\"O Evangelho não destrói culturas\". Missão Transcultural Batista entre os índios Xerente do Tocantins

July 14, 2017 | Autor: Patrícia Grigório | Categoria: ÍNDIOS
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“O Evangelho não destrói culturas”. A Missão Transcultural Batista entre os índios Xerente do Tocantins. Patrícia Costa Grigório*

Localizados no município de Tocantínia (TO), a 70km da capital, Palmas, entre os rios Tocantins e do Sono, os índios da etnia Xerente são classificados como Jês Centrais, juntamente com os Xavante e Xakriabá. Vivendo nas terras indígenas Xerente e Funil, estão distribuídos em trinta e quatro aldeias e nas cidades de Tocantínia e Miracema do Tocantins (SCHOEDER: 2010). Apesar das relações estabelecidas entre Xerente e grupos católicos ao longo de sua história de contato com a sociedade circundante, do envolvimento dos indígenas com algumas influências da religiosidade católica (SILVA, 2012) e da atuação das equipes do CIMI que realizam diversas atividades socioculturais, poucos índios desta etnia declaram-se católicos. Este fato deve-se, em grande parte, ao papel desempenhado pela Missão Batista entre os Xerente, iniciada de maneira esporádica a partir de 1936 e que se consolidou a partir de 1950 com a chegada da missionária Anna Muller, da Missão Novas Tribos do Brasil.1 Hoje, a missão está vinculada à Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira,

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que a partir de

1982 formalizou sua atuação entre os Xerente junto à FUNAI (Fundação Nacional do Índio).

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Doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Agência missionária indenominacional, fundada em 1953, tendo como presidente Luiz Monteiro da Cruz. O trabalho da missão começou em 1946 com a chegada ao Brasil dos primeiros missionários da New Tribes Missions dos Estados Unidos a Guarajá-Mirim (RO) com o objetivo de evangelizar os índios Macurapi. Os primeiros índios a receberem missionários foram os Karajá (divisa dos estados do Tocantins e Mato Grosso), Pacaas Novos (Rondônia), Apinajé (Tocantins) e Galibi (Pará). Atualmente, a Missão Novas Tribos do Brasil atua entre 47 etnias das 340 existentes no país. Além do trabalho de evangelização e estabelecimento de igrejas indígenas, a Missão Novas Tribos atua nas áreas de assistência social como saúde, educação e desenvolvimento comunitário. Site Missão Novas Tribos no Brasil – http://novastribosdobrasil.org.br/. Acesso em 27/08/2013. 1

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Agência missionária pertencente à Igreja Batista. Criada em 1907 durante a Primeira Assembleia da Convenção Batista Brasileira ocorrida na cidade de Salvador. O objetivo da agência é o de “unir todas as forças batistas do Brasil, em uma organização nacional maior, para o desenvolvimento e eficácia da pregação do Evangelho de Jesus Cristo”. Sua proposta está baseada no projeto de alcançar grande parte da população brasileira, incluindo os grupos indígenas, plantando novas igrejas, líderes locais e formando novos missionários. A Junta de Missões Nacionais da Igreja Batista atua entre 17 etnias indígenas diferentes e, além da evangelização destes povos, fornece auxílio nas

Ao longo dos últimos cinquenta anos, a Missão Batista entre os Xerente está ligada à atuação e presença dos missionários Guenther Carlos Krieger e Rinaldo de Mattos. Estes pastores substituíram os antigos missionários batistas após terem concluído cursos de linguística realizados pelo SIL (Summer Institute of Linguistics, hoje denominado no Brasil, de Sociedade Nacional de Linguística) e estiveram vinculados à Missão Novas Tribos do Brasil, que encerrou suas atividades entre os Xerente, em 1988. Atualmente, existem dois núcleos de “crentes batistas” entre os Xerente, localizados nas aldeias Porteira e Salto. Cada “igreja” tem seu próprio dirigente indígena e realiza seus próprios cultos. Outros núcleos de “crentes indígenas” e suas “igrejas” se desfizeram – os das aldeias Brejo Comprido, Cabeceira da Água Fria, Brejinho e Rio do Sono – e seus integrantes ficaram dispersos. Estes missionários inauguraram a presença de um novo tipo de atuação religiosa entre os índios iniciando um processo de alfabetização e escolarização com a produção de materiais didáticos na língua materna e preparo dos primeiros professores indígenas. Seguindo as orientações teóricas e metodológicas do SIL, centrada na estreita relação entre educação escolar e evangelização, os missionários produziram diversas obras na língua Akwe (língua materna dos Xerente) como os trabalhos feitos pelo pastor Guenther em conjunto sua esposa, Wanda Braidott. Caracterizada como uma missão transcultural, o maior objetivo dos missionários batistas que atuam entre os índios Xerente é decifrar a cultura e a língua indígena possibilitando uma tradução adequada da Bíblia e dos conceitos cristãos, gerando condições para a conversão dos índios. Ronaldo de Almeida define as missões transculturais como sendo aquelas formuladas em seminários evangélicos nas quais são ensinadas antropologia e linguística, além de conhecimentos técnicos como de enfermagem e pedagogia, que facilitam a entrada dos missionários entre os índios. A “transculturação” missionária passa pela tradução cultural da religião evangélica para a cultura indígena e para essas missões “povo, cultura e língua são entendidos como equivalentes e sua missão é difundir o Evangelho visando não a quantidade de pessoas, mas a variedade cultural e linguística” (ALMEIDA, 2006:280).

