O fantasma do poder moderador no debate político da Primeira República

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Entre a jurisdição constitucional e o estado de sítio: o fantasma do poder
moderador no debate político-constitucional da Primeira República.



Christian Edward Cyril Lynch[1]





Resumo: Ester artigo investiga as razões de resgate do conceito de poder
moderador durante a Primeira República. Nossa hipótese é a de que, além do
desempenho deficiente da jurisdição constitucional, ela se deve à
assimilação progressiva, pelos republicanos, das críticas monarquistas ao
novo regime, e da tentativa de encontrar outras formas institucionais,
capazes fortalecer a autoridade do Estado, sem abdicar do regime
democrático. O fracasso dessa tentativa de restabelecer o poder moderador,
como meio termo entre judiciarismo e excepcionalidade, favoreceria a
escalada autoritária que resultaria na instauração do Estado Novo.


Palavras-chave: história constitucional, Primeira República, jurisdição
constitucional, estado de sítio, poder moderador, pensamento político
brasileiro.




Title: Between constitutional jurisdiction and the state of siege: the
ghost of moderating power in the political debate of the First Republic.

Abstract: This article investigates why the concept of moderating power was
revitalized during the First Republic. Such a revival was made possible due
to the gradual assimilation by republicans of the critics to the new regime
first elaborated by monarchists; the poor performance of judicial review
and the desire of nationalists to strengthen the authority of the state
without giving up the democratic regime. The failure of this attempt to
restore the moderating power as medium between judicial review and
exceptionality favored the authoritarian way of the Estado Novo.

Keywords: constitutional history, First Republic, constitutional
jurisdiction, state of siege, moderating power, Brazilian political
thought.













1. Entre a jurisdição constitucional e o estado de exceção: esboçando uma
teoria do poder moderador.





Do ponto de vista de uma teoria institucional, o poder moderador
se insere no quadro das instituições dotadas de uma discricionariedade
exercida em nome do soberano, mas constitucionalmente regulada. Antes de
1789, a filosofia política já havia desenvolvido inúmeras reflexões sobre o
lugar do poder discricionário dentro de um governo de leis, republicano ou
misto, tendo sido as mais famosas as de Maquiavel (1997) [1518], Locke
(1995) [1690] e Rousseau (1998) [1766], em torno, respectivamente, da
ditadura romana, da prerrogativa real e da ditadura e tribunato. Depois da
Revolução, o problema concreto da absorção do principio da soberania, na
sua antiga forma de unidade absoluta, na tradição de Bodin, Hobbes e
Filmer, no quadro do novo Estado de direito, isto é, do pluralismo e do
limite ao poder social, parece ter se resolvido na conformação de pelo
menos três institutos: o estado de exceção, o poder moderador e o controle
jurisdicional da constitucionalidade. Os três versam sobre a possibilidade
de emprego discricionário do poder publico, isto é, desgarrado, em maior ou
menor grau, dos limites ordinariamente impostos pelo Estado de direito. Nos
três casos, esse exercício de poder é exercido em nome do soberano,
descabendo em regra qualquer possibilidade de apelo dessa decisão. O
exercício dessa discricionariedade suprema somente se justifica na medida
em que a própria lei a admite, no interesse da preservação do povo e da
observância de sua vontade, expressa na constituição. Passo a uma breve
descrição da natureza dessas instituições e, entre elas, a do poder
moderador, que representa, por assim dizer, um meio termo entre ambas.


O estado de exceção é a possibilidade, prevista pelo próprio
soberano, de se suspender parte da constituição, isto é, das regras gerais
de funcionamento da comunidade política, em situações de necessidade
excepcional em que a própria existência do povo se encontra em perigo,
concentrando-se o poder nas mãos de uma única autoridade. Se a normalidade
é a base de toda a norma, a própria norma deve prever a eventualidade de
casos anormais, que deverão ser tratados de forma anômica, isto é, mediante
decisão discricionária. Aqui são os velhíssimos princípios romanos
necessitas legem non habet e salus populus suprema lex esto que põem a nu
todo o essencialismo da política enquanto decisão soberana. As referências
aqui são de Carl Schmitt, para quem é soberano « aquele que decide sobre o
estado de exceção » (Schmitt, 1994), sendo aquele que exerce a ditadura em
seu nome um ditador comissário (Schmitt, 1992). A característica da sua
legislação é a integração de uma legalidade de períodos excepcionais, na
conjugação de três características: finalidade superior, circunstâncias
excepcionais e derrogação da legislação de « normalidade » (Saint-Bonnet,
2002). Assim, é no seu próprio interesse que o Estado de direito permite a
sobrevivência, em boa e devida forma, de uma manifestação tão tipicamente
soberana, na sua forma tradicional, isto é, una e discricionária.
Entretanto, os poderes extraordinários conferidos ao chefe são delimitados
pelas condições estabelecidas pela constituição, que determina as
circunstâncias nas quais, e o tempo pelo qual, suas próprias disposições
poderão ser derrogadas, o que em geral dependera da duração da situação
excepcional. Esse instituto, que existia desregulamentado no Antigo Regime,
e servira aos propósitos de construção do Estado sobre a fragmentação
política medieval, é hoje, a mais das vezes, exercido pelo Chefe de Estado
ou de governo, sob aprovação prévia ou ratificação posterior do Parlamento.
Embora não haja aqui lugar para desenvolver o argumento, penso ser possível
enquadrar, na categoria da excepcionalidade, os poderes que têm os chefes
de Estado ou governo para legislarem por decreto-lei, como no Brasil, na
Itália ou na Dinamarca.


Quanto ao controle jurisdicional de constitucionalidade, ele é
exercido por uma corte ou conselho, como poder à parte ou cúpula do
judiciário, com poder de excluir do ordenamento jurídico normas produzidas
pelos demais poderes, desde que ele as entenda incompatíveis com a vontade
soberana expressa na constituição. Essa decisão, via de regra, tem o poder
de vincular toda a administração publica, que é obrigada a seguir o mesmo
entendimento. Assim, o juiz constitucional se faz intérprete da vontade do
soberano e, com base na sua interpretação e em seu nome, toma a decisão que
faz dele uma espécie de legislador negativo. Embora os estudos sobre a
natureza desse instituto sempre primem por apresenta-lo como a antítese do
estado de exceção, em nome da conservação dos direitos individuais ou
difusos contra os excessos do poder, penso que é mais produtivo apresenta-
lo como estando na extremidade de uma mesma balança de discricionariedade
exercida em nome do soberano. Ambos velam pela preservação da vontade do
soberano, ambos desempenham papéis eminentemente políticos, ambos fazem uso
de um poder discricionário normativamente regulado. O que varia entre as
instituições que exercem esse poder é o grau de discricionariedade, que se
torna muitíssimo mais reduzido no caso da justiça constitucional, mas que,
a despeito disso, subsiste em margem bastante apreciável. Essa redução na
discricionariedade, aliás, se explica pela pressuposição de que a ameaça à
vontade soberana, embutida nos casos submetidos a uma corte constitucional,
apresenta características distintas daquelas que permitem a decretação do
estado de exceção, sobretudo no que tange à sua urgência e potencialidade
danosa. Nem por isso, isto é, por se tratar de um mecanismo jurídico de
moderação institucional, a decisão perde, entretanto, seu caráter político
e discricionário. Quem o reconhece é o próprio Hans Kelsen, criador do
modelo de corte constitucional moderna, titular do poder de exercer o
controle concentrado de constitucionalidade. Segundo ele, quanto mais
elevado o topos jurídico a ser decidido pelo tribunal, mais político e
sujeito a interpretações abertas – e, portanto, discricionárias - ele
estará[2].


Entretanto, o que o controle jurisdicional de constitucionalidade
perde em margem de discricionariedade, ganha em periodicidade de seu
exercício cotidiano, através da possibilidade de propositura de ações
especificas por parte de membros legitimados do soberano. É o que alias
também explica a adoção de procedimentos mais elaborados, pautados pelo
contraditório, próprios do direito e, em particular, do direito processual.
Historicamente, esse instituto encontrou suas formas sucessivas de
exercício nos modelos da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal
Constitucional austríaco, copiados mais ou menos por toda a parte. Na
querela sobre a identidade do instituto com o Estado de direito ou com a
soberania, cabe cada vez menos discordância doutrinaria acerca do fato de
que o controle de constitucionalidade é modo de expressão da vontade geral,
e da soberania popular. Se a lei votada não exprime a vontade geral senão
na medida em que for conforme a constituição, o controle jurisdicional da
constitucionalidade aparece necessário à expressão da vontade do soberano,
pois, sem a efetividade do respeito à constituição, a lei votada não
representa aquela vontade. Assim, o juiz constitucional seria o intérprete
da vontade do soberano, vez que ele enuncia, pelo seu ato de jurisdição, os
princípios contidos na constituição[3].


Por fim, o poder moderador acha-se num ponto médio, a meio caminho
entre o estado de exceção e o controle jurisdicional na
constitucionalidade. A existência de um poder neutro, acima dos demais
poderes (executivo, legislativo e judiciário), provou-se, no decorrer da
Revolução Francesa, um instrumento indispensável para se garantir o
equilíbrio constitucional de um Estado moderno. Esse Estado, se por um lado
deveria aceitar a premissa de que era licito a cada individuo perquirir
seus próprios interesses particulares, e fazê-los representar
politicamente, acabava, porém, balançado em seu equilíbrio pelos
entrechoques constantes desses interesses no seu interior. Uma vez que,
entre estes, não havia arbitro ultimo, os conflitos privatísticos
instalados no âmbito dos poderes políticos tendiam a degenerar em
convulsões institucionais que, extrapolando os limites jurídicos,
resvalavam para o golpe e a consequente ditadura de um interesse sobre os
demais. A base liberal do sistema político ficava assim comprometida pelo
próprio livre desenvolvimento de seu principio de autonomia individual. Os
contemporâneos da Revolução Francesa entenderam que seria possível evitar
esse desfecho se houvesse, no interesse coletivo, acima desses
representantes dos apetites particulares, um poder arbitral, chamado
neutro, régio ou preservador, encarregado de agir discricionariamente em
hipóteses legalmente previstas de crise política, dentro porem de estreitos
limites, para evitar as ameaças à ordem constitucional, enquanto expressão
da vontade soberana, desarmando as crises institucionais[4].


Essa arbitragem faria desse poder preservador uma espécie de
« poder judiciário » dos demais poderes políticos, o que por si já
evidencia sua proximidade com o controle jurisdicional de
constitucionalidade. Ele deveria ser apartidário e, como tal,
representativa da unidade e da tradição nacionais. Se ele goza de maior
grau de discricionariedade em relação ao controle de constitucionalidade,
em compensação ele obedecesse ao pressuposto de que as crises políticas, de
desencontro entre parlamento, gabinete e opinião publicam, devem ser
sensivelmente mais raras do que edições de leis ou decretos contrários à
constituição, que ocasionam o controle jurisdicional. Por outro lado, a
natureza do conflito político com que o poder moderador tem que se deparar
é diverso, também, daquele submetido a uma corte constitucional. A mais das
vezes, um conflito entre legislativo e executivo cria um impasse político
de tal ordem, num clima de mutua animosidade, sem que nenhum dos dois
poderes, contudo, esteja incorrendo numa ilegalidade que possa ser sanada
por meio de provocação de um tribunal constitucional. Esse fato não torna
menor a necessidade de desarma-lo, em beneficio da governabilidade e do
equilíbrio do sistema. Pode-se dizer, portanto, que o poder moderador
exerce um controle, não jurisdicional, mas político, da institucionalidade,
desempenhando um papel que, sendo político como o estado de exceção, tem
fins de equilíbrio constitucional, como a justiça homônima.


Ao contrario do que se pensa, o poder moderador nem é uma criação
arbitrária do inicio do século XIX, nem desapareceu do cenário
institucional. A reflexão desenvolvida na época, e alias vinculada tanto
aos seus institutos irmãos do estado de exceção e da justiça
constitucional, mantém toda a sua atualidade como forma de pensar o
político, como demonstram as obras contemporâneas de Marcel Gauchet (1995),
como continuam a dar conta do papel dos chefes de Estado onde estes não se
confundem com os de governo, ou seja, em países de sistema parlamentar ou
semipresidencial. Seja ele monarca constitucional ou presidente da
Republica, entre suas atribuições típicas encontram-se as de fazer graça,
dissolver o parlamento e nomear e demitir ministros[5]. O exercício deste
poder pelo chefe do Estado o arma de poderes contra classe política, em
nome da soberania popular, quando cessa a corrente entre ambas. Nesse
sentido, ele se arvora em verdadeiro representante da unidade e permanência
da nação, pairando acima dos interesses contingentes e fiscal da atividade
dos representantes imediatamente eleitos do povo, no interesse deste, como
alias enunciam diversas constituições, como a francesa, a italiana, a
espanhola, a grega, etc. Ele goza, no exercício de suas funções, de um
poder simbólico que dificilmente pode ser equipado ao de um tribunal, poder
este que é um resquício, axiologicamente neutralizado, da antiga pregnância
da ideia de unidade do corpo social, outrora garantido pela estruturação
social do religioso, a partir de uma concepção divina de unidade do
universo, que foi progressivamente laicizada na figura do monarca absoluto
(Gauchet, 1985). A neutralização do poder no cume das instituições
corresponderia à manutenção das expectativas de exercício delegado e
ocasional da soberania por um símbolo de sua unidade e a do próprio
Estado[6].


Esses três institutos jurídicos, ao passarem da teoria à pratica
institucional, adquirem conformações muito diversas, que variam conforme o
lugar, o tempo e a experiência concreta de cada pais. Quanto ao lugar,
vemos estados de exceção de maior ou menor latitude, decretados com
participação de mais de um órgão político ou não; temos controles de
constitucionalidade exercidos de forma concentrada numa só corte, ou difusa
pelo aparelho judiciário, ou mesmo mista, como no Brasil, incidindo a
posteriori ou a priori quanto ao momento de promulgação das leis (Favoreu,
1996); temos poderes moderadores exercidos por assembleias, conselhos ou
chefes de Estado, com diferentes atribuições. Por outro lado, ha países sem
estado de exceção (Bélgica), sem poder moderador (Suécia), sem controle de
constitucionalidade (Ucrânia), sendo porém pouco provável encontrar-se um
pais de tradição ocidental que não tenha nenhum deles. A mesma variedade se
observa quanto à interpretação do lugar da discricionariedade dessas
instituições no decorrer do tempo, isto é, conforme foi se difundindo e
sedimentando a modernidade política de caráter liberal democrático. Assim,
o estado de exceção, que é herdado do Antigo Regime e enquadrado
constitucionalmente, é, dos três, o instituto privilegiado em períodos de
periclitarão do Estado, como demonstram as passagens do absolutismo para o
liberalismo, no inicio do século XIX, e a passagem do Estado liberal para o
liberal-democrático, no inicio do século XX. Em fases de estabilização
relativa das instituições, passa-se a privilegiar mecanismos concretos de
moderação institucional, para além da separação de poderes, tateando-se uma
forma de controle político da constitucionalidade (Gauchet, 1995) [7].
Quanto ao controle jurisdicional de constitucionalidade - existente já nos
Estados Unidos no inicio do século XIX -, depois de cem anos de tentativas,
durante os quais ele foi sem êxito atribuído, por exemplo, a um senado[8]
ou a uma corte de cassação, ele finalmente se estabelece na Europa após a
guerra de 1914 e triunfa em definitivo depois da de 1939. Foi nesse período
áureo de estabilidade política e social que se começou a admitir que os
próprios cidadãos ou associações suas pudessem, em nome da vontade
soberana, provocar diretamente um órgão que lhes poderia fazer o papel de
intérprete daquela vontade, distribuindo justiça a partir dessa medida – e
isto, para além do controle político exercido pelo chefe do Estado[9].


Essas alterações no tempo, culminando na difusão e sedimentação do
ideal de uma sociedade amplamente liberal-democrática e institucionalmente
estável, com a consequente rareamento de situações excepcionais (ao menos
nos países centrais), acarretaram assim transferências sucessivas de
prestigio para cada uma das três instituições, correspondentes a cada etapa
de concretização do processo de efetiva apropriação do exercício da
soberania pelo povo. Entretanto, é importante ter em mente dois fatos:
primeiro, que isso não significa que tal situação, nos países centrais, não
possa se alterar com a eventual mudança das condições políticas nacionais
ou internacionais; segundo, que a sucessividade de seu prestigio não
importa em sua recíproca exclusão, coexistindo ao revés os três institutos
jurídicos no desempenho de seus diferentes papéis, na maior parte dos
países do mundo. O prestígio de cada uma dessas instituições é assim
indicador de determinadas tendências políticas de cada país, num dado
momento. Medir seu grau maior ou menor numa determinada sociedade, bem como
o seu efetivo desempenho na manutenção das instituições liberais e
democráticas, pode servir tanto de instrumento para aferir o estado de
maturidade de suas elites, como o seu eventual descompasso com a morfologia
de poder do país que comandam. A partir de um raciocínio assim definido,
onde as três instituições servem de balizas sucessivas, penso ser possível,
através do rastreamento dos debates políticos e jurídicos que lhes
concernem em cada época, retraçar ou contar de outra forma os caminhos e
descaminhos dessas nações rumo à terra prometida da modernidade política
democrática. Embora a forma como essas instituições se enraízam na
realidade, como vimos, possa fazê-las adquirir colorações algo diversas,
cada tradição nacional as moldando historicamente conforme suas próprias
necessidades, o importante é identificar a forma como seus conceitos se
alteram no decorrer do tempo, reconstituindo-se a sua trajetória peculiar.





