O EXÍLIO COMO MORADA DA LITERATURA

July 3, 2017 | Autor: Marco Scapini | Categoria: Roland Barthes, Jacques Derrida, Literatura, Filosofía, Literatura Del Exilio
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O EXÍLIO COMO MORADA DA LITERATURA Marco Antonio de Abreu Scapini1

A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir esta distância que a literatura nos importa2 (BARTHES).

O dizer literário faz pulsar a sutileza da vida desde os escombros que a ciência pretende escamotear. A grosseria da ciência fez da linguagem mero instrumento a serviço de suas ambições, tornando-a opaca por assim dizer. Para Derrida é “entre a carne demasiado viva do acontecimento literal e a pele fria do conceito que corre o sentido3”. Neste sentido, a linguagem se tornou serva de uma instituição científica, petrificando-se por um tempo que não acontece, o que significa dizer que suspende a carne viva do acontecimento, mantendo tão somente a frieza do conceito. Esta asfixia imposta pela ciência implica em sua própria grosseria, perdendo o fundamental da existência, ou seja, a sua sutileza. É justamente para corrigir esta distância que a literatura se apresenta aqui. A sutileza sugerida por Barthes e que se pretende resgatar em relação à vida implica na crítica ao poder. Mas em uma crítica para além da “inocência” moderna, pois segundo Barthes “o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social”4. O que significa que o poder está para além de qualquer dicotomia, perpetuando-se historicamente, o que demonstra a sua presença e a sua pluralidade. De algum modo, opera silenciosamente nestes finos mecanismos de intercâmbio social, fazendo com que absorva inclusive uma possível revolução, mantendo-se presente no novo regime de coisas. Esta pluralidade dificulta o ataque crítico, na medida em que o poder, assim estabelecido, resiste. Para Barthes “a razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligada a história

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Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS). 2 BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: Cultrix, 2013, p. 19. 3 DERRIDA, Jacques. Edmond Jabès e a questão do livro. In: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva; Pedro Leite Lopres; Pérola de Carvalho. 4º ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 105. 4 BARTHES, Roland. . Op. Cit. p. 11. 1

inteira do homem, e não somente a sua história política, histórica”5.

Assim, a

resistência deste poder parasita se perpetua, parafraseando Derrida, pelo roubo da palavra soprada6. Em outras palavras, para Derrida, “o roubo é sempre o roubo de uma palavra ou de um texto, de um rasto”7. A subtração da palavra, ou do texto se quisermos, é o que constitui e faz se inscrever o poder como parasita, justamente, da história do texto. Assim, o que faz o poder resistir permanentemente e o que permite o poder se inscrever ao longo da história da humanidade é, segundo Barthes, a linguagem, aqui compreendida mais precisamente como língua. Para Barthes “a linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva”8. O não-observar ou o nãoperceber o poder que reside na língua pelo esquecimento de que toda língua é classificação pode também significar que o processo de naturalização desta língua se realizou. Ou seja, ao naturalizar o poder próprio da língua, fazendo-se esquecer a opressividade desta própria língua, neste instante, há a repetição da estrutura da palavra roubada. Todo código e toda legislação implicam, de algum modo, num golpe de força. O esquecimento desta dimensão faz com que o poder silenciosamente se mantenha presente. A questão fundamental que aqui nos aparece é, justamente, a impossibilidade de localizar a captura ou o roubo da palavra. Para Derrida:

A estrutura do roubo aloja-se na relação da palavra à língua. A palavra é roubada: roubada à língua, é-o portanto ao mesmo tempo a si própria, isto é, ao ladrão que sempre perdeu a propriedade e a iniciativa. (...) Que a palavra e a escritura sejam sempre inconfessadamente tiradas de uma leitura, tal é o roubo originário, o furto mais arcaico que ao mesmo tempo me esconde e me sutiliza o meu poder inaugurante9.