áreas de saúde e educação. Site da Junta de Missões Nacionais – http://www.missoesnacionais.org.br/index.asp. Acesso em 27/08/2013.

Este texto tem como objeto realizar alguns apontamentos acerca do processo de tradução cultural da mensagem evangélica para cultura indígena apresentado no documento "O Evangelho não destrói culturas", uma conferência proferida pelo missionário Rinaldo de Mattos na Terceira Igreja Batista de Brasília. Seu discurso tem por objetivo provar que, apesar das críticas direcionadas ao trabalho de evangelização dos índios no Brasil sob a justificativa de que “os missionários destroem a cultura, o Evangelho destrói a cultura, o cristianismo destrói a cultura” (MATTOS, 2008), a disseminação da mensagem evangélica pelas missões transculturais não interfere na cultura indígena e nem na identidade étnica dos indivíduos.

“O Evangelho não destrói culturas” A expansão das ações missionárias evangélicas entre os índios, que vem conquistando diversos espaços antes ocupados pela Igreja Católica, tem sido por vezes alvos de críticas de antropólogos e agências governamentais, que acusam essas missões

de interferirem e

provocarem modificações na cultura indígena. A conferência proferida pelo pastor Rinaldo de Mattos, que tem por objetivo provar que quando se propaga o verdadeiro Evangelho entre as populações indígenas, a cultura autóctone não é atingida de maneira negativa já que a mensagem evangélica valoriza todas as formas de cultura.3 Os argumentos utilizados pelo missionário para rebater as críticas e comprovar sua tese passam pela via tanto religiosa como científica. A ciência linguistica é uma ferramenta bastante utilizada pelos missionários transculturais com o objetivo de conferir cientificidade à tradução da Bíblia para a língua nativa. Além disso, as agências missionárias oferecem cursos de Antropologia aos missionários, que é utilizada como um instrumento de “aferição cultural”, sendo o principal objetivo estabelecer uma ponte entre esta e a Missiologia, conciliando os temas 3

Em sua fala, o missionário identifica a existência de outros Evangelhos - “desfigurados, até esdrúxulos” - que “destroem culturas, agridem a integridade da pessoa humana”. A distinção entre Evangelho verdadeiro e falso está provavelmente relacionada às disputas existentes entre as correntes evangélicas pela conversão dos índios. No caso dos Xerente, após anos de atuação da missão batista, uma outra igreja protestante de caráter pentecostal – a Congregação Cristã do Brasil - estabeleceu templos nas aldeias e tem conquistado um significativo número de fiéis entre os índios desta etnia. Esta situação tem causado desconforto entre os missionários batistas, que relacionam a ação desta igreja às alterações ocorridas na organização faccional dos Xerente.