2. Fim do Império. O primado do poder moderador como forma de funcionamento
das instituições. O conceito de poder moderador no debate político no fim
do regime.





A constituição imperial brasileira de 1824 não previa nem
comportava um controle jurisdicional de constitucionalidade, que de resto
ainda inexistia na Europa. Inspirado pelo direito constitucional francês, o
poder judiciário, ainda que teoricamente equiparado ao executivo e ao
legislativo, na prática estava sujeito ao executivo, na pessoa de seu
ministro da Justiça. O Supremo Tribunal de Justiça, previsto no art. 163,
era uma corte de cassação, que apenas tinha competência para rever julgados
em recursos de revista. O supremo tribunal de justiça não pode declarar a
inconstitucionalidade das leis ou decretos; só o próprio parlamento,
guardião da constituição (Calmon, 1964:2904). Seus acórdãos não tinham
sequer o poder de uniformizar a jurisprudência nacional, porque a
constituição não lhe havia conferido o direito de "tomar assentos", isto é,
editar súmulas, o que só veio a ocorrer em 1875. Durante a discussão, no
Senado, do projeto de lei que criaria o Supremo Tribunal de Justiça (1828),
o Marquês de Caravelas, depois de salientar querer um Judiciário
independente, observaria, contudo, não desejar excessos, tal como os
monarquianos franceses e os partidários do relatório Thouret, em 1791: "Eu
quero viver seguro na Lei, e não na esperança de que o Juiz há de proceder
desta ou daquela forma » (AS, 1828,I:55). Alguns dias depois, o irmão do
Marquês, Francisco Carneiro de Campos, seria ainda mais claro nessa lógica:
« as bases da lei são fundadas mesmo nos princípios do Tribunal de
Cassação, que é conceder revistas, quando se ver que foi ferida a lei na
sua letra, e quando as fórmulas em toda a qualidade de processos forem
dispensadas » (AS, 1828, II:56). Além disso, as garantias conferidas aos
juízes de direito eram precárias: se o art. 51 da constituição conferia
vitaliciedade aos juízes de direito, não lhes era conferida, porém, a
inamovibilidade, o que permitia ao partido que estivesse na posse do poder
executivo remove-los conforme sua conveniência política, o que só foi
atenuado pela resolução n. 559 de 28 de junho de 1850, que elencou as
hipóteses de remoção em numerus clausus (São Vicente, 1958:324). Além
disso, compreendia-se que o poder executivo podia, excepcionalmente,
aposentar os juízes de direito, como ocorreu em 1856 em Pernambuco, no
episódio do desembarque de Serinhaém. Na ocasião, o governo imperial
aposentou compulsoriamente desembargadores que, por injunções da política
provincial, haviam absolvido importantes personalidades que se achavam
comprovadamente comprometidas com a continuação do tráfico negreiro,
proibido pela lei Eusébio de Queirós (Nabuco, 1997:220). Além disso, a
separação de poderes foi se aperfeiçoando somente ao longo do século, pois
que era permitido aos magistrados ocuparem cargos legislativos e
executivos, sendo estabelecidas as incompatibilidades somente a partir da
década de 1850. Por fim, havia certas figuras, como o juiz municipal, que,
encarregado de causas menores, não gozava sequer de vitaliciedade. Também
não havia exigência de concurso público. Todos estes doestos, porém, devem
ser, como tudo, compreendidos na mentalidade da época, pois, conforme vimos
no primeiro capítulo, o controle jurídico de constitucionalidade ou a
prevalência prática do direito sobre a política não tinham lugar na Europa
continental no período. O poder judiciário era dependente do executivo
também na França, na Espanha e em Portugal.


Por outro lado, a constituição previa, em seu artigo 179, XXXIV e
XXXV, a possibilidade de decretação do estado de exceção, em casos de
rebelião ou invasão estrangeira. Ele deveria ser decretado por ato da
Assembleia e apenas na ausência desta, em caso de perigo iminente, poderia
o governo fazê por conta própria, submetendo em seguida seus atos à
inspeção daquela. Havia leis ordinárias que regulavam a ação dos poderes
públicos, permitindo-lhes "dar buscas de dia, e até mesmo de noite; fazer
sair para fora indivíduos que têm ali domicílios, sequestrar armas e
munições, e proibir ajuntamentos e publicações impressas". Entretanto,
havia também legislação repressiva, prevista no Código Criminal, que
dispensava a necessidade de suspenderem-se as liberdades civis (São
Vicente, 1958:433). Embora se possa dizer que a lógica da "salvação
pública" tenha predominado no funcionamento das instituições políticas para
debelar as inúmeras insurreições, nos primeiros vinte e cinco anos do
regime representativo instituído em 1824, o fato é que, mesmo durante este
período, o estado de exceção somente foi decretado em províncias
conflagradas e jamais em todo o território nacional. Nem mesmo durante a
guerra do Paraguai fugiu-se a esta regra. Ainda assim, como forma de
controle social ou equação autoritária de crises políticas, o estado de
exceção foi rareando durante o Segundo Reinado, sobretudo depois da última
revolta provincial, em 1848, a ponto de jamais ter constituído, durante o
período, tópico relevante de controvérsia constitucional, o que viria a
ocorrer somente sob a República.


Assim, o grande eixo sobre o qual se apoiaram as instituições
políticas brasileiras durante o Segundo Reinado foi o poder moderador,
previsto explicitamente no art. 98 e seguintes da constituição como um
quarto poder e cujas principais funções de controle político da
constitucionalidade eram as de anistiar, dissolver a câmara dos deputados,
nomear e demitir ministros, escolher senadores provinciais a partir das
listas dos mais votados. Embora a recepção jurídica do conceito, através da
doutrina de Benjamin Constant, tal como exposta no Cours de politique
constitutionnelle, tenha sido tão fiel quanto era possível fazê-lo no
Brasil, a doutrina que informara essa recepção, na verdade, indicava que a
intenção dos conselheiros da Coroa era a de assegurar a supremacia desta,
enquanto poder executivo, sobre o legislativo. A constituição sujeitara
ainda o exercício dos atos do poder moderador à prévia oitiva do Conselho
de Estado, de livre nomeação do Imperador, de forma que eles não eram
suscetíveis de controle ministerial ou parlamentar. Tanto o poder moderador
como o conselho de Estado foram, assim, combatidos durante o Primeiro
Reinado e a Regência, a ponto de o segundo ser extinto na reforma
constitucional de 1834 e o primeiro quase ter tido idêntica sorte, depois
de ter tido suas atribuições cerceadas pela lei que regulou a atuação do
poder público durante a minoridade de Dom Pedro II. O « regresso », porém,
detonado pela ascensão do partido conservador, em 1837, e o golpe da
maioridade, em 1840, asseguraram não somente o restabelecimento do poder
moderador com todas as suas garantias, como o do conselho de Estado, que
voltou à vida por uma lei ordinária. Os liberais se revoltaram em 1842, em
Minas Gerais e São Paulo, temendo que os conservadores, no poder,
pretendessem com a nova lei tornar o conselho redivivo num bastião que
assegurasse seu domínio exclusivo do poder, o que não ocorreu, conforme
ficou comprovado em 1844 com a ascensão dos liberais e a posterior
aceitação do rodízio dos partidos, a partir da mediação do poder moderador.
Além de garantir essa mediação, mediante os poderes de dissolução da câmara
e de nomeação e destituição de ministros, Dom Pedro II, por sua vez, tratou
de compor o Senado e o Conselho de Estado com as principais lideranças de
ambos os partidos, além de outros membros, de índole neutra, de reputação
ilibada e saber conhecido. A lógica da « salvação pública », que
justificara a adoção do poder moderador no Primeiro Reinado, foi assim
posta a serviço da estabilidade institucional, à exemplo das demais
monarquias constitucionais europeias.


Embora Benjamin Constant tivesse sido claro ao frisar que, sem
eleições honestas, o sistema representativo não passava de uma ficção – e
com ele, todo o arcabouço do Estado liberal por ele delineado (Constant,
1980:273), as fraudes foram uma característica de todo o processo político
desde pelo menos 1840 e eram promovidas pelos partidos que estivessem no
poder para assegurar seu predomínio quase que incontrastável, o que ficava
patente nas denominadas "câmaras unânimes", i.e., eleições legislativas
onde a oposição mal conseguia cinco cadeiras em cem. Isto importa afirmar
que a alternância dos partidos no poder – representantes, por excelência,
dos interesses particulares na esfera pública – não seria possível pelo
voto nacional, mas somente se houvesse a intervenção de um poder
supraoligárquico que pusesse deliberadamente um fim ao domínio de um desses
partidos e chamasse o outro ao poder. Por outro lado, os partidos,
constituindo verdadeiras frentes políticas fracionadas entre diversos
caciques, impunha que o monarca escolhesse algum deles. Isso significa que
não somente o poder moderador decidia juntamente com o Conselho de Estado
quando era hora de pôr fim a uma "situação" partidária, como ele deveria
escolher qual o chefe que deveria ser convocado. Ainda que houvesse praxes
nesse processo, envolvendo consultas ao próprio primeiro-ministro
demissionário, sempre ficava reservada ao monarca a possibilidade de guiar
o processo conforme entendesse mais adequada.


Tais atribuições, consideradas legítimas pela maior parte da elite
política, pelo menos desde 1844, voltaram contudo a ser questionadas de
modo mais acerbo a partir de 1868. O motivo principal foi a interferência
mais direta que o poder moderador estaria a exercer nas questões cruciais
da agenda brasileira, como a encaminhamento da questão da escravidão e a da
reforma eleitoral. A primeira questão dizia respeito a toda grande
propriedade rural, que era o principal sustentáculo do trono; e à segunda,
à necessidade de se reduzirem as fraudes, a fim de garantir ao partido
apeado do poder uma minoria digna nas assembleias legislativas e na Câmara
de Deputados, de forma a reduzir a grita dos que, na oposição, se viam
privado dos cargos públicos. A interferência da Coroa se traduzia,
concretamente, no suporte que ela daria a gabinetes que teriam perdido a
confiança parlamentar, preferindo, a pedido do primeiro-ministro em
minoria, dissolver a Câmara a demitir o gabinete, ou forçando a exoneração
de um gabinete que se recusasse a programar uma política que o Imperador
julgasse indispensável no momento. Tanto no processo de abolição como no da
reforma eleitoral, o Imperador agiu de modo a apoiar gabinetes reformistas
que, no seu entender, mereciam tal apoio a despeito da fraqueza com que se
encontrava em relação às suas bases de sustentação parlamentares. Tanto em
1871 (Rio Branco) como em 1884 (Dantas), a Coroa apoiara gabinetes
abolicionistas contra a maioria parlamentar do próprio partido do primeiro-
ministro. Em 1888, ela demitira o primeiro-ministro escravocrata para
convocar outro, abolicionista. Em 1878, foi também o monarca quem tomou a
iniciativa de chamar ao poder os liberais, para que fizessem a reforma
eleitoral[10].


Todas essas ações envolviam, em última análise, divergências de
pontos de vista e interesses entre a Coroa e as maiorias políticas, que não
tinham como resistir à vontade da primeira legalmente, já que, pelo fato de
serem as eleições fraudadas, o grupo político do gabinete mantido quase que
fatalmente faria a nova maioria, alijando os opositores da véspera. Bem é
verdade que, de um modo geral, os partidos haviam se acostumado a ficar
alguns anos no ostracismo dos cargos governamentais, quando apeados do
poder em prol do outro. Era de praxe que invectivassem contra o adversário
e por vezes chiassem contra o poder moderador, responsável pela inversão.
Entretanto, agora havia novos agravantes: não só se tratava do mais
delicado dos temas – a abolição -, como este mesmo fato levava ambos os
partidos a se dividirem, mesmo quando tinham absoluta maioria na Câmara, o
que obrigava o Imperador a sustentar o grupo minoritário reformista contra
o majoritário, sendo que as novas eleições ameaçariam este último com o
alijamento das vagas de deputado. A responsabilidade pelas ações dos
ministérios começou a ser então transferida, do chefe do gabinete, para a
mão dinástica que o apoiava. O programa reformista não era mais associado
ao partido, ou a uma seção de determinado partido, mas à própria vontade da
Coroa. Essa nova realidade política teve reflexos importantes na
redefinição do conceito de poder moderador, que passou paulatinamente a ser
compreendido como « poder pessoal », associado, ainda, à centralização
político-administrativa e, por fim, à própria monarquia. Vejamos cada um
desses aspectos.


A expressão « poder pessoal », bem como seu equivalente menos
frequente, « imperialismo », havia sido introduzida no Brasil, como a maior
parte do repertório conceitual político brasileiro da época, por meio da
literatura afim produzida na França. Os liberais franceses dos oitocentos
sustentavam que, em matéria governamental, o rei deveria deixar a última
palavra ao seu gabinete, por se tratar de uma comissão extraída do
parlamento, órgão representativo da vontade popular. Ambas as expressões
foram incorporadas pela esquerda liberal brasileira, que se sentiam à
vontade para comparar o Império de Dom Pedro II com o de Napoleão III, a
despeito de todas as flagrantes diferenças entre ambos os regimes – o
primeiro, liberal; o segundo, autoritário. Embora Bernardo Pereira de
Vasconcelos e Paula Sousa já falassem, no final da década de 1840, na
distinção entre a monarquia real e a monarquia pessoal (Sousa, 1988:202),
como distintivas de poder absoluto e poder legal, a expressão « governo
pessoal » firmou-se depois. Ela já consta, por exemplo, da
Circular dedicada aos senhores eleitores de senadores pela província de
Minas Gerais, de Teófilo Otoni, publicada em 1860. Já o termo imperialismo
ficaria célebre por ser a idéia-força de O conselheiro Francisco José
Furtado – biografia e estudo de história política contemporânea, escrita
por Tito Franco de Almeida e publicada em 1867. Tanto uma como a outra
remetiam às experiências pretéritas dos Stuarts, de Jorge III da Inglaterra
e de Carlos X da França e significavam « a aspiração ao poder absoluto em
um país livre (...), desprezando a constituição e nulificando a nação
representada em seu parlamento » (Almeida, 1944:13). A queda do terceiro
gabinete de Zacarias de Góis e Vasconcelos, em julho de 1868, motivada pela
negativa do Imperador de, no exercício do poder moderador, aceitar a
indicação do candidato ministerial ao Senado, provocou o retorno dos
conservadores ao poder, e a crise política desencadeada pelo retorno dos
liberais aos bancos da oposição, quando mais firmes se sentiam no poder,
acabou por difundir e vulgarizar as duas expressões (« poder pessoal » e
« imperialismo »), que constam de praticamente todas as brochuras e
panfletos liberais da época. Entre outros que a adotariam, encontra-se, em
1874, o próprio Rui Barbosa (Oliveira, 1987) e Tavares Bastos (Bastos,
1976).


A forma como tais conceitos se difundiram então, porém, não era a
mesma como eles até então vinham sendo empregados. Até então, os autores
buscavam distinguir o instituto do poder moderador e a pessoa do Imperador,
tanto do fenômeno do imperialismo, quanto do governo pessoal. Otoni, por
exemplo, afirmava estar "convencido de que no ânimo constitucional do Sr.
D. Pedro II não se aninha a mais remota ideia de usurpação" (Otoni, 1913).
Mesmo Tito Franco, ainda que numa chave muito mais indignada, em nenhum
momento cita diretamente o Imperador, falando que os males que apontava
decorreriam do "imperialismo". O debate que, a este respeito,
tradicionalmente ocupava a arena pública, era travado, desde 1837, em torno
da existência ou não de referenda ministerial nos atos praticados pelo
poder moderador, dividindo-se a este respeito os liberais, como o sobredito
Teófilo Otoni (Otoni, 1913) e o próprio Zacarias de Góis e Vasconcelos
(Vasconcelos, 1978), de um lado, e conservadores, como o Visconde de
Uruguai (Uruguai, 1960) e Brás Florentino de Sousa (Sousa, 1978) [11].
Nenhum deles questiona a existência do poder moderador, nem da monarquia.
Os liberais radicais, que sustentavam a existência do « poder pessoal »,
atribuíam os seus eventuais os desmandos, não ao Imperador, mas à
« subserviência dos ministros e cortesãos, que proclamam uníssono a
onipotência imperial » (Otoni, 1913:216). O jovem Tavares Bastos de Os
males do presente e as esperanças do futuro, publicado no ano seguinte à
Circular de Otoni, ainda não destoava dele, como entretanto faria
depois[12].