A estrutura do roubo, por assim dizer, observa uma lógica quase totalizante, ou, uma rede textual que quase oblitera a possibilidade do dizer da palavra sem que esteja já capturado. Nesta estrutura opressiva da língua, a violência naturalizada pelo esquecimento da própria opressão não consiste em uma obliteração do dizer, mas sim de obrigar a 5

BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 12. Cf. DERRIDA, Jacques. A palavra soprada. In: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva; Pedro Leite Lopres; Pérola de Carvalho. 4º ed. São Paulo: Perspectiva, 2009, pp. 249-292. 7 DERRIDA, Jacques. A palavra soprada, p. 258. 8 BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 13. 9 DERRRIDA, Jacques. A palavra soprada. p. 262 2 6

dizer. Somos obrigados a dizer nos exatos termos da legislação que é a linguagem e, ainda, segundo os parâmetros do código já estabelecido que é a língua. Temos aqui uma administração do dizer, da possibilidade do dizer. Nesse sentido, Barthes afirma que “por sua própria estrutura, a linguagem implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada10. Assim, a língua nunca é somente aquilo que é dito. Mesmo uma língua dominadora terá sempre a ressonância de vozes emudecidas, para parafrasear Benjamin. Desta maneira, falar não pode ser apenas comunicar. Mas é justamente o que o poder parasitário do poder pretende dizer. Trata-se desta relação própria de alienação que estrutura a língua. Se falar é sujeitar como sugere Barthes, o processo de sujeição ou de assujeitamento, como refere Agambem11, já está inscrito no âmago da língua. Também é, por assim dizer, um roubo originário, um furto arcaico que sutiliza o meu poder inaugurante como afirmou Derrida. É neste sentido que Barthes sugere que a língua está sempre a serviço de um poder. Para Barthes “a língua, como desempenho de toda a linguagem, não é nem reacionária, nem progressista, ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer’12. Nesta lógica ou estrutura, quando se faz uma afirmação já há a contaminação de um poder. Ainda nesta estrutura, mas em outro sentido, só se faz a afirmação com base nos signos que compõem uma língua. Estes signos, portanto, devem a sua existência ao reconhecimento que possuem da língua e se lançam pela língua. O signo, então, tem seu reconhecimento desde que reconhecido. A língua, desta maneira, enclausura os signos que fazem a própria língua. Para Barthes: O signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua. Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento em repetir o que foi dito, com alojar-me confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito13.

A questão, portanto, é como conseguir sair deste fechamento determinado pela língua. Trata-se também da possibilidade de transgressão para além dos limites

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BARTHES, Roland. Op. Cit. pp. 13-14. AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?. In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 47. 12 BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 15. 13 Idem. Op. Cit. pp. 15-16. 3 11

impostos pela linguagem, desalojando-se do conforto da servidão dos signos. Trata-se de uma certa explosão. Para Derrida:

A palavra proferida ou inscrita, a letra, é sempre roubada. Sempre roubada. Sempre roubada porque sempre aberta. Nunca é própria de seu autor ou do seu destinatário e faz parte da sua natureza jamais seguir o trajeto que leva de um sujeito próprio a um sujeito próprio. O que significa reconhecer como sua historicidade a autonomia do significante que antes de mim diz sozinho mais do que eu julgo querer dizer e em relação ao qual meu querer dizer, sofrendo em vez de agir, se acha em carência, se inscreve, diríamos nós, como passivo. Autonomia como estratificação e potencialização histórica do sentido, sistema histórico, isto é, em alguma parte aberto. A sobre-significância sobrecarregando a palavra “soprar”, por exemplo, não deixou de ilustrar 14.

A lógica sugerida por Barthes de que na língua há uma confusão entre poder e servidão, pode ser aproximada à referência exposta por Derrida sobre estrutura da palavra roubada. A palavra é sempre roubada e, ao mesmo tempo, sempre aberta. Significa dizer que na palavra existe a chance da abertura. É próprio da palavra a infidelidade ao seu autor. Assim como, por natureza, não se deixa seguir, não deixa plenamente o trajeto que leva de um sujeito próprio a outro. Deste modo, a historicidade da palavra é marcada pela autonomia sobre o sujeito. O que significa que a palavra diz antes de mim, antes daquilo que eu posso pretender querer dizer. Em contrapartida, é justamente esta autonomia do significante que dá a possibilidade de construção do sentido, pois, como sistema histórico é, em alguma parte, aberto. Não fosse sua autonomia, estaria presa ao seu autor ou ao seu destinatário. Na leitura derridiana sobre o texto de Artaud, a palavra “soprar” é, justamente, exemplo de sobre-significância que sobrecarrega a palavra e que não se deixa ilustrar. Há, portanto, inelutavelmente, uma perda e uma desapropriação, cuja oposição é uma boa inspiração, que falta ao meu querer dizer anteriormente referido. Segundo Derrida: A esta inspiração de perda e de desapropriação opõe uma boa inspiração, aquela mesma que falta à inspiração como carência. A boa inspiração é o sopro da vida que não deixa que nada lhe seja ditado porque não lê e porque precede qualquer texto. Sopro que tomaria posse de si num lugar em que a propriedade não seria ainda um roubo15.