da antropologia como “instrumentos que visam expor um Evangelho fundamentado biblicamente, de forma comunicável, compreensível e aplicável em um determinado contexto cultural” (LIDÓRIO: s.d, 13). O ensino padrão da antropologia oferecido aos missionários entende a cultura como articulação de cinco dimensões da vida social: o controle da natureza para suprir as necessidades materiais; a cultura material como manifestação artística e/ou expressão religiosa de um povo; a existência dessa sociedade produtora em função da organização das relações sociais incorporadas na tradição de um grupo, como as famílias e a política; a maneira como o homem se comporta frente a um código moral e o entendimento dos mitos como expressão oral de um universo sobrenatural e dos ritos como uma via de acesso à “cosmovisão indígena” (ALMEIDA: 2004, 4142). O primeiro argumento para validar a tese proposta pelo missionário na sua conferência tem caráter religioso: “o Evangelho foi justamente projetado por Deus para ser uma benção a todas as famílias da Terra” (MATTOS:2008). Está no livro de Gênesis como também nas cartas aos Gálatas. É uma profecia bíblica. E se ele foi projetado para ser uma benção, “não tem como o Evangelho destruir culturas, agredir culturas, aviltar culturas. Porque ele foi projetado desde o inicio para ser uma benção a todas as culturas, a todos os povos do mundo, a todas as línguas, a todas as nações” (MATTOS:2008). A missão transcultural trabalha com a existência de um conteúdo universal que se manifesta de maneira explícita ou implícita em qualquer cultura. Dentro deste contexto, o segundo argumento parte do princípio de que o Evangelho bíblico é considerado de natureza supracultural e atemporal, está acima de toda e qualquer cultura já que lida com “experiências, necessidades, expressões humanas que são universais” e que “fazem parte da estrutura do ser humano em todas as culturas, em todos os lugares” (MATTOS:2008). Entre as necessidades humanas, além das físicas e biológicas, está a busca do transcendental, a busca de um sentido para a vida “que é também fenômeno universal de cultura” (MATTOS:2008). Por este motivo, ele é viável e comunicável para todos os homens em todas as culturas, em todas as épocas. O terceiro argumento que contribui para a comprovação de que a pregação do Evangelho não destrói a cultura receptora é a sua transculturalidade, a sua “versatilidade de passar de uma

cultura para outra sem perder o seu significado” (MATTOS:2008). Segundo o missionário, o texto das Escrituras Sagradas possui duas configurações: a configuração primária – que trata dos “valores do Reino de Deus, aplicando-se a todos os povos da Terra” (MATTOS:2008) – e a configuração secundária – que está relacionada às realidades humanas, aplicando-se somente aquele povo específico onde o Evangelho foi anunciado e, no caso, escrito. Na sua configuração primária, ele é imutável, inegociável, está imbuído de uma teologia que não pode ser substituída. Na sua configuração secundária, por estar relacionado aos costumes de um povo, de um determinado tempo, ele é cambiável e pode ser substituído sem prejuízo de significado. Seguindo esses pressupostos, a tradução da mensagem bíblica para os índios passa por uma adaptação cultural, que é pegar o texto bíblico, que está envolvo em uma outra cultura e passar seu significado para a cultura para qual se pretende transmitir a mensagem. É o que se chama de tradução dinâmica, onde o que se pretende traduzir é o significado da mensagem, tarefa que a tradução literal não é capaz de fazer. Segundo o pastor Rinaldo de Mattos, para uma boa tradução da Bíblia e transmissão da mensagem cristã para a cultura e língua indígena, a tarefa do missionário é reinterpretar a cosmologia indígena e “desculturalizar” o evangelho da matriz judaico-cristã. E para realizar esse tipo de trabalho se faz necessário uma vivência contínua nas sociedades indígenas e uma imersão na cultura local visando um conhecimento que viabilize a melhor tradução do universo cristão. Então, primeiro vamos pegar aquela expressão tão conhecida nossa: Jesus é o bom pastor. (...) Mas essa figura “Jesus, o bom pastor” foi tirada da vida pastoril do povo judaico. Se você está trabalhando numa tribo indígena que eles nunca viram uma ovelha, são povos caçadores e coletores de víveres... Os Xerente, por exemplo, se você fala de vaca, de ovelha, de bode e de cabrito, você está falando daquelas espécies de animais que foram lá levados pelos invasores, pelos criadores e espantaram a caça que é do índio, de propriedade do índio. De modo que o índio Xerente tem uma aversão bem grande contra a vaca. Todos os termos dados para vaca lá são termos pejorativos. Então, chegando lá dizendo que Jesus é o bom pastor não disse nada. Agora, o que este texto está dizendo na sua configuração primária: este texto está dizendo que Jesus é aquele que cuida de nós. Isso você pode traduzir em toda a cultura do mundo. Jesus é aquele que cuida de nós – não existe língua no mundo onde você não possa traduzir isso (MATTOS:2008).

Seguindo essa mesma lógica, diversas mensagens bíblicas sofreram adaptação cultural de modo que a mensagem que se pretendia transmitir fizessem sentido para os Xerente. Desta