De 1868 em diante, porém, essa distinção começou a se tornar menos
frequente. Foi a partir de então que, « desmascarado », o poder moderador
tornou-se sinônimo de poder pessoal, isto é, de poder ilegítimo (embora
legal) do Imperador na arena política[13]. É certo que haveria quem, mais
clarividente, reconhecesse que o poder da Coroa advinha, não dos maus
desígnios do Imperador, mas das eleições fraudulentas, cuja
responsabilidade não lhe cabia. Era o caso de José Antônio Saraiva, senador
liberal, ao se referir ao "poder ditatorial da coroa". Embora ele
reconhecesse que "o Sr. D. Pedro II tem de fato um poder igual ao de
Napoleão III", enquanto a origem desse poder, na França, achava-se na
constituição, no Brasil ele residia nas fraudes eleitorais: "uma câmara
legitimamente eleita dará fim a essa ditadura funesta ao rei, como ao povo,
e restabelecerá o equilíbrio entre os diversos poderes constitucionais"
(In: Nabuco de Araújo, 1979:46). No entanto, o fato é que a noção de
« poder pessoal » era por demais sedutora para os partidos que estivessem
fora do poder, porque os isentava de culpa perante os próprios adeptos pelo
fato de, na oposição, se acharem privados de cargos públicos. A retórica do
« poder pessoal » também servia para ocultar a responsabilidade dos
partidos no falseamento da representação, devido às fraudes que no poder
praticavam a fim de garantirem a ocupação maciça dos cargos
administrativos, bem como para chantagear o Imperador e assim apressar o
rodízio dos partidos no poder. A responsabilidade não recaia assim sobre os
partidos, mas sobre os caprichos ou o absolutismo do Rei, que pretendia
arruinar o sistema representativo. Embora alguns liberais, como Tavares
Bastos, reconhecessem que a atuação reformista da Coroa ia ao sentido de
modernizar o país, cumprindo o programa liberal, protestavam contudo que o
Imperador estava fazendo por via do despotismo ilustrado, esvaziando o
partido que deveria promover as reformas, corrompendo as instituições e
atraindo para si a ira de toda a classe política[14] (Bastos, 1976). Assim,
paulatinamente foram se confundindo, na retórica dos oposicionistas,
monarquia, poder moderador e arbítrio. Assim, se para o centro liberal o
Brasil monárquico era uma "ditadura" (Nabuco de Araújo, 1997:764), sendo
por isso necessário inscrever a responsabilidade ministerial pelos atos do
poder moderador no programa do partido, este última medida já seria
insuficiente para os liberais radicais. Para estes, o poder moderador era
« o absolutismo prático » (Marinho, 1885:35), cujo remédio único era a sua
pura e simples extinção (Chacon, 1979:29).


Por outro lado, o desgaste provocado pela ação reformista da Coroa
junto aos partidos oligárquicos nacionais não se restringiu aos liberais ou
radicais. O processo de abolição da escravatura, em especial, iniciado em
1871, acabou por disseminar a crítica ao poder pessoal ao próprio partido
conservador (Carvalho, 1996), que sempre se gabara de constituir o
principal pilar do trono. Na oposição, um dos principais chefes do partido,
o Barão de Cotegipe, em 1879, afirmaria no Senado que « a preponderância da
Coroa sobre os demais poderes, chamem-na como quiserem – poder pessoal,
poder ditatorial, prerrogativa real, existe, com efeito » (Fialho,
1886 :22). Em 1884, seria um deputado conservador quem, por ocasião da
dissolução da câmara dos deputados, determinada para apoiar o gabinete
abolicionista do senador Dantas, proferiria o pior ataque já formulado ao
Imperador no parlamento. Aí, já não se tratava de confundir instituto e
regime político, mas de insulto pessoal ao imperante, que era um « príncipe
conspirador », um « césar caricato » que por quarenta anos oprimiria,
onipotente, a desorganizada opinião pública do país. (Magalhães Jr.,
1956:252). Assim, a intervenção ativa do poder moderador como agente
reformista deslegitimava-o enquanto controle político da
constitucionalidade: ele passava a ser visto na chave do poder de exceção,
sendo que o Segundo Reinado nada mais era que um contínuo estado de exceção
disfarçado em estado de direito.


Além de ser assim identificado com o arbítrio, o poder moderador,
para os federalistas brasileiros, também se converteu em sinônimo de
centralização política e de opressão. A falta de autonomia provincial, com
os governadores sendo nomeados do Rio pelo Imperador, a partir da indicação
dos primeiros-ministros, impediria a continuidade administrativa e o livre
desenvolvimento das atividades econômicas, inibindo a livre iniciativa dos
indivíduos industriosos[15]. Embora houvesse federalistas monárquicos, como
Nabuco e Tavares Bastos, logo surgiu quem apregoasse que, do ponto de vista
"doutrinário" e "empírico", a instituição da monarquia era incompatível com
a federação das províncias; o que só seria possível dentro do modelo norte-
americano, que era presidencialista e republicano. O desprestígio da
monarquia entre as elites políticas fazia com que a instituição, feita
sinônimo de atraso, se confundisse com a própria figura do Imperador e da
princesa Isabel – o primeiro, visto entre incapaz, frouxo, ou como
autoritário; a segunda, como mulher beata, sentimental, casada com um
estrangeiro antipático. Esta claro que tal identificação se estendesse ao
próprio poder moderador, uma "excrescência constitucional" cujas
atribuições eram da essência da Coroa.


A retórica democrática dos partidos monárquicos, naturalmente, foi
bastante aproveitada pelo partido republicano, para quem a resolução de
tantos males – poder pessoal, falseamento da representação parlamentar,
centralização político-administrativa - passava pela eliminação pura e
simples da monarquia. Também para os republicanos, o poder monárquico era
sinônimo de poder pessoal: Campos Sales, durante a terceira regência da
Princesa Isabel, denominaria também o exercício do poder dela como «o poder
pessoal, o poder despótico, o poder senhorial », cujo futuro reinado
« anuncia-se pelo abastardamento, que começa comprometendo os partidos
políticos e acabará comprometendo a própria Coroa" (Sales, 1908:47).
Entretanto, a essa crítica adicionava-se a de todo o regime: a monarquia
fundava-se no divino direito dos reis, sendo oposta à democracia, por sua
vez associada à república. A monarquia constitucional era uma solução de
compromisso espúria entre o absolutismo e a democracia, que não poderia
mais ser tolerada pela evolução natural das sociedades. Ela era um regime
de privilégio, na medida em que a família imperial tinha o monopólio da
chefia de Estado. Era uma instituição estranha ao nosso meio, "planta
exótica" na América republicana. A propaganda republicana, assim, era a
única a fazer a crítica do poder pessoal permanente, confundindo
propositalmente a pessoa do imperante, o cargo que ele ocupava, a
instituição do poder moderador, a centralização político-administrativa.


Exemplo disso é o panfleto intitulado Processo da monarquia
brasileira, escrito em 1886 por Anfrísio Fialho, que depois de escrever uma
biografia elogiosa de Dom Pedro II se convertera ao mais feroz dos
republicanismos, depois de lhe terem sido negados recursos do Tesouro para
um negócio no exterior. Nesse panfleto, depois de dissertar sobre o
supostamente catastrófico estado de atraso em que, sem exceção, achavam-se
todos os aspectos da vida nacional, chega à conclusão de que a
responsabilidade exclusiva dessa situação era da pessoa do Imperador, por
ser o único elemento permanente num governo onde se sucediam um sem número
de pessoas dos dois partidos políticos e a quem interassaria manter o
atraso do país porque este era condição de seu próprio absolutismo
disfarçado. Para alcançar tal fim, o monarca recorreria a um plano
deliberado que mesclava astúcia, fingimento, hipocrisia e omissão, onde era
comparado a Tibério, Maquiavel, Talleyrand, Luís XIV e César. Do terceiro
reinado nada se poderia esperar, pois, « mistura de orleanismo com
ultramontanismo, de traição com jesuitismo, será Roma governando o Brasil
por intermédio do núncio ou do capuchinho » (Fialho, 1886:310). A conclusão
de todas essas críticas era óbvia: demonstrar que a república federal era a
única saída para salvar o país. Apenas ela poderia modernizar as
instituições políticas e nos colocar no caminho do progresso, uma vez que
extinguia ao mesmo tempo realeza, poder moderador e centralização
política[16].


As novas instituições resultantes da implantação da República e
consubstanciadas na Constituição de 1891 refletiram esses aspectos da
propaganda, consagrando o voto universal, a tripartição de poderes, o
presidencialismo e a federação. A ideologia de propaganda republicana, com
a instauração do novo regime, passa a informá-lo na posição de doutrina
oficial. Ao mesmo tempo em que ela justifica a república pelos erros da
monarquia, ela justifica as instituições republicanas, tais como modeladas
na Carta de 1891. Essa interpretação dos fatos e das instituições, no
início, teve de enfrentar tanto a versão monarquista, que continha as
críticas mais acerbas ao regime, quanto à versão jacobina, que propunha uma
radicalização da República. No final da tumultuada década de 1890, marcada
por revoltas e atentados, a maioria da classe política se inclina a apoiar
uma política de apaziguamento, o que facilita o predomínio da versão dos
republicanos históricos, mormente depois que o governo já se encontra nas
mãos deste grupo. Esse predomínio se consolidará e somente entrará em
declínio na passagem da década de 1910 para a de 1920.






3. Primeira Republica: rearticulação do conceito de poder moderador entre a
impotência da jurisdição constitucional e a onipotência do estado de sitio.





O fim do regime e a extinção das instituições monárquicas, porém,
não significava que os republicanos entendessem que a nova republica
presidencial e federativa, pudesse viver sem um equivalente funcional do
poder moderador, só que mais « moderno ». Nos primeiros anos da década de
1890, Rui Barbosa e Campos Sales foram explícitos no sentido de que
doravante o papel de arbitragem dos conflitos institucionais deveria, como
nos Estados Unidos, caber a um supremo tribunal, que cumpriria as suas
atribuições através de procedimentos juridico-constitucionais. A ideia não
era propriamente nova e não era mesmo privativa dos republicanos. Não por
acaso, enquanto pregavam a circunscrição da margem discricionária de ação
do Poder Moderador, no plano inclinado de influência francesa e ascendente
anglo-saxão, os liberais insistiam no fortalecimento do Poder Judiciário
como adequado árbitro neutro das contendas individuais e mesmo das
contendas eleitorais. Combatendo a todo o transe a reforma do Estado
elaborada por Uruguai, o manifesto do Centro Liberal exigia, em seus pontos
de número 8, 9 e 19, a independência do Poder Judiciário e a unidade de
jurisdição, com a extinção do contencioso administrativo querido pelos
conservadores e a transformação do Conselho de Estado em mero "auxiliar da
administração e não político" (Nabuco de Araújo, 1979:104). Tavares Bastos,
por sua vez, defendia a entrega da magistratura de primeira instância às
províncias, ou, seguindo a sugestão de Prévost-Paradol, prover os cargos
por concurso e fazê promover por um processo que envolvesse órgãos do
Judiciário e do Legislativo, excluído o Executivo (Bastos, 1976:241). Ao
apresentar seu ministério frente às câmaras, em 1882, também o Marquês de
Paranaguá frisava a necessidade de emancipar o Judiciário da dependência do
Executivo, de molde a inspirar a confiança dos partidos em sua neutralidade
em matéria política (ACD, 03/07/1882). O mesmo faria Lafaiete Rodrigues
Pereira, no ano seguinte, ao lembrar aos deputados, na qualidade de
Presidente do Conselho, que o Judiciário carecia ser fortalecido pela
"idoneidade intelectual e moral do magistrado e sua perfeita independência
pessoal" (ACD, 24/05/1883). Já em 1886 estava no ar a possibilidade de se
atribuir a verificação dos poderes dos deputados eleitos pelo Supremo
Tribunal de Justiça (Nabuco, 1949 c: 164). Por fim, a acreditar-se no
depoimento de Salvador de Mendonça, segundo o qual o próprio Imperador
estaria cogitando de criar um tribunal semelhante e transferir-lhe a sua
competência para o exercício do poder moderador (Süssekind, 1960). A ideia
mestra era a de que o poder moderador de uma republica presidencial e
federativa residia na jurisdição constitucional de uma suprema corte.
Estava pavimentado o caminho que levaria à substituição do Poder Moderador
pelo controle jurisdicional de constitucionalidade[17].


Sales, ministro da Justiça do governo provisório, foi claro na
exposição de motivos que precedeu ao decreto que deu organização à Justiça
Federal. O Judiciário era « a pedra angular do edifício federal e o único
capaz de defender com eficácia a liberdade e a autonomia individual »,
pois, « ao influxo de sua real soberania, desfazem-se os erros legislativos
e são entregues à austeridade da lei os crimes dos depositários do Poder
Executivo ». Nele residiria «essencialmente o princípio federal e a boa
organização » de que deveriam « decorrer os fecundos resultados que se
esperam do novo regime » (In: Leite, 1981:70). Outro indício desta
pretensão de corrigir a instituição moderadora corrompida pela política (o
poder moderador monárquico) por via do direito, entendido como o contrário
ou a ausência de política (o judiciarismo) foi o aparte do deputado
Gonçalves Chaves ao discurso proferido em 15 de julho de 1891 por Francisco
Glicério. Enquanto este afirmava que, em virtude da nova ordem
constitucional, o Supremo Tribunal Federal era « o poder mais alto da
República » e que, por isso, ele deveria ser « o mais prestigioso, o mais
elevado posto da liberdade política, para compreender nesta fórmula
simples, o direito individual, o direito dos Estados, e todos os deveres da
autoridade pública na Federação », Chaves não teve dúvidas em qualificá-lo:
« Pode-se dizer que é o poder moderador da República » [18] (In: Leite,
1981:75 e 76). A Constituinte republicana de 1890 acabou por aprovar a
ideia, conferindo a este Supremo Tribunal Federal o papel de instância
decisória máxima no controle difuso e concreto de constitucionalidade.
Assim, caberia à nova corte resolver incidentalmente, e em última
instância, sobre a inconstitucionalidade dos atos do poder publico, seja em
relação aos administrados, seja em relação aos conflitos entre os novos
Estados, no quadro de um Estado de direito marcado pelo federalismo,
conforme estabelecido no art. 59 da Constituição de 1891. Alguns anos mais
tarde, Rui Barbosa assim o explicaria:


"No sistema de governo americano há um poder que vela pela
observância das divisas constitucionais entre os três poderes
políticos do Estado – é o poder judiciário. As sentenças deste
poder, quando proferidas regularmente, pelo seu órgão supremo,
constituem a suprema aspiração do direito constitucional e formam a
verdadeira lei, a lei indubitável, a lei irrecorrível do país. A
nossa constituição, tomando aos Estados Unidos esta instituição,
incomparavelmente benfazeja, lhe deu, nos nossos textos
constitucionais, uma consagração explícita e categórica,
convertendo em texto de lei aquilo que nos Estados Unidos era a
expressão da jurisprudência estabelecida pelos tribunais. Ficou
desde então estabelecido, por um modo absolutamente dogmático, a
impossibilidade de se alterar, por parte do Executivo, ou do
Legislativo, uma decisão final do órgão supremo do nosso poder
judiciário" (Rui Barbosa, 1955: 268) [1915].


Em que pese a opinião contrária de certos autores, de que o
Supremo Tribunal teria passado a desempenhar a contento suas funções a
partir do governo Prudente de Morais (Rodrigues, 1991), a verdade é que a
percepção crescente da opinião publica foi no sentido contrario, isto é, de
que essa instituição estava muito longe de cumprir o desígnio para a qual
havia sido criada e que era de todo impotente para resolver os impasses do
regime (Mangabeira, 1960). O tribunal enfrentava todas as dificuldades
próprias do contexto da época, como a resistência dos demais poderes a
semelhante controle, por tradição ou por uma interpretação rígida da teoria
da separação de poderes. Além disso, a própria nomeação dos ministros do
tribunal era submetida aos critérios da política dos governadores,
decorrendo de retribuição de favores ou de alianças entre facções
regionais. Os ministros votavam de acordo com os interesses das facções a
que eram ligados, mantendo-se incertos os limites de aplicação da ordem
constitucional. Assim, o preço da preservação, pelos tribunais, das
condições de reprodução da ordem dominante na Republica Velha, à custa da
exclusão das facções rivais e das classes populares, foi a impossibilidade
de representarem-se como ordem geral (Koerner, 1994) e exercer o seu
pretendido efeito moderador.


Seja como for, deve ser dito em honra ao Supremo que, ainda que
todos esses obstáculos fossem miraculosamente superados, ele provavelmente
jamais poderia ter exercido a influência « moderadora » de seu congênere
norte-americano. E isto, pelo fato muito concreto de que ele não dispunha
do poder de vincular os juízes e tribunais que lhe eram inferiores ao
resultado de seus julgados, ao contrário da Supreme Court. Esse poder, que
se programava por um mecanismo denominado stare decisis, firmava a
orientação do tribunal num determinado assunto a partir do julgamento de um
caso particular, e obrigava todo o aparelho judiciário (ao menos o
federal), na adoção do mesmo ponto de vista, criando uma jurisprudência
obrigatória. Como o stare decisis, porém, não existia no Brasil, não apenas
os juízes inferiores, federais ou estaduais, mas os próprios poderes
executivo e legislativo, federais ou estaduais, não se entendiam obrigados
a rever sua própria linha de orientação na interpretação da legalidade de
seus próprios atos. Assim, cada cidadão cujos direitos fossem violados era
obrigado, se realmente desejasse « justiça », a levar seu próprio caso a um
juízo comum e aguardar pacientemente que, depois da passagem por todas as
instâncias inferiores, o processo chegasse ao Supremo - ainda que este já
houvesse examinado a matéria diversas vezes no mesmo sentido. Somando-se
esse problema ao do trafico de influência, vê-se que a « função
moderadora » do Supremo era exercida apenas a quem tivesse prestigio,
paciência e dinheiro, e mesmo assim a conta-gotas.