Esta boa inspiração é o sopro da vida, que resiste a qualquer texto, justamente, porque é anterior ao texto e porque não lê. Sopro este livre, pois sua posse se dá num lugar onde a estrutura do roubo ainda não está esquematizada. Nesse sentido, o sopro da 14 15

DERRIDA, Jacques. A palavra soprada. p. 262. DERRIDA, Jacques. Op. Cit. p. 262. 4

vida é o sopro que possibilita a abertura da linguagem. Quando falamos em vida, não estamos falando no sentido biológico, é preciso ir além, aproximar-se desta boa inspiração para se ter acesso a esta metafísica da vida. Assim, diz Derrida “a vida ‘reconhecida pelo exterior dos fatos é portanto a vida das formas” 16. E a vida das formas nada tem a ver com o sopro da vida. A vida das formas é secundária, já está capturada pela estrutura do roubo, ou seja, da linguagem por assim dizer. Nesse sentido, Derrida é bastante próximo a Barthes ao afirmar que “a escrita não passa de um significante de um significante, ela é naturalmente deposta, secundária, auxiliar, tem o estatuto de um escravo em relação a um senhor; ela tem também um valor de morte”17. A vida das formas se dá pela escrita, o que faz dela, nesse sentido, morta. Assim, a vida das formas é uma vida escravizada na linguagem. Em contrapartida, o sopro da vida, esta boa intuição de que fala Artaud, está por se encontrar na sutileza do viver, ainda não apreendida pela linguagem. Para Barthes “infelizmente, a linguagem é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível”18. Desta maneira, por ser a linguagem um lugar fechado, somente encontraremos a saída rompendo a lógica do possível, ou seja, numa travessia rumo ao impossível. Esta travessia exige improviso, pois a sutileza do viver poderá, aí sim, aparecer inesperadamente. Para Derrida “a improvisação consiste em avançar sem ver o avanço, sem ver previamente, sem pré-ver”19. A irrupção da pré-visão é o que faz do avanço um caminho cego. E é, justamente, a cegueira própria da improvisação que poderá construir um avanço ou uma nova trilha. No mesmo sentido que pretendemos suscitar aqui, ou ainda, fazer soprar o pulsar do viver, desde uma improvisação que avança às cegas, Theodor Adorno parece ter construído um estilo – ensaio como forma – para além das formas propriamente ditas, rompendo, por assim dizer, com a estrutura opressiva da linguagem de que falávamos acima. Assim, diz Theodor Adorno:

O ensaio tem a ver, todavia, com os pontos cegos de seus objetos. Ele quer desencavar, com os conceitos, aquilo que não cabem em conceitos, ou aquilo que, através das contradições em que os conceitos se enredam, acaba revelando que a rede de objetividade desses conceitos é meramente um arranjo subjetivo. Ele quer polarizar o opaco, liberar as forças aí latentes20. 16

DERRIDA, Jacques. A palavra soprada. p263. DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012, p. 78. 18 BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 16. 19 DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. p. 68. 20 ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2003 , p. 44. 5 17

Nesse sentido, é desde a linguagem que o ensaio se constrói, num esforço sem limites, para desencavar com os conceitos aquilo que extrapola o limite do conceito. Ao se relacionar, justamente, com os pontos cegos de seus objetos, coloca em questão o próprio limite do visível. O que nos permite dizer que, o ensaio - como formaimprovisa o manejo da rede conceitual para liberar as forças latentes dos pontos cegos dos seus objetos. É também – o ensaio – uma forma de fazer soprar o sopro da vida. A invisibilidade ou a cegueira organizam as possibilidades da visão. O que faz da visão sempre algo condicionado por um ponto de vista e por cegueira. Segundo Derrida:

O ponto de vista é a perspectiva, isto é, a visão do olhar que, ao pôr em perspectiva, seleciona. Falar de perspectivismo é dizer que sempre vemos as coisas, que sempre interpretamos as coisas de certo ponto de vista, segundo um interesse, recortando um esquema de visão organizado, estruturado, hierarquizado, um esquema sempre seletivo que, consequentemente, deve tanto ao enceguecimento quanto à visão. A perspectiva deve ficar cega a tudo o que está excluído da perspectiva; para ver em perspectiva é preciso ficar cego a todo o resto; o que acontece o tempo todo21.