maneira, o termo Jesus é rei foi traduzido para Jesus é o cacique, Jesus é o tuxaua, Jesus é o uaumorubixaba; Jesus é senhor para Jesus é aquele que dá as ordens e nós somos aqueles que obedecem; o crente é soldado para o crente é guerreiro; a palavra de Deus é como espada para a palavra de Deus é como flecha; A candeia não pode ser posta debaixo do alqueire para a palavra de Deus não pode ser escondida debaixo da cuia. Desta maneira, fez-se a adaptação cultural: transmitindo o “significado do Evangelho sem agredir a cultura” (MATTOS:2008). A missão transcultural parte do pressuposto de que toda sociedade acredita em um ser superior a quem devem temer e adorar assim como na existência de um conteúdo universal que se manifesta de maneira explícita em qualquer cultura. Desta premissa, parte um dos mais fortes argumentos utilizados pelo missionário para comprovar a tese de que o Evangelho não destrói as culturas indígenas: que “na sua própria cultura os povos estão clamando pelo Evangelho” (MATTOS:2008). Para atender esse clamor, faz-se necessário um profundo conhecimento da cultura nativa para encontrar nela a ideia de Deus e o que se denomina analogias de redenção. No caso dos índios Xerente, os sinais da cultura que possibilitaram ao missionário identificar as analogias de redenção a partir da qual se poderiam transmitir a mensagem evangélica foram localizados nos mitos Xerente, especialmente, na lenda da morte e a na lenda das viagens para o céu. Foi a partir da análise destas duas lendas que os missionários batistas estabeleceram relações entre o universo mítico indígena e o universo cristão promovendo uma sobreposição de cosmologias. A analogia de redenção localizada na cultura Xerente foi denominada messianismo existencial Xerente pelo missionário Rinaldo de Mattos, um tipo especial de messianismo que diferente da definição antropológica - que o identifica como um movimento histórico de caráter religioso vivido por um determinado grupo e localizado num determinado tempo e espaço possui uma configuração mais universal e está embutido na própria cultura de qualquer povo. Esse messianismo é existencial porque, (...) mesmo não se expressando em movimentos surgidos no tempo e no espaço, ele faz parte da crença de cada povo, determina a sua visão de mundo, sua filosofia de vida, sua índole, seu comportamento, e é exteriorizado, ainda que sutilmente, nos momentos apropriados, de modo absolutamente observável (MATTOS, 2009).

A lenda da morte conta que Bdâ – o Sol – também conhecido por Waptokwa Zawre (nosso pai grande), vivia na Terra no início dos tempos. Ele andava acompanhado por seu amigo Wairê – a Lua. Um dia, Bdâ perguntou a Wairê como fariam para estabelecer o destino de seus filhos, o povo Xerente. E ele mesmo explicou como fariam: pegou um talo de buriti e jogou na água. O talo submergiu e Bdâ disse: - “É assim que vai ser com nossos filhos: eles vão morrer, mas vão tornar a viver”. Mas Wairê, o Lua, discordou e disse: - “Não, assim não presta. Porque nossos filhos vão morrer, aí eles vão tornar a viver, aí a Terra vai ficar cheia de gente e a caça não vai dar para todo mundo e o que vai acontecer? Eles vão comer uns aos outros. Então é melhor assim...” E pegou uma pedra e jogou na água, a pedra afundou e não voltou a submergir. Essa lenda, segundo o missionário explica o caráter fatalista dos Xerente: “jogou a pedra, a pedra ficou, a gente morre, não volta mais, não existe a reedição, não existe resgate, não tem como solucionar. Morreu e acabou. É por isso que quando morre um índio choram com um lamento triste e cortante”

(MATTOS:2008). E nesta parte, ele identifica a primeira analogia de redenção da cultura Xerente que é “a aspiração pela vida eterna, para vencer a morte, viver para sempre” (MATTOS:2008). A lenda das viagens para o céu conta que Bdâ e Wairê, após passarem um tempo sobre a Terra dando aos índios tudo o que eles precisavam, resolveram ir embora. Chamaram os Xerente para comunicarem a decisão e entoando o cântico da subida se instalaram na borda celeste. Passado um tempo, os índios se sentiram saudosos de seu deus e saíram em caravana para visitálo. Chegaram então ao que eles chamam de pé do céu – na linha do horizonte - e esperando o sol nascer, subiram com ele. Passaram muitos dias conversando, matando as saudades e voltaram. Depois desta caravana, muitas outras se seguiram. Um dia, quando uma caravana retornava à Terra, Bdâ deu a ordem: -“ Quando descerem, não olhem para trás”. Mas, assim que tocaram os pés na terra, todos os índios olharam para trás. Então, o sol se afastou indo nascer além do oceano. Como os Xerente não sabiam fazer canoas, ficaram impossibilitados de alcançarem o pé do céu e nunca mais puderam estar com Bdâ. A identificação do messianismo existencial Xerente pelo missionário não se deu pela audição, registro e tradução das lendas, mas através da observação da reação dos índios nos momentos em que estas lendas eram contadas pelos anciãos. Em todas as ocasiões quando as

lendas eram contadas, uma mulher Xerente interrompia a história. No caso da lenda da morte, toda vez que o narrador chegava na parte em que a Lua pegou a pedra e jogou na água, uma mulher Xerente interrompia e questionava: “Ah, porque que foi jogar aquela pedra? Se não tivessem jogado aquela pedra até hoje nós estávamos vendo aqui os nossos parentes que morreram! Se não tivesse jogado aquela pedra, quando um parente nosso morre a gente não precisava chorar muito, porque logo ele ia voltar outra vez!”(MATTOS:2008).