A realidade do exercício do poder político na Republica Velha era
francamente contraria ao propalado liberalismo de suas instituições. Os
primeiros dez anos do regime, marcados por continuas conspirações, golpes
ou tentativas de golpes de Estado, rebeliões, renuncias de presidentes,
foram marcados por uma verdadeira entropia institucional. Até o inicio do
século XX, a critica às novas instituições republicanas eram marcadas por
um debate que opunham parlamentaristas republicanos, como Silvio Romero
(Romero, 1979), e positivistas, como Julio de Castilhos (Castilhos, 1982),
os primeiros defendendo o fim do presidencialismo, que julgavam
autoritário, e os segundos, defendendo-o com unhas e dentes. Entre uns e
outros, isto é, no centro, estavam os defensores do establishment, como os
republicanos históricos e os antigos adesistas, apoiados pelo positivismo
gaucho. Por fora, corriam os monarquistas, que pretendiam restaurar o
antigo regime e a centralização. No período, porém, da primeira década do
século XX, entre a ascensão de Campos Sales ao poder, de um lado, e a crise
da sucessão de Afonso Pena, opondo as candidaturas de Rui Barbosa e Hermes
da Fonseca, ocorre uma cisão interna neste centro de sustentação do
establishment, que vai definir em grandes contornos os espectros político e
ideológico da Republica Velha até a sua queda.


A principal causa dessa cisão foi o novo eixo de funcionamento
« sociológico » da política dos governadores, calcada na fraude eleitoral,
eternizando as oligarquias no poder regional e impedindo o surgimento de
uma oposição parlamentar, bem como a impotência da Justiça em geral, e do
Supremo em particular, para assegurarem a alternância dos cargos políticos.
O fim forçado da competição oligárquica pela ocupação patrimonial dos
cargos públicos, em beneficio de apenas uma parte dela, provocou cedo ondas
periódicas de motins regionais organizados pelas facções excluídas, levando
o governo federal seguidamente a recorrer ao instituto do estado de exceção
e à intervenção federal para reprimir essas sublevações e manter seus
aliados no poder. Essa cisão caracterizou-se pela oposição entre dois
grupos antagônicos. De um lado, uma « centro-direita », situacionista, de
discurso oficialista, de culto da vontade política presidencial, que, a
partir de um diagnóstico « realista » da sociedade brasileira, pregava a
precedência do Executivo sobre os demais poderes, em nome da necessidade de
progresso do País, cujas origens intelectuais mais imediatas se encontravam
no pensamento de Campos Sales. De outro lado, uma « centro-esquerda »
oposicionista, que pedia a revisão da constituição para fortalecer o
Judiciário e da União Federal, de culto da legalidade, pregando a
preeminência do Supremo Tribunal Federal sobre o conjunto das instituições.
Seu ícone era Rui Barbosa. Por afinidades políticas, os positivistas
castilhistas tenderiam a se aliar aos primeiros, e os parlamentaristas, aos
segundos. Vejamos as teses de situacionistas e oposicionistas para, sem
seguida, compreender como retorna, no debate político, o tema do poder
moderador ou do poder pessoal.


O pensamento de Sales parte de um diagnostico realista, que é a
desordem e a fragmentação da vida política e a vacuidade ideológica dos
partidos, que se resumem numa luta acirrada por interesses privados, de um
lado, e a necessidade de priorizar a administração, dedicando-se a uma obra
de saneamento financeiro, de outro. O drama de seu antecessor, Prudente de
Morais, governante instável que, tentando debelar a anarquia jacobina, de
um lado, e monarquista, de outro, tendo sua ação dificultada, no Congresso,
por um partido despido de princípios e entregue às ambições pessoais (o
Partido Republicano Federal de Francisco Glicério), o convencera da
necessidade de, se realmente pretendia dedicar-se à obra pura de saneamento
das finanças do país, deveria reorganizar o funcionamento das instituições,
reforçando a autoridade do Presidente da República e retirando-o, o tanto
quanto possível, do raio de alcance da esfera político partidária
parlamentar. Reorientar o regime de acordo com sua "verdadeira natureza"
implicava, para ele, neutralizar o Congresso, tornando-o apartidário e
governista[19]. O grande tema é, aqui, a caracterização da política
partidária e legislativa como "politicagem" [20], que versaria apenas
acerca de interesses particulares, seja do próprio parlamentar, sejam de
sua base, em arrancar do Executivo concessões para si ou para arrebatar o
poder. Os políticos partidários, especialmente os mais poderosos, seriam
"caudilhos políticos, todos igualmente soberanos, e cioso, cada um, da sua
influência pessoal" (Sales, 1908:229). Da mesma forma, o grande perigo da
República era a « anarquia », pelo que a preservação da ordem era a
condição primeira de uma boa administração. Daí porque os elementos
« anarquizadores » deveriam ser varridos da esfera pública legítima. Em
outras palavras, Sales entendia que o pluralismo político, como vinha se
exercendo desde o governo Floriano, tendo comprometido o êxito
administrativo da administração Prudente de Morais, era um empecilho ao
progresso, isto é, à modernização do país e dai a necessidade de neutraliza-
los[21].


Para resolver o problema, Sales dá dois passos. Em primeiro lugar,
em nome, repita-se, da necessidade de administração do país, sendo preciso
"domesticar" o parlamento, cujos integrantes de entregam a uma competição
politicamente exacerbada, é que Sales trança, com os governadores dos
Estados e com a maioria da Câmara dos Deputados, o arranjo que, denominado
por ele política dos Estados, entra na história como política dos
governadores. Esse arranjo, como se sabe, envolvia o apoio do Executivo
federal às oligarquias estaduais que estivessem no poder, em troca do apoio
daquelas aos candidatos que apoiem o governo da União. O controle da
presidência da Câmara determina o controle sobre a verificação dos poderes
dos candidatos eleitos, de molde a "degolar" os oposicionistas e garantir
somente o ingresso dos situacionistas. Em segundo lugar, ele elimina os
vestígios que ainda existiam do governo de gabinete na administração da
República, adotando em toda a sua extensão os princípios de governo
presidencialista, onde a responsabilidade recai unicamente sobre o chefe do
governo e os ministros são, antes de figuras politicamente relevantes,
somente auxiliares técnicos daquele. Por outro lado, o chefe de Estado deve
pairar acima das facções, não pertencer a partido nenhum, governar para
todos. Este é o ponto que mais nos interessa aqui, porque ele faz uma
comparação direta de sua concepção do poder presidencial com o antigo
« poder pessoal » do Imperador, que ele mesmo tão criticara outrora – em
outras palavras, aquilo que ele julgava ter sido o poder moderador:


"Não é mister abrir lutas com os secretários do presidente da
República e nem isso seria possível, em um regime em que a
autoridade é unipessoal, concentrando-se, portanto, toda a
responsabilidade na pessoa do depositário único do poder (Sales,
1908:80). Os que ainda não puderam ainda compreender bem a essência
do regime, tal como o concebeu o nosso mecanismo institucional,
mostram-se ingenuamente apavorados ante esta influência exercida
legitimamente pela autoridade presidencial, supondo estarem na
presença desse fantasma do poder pessoal, que outrora atribuíamos,
nos, os republicanos principalmente, ao Imperador, buscando ai
valiosíssimo subsidio para os ataques à monarquia. Existe, é certo,
no regime presidencial, um poder pessoal; mas – é nisso que se
diferencia do poder pessoal dos soberanos – um poder
constitucionalmente organizado, sujeito a um tribunal político de
julgamento » (Sales, 1908).


Ha uma coerência entre a interpretação republicana do poder do
imperador, que nega a veracidade do regime parlamentar imperial,
substituído pelo exercício concreto do governo pelo « poder pessoal » do
monarca, ainda que numa chave negativa, para a interpretação republicana
presidencialista do poder do presidente da republica, sendo ele
independente do parlamento e chefe direto do governo. Sales dá a entender,
portanto, que o presidente, na republica, passou a deter legalmente o poder
pessoal que o imperador teria exercido ilegalmente na monarquia, criando
assim uma linha de continuidade entre ambos os tipos de regime, ambos
marcados pelo poder pessoal. Nessa verdadeira constituição sociológica
criada por Campos Sales sob a constituição nominal, portanto, o poder
pessoal nacional, isto é, a concentração de poderes nas mãos do presidente
da Republica, de um lado, e federalismo oligárquico, de outro, eram faces
da mesma moeda. O presidente tinha de mandar sozinho, sem ser contaminado
pela « politicalha » do blablablá das deliberações legislativas, naquele
que era o reino do interesse publico, da pura administração e do progresso
nacional; em contrapartida, os Estados tornavam-se terreno livre das
oligarquias situacionistas, da política de campanario e de compressão, do
exclusivismo dos cargos. Esse verdadeiro Tratado de Tordesilhas político
foi a forma como o então presidente tornou possível a governabilidade do
quadro de ingovernabilidade que a experiência constitucional evidenciava
até então.


Essa visão do processo político não era nova no Brasil,
manifestando-se aqui e ali durante todo o século XIX. Ela vinha mesmo a
justificar a existência do poder moderador no período imperial em
pensadores como o Visconde de Uruguai e Joaquim Nabuco. Dom Pedro II, em
seu íntimo, também tinha horror à atividade partidária, mas justamente por
não ser político, ele compreendia que seu papel era regular a participação
dos partidos no governo[22]. Nenhum dos três sustentava que a política
partidária deveria ser neutralizada ou anulada, mas somente mantida dentro
de limites: a competição e intervenção dos partidos na formação dos
governos podem ser indesejáveis, mas é legítima. Nesse aspecto, eles se
mantêm na tradição do pensamento político liberal. É certo que Deodoro da
Fonseca havia também tentado, em novembro de 1891, dissolver o Congresso,
alegando que este havia se corrompido e não representava mais os interesses
da nação. Mas Deodoro era antes de tudo um militar, sendo que o Exército
sempre acreditou ser um depositário do interesse nacional, desinteressado
exatamente porque não político. A novidade, em Campos Sales, é que, pela
primeira vez, um civil ocupante de um alto cargo da administração nacional,
de carreira toda político-partidária, sugere que a participação dos
partidos políticos nos assuntos do governo federal é ilegítima e que, a
rigor, não deveria haver partido algum, uma vez que eles são frutos das
ambições pessoais e não possuem princípios que os norteiem. Temos assim um
Executivo que, pretendendo administrar o país, ou seja, em nome do
interesse público, se identifica com o critério técnico, isto é, culto.
Interesse público, tecnicismo, governo, saber, se opõem ao interesse
particular, à política, aos partidos, à ignorância.


Essa discussão tem relevância neste trabalho por dois motivos. O
primeiro diz respeito a uma determinada tese de que o Executivo federal, na
República Velha, por força da política dos governadores, teria se
convertido num novo poder moderador. Essa tese nos parece destituída de
fundamento. Parece-nos que ela só pode ser admitida se, por poder
moderador, entender-se "o novo arranjo em torno do qual orbita a política
concreta" ou, como parece sugerir Renato Lessa com alguma ambiguidade, o
"equivalente funcional do poder moderador" (1999:155), o que não é mesma
coisa que afirmar que a República Velha teve um poder moderador e muito
menos que o chefe do Executivo o representou. Historicamente, o poder
moderador havia sido uma autoridade suprapartidária que limitava a ação dos
partidos dentro da atividade governamental, que por eles era exercida em
todo o país, e os alternava no poder. A política dos governadores, ao
revés, pretende neutralizar competição partidária, embora não pretenda
eliminá-la, alijando a influência do partidarismo da esfera governamental
federal. Ademais, o poder moderador do Império, devido à centralização, ao
inverter uma situação política, viabilizava a troca de comando de todos os
cargos administrativos das províncias em prol das oligarquias que
estivessem anteriormente no ostracismo, o que apaziguava a política também
no plano regional. A política dos governadores, ao contrário, se erige no
congelamento sine die das situações estaduais, retirando a esperança de que
as elites apartadas possam atingir o poder legalmente. Se ela ordena o
cenário político em curto prazo, a médio empurra as oligarquias
oposicionistas a fazê-lo extra constitucionalmente, i.e., por meio de
sublevações e motins, desestabilizando as instituições. Assim, embora, por
um lado, o presidente da República erigisse em torno de si e de seu governo
uma redoma impermeável aos interesses privados na salvaguarda do interesse
público, os meios empregados acarretavam o predomínio incontrastável de
determinados interesses particulares nos Estados. Ou seja, à medida que
pretendia estabilizar a administração federal, potencializava, em médio
prazo, a instabilidade das administrações estaduais. Por outro lado, o
arranjo satisfazia as oligarquias situacionistas e a maior parte dos
congressistas, de modo a garantir o prosseguimento, na elite investida de
poder, de extremado apego em torno das instituições de 1891 e à doutrina
republicana dos "históricos".


O fato de o situacionismo ter adotado a política dos governadores
como eixo permanente da política nacional incorporou e aperfeiçoou o
« realismo » do discurso salesiano do Chefe de Estado, de viés abertamente
elitista, decisionista e antipartidário. Embora não fosse unânime entre os
governistas, que pela sua situação mesma de absoluta dependência do
sistema, tinham de cooperar plenamente, ainda que críticos dos sistema[23],
esse ponto de vista protoautoritario, « ordeiro » e situacionista, foi
aperfeiçoado por atores e autores, crítico do liberalismo democrático, de
que são exemplos Carlos Peixoto, deputado federal e presidente da Câmara
dos Deputados do governo Afonso Pena (1906-1917); Gilberto Amado, deputado
federal e depois senador (1914-1930); e Francisco Campos, quando deputado
federal (1921-1926). Muito sintomaticamente, todos os três tinham uma
opinião bastante elogiosa sobre a presidência Campos Sales, não viam no
jurismo um valor máximo do regime republicano e eram declaradamente
elitistas, nutrindo amizade ou admiração recíproca. Assim, para Amado,
Peixoto era « brilhante, paradoxal, sorridente, enérgico, belo, forte,
dominador », deplorando, diante de sua morte, « a covardia da mediocridade
conjugada contra a inteligência » (Amado, 1979:202). Diante da pregação de
Francisco Campos contra a candidatura oposicionista de Nilo Peçanha,
"agitação estéril", obra de "demagogos", Amado o aparteará nos seguintes
termos: "São sentenças luminosas, magistrais, lapidares (...). Eu me sinto
honrado de ser brasileiro, assistindo a uma demonstração tão fulgurante de
energia. É uma aurora maravilhosa, que honra a intelectualidade brasileira"
(Campos, 1979:53). Da mesma forma, esses autores faziam a apologia da
"vontade" e da « realidade », num sentido mais vitalista que o de Campos
Sales, na defesa do executivo forte, bem como a ênfase na necessidade de
que ele deveria fomentar o progresso nacional. Em 1914, lembrando que, no
Brasil nossa tradição constitucionalista era "puramente lírica", Amado, ao
lembrar a atuação de Feijó durante a Regência, faria o elogio de sua
« energia » na manutenção da ordem, afirmando que « nenhum é maior do que
ele na nossa história »:


"O pensamento puro não existia para ele. O pensamento é um
consectário da ação. A política, a utilidade pública em movimento.
O papel do homem de Estado, resolver os problemas positivos que a
nação suscita em vista de sua grandeza e conservação (...). Homem
forte, desinteressado e ardente, Feijó, pelo seu amor à causa
pública e pelas faculdades de execução rápida e segura, era bem o
tipo do ditador honesto, o chefe ideal do regime presidencialista,
o grande presidente americano" (Amado, 1963:96 e 98)


Outro exemplo de ator tornado autor na arena pública,
representativo dessa corrente de ideias, foi, conforme frisado, Carlos
Peixoto Filho. Para ele, o governo elitista era essencial para
contrabalançar a tendência de nivelamento para baixo dos regimes
democráticos, sendo que essa diminuta elite política teria mais chance de
surgir num regime presidencialista do que num regime parlamentar. O culto
da vontade política ou a apologia do decisionismo esta sempre em sua
argumentação, atribuindo os males da Republica a luta entre os partidos e
todos os benefícios de que ela até agora teria gozado eram « obras de
chefes de Estado, muitas vezes contrariados pelos partidos e sempre
combatidos pelos que presumiam falar em nome da maioria da opinião
publica ». Neste sentido, o presidencialismo « é o regime em que maior
apelo se faz às qualidades individuais e mais dilatada amplitude se da à
ação desembaraçada do homem; o presidencialismo é um regime de afirmações
pessoais de capacidades espontâneas » (Duarte, 1918:39) e o chefe do
Executivo teria, assim, « certa soma de força arbitraria que é o seu poder
discricionário e o indispensável instrumento de sua atuação individual no
movimento publico do país » (Duarte, 1918:84). Como em Sales, porém, não se
trata de um regime de independência dos poderes, mas de prevalência do
Executivo, a quem incumbe a missão de fomentar o progresso do país: « o
Legislativo fazendo as leis, o Judiciário interpretando-as (...), o
Executivo dinamizando-as, fazendo a policia superior da ordem
constitucional, presidindo e impulsionando a atividade econômica do país,
mantendo a absoluta segurança dos direitos civis e políticos dos povos »
(Duarte, 1918:88). Como se vê, Peixoto não defendia uma ruptura com a
liberal democracia, e sim uma prática institucional verdadeiramente
presidencialista, regime que nos teria garantido a prática da liberdade
civil, « impedindo que ela degenerasse na demagogia inconsciente, que
conduz à anarquia e abre assim caminho fácil a perigosas aventuras de
violência, fonte e matriz do cesarismo e da tirania » (Peixoto Filho,
1978:239).


