindo-nos, inequivocamente, quer seja pela ética nietzschiana, pela Vontade de Poder e sua cosmologia ou pelo devir, compreender que o Eterno Retorno

se articulará através da multiplicação interpretativa para torná-lo diferido. E isso significa, também, que o ato de diferir leva o ser que nos constitui à abertura afirmativa das forças do mundo que nos atravessam.

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REFERÊNCIAS

DELEUZE, G. A Ilha Deserta - e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2004. __________. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. __________. Nietzsche. Lisboa: Edições 70, 2001.

__________. Nietzsche e a Filosofia. Trad. Antonio M. Magalhães. Porto: Editora RES, 1976.

__________. O Pensamento Nômade. In: MARTON, S. (org.). Nietzsche Hoje? Colóquio de Cerisy. São Paulo: Brasiliense, 1985 HEIDEGGER, M. Nietzsche – Tomo II. Barcelona: Ediciones Destino, 2000.

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