O ponto de vista, portanto, é sempre parcial. A perspectiva desta visão é sempre seletiva. Para ver é preciso esquematizar a visão desde estruturas e hierarquias já estabelecidas por um ponto de vista. Este recorte que permite o visível deve ficar cego a tudo o que deste esquema resta excluído. Nesse sentido, diz Derrida o seguinte: “o que torna visíveis as coisas visíveis não é visível, dizendo de outro modo, a visibilidade, a possibilidade essencial do visível não é visível”22. Dede esta perspectiva, podemos afirmar que o que está em questão é a relação entre o visível e o invisível. De algum modo, as coisas resistem à visão. Além disso, esta relação transborda qualquer possibilidade de domínio pelo conhecimento. Segundo Ricardo Timm de Souza:

Relação vai além do conhecimento. Relação está antes do conhecimento; relação também pode até mesmo ser conhecimento, mas relação não se define pelo conhecimento. Ninguém considerará que sua apreciação de uma obra de arte, que a relação que estabelece com uma obra de arte, um quadro, uma composição musical, ou uma poesia, ou uma grande obra literária, se dá porque conhece; apenas considera, muito lucidamente , que, em conhecendo , estabelece uma relação23. 21

DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. p. 73. Idem. Op. cit. p. 82. 23 SOUZA, Ricardo Timm de. Ética como fundamento: Uma introdução à ética contemporânea. São Leopoldo: Nova Harmonia, p. 42. 22

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A relação, portanto, está além e antes do conhecimento. Nesse sentido, o próprio viver pode ser entendido como relação. A relação, seja ela qual for, é relação com o outro. É importante ressaltar que a relação transborda a qualquer pretensão de síntese. Desta maneira, a relação se dá na experiência. E é justamente aí que Derrida propõe um conceito de rastro ou de texto que não se define pela escrita, quando afirma o seguinte: O rastro é a própria experiência, em toda parte onde nada nela se resume ao presente vivo e onde cada presente vivo é estruturado como presente por meio da remissão ao outro ou à outra coisa, como rastro de alguma coisa outra, como remissão-a. Desse ponto de vista, não há limite, tudo é rastro. (...) Eu disse que tudo é rastro, que o mundo era rastro, que este gesto é rastro, que a voz é uma escrita, que a voz é um sistema de rastros, que não há fora-do-texto, e que não há nada que bordeje de algum modo, do exterior, essa experiência do rastro.24.

O rastro é a própria experiência. A experiência do rastro estrutura cada presente vivo por remissão a outra coisa. O rastro como experiência nesse sentido é sempre uma experiência para além da presença. Para Derrida “a experiência é justamente não a relação presente com o que está presente, mas a viagem ou a travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde a vinda do outro”25. A travessia, portanto, se dá como experiência na medida em que transborda a relação presente. Experimentar a experiência é relacionar-se para além do horizonte, onde não posso ver, ou, pré-ver. A travessia ou a viagem exigem este risco, não há viagem sem perigo. Esta é a única chance para o acontecimento em sentido derridiano. Nesse sentido, a experiência do pensamento também é uma travessia, ou seja, uma relação com outro. Trata-se de uma viagem sem previsão. Segundo Derrida: A experiência do pensamento é uma experiência sem carta ou mapa geográfico, uma experiência exposta ao acontecimento no sentido que precisei há pouco, isto é, à vinda do outro, do radicalmente outro, do outro não apropriável. Quando se está em relação com o outro, quer se trate de um quem ou de um quê, quando se está em relação com outro cuja própria prova consiste em fazer a experiência do fato de que o outro não é apropriável, há aí experiência: não posso assimilar o outro a mim, não posso fazer do outro parte de mim mesmo, não posso capturar, tomar, apreender, não há antecipação. O outro é inantecipável. Estamos lidando com outro conceito de experiência, diferente daquele que permanece dominado pelo ente enquanto ente (ente quer dizer presente)26.