Não pretendo aqui afirmar que tais autores fossem então, no íntimo,
autoritários no sentido de suprimir a liberal democracia. É mesmo duvidoso
que pudessem sê-lo, pelo menos antes que houvessem sido instalados governos
formalmente autoritários na Europa. O que se pretende aqui é apontar que
tais atores, na defesa do situacionismo da República Velha, desenvolveram,
em sua atuação pública, argumentos que justificavam a prática
sociologicamente autoritária do regime de 1891, opondo-se às tentativas
oposicionistas de promoção de reformas que tornassem a prática política
verdadeiramente democrática, como o voto secreto, ou que dessem poder
efetivo ao Congresso ou ao Supremo Tribunal Federal. O situacionismo
incondicional desses atores, suas posições de lideranças e a
impossibilidade de aceitar argumentos da oposição, que implicassem na
possibilidade de alternância de facções, os impelia, independentemente do
eventual posicionamento íntimo de cada um, a desenvolver, na esfera
pública, um conjunto de argumentos literalmente reacionários, a mais das
vezes calcados na necessidade de reforço da autoridade do Executivo e a
defesa da « energia » como condição da ordem, esta condição, por sua vez,
do progresso nacional. Esses argumentos surgiam especialmente no combate às
oposições, fossem eleitorais – como na campanha civilista e na campanha da
Reação Republicana – ou armadas – como as revoltas da Armada e da Chibata,
as insurreições tenentistas, ocasiões que davam ensejo ao pedido de
decretação do estado de sítio e aos debates parlamentares que se lhe
seguiam. Elas também surgiam contra as veleidades do revisionismo e em
particular na defesa do sistema presidencialista de governo. Da mesma
forma, embora alguns dos atores situacionistas pudessem, eventualmente,
fazer a defesa da necessidade de existência de partidos, na prática negavam
que os partidos pretéritos passassem de ajuntamentos egoísticos buscando a
partilha do poder. A exigência idealizada de um partido altruístico,
formado em torno de princípios, composto de uma elite de estadistas
esclarecidos, inviabilizava de antemão o surgimento realístico de qualquer
partido, que era logo tachado de faccioso – desde, é claro, que não fosse
de oposição (como foi o caso do efêmero Partido Conservador Republicano,
durante o governo Hermes). Isto fica claro quando se tem em mente que
Amado, adepto do realismo sociológico, crítico de tantos aspectos da vida
política nacional, no campo político sempre apoiou o establishment durante
a República Velha e jamais atacou o poder executivo de absorvente ou lhe
imputou o fato da impotência do legislativo, o que faria
retrospectivamente, depois de 1930[24].


Longe de a situação se estabilizar no decorrer dos anos, concedido
sempre por um Legislativo de obedientes clientes, o estado de sitio, como
veículo repressor, e a intervenção federal, como mecanismo de alternância
de oligarquias estaduais, tornaram-se expediente ordinários para superar os
obstáculos políticos opostos pelos opositores do governo. O caso era mais
grave que durante o Império, na medida em que as dissoluções das câmaras de
deputados eram veículos de alternância de facções, tanto no centro como nas
províncias, e não de sua perpetuação. Agora, o poder presidencial era visto
como instrumento partidário da manutenção de um condomínio oligárquico no
poder, e não como agente neutro de sua alternância. Como o regime não se
permitia oxigenar, eram cada vez mais violentos os reclamos da oposição e,
por conseguinte, a necessidade de recorrer a remédios brutais para reprimi-
la. Se até 1910 haviam sido decretados três estados de sítio, daí por
diante eles se tornariam parte da rotina institucional e justificados pela
situação, através do realismo sociológico, da necessidade de preservar a
ordem e pelo culto da vontade política, de forma que o quadriênio de Artur
Bernardes, já na década de 20, transcorreria praticamente todo sob o estado
de exceção. Entre 1909 e 1922, haveria pelo menos nove intervenções
federais nos Estados. Ainda que a oposição crescente ao regime aproveitasse
a publicidade do procedimento judiciário para produzir o maior estardalhaço
possível na opinião publica, como ilustram o uso da tribuna feito por
liberais oposicionistas, monarquistas – como Andrade Figueira - ou
republicanos – como Lauro Sodré e Rui Barbosa -, as inumeráveis
arbitrariedades cometidas pelo governo federal, durante o sitio ou fora
dele, entretanto, não tinham como ser adequadamente resolvidas pelo
aparelho judiciário ou pelo Supremo Tribunal, dadas as suas já mencionadas
limitações. Em 1911, Gilberto Amado, talvez o maior « sociólogo » do
situacionismo, escreveria sobre o estado de sítio do governo Hermes da
Fonseca, ironizando as catilinárias judiciaristas de Rui Barbosa:


« Vimos que o estado de sítio não é um pavor, cuja única presença
suspende o respirar às nações e determina as clássicas síncopes
constitucionais que tanto espantam os encantadores estilistas do
jornalismo patriótico. O estado de sítio entre nós perdeu o caráter
de medida excepcional; não é a enfermidade horrível que há tempos
mestre Rui temia com eloquência se tornasse crônica no Brasil, com
toda a sua gravidade substancial. É, ao contrário, um incômodo
leve, cuja intermitência não assombra (...). O Brasil não parece
mais que um sujeito amarelado o pernóstico, que se mete a falar
francês, aparentar musculaturas de atleta (...) e que, no melhor da
festa, zás! arrebenta o fígado numa aluvião de bílis (...). O
estado de sítio e os acontecimentos que o determinaram vieram
surpreendê-lo nos esplendores de uma saúde aparente. Mas foi uma
maravilha, uma insulsa e louvável inutilidade que, longe de
paralisar a vida do país, teve apenas o ânimo de 'sanear' a Rua
Senador Dantas (então, zona de prostituição elegante); levar ao
xadrez algumas pessoas inócuas; obrigar-nos à impertinência dos
salvo-condutos (...). Mais nada. A Constituição quase funcionou
normalmente, nutrindo a jurisprudência do Supremo que, como
instituição nacional, não quis fugir ilogicamente às delícias da
anarquia em que o vimos mergulhar por ocasião dos últimos
trabalhos » (Amado, 1963 :71 e 72).


A crescente oposição liberal ao regime passou a fundar seus
reclamos, sobretudo a partir da década de 1910, em torno de um movimento de
revisão constitucional. Esse movimento, capitaneado por Rui Barbosa, exigia
a regeneração da republica pelo estabelecimento da verdade eleitoral e pela
reforma judiciária, no sentido de centraliza-la na justiça federal. Também
aqui se tratava de duas faces da mesma moeda. Entendia-se que as justiças
estaduais, sempre parciais e dependentes dos ocupantes dos poderes locais,
que as nomeavam, desempenhavam um papel central na perpetuação das
oligarquias, visto serem quem sancionava as fraudes eleitorais. A unidade
da Justiça facilitaria a defesa dos direitos civis e políticos da oposição,
dada a maior visibilidade da esfera federal e a suposição de que tal
reforma conferiria ao Supremo Tribunal Federal, no seu papel ultimo de
garante do Estado de direito, a importância que lhe era devida. Essa defesa
de uma reforma institucional fulcrada na justiça e na valorização do
Supremo como lugar privilegiado da resolução dos conflitos políticos leva-
me a denominar essa oposição liberal ao regime de judiciarista. A esta
linha filiar-se-iam atores como Levi Carneiro, João Mangabeira e Batista
Pereira. Desnecessário acrescentar, por outro lado, que praticamente todo o
establishment recusava, em nome da intangibilidade da « obra republicana »
e, dentro dela, do « federalismo », qualquer possibilidade de semelhante
revisão, a começar pelo próprio Campos Sales e pelo senador Pinheiro
Machado, condestável castilhista do regime. Poder-se-ia fazer-lhes a mesma
critica que os situacionistas faziam aos parlamentaristas, que era o de
frear o poder significava frear o progresso.


No inicio da década de 1920, contudo, surgiu o tenentismo, outra
espécie de oposição, mais heterogênea, mas também mais radical nos métodos
e aspirações, cuja maior parte rapidamente evoluiu para questionar os
próprios fundamentos liberais da ordem estabelecida em 1891. Ao invés de
campanhas parlamentares, os tenentes exprimiam-se em sublevações armadas,
que ocorreram praticamente em todas as regiões do pais, como Rio de
Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Amazonas, sem
falar na Coluna Prestes que atravessou quase que todo o pais. Inicialmente,
os manifestos tenentistas abraçavam os ideais judiciaristas, reclamando a
reforma eleitoral e judiciária, e fazendo a critica dos governos
estabelecidos. Entretanto, a maioria logo evoluiu para questionar os
próprios fundamentos do regime, reclamar uma transformação nacional muito
mais ampla e a fazer a critica da própria atividade política profissional.
Assim, se em 1924 os revoltosos paulistas e amazonenses criticavam os
«governos de nepotismo, de advocacia administrativa e de incompetência
técnica na alta administração », para « emancipar a Nação brasileira do
jugo aviltador de meia dúzia de tiranos encapuzados que a depauperaram, e
retaliam e desonram », através do voto secreto e da unificação da
magistratura e do processo, em 1926 os tenentes gaúchos já admitiriam que
«não importa estar este ou aquele nome na presidência da Republica (...)".
Ou a política se regenera, se torna sã e útil, ou nos a destruiremos (...)
pela espada e pela metralha » (Carone, 1975). Não surpreende que, em 1929,
enfim, já se tratasse de mudar o regime e nacionalizar as instituições
mediante de um interregno ditatorial, eis que as existentes seriam
importações estrangeiras inadaptáveis às peculiaridades e imperativos
nacionais.


Assim, pelo menos nos últimos quatro anos da Republica Velha, a
maior parte dos tenentes, cuja origem social e idade os desvinculava do
establishment, já não pleiteavam uma revisão constitucional, e sim uma
verdadeira reinstauração da republica num sentido nacionalista. O Brasil
deveria passar a ser encarado como um todo orgânico, sem prejuízo das
regiões mais pobres, e esses fins não poderiam ser atingidos pela mera
federalização da Justiça ou pela verdade eleitoral. Era necessária a
própria centralização do pais, com o consequente fortalecimento da União,
de forma a dar-lhe meios para superar os entraves opostos à modernização do
pais (Forjaz, 1988). Essa modernização passava ainda por medidas
estatizantes no campo econômico, pela nacionalização da exploração de
recursos naturais e pela resolução de um problema social que a
« politicalha » preferia continuar tratando como caso de policia. O
repertorio de ideias deste movimento era, em muitos sentidos, mais atual do
que a dos « judiciaristas », nela reverberando toda a radicalidade da
critica à ordem liberal, que recrudescera em todo o mundo após a Primeira
Grande Guerra. No grupo tenentista majoritário, cujo chefe era Juarez
Távora e que chegaria ao poder em 1930, predominavam as ideias de dois
autores nacionais. O primeiro deles havia escrito suas duas principais
obras em 1914 e as teria visto se disseminarem na década de 20, caso
houvesse sobrevivido. Em seu projeto de reforma constitucional, ele
propunha reinstaurar, sob outro nome, na cúpula do Estado republicano, um
poder moderador à brasileira, isto é, neutro e ativo. Este autor era
Alberto de Seixas Martins Torres, antigo governador do Estado do Rio e
ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal. Pouco antes de estourar a
Grande Guerra, Torres publicara O problema nacional brasileiro e A
organização nacional, obras em que discutia a situação do Brasil do ponto
de vista nacional e internacional, pleiteando uma reforma política que o
salvasse da fragilidade e do atraso em que se encontrava. Embora saído dos
quadros administrativos da república, da qual havia mesmo sido
propagandista e, depois, alto funcionário, Torres havia na juventude sido
bastante influenciado pelo positivismo. Quando redigira seus livros
principais, estava absorvido também por outras teorias de base
« cientifica » de seu tempo, criticas do formalismo jurídico enquanto
instrumento valido de conhecimento do real. Embora não haja aqui espaço
para discutir essas influências, o que importa reter é que elas ajudaram
Torres a dar-se conta da vulnerabilidade em que o Brasil se encontrava, num
período de imperialismo internacional predatório, onde as nações mais
fortes haviam perdido qualquer pudor, que outrora pudessem ter se
permitido, de submeter as nações mais fracas aos seus desígnios
particulares de poder e riquezas. O verdadeiro fantasma era a China, grande
pais outrora poderoso, tornado presa das grandes potências internacionais,
dividida em protetorados de fato, humilhada pelo estrangeiro (Torres, 1914
a).


O argumento central de Torres, portanto, era o de que a
modernização do pais não podia ser mais adiada, sob pena de o pais perder-
se enquanto nacionalidade. O Brasil, distraído nas quimeras das doutrinas
abstratas, se pretendia sobreviver na selva em que o mundo se tornara,
precisava com urgência se conhecer objetivamente para, dotado de
informações sobre a sua própria condição, reorganizar-se politicamente numa
plataforma realista. Essa modernização, que ele denomina « organização
nacional », seria possível por meio de reformas de Estado que, permitindo-
lhe alcançar os mais distantes rincões, graças a uma burocracia
racionalizada e meritocrática, elevasse o padrão de instrução, alimentação
e saúde da população. Para tanto, era necessário, além de romper com o
mimetismo institucional estrangeiro, ganhar a partida contra as oligarquias
que faziam do cenário político nacional "uma vegetação de caudilhagem e
destruição, ramificada por todos os órgãos do poder público", o que seria
obtido por uma reforma constitucional que liquidasse o federalismo
permissivo de 1891 e, centralizando o poder na autoridade federal, criasse
um « governo fortíssimo » (Torres, 1914 b). Esse novo arcabouço
institucional seria encimado por um quarto poder – poder coordenador – que
teria como órgão principal um conselho de estadistas, não apenas
encarregado do planejamento, em longo prazo, das diretrizes dessa nova
ordem, como o de decidir acerca de uma série de questões fundamentais da
vida política nacional, como a autorização da intervenção federal, o
controle concentrado de constitucionalidade, a elaboração da legislação
trabalhista e a verificação da lisura das eleições. Esse quarto poder
coroaria...


"... estas disposições tendentes, todas, a fortalecer a ação
governamental, a ligar solidariamente as instituições do país e a
estabelecer a continuidade na persecução dos ideias nacionais (...)
com um órgão, cuja função será concatenar todos os aparelhos do
sistema político, como mandatário de toda a nação - da Nação de
hoje, da Nação de amanhã - perante seus delegados. Não é uma
criação arbitrária; é o complemento do regime democrático e
federativo, sugerido pela observação da nossa vida e pela
experiência das nossas instituições" (Torres, 1914 b).


O projeto de Torres espanta ainda hoje pela sua modernidade. Ele
suscita questões e sugere diversos remédios, que só fariam parte da agenda
internacional depois da Primeira Grande Guerra. Entretanto, por mais
inventivo que ele seja, e por mais que criticasse a monarquia, é
praticamente impossível não concluir que, em alguma medida, ele se achava
influenciado pela experiência que viveu das instituições imperiais e
pretendia atualiza-las, negando, porém o intento para não suscitar a
acusação de monarquismo, o que ele sem duvida não era. O fato de se tratar
de um conselho e não de uma única pessoa no exercício desse poder não o
descaracterizava como moderador, porque, na experiência concreta do
Império, o exercício desse poder pelo monarca sempre estivera associado às
consultas obrigatórias que ele fazia ao conselho de Estado, nata da classe
política nacional. Em ambos os casos, tratava-se de entregar o papel de
traçar estratégias nacionais de longo prazo a um conselho cujos membros, de
elevada envergadura moral e intelectual, gozando de vitaliciedade,
pairassem acima do quiproquó político-partidário. No fim das contas, Torres
propunha conceder a um conselho de estado as atribuições interventoras de
um poder moderador ativo, sujeitando a esse conselho uma gigantesca
burocracia que o permitisse exercer suas atividades modernizadoras nos
menores vilarejos do país[25]. De « moderador », o poder coordenador era na
verdade um poder interventor.