E nas ocasiões quem se narrava a lenda das viagens para o céu, a interrupção sempre ocorria quando a história chegava no ponto em que os índios haviam desobedecido a ordem de Bdê e olhado para trás. Uma vez, uma mulher Xerente, ao interromper o ancião, exclamou em português: - “Eita, mas índio é besta! Não sei porque que foi olhar para trás! Se não tivessem olhado para trás até hoje nós estava subindo lá para visitar nosso pai grande!”(MATTOS:2008). Essas interrupções forneceram subsídios para a identificação do messianismo existencial Xerente - caracterizado como aquele sentimento que não queria que as coisas fossem daquele jeito, queriam que fosse como era primeiro, queriam voltar para o paraíso, queriam voltar para a era mitológica quando Deus estava aqui. (...) O anseio pela vida eterna, o anseio pela ressurreição, o anseio pela comunhão com Deus, o anseio pelo transcendental (MATTOS:2008).

Esta identificação, por sua vez, possibilitou não somente o estabelecimento de relações entre a cosmologia cristã e indígena como também a definição de uma mensagem evangélica - a promessa cristã de vida eterna - que melhor pudesse atender aquilo para que para os missionários entendiam que são os maiores anseios e necessidades daquela comunidade indígena. Por esse motivo, para o missionário a mensagem evangélica pregada entre os Xerente que diz que “Jesus é o ressuscitador” não é “alienígena”, não é uma novidade para a cultura indígena, ela é uma resposta para os “anseios que estão aí no próprio coração deles” (MATTOS:2008). Por este motivo, os índios foram capazes de compreender, interiorizar e reproduzir a mensagem. E eles só puderam compreender e aceitar porque no trabalho missionário não há a substituição de uma cultura por outra, mas uma reformulação.

Quando o pastor Gunther estava traduzindo o Novo Testamento para o Xerente, nós ficamos muito, discutimos muito se íamos usar para Deus o termo Waptokwa Zawre, que é o termo que eles usam lá para Deus. Mas é o termo para pai também e para qualquer pessoa dignatária, que prestou um bom serviço para a comunidade – eles chamam de Waptokwa Zawre. Waptokwa Zawre vem do verbo pto, que é gerar. Quando você planta uma semente, quando ela brota, ela fez pto. Wa, primeira pessoa possessivo. Waptokwa, kwa é instrumentalizador humano, tipo salvar- salvador, remar-remador. Então, Waptokwa é aquele que nos gerou, aquele que nos criou. E Waptokwa Zawre grande é referência a Deus. A gente pensou: - “Mas agora, o que a gente vai fazer?” Quando a gente falar de Deus vai deixar a mente deles ir naquele Waptokwa Zawre, naquele Bdê das lendas? No início, parecia para nós que era mal, né? Mas nós descobrimos que através do processo de reformulação, os nossos crentes, os nossos lideres, pregadores do Evangelho lá, eles associaram as duas coisas que ficaram com a idéia de que Deus esteve aqui no mundo e queria bem o povo Xerente. Depois ele subiu e está lá, agora ele sabe que vai voltar. Então eles começaram a reformular e começaram a aumentar e crescer a idéia de Waptokwa Zawre (MATTOS:2008).

Este argumento encerra e fecha o argumento utilizado pelo missionário Rinaldo para comprovar que a transmissão do Evangelho cristão não destrói a cultura autóctone.

O

missionário reconhece que o “Evangelho de alguma forma muda a cultura. Mas muda dentro de um processo de reformulação que é um processo reconhecido pela própria Antropologia” (MATTOS:2008). Os índios, ao receberem a mensagem cristã estabelecem relações com seu conhecimento do mundo e sua cosmologia reformulando e readaptando esta mensagem, assim como fizeram com a correspondência entre Waptokwa Zawre e o Deus cristão e a introdução de Jesus dentro da cosmologia indígena, sendo aquele ator capaz modificar sua concepção fatalista sobre a morte. A utilização da cultura indígena e o reconhecimento de que os índios possuem um conhecimento que não deve ser descartado no processo de tradução da mensagem evangélica demonstram que há uma valorização desta pelas missões transculturais.

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