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DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. p. 79. Idem. Op. cit. p. 80. 26 Idem. op. cit. p. 80. 25

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Esta travessia do impossível, incalculável por assim dizer, nos dá a chance de abertura do próprio fechamento da linguagem que referimos acima com Barthes. Pois, esta abertura só se dá pelo preço do impossível. Assim como Adorno faz referência ao fato de que os conceitos se tornam mais preciosos conforme as relações que engendram entre si27, Barthes suscita a necessidade de se trapacear com a língua, afirmando que “essa trapaça, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura”28. A literatura, portanto, desde o modo como estamos tentando apresentá-la, pode pela trapaça que a constitui revolucionar permanentemente a linguagem. Faz a sua travessia desde o âmago da linguagem, abrindo espaços de liberdade e permitindo ouvir a língua fora do poder. A entrega à escrita faz quem escreve mergulhar num abismo, cujo destino é imponderável e incerto. Para Ricardo Timm de Souza: Quem escreve com vigor e pertinácia, perseverança e ansiedade, sinceridade e energia concentrada, cuidado extremo e extrema coragem, despossuindo-se no ato de se entregar, pela escrita, à imponderabilidade de um destino aberto, esse sulca pequenas mensagens de estranha esperança, que encerra então delicadamente nas garrafas que serão lançadas no mar da incerteza. A verdadeira escrita é o mais pungente testemunho de deflação narcísica; não pode se dar onde o estilo é conspurcado pela menor das manchas de puro subjetivismo. A capacidade de suportar o externo que se coagula em obra escrita é rara; em um mundo no qual a sombra da indústria cultural a tudo ameaça cobrir, um universo da banalização e da mediania – do “ culto do barato ” –, no qual ghostwriters pululam em uma agitação frenética e as palavras transformadas em fogos de artifício se multiplicam infinitamente no espasmódico espetáculo da fatuidade, ser capaz de sentir o peso da palavra que desaba sobre sua própria solidão – esse ato de negação do banal – não é tarefa para pusilânimes29.

A escrita ética, por assim dizer, rompe com o frenetismo ameaçador da indústria cultural que faz da palavra mero instrumento de seus interesses. Trata-se, aqui, do banal e do opaco propriamente dito. Perde-se o sentido da palavra e da escrita, perde-se, portanto, a sutileza do viver. Ao passo que a indústria cultural também pretende obliterar a sutileza do viver, com o ardil de suas intenções, finge carregar o peso das palavras pela incessante reprodução de um espetáculo que é apenas a reificação da forma. Embora esse jogo esquemático seja sutil, em certo sentido, pois é capaz de 27

ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2003. 28 BARTHES, Roland. Op. cit. p. 17. 29 SOUZA, Ricardo Timm de. Escrever como ato ético. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: v 48, n. 2 p. 223. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/13850/9168. 8

cooptar possibilidades criativas e de alienar mentes desavisadas; por outro lado, é absolutamente grosseiro. Neste mundo formalizado pela técnica reprodutiva de uma indústria das palavras, ser capaz de sentir o peso da palavra no sentido ético é algo absolutamente revolucionário, de modo que negar o banal é exatamente isso. A viagem da escrita, no sentido exposto acima do acontecimento, e, portanto, sem destino de chegada ou horizonte traçado, mas ainda por traçar, se dá no tempo desta própria viagem. A entrega a esta travessia do impossível é carregada pela esperança de uma promessa por vir, pela esperança de que ainda seja possível uma outra vida, que não a vida das formas. Assim, diz Ricardo Timm de Souza: Mergulhar nas margens, deixar-se cair no abismo marginal – inverter a ordem natural da semântica – é condição de afloramento de uma promessa de vida possível pela agonia das palavras que aborrece toda e qualquer leviandade. Somente lá onde a esperança aparece como o ponto de fuga da realidade e dela, na conjuntura refletida, somente sobrou o rastro, os traços da presença ausente, somente lá a esperança das palavras brilha apesar delas mesmas, ou seja, o escrito brilha apesar do escritor30.

O mergulho na margem de um abismo marginal que condiciona uma promessa de vida, portanto, faz aflorar o brilho da escrita apesar do escritor. Em outras palavras, podemos aproximar este brilho da escrita ao que Barthes chama de o sal das palavras31. Nesse sentido, o sal das palavras ou a carne viva do acontecimento fazem a escrita soprar a sutileza do viver. Além disso, esta esperança que carrega a escrita aparece somente na fuga da realidade e, desde ela mesma, de maneira refletida, as palavras brilham com sabor. Não há um processo instrumental de identificação entre a palavra e o real, mas sim uma relação ética desde os traços ou dos rastros de uma presençaausente, é somente assim que a literatura pode ter o real como objeto. O ponto de fuga da realidade, nesse sentido, permite a elaboração que uma linguagem-limite, o que para Barthes significa “seu grau zero”32. Este encontro com o grau zero da linguagem ou esta fuga da realidade cria um espaço de liberdade que podemos considerar como um exílio na própria língua. Um lugar para além da estrutura de poder da própria língua. Há uma tradição de escritores exilados de suas pátrias e que fizeram desta cruel condição a fome da sua escrita. Deste modo, diz Amanda Pérez Montañez:

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SOUZA, Ricardo Timm de. Escrever como ato ético. p. 223. BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 22. 32 BARTHES, Roland. Op. Cit. p. 20. 31

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O desarraigamento linguístico converte os escritores em homens distanciados, saudosos, descentrados em eterno conflito. O verdadeiro território do escritor no exílio é a língua. A verdadeira pátria do escritor sem pátria, suas raízes, estão no livro que o poeta carrega dentro de si33.

A questão do exílio está, para nós, para além da questão meramente geográfica ou política. O exílio não é uma questão de escolha, ela acontece. Além disso, este lugar talvez seja, justamente, o que faz da literatura uma errância topográfica. Em outro sentido, faz da literatura algo absolutamente irredutível. Tão irredutível que nem sequer seu nome – literatura – escapa desta irredutibilidade. Tal condição fez Derrida confessar o seguinte: “que o nome a coisa nomeada, {literatura}, permanecem para mim até hoje, tanto quanto paixões, enigmas sem fundo”34. Assim, se há alguma impossibilidade na literatura esta é, justamente, o seu enigma próprio. Ou seja, algo impossível de se decifrar. Trata-se, talvez, da resistência fundamental da literatura, o que a faz sofrer por ter que suportar tudo. Trata-se de guardar um segredo que ela – literatura – não pode revelar. Nesse sentido, Derrida afirma que “a literatura guarda um segredo que, de alguma forma, não existe”35. Este segredo garante de modo incondicional a liberdade da literatura. Não por outra razão, a liberdade da literatura é a própria promessa de uma democracia por vir. Desta maneira, também a morada da literatura é um segredo. A literatura é ilocalizável por assim dizer. O seu segredo é também o seu refúgio. Para Derrida: Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, não existe, não se mantém estável (à demeure) na identidade de uma natureza ou mesmo de um ser histórico idêntico a si próprio. Ela não se mantém em nenhuma morada, e se {morada} designar pelo menos estabilidade essencial de um lugar; ela mora somente aí onde, e se, {morar [être à demeure]}, em qualquer intimação, significa outra coisa. A historicidade da sua experiência, porque existe uma, diz respeito, àquilo mesmo que nenhuma ontologia saberia essencializar36.

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MONTAÑEZ, Amanda Pérez. Vozes do exílio e suas manifestações narrativas de Julio Cortazar e Marta Traba. Londrina: Eduel, 2013, p. 41. 34 DERRIDA, Jacques. Morada – Maurice Blanchot. Trad. Silvina Rodrigues Lopes. Edições Vendaval, 2004, p. 13. 35 DERRIDA, Jacques. Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação liberdade, 2004, p. 358. 36 DERRIDA, Jacques. Morada – Maurice Blanchot. pp. 22-23. 10

É nesse sentido que pretendemos apresentar o exílio como morada da literatura. O que faz do seu lugar, lugar nenhum. A sua morada, portanto, é uma outra relação com o tempo.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: Notas de literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2003;

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo?. In: O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009;

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977. Trad. Leyla PerroneMoysés. São Paulo: Cultrix, 2013;

DERRIDA, Jacques. A palavra soprada. In: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva; Pedro Leite Lopres; Pérola de Carvalho. 4º ed. São Paulo: Perspectiva, 2009 ______;. Edmond Jabès e a questão do livro. In: A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva; Pedro Leite Lopres; Pérola de Carvalho. 4º ed. São Paulo: Perspectiva, 2009; ______; Morada – Maurice Blanchot. Trad. Silvina Rodrigues Lopes. Edições Vendaval, 2004; ______; Outrem é secreto porque é outro. In: Papel-Máquina. Trad. Evandro Nascimento. São Paulo: Estação liberdade, 2004; ______; Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012;

MONTAÑEZ, Amanda Pérez. Vozes do exílio e suas manifestações narrativas de Julio Cortazar e Marta Traba. Londrina: Eduel, 2013;

SOUZA, Ricardo Timm de. Escrever como ato ético. In: Letras de Hoje. Porto Alegre: v

48,

n.

2

p.

223.

Disponível

em:

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/13850/9168; ______; Ética como fundamento: Uma introdução à ética contemporânea.

São

Leopoldo: Nova Harmonia, 2204. 12

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