Essa recuperação do conceito de poder moderador provavelmente só
foi possível porque, entre outros motivos, já não de todo era politicamente
incorreto que membros da própria elite republicana pudessem evocar algumas
das instituições imperiais numa chave positiva. Isso decorria da distância
progressiva que tomavam os acontecimentos de 1889 e a próprio crescimento
da oposição contra a situação criada pela política dos governadores. De
fato, além da crise de legitimidade sofrida pelo regime a partir da
campanha de Rui Barbosa contra a candidatura oficial de Hermes da Fonseca,
a década de 1910, tão crucial na gestão das ideias que vão dominar as
décadas seguintes, foi também marcada pela incorporação da critica dos
monarquistas propagandistas da restauração, a mais importante feita até
então a republica de 1891. Essa decantação das criticas monárquicas ao
repertorio da oposição republicana ao establishment ocorreu exatamente – e
provavelmente não por acaso – quando a proposta restauradora estava em vias
de perder de todo sua importância no conjunto de forças de oposição e
morriam os últimos estadistas do Império que encabeçavam o movimento, como
o Visconde de Ouro Preto.


Com efeito, os monarquistas haviam deixado obras e criticas onde
centravam fogo, exatamente, nos pontos em que os próprios oposicionistas
republicanos haveriam de vislumbrar o calcanhar de Aquiles do regime – a
fraude eleitoral e, por via do federalismo exagerado, com perigo de
fragmentação nacional, o desempenho sofrível da Justiça dual no papel de
mantenedora do Estado de direito. A mais brilhante defesa do retorno ao
sistema de centralização judiciária havia sido a feita pelo ex-ministro da
Justiça do ultimo gabinete liberal, o jurista Cândido de Oliveira (1986),
na vasta obra coletiva de critica monarquista publicada para « comemorar »
os primeiros dez anos do golpe de 15 de novembro, A década republicana,
cuja publicação em fascículos adentrou o século XX. Os monarquistas, além
de enaltecerem, como era de se esperar, as virtudes pessoais da família
imperial e o parlamentarismo, faziam o elogio do Conselho do Estado e da
alternância partidária durante o Império, mostra, segundo eles, da
possibilidade de competitividade política num regime liberal, que a
Republica era incapaz de fornecer. Da mesma forma, apontavam a tolerância
do regime monárquico à propaganda republicana, a extensa liberdade de
imprensa, o respeito aos direitos das minorias políticas – enfim, tudo
aquilo que fazia o apanágio do verdadeiro liberalismo. Esse fato talvez
explique mesmo a moderação com que, até pouco antes da época em que Torres
escreveria suas obras, os monarquistas aludiriam ao poder moderador,
preferindo esconder o conceito por trás da atuação pessoal de Dom Pedro II,
« o magnânimo ». Talvez não soubessem, também eles, como conciliar
doutrinariamente sistema parlamentar e poder moderador (Afonso Celso, 1899
e 1900).


No que tange a esse ponto, porém, havia uma nota destoante no
próprio movimento monarquista; nota que, dissonante, soava porém mais alto.
Quem a tocava era Joaquim Nabuco. O ex-deputado liberal pernambucano, auto-
exilado do novo regime, guardava todo o seu prestigio de antigo chefe do
partido abolicionista. Em seus escritos da década de 1890, Nabuco ensaiava
não apenas a reentrada do conceito do poder moderador numa chave muitíssimo
positiva, como o fazia numa chave explicitamente modernizadora, o que não
ocorria desde que o Visconde de Uruguai publicara o seu Ensaio sobre o
direito administrativo, em 1862. Nabuco, porém, ia mais além que o velho
saquarema: o que ele iria advogar, era um poder moderador que, embora
neutro e passivo frente às oligarquias e seus interesses, fosse partidário
(isto é, ativo) quando se tratasse de defender os interesses nacionais,
emprestando sua voz a um soberano popular que se achava subjugado e
amordaçado.


Desde o final do Império até o inicio do governo Campos Sales, o
antigo chefe abolicionista não somente reiterara diversas vezes sua
condição de monarquista, como advogara a necessidade do poder moderador da
monarquia para tais fins. Essa suspeita quanto às potencialidades benéficas
do poder moderador, que ele já alimentava pelo menos desde 1884, quando
escreveu O abolicionismo[26], e reafirmada logo no ano seguinte, no
opúsculo O erro do Imperador[27], acabou por lhe ser confirmada plenamente
em 1888. Tal como ocorrera quando da votação da Lei do Ventre Livre e do
sustentação dada ao gabinete Dantas, respectivamente em 1871 e em 1884, a
Coroa desempenhou então um papel fundamental no processo de abolição da
escravatura, valendo-se da discricionariedade que lhe era própria para
exonerar um gabinete escravista, sem que este houvesse perdido a maioria na
câmara, chamando ao poder outro, que fizesse imediatamente a abolição. O 13
de maio foi, então, questão de uns poucos dias, para a indignação de toda a
bancada escravocrata, que passaria a agourar a continuidade da monarquia.
Depois da abolição, Nabuco, ao contrario, passou a sustentar pelos jornais
a necessidade da defesa da monarquia, postura que não se modificou depois
do 15 de novembro, como se depreende de seus novos opúsculos, como Por que
continuo a ser monarquista, seja em suas obras do inicio da década de 1890,
como Balmaceda e A intervenção estrangeira na revolta de 1893.


Seu argumento central era o de que a modernização do Brasil, num
sentido democrático, não tinha como se efetivar pelos meios liberais
clássicos. Na ausência de uma opinião publica livre da dominação pessoal,
que pudesse conhecer seus interesses e exprimi-los inequivocamente, o
regime parlamentar liberal não apenas encobria uma realidade social de
« feudalismo », como estava a serviço das oligarquias agrárias que,
ressentidas com a monarquia, não tinham qualquer interesse na modernização
política e social do pais. Dai porque era necessária a existência de uma
força, no topo das instituições políticas, livre dos interesses político-
partidários vinculados aos partidos, dotada de espírito imparcial e
público, capaz de, no quadro do próprio liberalismo, não somente manter o
equilíbrio constitucional contra as investidas privatísticas, mas também de
impor, sempre que necessário, as reformas modernizadoras exigidas pelo
interesse nacional, quando aqueles interesses tencionassem lhes obstruir o
caminho. Segundo Nabuco, numa regime constitucional, despido de esfera
publica que servisse de motor ao progresso social e cujo povo estivesse
subjugado por uma casta oligárquica de roupagem parlamentar, o exercício do
poder moderador para esses fins – e não a arena legislativa - é que
exprimia a vontade nacional. Para tanto, o conselho de Estado era o órgão
altaneiro que auxiliava o poder moderador a atender ao interesse da opinião
publica extraparlamentar.


«Ha muito tempo, Senhor Presidente, que eu abandonei o caminho das
sutilezas constitucionais que se adaptam a todas as situações
possíveis". Pelo estado do nosso povo e a extensão do nosso
território, nos teremos por muito tempo, sob a monarquia ou sob a
republica, que viver sob uma ditadura de fato. (...) Pois bem, todo
o meu esforço em política ha bastantes anos tem consistido em que
está ditadura de fato se inspire nas necessidades do nosso povo até
hoje privado de teto, de educação e de garantias e que ela
compreenda que a verdadeira nação brasileira é coisa muito diversa
das classes que se fazem representar e que e que tomam interesse na
vida política do pais. (...) Agora (...), o que se vê, Senhor
Presidente, é essa ditadura de fato assumir o caráter de governo
nacional no mais largo sentido da palavra, promovendo a abolição
(..) » (Nabuco, 1983).


Dai porque o regime republicano seria fatalmente mais opressor que
o monárquico. Um presidente da republica não apresentaria qualquer garantia
de força, legitimidade ou imparcialidade nacionais. Saído dos grupos
oligárquicos, cria do latifúndio, também ele acabaria por empregar seu
poder contra o povo, de que davam exemplo diversas republicas hispano-
americanas[28]. Nabuco iria mesmo mais longe, advogando a necessidade de um
poder moderador para todos os países da América Latina, envolta em
intermináveis contendas caudilhistas que resultavam em golpes de Estado e
governos de classe, liberais somente da boca para fora: «Não ha mais bela
ficção no direito constitucional do que a que imaginou Benjamin Constant
com o seu poder moderador". O que a América do Sul precisa é um extenso
poder moderador, um poder que exerça a função arbitral entre partidos
intransigentes. De muitas doenças graves costuma-se dizer que foi no
principio um resfriamento mal curado; a historia da América do Sul parece
não ter sido outra coisa que uma revolução mal curada » (Nabuco, 1937). A
existência do poder neutro na América Latina se mostrava ainda mais
imperiosa na medida em que, como repetiria Torres, a sua instabilidade e o
seu atraso crescente começava a pôr em risco a sua própria existência
independente na emergência de um cenário internacional belicoso e
neocolonialista como era o da passagem do século XIX para o XX[29]. Suas
obras posteriores, de caráter propriamente historiográfico, como Um
estadista do Império e Minha formação, não deixariam igualmente de
engrandecer o papel da monarquia e, em particular, o da dinastia de
Bragança, como agentes fundamentais da independência, da unidade e da
nacionalidade brasileiras[30].


O ano da morte de Nabuco (1910), como vimos, coincidiria com o
inicio das contestações ao sistema implantado em 1891, deflagrada pela
eleição presidencial de 1909, pelo desaparecimento do movimento monarquista
enquanto força relevante de oposição ao regime e pela incorporação,
todavia, de suas das criticas, ao repertorio contestador republicano. Com
efeito, ha inúmeros sintomas de uma virada das ideias políticas brasileiras
nesse período, provavelmente a mais importante em vinte anos. Em 1914, o
próprio Rui Barbosa, da tribuna do Senado, reconheceria, num discurso
célebre sobre a corrupção política republicana, o fracasso do regime na
criação de um verdadeiro Estado de direito, apontando a superioridade do
Império neste aspecto, graças, sobretudo, à ação « saneadora » do
Imperador, fazendo assim o elogio indireto do poder moderador. Esse
discurso causou grande escândalo na arena parlamentar, a ponto de Pinheiro
Machado, interpela-lo publicamente sobre seu « monarquismo ». Destaco sua
passagem mais famosa:


"A falta de justiça, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra,
o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte
de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação.
(...) De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a
desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-
se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da
virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi
a obra da República nos últimos anos. No outro regime, o homem que
tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o
sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma
sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que,
acesa no alto, guardava a redondeza, como um farol que não se
apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade gerais".
(Anais do Senado, 1914).


Outro sintoma da mudança na apreciação do conceito do poder
moderador vinha dos próprios monarquistas, que, desmobilizados
politicamente, aparentemente já conformados com a irreversibilidade da
republica, mantinham acesa porém a chama da memória do Império. O Conde de
Afonso Celso, que, como os demais monarquistas, até então estivera mudo
quanto ao tema especifico do poder moderador, preferindo fazer o elogio do
sistema parlamentar em obras como Oito anos de parlamento ou A década
republicana, não apenas passou então a reconhecer, por esse tempo, que de
fato o Imperador exercera o « poder pessoal » tão criticado durante seu
reinado, na linha de Nabuco, como declarava ainda, já sem qualquer receio,
que esse poder pessoal era legal e que havia sido, ao contrário do que se
afirmara, benéfico e mesmo fundamental para o desenvolvimento do pais[31].
É o que se depreende da leitura de sua obra posterior, de 1914, intitulada
Poder pessoal de Dom Pedro II (Celso, 1929).


A aparente desmobilização dos velhos monarquistas, porém, parecia
não sossegar o regime. O tema continuava a assombra-lo, por motivos reais
ou imaginários, mobilizado como instrumento de exploração política da
oposição. Em 1908, o herdeiro presuntivo do trono, Dom Luis, filho da
princesa Isabel, tentou desembarcar no Brasil, semeando certo pânico nas
hostes republicanas e ensejando mesmo uma consulta jurídica do presidente
Afonso Pena a Rui Barbosa sobre a constitucionalidade do decreto que banira
a família imperial. Em 1913, o mesmo príncipe lançava um manifesto no qual
denunciava o federalismo e as oligarquias regionais como perniciosas à
unidade nacional, defendendo, na eventualidade de uma restauração, a
reforma federativa em sentido centralizador, a unidade da Justiça, a
atenção ao problema social operário e – como não poderia deixar de ser - o
restabelecimento do conselho de Estado, cujo « caráter vitalício de seus
membros, assegurando a permanência de representantes dos diversos partidos
políticos, constitui uma garantia de imparcialidade, tão necessária; e as
luzes ai reunidas são para a Coroa valiosas, na decisão das questões mais
importantes » (Torres, 1973). Sua proposta, muito enfática o que toca à
necessidade de progresso, se insere nitidamente no quadro de uma
modernização conservadora, com reforço da autoridade do monarca na
atividade governamental. Novamente houve sessão para debater o manifesto
no Congresso Nacional, graças à iniciativa de Martim Francisco, deputado
herdeiro dos Andradas que se intitulava monarquista, o que mostra que o
tema ainda ali causava frisson e que as propostas eram objeto de debate,
num quadro porém antes contemporâneo que historiográfico (Torres, 1973).


A revalorização do conceito de poder moderador e de um conselho de
Estado não ficou, porém, restrita aos meios estritamente oposicionistas.
Nesse mesmo Congresso Nacional, muitos deputados, diante da crise de 1910,
passaram a simpatizar com a ideia de restabelecer um conselho de Estado no
quadro da Republica. Assim, é também deste ano o projeto apresentado pelo
deputado Arnolfo de Azevedo (Azevedo, 1968), cuja exitosa carreira
parlamentar toda seria marcada pelo mais acendrado governismo (a ponto de
ser incluído nomeadamente na lista dos « carcomidos », depois da Revolução
de 30). Seu projeto teve parecer favorável no ano seguinte e voltou à
comissão de Justiça em 1912, encontrando o apoio entusiástico de Afrânio de
Melo Franco, então também deputado (Franco, 1955). Entretanto, a proposta
desses governistas era de natureza bastante diferente da de Alberto Torres:
tratava-se de um conselho consultivo para assessorar a presidência da
Republica com suas « luzes », auxiliando-o e contribuindo para a
« indispensável continuidade administrativa », que, segundo eles, não tinha
lugar num regime sujeito a solavancos quadrienais. O enfoque nada tinha de
propriamente modernizador: o intuito era o de desconcentrar o poder do
presidente, já entendido como excessivo, em proveito de um órgão de
« grandes e experientes estadistas », composto inclusive de ex-presidentes
da Republica. Como se vê, a leitura que os liberais governistas faziam da
experiência imperial era bastante diferente daquela que faziam os
modernizadores, embora com eles comungasse da ideia de um poder
« esclarecido » que « iluminasse » o Executivo. O elitismo esclarecido é
que, pela leitura da experiência imperial, lhes dava saudade, no lugar do
um elitismo bronco que, para eles, dominaria a republica do Marechal Hermes
e de Pinheiro Machado. Embora o projeto tenha sido reapresentado algumas
vezes no decorrer da Republica Velha, inclusive na década de 1920 (Azevedo,
1968), ele não tinha nenhuma possibilidade de aprovação num regime menos
interessado em partilhar o poder do que em concentra-lo, de que seria prova
a revisão constitucional de 1926. O fato, porém, é que, como veremos, a
ideia faria seu caminho.


Outros aderentes notórios do regime, instalados em importantes
postos seus, como o político e historiador Aurelino Leal e o ministro Pedro
Lessa, do Supremo Tribunal, acabaram, no mesmo período, não apenas por
admitir as insuficiências da republica, como por reconhecer que o poder
pessoal do Imperador e sua elite político-administrativa haviam sido
indispensáveis num pais que, ainda no tempo em que escreviam, não tinha
condições sociais de praticar adequadamente um regime democrático. Ambos
combatiam então o revisionismo e a proposta de reintrodução do
parlamentarismo, dando a entender que o sistema parlamentar imperial na
verdade era um presidencialismo disfarçado nas mãos do Imperador... Ambos
chegavam mesmo a reconhecer a superioridade do Império sobre a Republica,
ressaltando porém que a restauração da monarquia de nada adiantaria, pois a
diferença era de qualidade do imperante e das elites por ele arrebanhadas e
não da essência do regime. Restaurada hipoteticamente a monarquia, na
pessoa de D. Isabel ou de um de seus filhos, a nova monarquia haveria se
defrontar com a mesma mediocridade de elites da Republica e a sua
« politiquice » (Lessa, 1925).


«O excepcional governo do Brasil sob Pedro II foi um produto de
vivo, intenso e inamolgável sentimento de justiça, da incomparável
honestidade e do entranhado amor à liberdade do imperante". (...) O
principal fator do período de rara moralidade administrativa, e
justiça e de liberdade política que fruímos sob o Império, foi a
grande envergadura moral do chefe da nação. (...) Sigamos na
republica, o que não é absolutamente impossível, o exemplo da
monarquia. Não ha forma de governo, que tenha a eficácia de amparar
uma nação e preserva-la dos males oriundos da incapacidade e da
imoralidade dos homens que a governam (...) » (Lessa, 1925).


O que movia o pensamento de Lessa e de Leal era a crença de que o
Brasil não tinha e por muito tempo não teria as condições necessárias para
que existisse uma opinião publica forte que pudesse sustentar um regime
democrático liberal verdadeiro[32]. Embora Lessa enfatizasse o aspecto da
decadência dos costumes políticos, e Leal, o atraso propriamente social do
pais, o fato é que ambos convergiam na compreensão de que a grandeza do
Império era devida, não ao parlamentarismo, mas que ela existira a despeito
dele, graças ao poder moderador de Dom Pedro II, que teria exercido seu
inevitável poder pessoal num sentido patriótico, com todas as virtudes de
um verdadeiro republicano. Nesse viés, os dois enxergavam o
presidencialismo como um sucedâneo do poder moderador monárquico,
equivalendo a preponderância do Presidente da Republica sobre o conjunto do
Estado àquela outrora exercida pelo Imperador no conjunto das instituições.
Para Leal, enquanto não houvesse esfera publica e moralidade pública, um
regime de executivo forte não só era inevitável, como era necessário para
obviar os problemas decorrentes de um regime representativo fictício, até
que este, por força da evolução social, se tornasse possível. Já Lessa era
um judiciarista de governo: não fazia a apologia do executivo, defendia as
prerrogativas do judiciário e opunha-se à revisão da constituição, que era
boa – ruins, eram os costumes, que só o tempo poderia corrigir. O argumento
do atraso socioeconômico seria retomado em 1916 pelo então deputado
Gilberto Amado, em seu discurso denominado Instituições políticas e o meio
social do Brasil. Amado trabalharia numa chave algo diferente: se ele
reconhece o atraso e saúda o Império, menos entusiasticamente porém que
Lessa e Leal, com seu « príncipe que me parece como um verdadeiro milagre
da espécie humana », por outro lado ele protesta, à Torres, contra o
jurismo e a falta de praticidade da política brasileira, clamando por uma
elite ilustrada que proceda à modernização do pais pelo alto, cuidado da
população (Amado, 1979). Em 1917, ele enunciaria com clareza o « realismo
sociológico governista »:


"Onde não existe opinião pública para compreender, formar certas
noções, onde não se organizam núcleos vivos, responsáveis,
conscientes de população, não é possível à palavra dos homens
desinteressados encontrar a ressonância que faça um ambiente
favorável ao êxito das ideias. As reformas têm de vir por si
mesmas, arrastadas pelas forças dos próprios fatos que
circunstâncias inelutáveis determinam ou pela dádiva de cidadãos
bem intencionados quando a fortuna os coloca no poder" (Amado,
1963:310).


A passagem da década de 1910 para a de 1920 foi a segunda grande
virada no movimento de ideias políticas durante a Primeira Republica. Além
do surgimento do partido comunista e do movimento de arte moderna, o
período foi politicamente marcado por três eventos cruciais na evolução do
regime, dois propriamente políticos e um terceiro, de natureza politico-
intelectual. O primeiro dos eventos políticos foi a segunda campanha
presidencial de Rui Barbosa, em 1919, que passou a admitir a discussão da
chamada « questão social », na ordem do dia com o fim da Grande Guerra (Rui
Barbosa, 1960). A campanha cristalizou a linha judiciarista de oposição
liberal ao regime – e, tanto assim, que a seguinte, que teve Nilo Peçanha
por candidato, foi marcada por tintas bem democráticas e, por conseguinte,
uma linguagem mais acessível e popular. Esse fato não passou despercebido
para um establishment avesso a comícios e habituado a eleger
fraudulentamente seus candidatos apenas por banquetes, cartas e declarações
oficiais. Por isso até mesmo seus membros « esclarecidos » acusaram a
campanha de Peçanha de demagógica, numa chave abertamente elitista, de que
são exemplos os discursos então proferidos pelos deputados Gilberto Amado
(1979) e Francisco Campos (1979). Em São Paulo, o tom da imprensa oficial
chegou mesmo às raias do racismo (Motta, 1992). O segundo evento relevante
dessa virada foi a deflagração da sucessão de revoltas militares
tenentistas, no ano do centenário da independência, ocasião em que a
referida oposição modernizadora fez sua entrada no cenário político. Essas
revoltas evidenciaram uma radicalidade que, assustando tanto os apoiadores
do « sistema », esclarecidos ou não, como seus adversários liberais,
apontava no sentido de uma nova oposição ideológica, mais acirrada, cuja
natureza propositiva ainda não parecia muito clara. Essa « falha »,
entanto, seria logo suprida pela absorção do ideário de Alberto Torres e,
como veremos, de Oliveira Viana.


De fato, do ponto vista intelectual, o terceiro evento,
fundamental para a evolução dos argumentos ideológicos tenentistas, foi a
publicação, em 1920, da primeira obra de Francisco Jose de Oliveira Viana,
Populações Meridionais do Brasil, que obteve um segunda edição logo em
seguida e constituiu um verdadeiro best-seller que, em quatro anos, levaria
o desconhecido « sociólogo » fluminense ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro. Nessa obra, Viana colocava o latifúndio autárquico, autônomo em
relação à sociedade e ao Estado, onipotente diante da inexistência da
pequena propriedade rural ou de uma burguesia, como matriz da sociedade
brasileira. Essa sociedade teria então se desenvolvido destituída de
sentimento de cidadania e de organização político-econômica, governada que
era, inevitavelmente, por uma parcialidade oligárquica que, sob pretexto de
grandes princípios liberais importados, na verdade lutava clientelística e
patrimonialmente pelo poder. Na ausência de uma classe média e de vínculos
sociais entre elites e o povo, o único elo entre estes seria o coronel,
isto é, o oligarca local, senhor do latifúndio. Esse regime de dependência
do mandão local, segundo Viana, continuava a existir porque o Estado
republicano não rompia com a lógica desagregadora do latifúndio para,
adentrando seus domínios, conceder à população subjugada a efetividade de
seus direitos civis, sem os quais nunca se consolidaria o sentimento pleno
de individualidade e de independência pessoal, que caracterizaria a
modernidade.


Nesse sentido, conforme ficaria mais bem delineado em O ocaso do
Império (1925), este regime se destacava como o período de ouro do Brasil.
Marcado, na Regência, por reclamos por federalismo e autogoverno, que na
realidade serviam de fachada para as rivalidades oligárquicas de
campanario, esse regime, capitaneado por uma pequena elite de estadistas
extraordinários, como Paraná, Itaboraí, Caxias, Vasconcelos, Eusébio de
Queiros e Uruguai, presididos por Dom Pedro II, teria sido capaz de,
compreendendo a tendência centrifuga da vida nacional e a relatividade dos
argumentos importados liberais, nadar contra a correnteza e reivindicar a
centralização do poder no centro, a despeito de toda a « modernidade
liberal » em voga nos países centrais. Dai porque haviam se organizado
contra o movimento descentralizador efetuado pelo Ato Adicional, bancando o
chamado Regresso e a consequente centralização político-administrativa. A
existência de um poder moderador centralizador, cercado de uma elite de
estadistas extraordinários, com assento no Conselho de Estado, resistentes
aos interesses facciosos regionais, teria sido responsável pela
consolidação da então frágil unidade nacional e, através dela, de um
projeto de nacionalidade brasileira. O chamado « poder pessoal » do
Imperador, ao invés de condenável, havia sido o que mantivera, «na
volubilidade das situações parlamentares e na instabilidade das situações
ministeriais, a tradição e o prestigio da autoridade, ameaçada a todo
instante pelas crises inevitáveis dos partidos e pelas eventuais coligações
faccionárias, que se amatulam contra o governo para enfraquecê-lo e destruí-
lo ». Dessa forma, na mesmíssima chave interpretativa de Nabuco, o poder
moderador havia desempenhado «uma função equivalente à da realeza no
continente europeu, quando se alia ao povo para desoprimi-lo da compressão
da nobreza feudal ».


"D. Pedro nos da meio século de progresso moderado, disciplinado,
sadio. Meio século de paz, de tranquilidade, de ordem. Meio século
de legalidade, de justiça, de moralidade. Pela atração da majestade
imperial, contém o centrifuguismo das províncias. Pela ascendência
de seu poder pessoal, corrige a hostilidade, a intransigência, o
exclusivismo das facções políticas. (...) Durante o meio século de
seu reinado, ele exerce, enfim, a mais nobre das ditaduras – aquela
« ditadura da moralidade », de que fala um historiador, e que é,
sem duvida, a mais poderosa força de retificação moral, na ordem
publica e privada, que jamais conheceu o nosso povo" (Viana, 1987).


O impacto e as influências de Oliveira Viana têm sido bastante bem
estudadas e por isso elas nem teriam aqui lugar. O que importa reter é que
o impacto dessa obra em seu tempo foi, em boa parte, devida à forma com o
autor deu conta, de forma coerente, concatenada e simultânea, das três
questões então na ordem do dia, sem contrariar o ambiente geral de
expectativas que, no fundo, eram de antemão favoráveis ao diagnostico e às
soluções que ele acabaria por dar. A primeira delas era o desafio da
« questão nacional », colocado por Alberto Torres: Viana satisfazia os
critérios epistemológicos de conhecimento das peculiaridades da formação
social brasileira, via literatura « cientifica social » francesa (Le Bon,
Demoulins, Le Play, etc.), para declarar a necessidade urgente de
modernização do pais. Segundo, Viana resolvia a questão do lugar do Império
dentro da historia republicana do Brasil, como paradigma a ser seguido em
termos de centralização de um poder imparcial e nacional, a ser
restabelecido sem, porém, acarretar uma restauração monárquica. Ou seja, o
passado nacional servia de exemplo para a contemporaneidade, na melhor
tradição da historia magister vitae. Por fim, Viana conseguia fazer uma
critica profunda, mas equilibrada e não explicitamente partidária, do
regime republicano existente, nos seus pontos mais combatidos, isto é, no
que ele continha de democraticamente falso, de federativamente exagerado e
de intelectualmente artificial. Esses três tópicos – discurso nacional
calcado na especificidade nacional, o resgate do Império como experiência
institucional positiva e a critica do regime existente, numa argumentação
clara e encadeada – desempenharam um papel fundamental no êxito obtido pela
sua obra e na sua difusão, por um publico que se alargava pelas cidades em
acelerado processo de urbanização, a ponto de Capistrano de Abreu afirmar
que então Oliveira Viana « grassava » em popularidade. De forma que, em
1930, pode-se dizer com certa segurança que não havia « intelectual »
político vivo mais conhecido e respeitado, que Oliveira Viana. Foi nesse
ano crucial, alias que, em Problemas de política objetiva, Viana,
preconizando, como Torres, uma nova reforma constitucional, queixando-se da
falta de um eixo modernizador do pais, afirmaria:


"Esse centro de coordenação, de estabilização, de fixação, precisa
vir, precisa ser inventado, precisa ser descoberto. Há quarenta
anos seguros, a nossa vida política vem correndo descontínua,
incoerente, instabilíssima, variando a todo o momento, conforme
variam as ideias dos chefes (…). Essa instabilidade administrativa
e política da vida da República (…) deriva justamente da ausência
de um centro permanente de orientação e equilíbrio na cúpula do
regime. Em suma, da inexistência de um poder político vitalício
entre os poderes temporários criados pela Constituição Republicana.
(…). O problema central da obra revisionista há de ser, pois (…)
criar um quarto poder, tal como o antigo Poder Moderador, que,
sendo judiciário também, tenha, entretanto, o direito de
iniciativa, que o Judiciário não tem" (Viana, 1930).


De forma que, após a Revolução de 1930, diante da inexorabilidade
da reconstitucionalização do pais, enfrentar-se-iam, na comissão
governamental encarregada de redigir a nova constituição do pais, dois
projetos de poder moderador. O primeiro, de cunho liberal, capitaneado por
Afrânio de Melo Franco, pretenderia o restabelecimento de um conselho de
Estado que fizesse às vezes do antigo Senado, influenciado pela ideia
« iluminada » de um grupo de estadistas que velasse pela continuidade
administrativa, freando os excessos do executivo. O segundo, reclamado
pelos tenentes de Juarez Távora, encarnaria a proposta de Alberto Torres e
de Oliveira Viana de um conselho que, lendo o Império de outra forma,
representasse, dentro de um quadro liberal e democrático, um poder
discricionário que pudesse levar adiante a modernização do pais, sem
sujeitar-se à « politicalha » das oligarquias que, pela
reconstitucionalização, pretenderiam retomar as rédeas do pais. O fracasso
desta ultima proposta, pelo abandono que dela parece ter feito o próprio
Oliveira Viana, e consubstanciada no tímido papel do Senado da constituição
de 1934, parece mesmo o símbolo da impossível conciliação entre elitismo
liberal e elitismo discricionário modernizador que levaria à radicalização
e ao posterior golpe do Estado Novo, em 1937, concentrando o poder nacional
na figura do presidente de Republica. Foi então que um confesso antiliberal
como Azevedo Amaral, alias um antigo adepto do « realismo salesiano » da
hipertrofia presidencial, pôde escrever com todas as letras, a respeito de
Getulio Vargas, num artigo denominado Realismo político e democracia, que
« o poder pessoal, que as ficções do liberalismo democrático depreciaram,
desfigurando-o e fazendo-o perder a sua significação fundamental e
permanente, ressurge como elemento básico e insubstituível na direção das
atividades do Estado e no encaminhamento da marcha progressiva da Nação »
(Amaral, 1943:35).





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[1][2] Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (IESP-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Gama Filho (UGF). Professor da Escola de Ciência Política da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Foi pesquisador
visitante da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB) e do Centro de Pesquisas
Políticas Raymond Aron (CPPRA/EHESS), em Paris. Autor de Brésil de la
monarchie à l'oligarchie - la construction de l'État, les institutions et
la représentation politique (1822-1930), publicado pela Hamattan em 2011.
[3] « O carater politico da jurisdição é tanto mais forte quanto mais amplo
for o poder discricionario que a legislação, generalizante por sua propria
natureza, lhe deve necessariamente ceder (...). Na medida em que o
legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interesses
contrastantes entre si, e decidir conflitos em favor de um ou de outro,
esta lhe conferindo um poder de criação do direito, e portanto um poder que
da à função judiciaria o mesmo carater 'politico' que possui – ainda que em
maior medida – a legislação » (Kelsen, 2003).
[4] « O juiz constitucional se apresenta, portanto, como o 'representante'
encarregado de exprimir a vontade do soberano inscrita nos textos
constitucionais. Ora, esses textos têm por autor 'o povo soberano (...)',
soberano ficticio suposto impor, ao cabo do tempo, sua vontade constituinte
aos poderes constituidos. Esse 'povo soberano constituinte ' correspondera
ao 'povo eleitoral' que designa seus representantes politicos ? (...) O
constitucionalismo supõe que a vontade do soberano dure, que ela seja
continua. (...) O juiz constitucional reflete aos parlamentares a imagem de
um representante que deve respeitar a constituição. (...) O contrôle de
constitucionalidade permete assim à vontade do 'povo constituinte' se impor
exteriormente aos poderes constituidos » (Blachèr, 2003).
[5] "Em todos os governos, é preciso que haja uma autoridade, não
ilimitada, mas discricionária. Essas duas coisas foram confundidas; e dessa
confusão resultaram muitos males. É preciso que essa autoridade
discricionária jamais se dirija aos homens, pois os homens devem sempre
estar a salvo do arbítrio. Ela deve dirigir-se aos poderes e deve retornar
às mãos de quem não possa jamais apoderar-se deles ou deixá-los às suas
criaturas. Assim, o poder preservador não pode ser encarregado de nenhuma
eleição, para que ele jamais tenha interesses a desbancar. Assim, sua
autoridade discricionária será puramente preservadora » (Constant, 1991).
[6]Do ponto de vista historico, o chefe de Estado republicano, nesses
paises, é apenas o sucessor do monarca constitucional, exercendo suas
funções a partir de uma legitimidade nova, isto é, a democratica. Essa
filiação é bastante clara, como demonstram as circunstâncias fortuitas de
seu surgimento na França, na década de 1870, bem como o debate que o
acompanhou então. Refiro-me aos primeiros anos da Terceira Republica,
denominada « republica dos duques », onde a restauração monarquica,
desejada pela Assembléia Nacional, não se efetuou pela incapacidade dos
monarquistas de chegarem a um consenso sobre qual das três casas reais
disponiveis – a de Bourbon, a de Orléans e a de Bonaparte – deveria ocupar
o trono. Montou-se então uma presidência da Republica, que se pretendia
provisoria, onde um membro da Assembléia, por ela eleita, faria as vezes do
rei.
[7]Embora se diga que a reflexão de Constant decanta, na realidade, nas
atuais formas do contrôle jurisdicional de constitucionalidade, entendo que
a preservação deste poder na pessoa do chefe de Estado não invalida a
aplicação contemporânea de sua teoria, seja no seu modo primeiro, puramente
liberal monarquico, seja na sua forma segunda, democratico-republicana.
[8] Termômetro daquela primeira passagem foi a polêmica politico-
intelectual em torno da interpretação do poder discricionario do chefe de
Estado, de acordo com o art. 14 da carta francesa. Travada entre 1829 e
1830 pela imprensa, dividida etre ultras e liberais, defendiam os primeiros
que aquele artigo concedia ao monarca um verdadeiro poder de exceção, na
qualidade de depositario da soberania, na hipotese de crise institucional
com o parlamento. Os liberais, por outro lado, não viam no artigo mais que
um poder regulamentar do rei, que, no seu papel moderador, não poderia
jamais pretender legislar sem a colaboração do parlamento, devendo, ao
contrario, satisfazer-se em nomear ministros que granjeassem o apoio da
daquela maioria (Waresquiel & Yvert, 2002) (Saint-Bonnet, 2002) (Laquièze,
2001).
[9]A idéia de que o senado exerce um poder moderador encontra-se ja em
Montesquieu (1997), como meio de prevenir conflitos entre chefe do
executivo e câmara baixa. Tornou-se justificativa de existência de uma
câmara alta no modelo presidencialista norte-americano. Na verdade, a
moderação ai não se daria pelo exercicio discricionario de poderes
moderadores, mas pelo simples lugar da instituição entre dois poderes mais
ativos, servindo de filtro da atividade de ambos, na logica dos « freios e
contrapesos ». A idéia de uma câmara alta como poder moderador propriamente
dito pertence à França, quando Constant , Sieyès e outros buscaram elucidar
a quadratura do circulo institucional no periodo do Termidor (Constant,
1991) (Dupuy & Morabito, 1995) (Gauchet, 1995) (Bredi, 1988). Sieyès
elaborou um projeto segundo o qual o contrôle politico e jurisdicional
seria exercido pelo senado, mas Napoleão Bonaparte alterou bastante o
projeto a ponto de desfigura-lo, na constituição do Consulado. Tornou-se,
porém, referência para o regime bonapartista, a ponto de ser ressuscitado
no Segundo Império, nunca tendo sido capaz de exercer moderação alguma.
[10]O termômetro dessa segunda passagem, do Estado liberal para o liberal-
democratico, foi o debate em torno do alcance e natureza do papel do chefe
de Estado de Weimar enquanto guardião da constituição e sobre a
conveniência de ser tal função, ao contrario, exercida por um tribunal. As
estrelas do debate foram Carl Schmitt (1998) [1931] em O guardião da
constituição e Hans Kelsen (2003) [1931] em sua resposta Quem deve ser o
guardião da constituição ?, exatamente trinta anos apos a polêmica
envolvendo liberais e ultras na França dos fins da Restauração.
[11] "Do choque ou divergência entre a Coroa e os ministérios surgiram
mudanças políticas que contribuíram para a mais rápida solução do problema
e também para o declínio do sistema imperial. Ao invés, então, de ver-se
legitimado pela atuação reformista, pela eficácia em solucionar problemas,
o sistema imperial perdeu a legitimidade que conquistara. É que as
principais reformas que promovera atendiam a interesses majoritários da
população que não podia representar-se politicamente" (Carvalho, 1996: 296
e 298).
[12] Embora Portugal também possuísse poder moderador, o debate sobre a
existência ou não de referenda esteve longe de ter o alcance que teve no
Brasil. A discussão portuguesa sobre o poder moderador era influenciada
pelos próprios livros de Zacarias e Uruguai, o contrário não ocorrendo
aqui. Somente em 1885, por meio de um ato adicional, a carta portuguesa de
1826, que era cópia da brasileira, impôs expressamente « a responsabilidade
ministerial pelos atos do poder moderador, bem como limites temporais para
a convocação e a dissolução da Câmara dos Deputados e da parte eletiva da
Câmara Alta, restrições ao direito de perdão e comutação de penas aplicadas
e ministros de Estado"(Canotilho, 1998 :138). A falência do sistema
parlamentar, porém, engendrou a restauração da discricionariedade primitiva
do poder moderador num terceiro ato adicional, onze anos depois.
[13] « Falar de governo pessoal numa monarquia representativa é, antes de
tudo, uma inverossimilhança, porque nela é isto impossível. Com efeito, o
sistema que nos rege é o da soberania nacional, isto é, do país pelo país.
(...) O ministério é, portanto, uma expressão nacional : sobre ele deve
cair o peso do governo, em toda a extensão da palavra (...). Certo, a Coroa
tem, como tal, uma missão de maior alcance que a do grande eleitor de
Sieyès. Ela pensa, delibera, preside ; mas não pode obrar contra a
consciência da responsabilidade no ministro, contra o voto, que a faz
efetiva, da soberania no parlamento (...). Além de impossível, isso de
governo pessoal é uma visão. Apontai-me os casos em que o príncipe, que
atualmente conduz os nossos destinos, tenha excedido dos limites de um
imperador constitucional. (...) Demais, considero fraqueza ou traição
alegar-se o obstáculo de um governo pessoal » (Bastos, 1976 :39).
[14] Refiro-me ao célebre discurso do sorites, do senador Nabuco de Araújo,
quando da queda do gabinete Zacarias e a ascensão do ministério conservador
de Itaboraí, em 16 de julho de 1868, protestando contra o poder moderador:
"Quero apenas fazer um protesto (…), não sobre a legalidade do ministério
atual, porque em verdade a Coroa tem o direito de nomear livremente os seus
ministros, mas sobre a sua legitimidade. E vós concebeis a diferença que há
entre legalidade e legitimidade" (Nabuco, 1998:764).
[15] Como veremos, Joaquim Nabuco partilhará do diagnóstico de Tavares
Bastos, para chegar, porém, a uma conclusão oposta, favorável ao « poder
pessoal ».
[16] "A centralização é essa fonte perene de corrupção, que envenena as
mais elevadas regiões do Estado. (…) Em verdade, o que é o nosso governo
representativo ? nosso parlamento ? nossas altas corporações ? Tudo isso
assenta no ar. É o cetro, que eleva os humildes e precipita os soberbos.
Por baixo está o povo que escarnece". Cf. Tavares Bastos (1997:28) [1870].
[17] « Desenganem-se os brasileiros que ainda vivem iludidos : a comédia da
monarquia com seus lances trágicos continuará a representar-se no teatro
americano até que, preparada a mina da indignação nacional, o povo, um belo
dia, faça a esses cômicos de profissão e aos seus comparsas aquilo que o
Sr. Sinimbu, quando era primeiro ministro do Sr. Dom Pedro II, queria que
se fizesse aos colonos europeus : pô-los fora da barra à cacete ! »
(Fialho, 1886 :313).
[18] Tavares Bastos elogiava a não intervenção do governo inglês nas leis
aprovadas pelos estados australianos, dando a entender que as alegações de
inconstitucionalidade das leis provinciais seria, no Brasil, um instrumento
do governo central para apertar a centralização sobre as províncias: « O
que serão no Brasil, porém, essas despejadas violações constitucionais que
o governo central e seus presidentes omitem, ou suspendendo leis
provinciais já promulgadas, ou inventando casos de inconstitucionalidade em
outras, depois de segunda vez votadas por dois terços das assembléias. Cá é
o crime grosseiro, que nem se pune, nem se defende; lá, um governo de gente
honesta que congraçou-se sofridamente com a liberdade » (BASTOS, 1996:66).
[19] Esse suposto papel moderador do Supremo Tribunal Federal impregnou o
proprio discurso judiciario. Na cerimônia de 175 anos de existência de um
supremo tribunal (a atual instituição incorpora em sua historia a do
imperial Supremo Tribunal de Justiça), em 18/09/2003, o ministro Carlos
Velloso reafirmaria a intenção de Pedro II de fazer de uma suprema corte o
poder moderador, de acordo com a narração de Salvador de Mendonça. O
ministro do Superior Tribunal de Justiça, Teori Albino Zavascki, iria mesmo
às vias explicitas: "a Suprema Corte, como representa o poder moderador do
Estado, tem no Brasil uma história importantíssima. Acho que, além de ser a
principal Corte, por força institucional, tem se mostrado na sua prática a
principal Corte pelo conteúdo de suas decisões, pela coragem histórica da
quase totalidade de seus julgamentos e acho que o povo brasileiro, a nação
brasileira, pode se orgulhar da sua Suprema Corte"
(http://www.femperj.org.br/jornal/noticias/n20092003_1.htm )
[20] 'Era meu firme propósito fazer um governo de administração, visto ser
nessa esfera que se encontravam, acumulados, os problemas nacionais. Na
ordem política, propriamente, não havia questões que devessem preocupar-me.
Assim, o meu ponto de vista levava-me naturalmente a procurar os ministros
que tinham de executar o meu pensamento, for a dos circuitos políticos. (…)
Para a escolha dos ministros, não tratei de saber o que pensavam as
influências. (…). Bem sei que não era esse o processo mais certo par
organizar dedicações, mas era o que me parecia mais seguro para superar as
dificuldades que tinha de enfrentar" (1908:206)."Entendi dever consagrar o
meu governo a uma obra puramente de administração, separando-a dos
interesses e das paixões partidárias, para só cuidar da solução dos
porblemas que constituíam o oneroso legado de um longo passado. (…) E chama-
se a isso – desorganizar os partidos !" (Sales, 1908:224).
[21] "Até este momento da história da República, nenhuma idéia nova, nenhum
princípio fundamental, nenhuma aspiração na ordem administrativa foi
lançada de modo a poder caracterizar intuitos en contraste e legitimar
lutas partidárias. Tomado aquele ponto de partida, origem fatal e perpétuo
fermento de ódios e ressentimentos, que cada vez mais se acirravam,
formaram-se esses agrupamentos, cujo objetivo único nas lutas que travaram
era o cargo de presidente da República" (1908:112)."O que proclamei como um
mal a ser extirpado, por ser um embaraço oposto à eficácia da ação governa
(…), foi o 'espírito partidário', com as suas paixões e violências, ora
perturbando a evolução benéfica das idéias, ora se contrapondo ao
desdobramento tranqüilo da ação governamental" (Sales, 1908:226)
[22] "Os elementos agitadores (…) comprometem-nos, pois que, à sombra da
nossa condescendência, vão acarretando a nossa responsabilidade em sua
ação, francamente e calculadamente anarquizadora. (…). Os exaltados é que
nos vão levando a reboque nas suas arruaças, meetings de indignação, etc..
(…) Ou os declaramos adversários e lhes damos combate, ou renunciaremos à
aspiração de formar um partido conservador, ordeiro, governamental e
orgânico (…) Basta de Câmaras agitadoras. Precisamos de ordem para governar
bem" (1908: 136).
[23] "Não sou de nenhum dos partidos para que todos apóiem nossas
instituições; apenas os modero, como permitem as circunstâncias, julgando-
os até indispensáveis para o regular andamento do sistema constitucional,
quando, como verdadeiros partidos e não facções, respeitem o que é justo".
E ainda : "(…) eis como em geral se entende a política entre nós, que vem a
er quase a arte de achar meios de coonestar injustiças e tudo o que abrange
tal expressão" (Dom Pedro II, 1956:16 e 27).
[24] Exemplo de governistas desse tipo foram Afrânio de Melo Franco, Pandiá
Calógeras, Prudente de Morais Filho e Agenor de Roure, convictamente
liberais, mas também preocupados com a ordem, e que, depois de 1930, se
preocupariam mais em reabilitar o legislativo e aparelhá-lo contra o poder
absorvente do executivo, sem contudfo recorrerem ao parlamentarismo. Em
trabalho posterior, vou buscar diferenciar esses liberais esclarecidos
daqueles que defendiam o superpresidencialismo, na expressão de Afonso
Arinos de Melo Franco (Franco, 1955)
[25] No final do regime, segundo Homero Sena, era a seguinte a posição de
Amado : « Orador oficial da Convenção que apresentou candidatos à
presidência e à vice-presidência da República, Washington Luís e Melo
Viana ; prestigiado como intelectual, pelas análises que fazia dos
problemas nacionais, encarando-os de pontos de vista inteiramente novos ;
senador por um Estado pequeno, mas amigo pessoal de Júlio Prestes ; morando
numa casa ampla na Avenida Atlântica (...), confessa Gilberto que, nessa
época, 'era agradável passear na avenida, ir à Colombo, olhar a vida
contente na cidade feliz, contemplar do planalto central da senatoria o
futuro desimpedido, o horizonte claro'. Tudo marchava tranqüilamente, pois
'havia homem no Catete' e 'café nos armazéns' » (In: Sena, 1967 :147).
[26]O Poder Coordenador teria como órgãos o Conselho Nacional, na capital
da República; um Procurador da União em cada Estado (província, na nova
terminologia constitucional de Torres); um delegado federal em cada
município, nomeado pelo Conselho Nacional, e um representante e um preposto
da União, em cada distrito e quarteirão, respectivamente. O Conselho
Nacional seria composto de no máximo vinte integrantes vitalícios, a serem
escolhidos pelo Presidente e Vice-Presidente da República, pelos próprios
membros do Conselho, por deputados e senadores, pelos ministros do Supremo
Tribunal Federal e pelos diretores de um hipotético Instituto de Estudo dos
Problemas Nacionais, a quem deveriam os candidatos a legisladores dirigir
obrigatoriamente suas propostas de melhoria do país.
[27]« Não temos que nos incomodar com os que nos chamam contraditorios
porque fazemos apelo ao Imperador sendo opostos, pelo menos na maior parte,
ao governo pessoal. O uso do prestigio e da força acumulada do Imperador
representa no Brasil, em favor da emancipação dos escravos, seria no mais
lato sentido da palavra expressão da vontade nacional. Com a escravidão não
ha governo livre, nem democracia verdadeira: ha somente governo de casta e
regime de monopolio. As senzalas não podem ter representantes, e a
população avassalada e empobrecida não ousa tê-los » (Nabuco, 1988).
[28]« Do que eu acuso o Imperador quando me refiro ao governo pessoal, não
é o de exercer o poder pessoal, é de não servir-se dele para grandes fins
nacionais. A acusação que eu faço a esse déspota constitucional, é de não
ser ele um déspota civilizador; é de não ter resolução ou vontade de romper
as ficções de um parlamentarismo fraudulento, como ele sabe que é o nosso,
pra procurar o povo nas suas senzalas ou nos seus mocambos e visitar a
nação em seu leito de paralitica » (Nabuco, 1999).
[29]Às vésperas da republica, Nabuco afirmaria: « A mim, me sobra
consciência de que estou com o povo defendendo a monarquia, porque não ha,
na republica, lugar para os analfabetos, para os pequenos, para os pobres.
Neste sentido, o partido republicano é um partido de classe como os dois
partidos monarquicos » (Nabuco, 1949). Depois de 1889, ele repetiria: « Se
nas republicas, por um motivo ou outro, os presidentes têm forçosamente que
ser chefes de partido, pode-se dizer que falta à testa desses governos o
chefe da nação, a qual nunca se pode compreender como um partido
triunfante. (...) Nos chamados governos presidenciais, o presidente esta
muito mais adstrito ao jugo partidario do que nas republicas parlamentares,
onde ele representa o papel de um soberano constitucional (...) » (Nabuco,
1937).
[30]« A manutenção de um vasto continente em estado permanente de
desgoverno, de anarquia, é um fato que dentro de certo tempo ha de atrair
forçosamente a atenção do mundo, como afinal a atraiu o desaproveitamento
da Africa » (Nabuco, 1937).
[31]«O fato é que, desse mecanismo dual, monarquico-parlamentar, em que o
monarca é um diretor, como o é o parlamento, em vez de ser um autômato das
câmaras, resulta a tranqüilidade e a segurança do regime durante quatro
gerações. Se o Imperador não tem a direção suprema; se não é o arbitro
independente dos partidos; se tem que se limitar a rubricar os decretos que
se lhe apresentem, e não mudar a situação (politica) senão por efeito de
eleições contrarias, muito provavelmente o Segundo Reinado não teria sido
mais que a continuação da Regência, ou a antecipação da Republica, e o
poder imperial, escravo e instrumento da oligarquia, à mercê dos que o
seqüestrassem, teria desaparecido em poucos anos do redemoinho das
facções » (Nabuco, 1997).
[32]Percebe-se aqui ainda a influência de Nabuco: « O que Joaquim Nabuco
assevera a respeito da interefrência de Dom Pedro II na abolição aplica-se
a tudo quanto de bom se particou durante o Império: melhoramentos materiais
e espirituais, estradas de ferro, navegação a vapor, telégrafos,
colonização, imigração (...). Todos esses atos, lis, resoluções sobre esses
assuntos receberam o salutar influxo do monarca. Se foi um crime – felix
culpa ». (Celso, 1929).
[33]« Muito cedo o Imperador compreendeu que, num pais sem gente, sem
instrução, etnicamente cheio de defeitos, sociologicamente atrasado, ou um
espirito diretor, uma vontade forte seria o freio das paixões e
sofreamentos muito proprios do meio, tornando-se o supremo contraste, o
guia, o mediador, o agente plastico, das ambições, das tendências, dos
exageros dos homens, e a maquina da sociedade funcionaria regularmente, ou
a força derivaria desse centro para uma delegação maior, e a confusão se
operaria na razão direta da divisão da mesma força. (...) Dom Pedro II ou
faria o que fez ou o seu reinado teria terminado ha mais tempo ». (Leal,
1914).
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