O FANTÁSTICO COMO MECANISMO DE DESVELAMENTO DA DISTOPIA PURITANA EM O JOVEM GOODMAN BROWN DE NATHANIEL HAWTHORNE

May 28, 2017 | Autor: Evanir Pavloski | Categoria: Utopian Literature, Utopian, Dystopian, and Post-Apocalyptic Fiction
Share Embed


Descrição do Produto

O FANTÁSTICO COMO MECANISMO DE DESVELAMENTO DA DISTOPIA PURITANA EM O JOVEM GOODMAN BROWN DE NATHANIEL HAWTHORNE Evanir Pavloski (UEPG) O período de colonização do território estadunidense foi marcado pela chegada massiva de membros da seita puritana que, fugindo da forte repressão religiosa na Europa, buscavam, dentre outros ideais, a formação de um espaço de liberdade e beatitude no chamado Novo Mundo. Desde a fundação da colônia de Plymouth, em 1620, na região da Nova Inglaterra, milhares desses peregrinos emigraram para solo americano e organizaram estruturas comunitárias que influenciaram sobremaneira o desenvolvimento cultural do país. Insatisfeitos com o alcance da Reforma Anglicana na Inglaterra e com a rejeição de suas reivindicações por parte do rei James I, os puritanos objetivavam erigir na América um arquétipo social de sociedade que serviria de modelo não apenas aos olhos do mundo, mas também aos olhos de Deus. Para Alexis de Tocqueville, o puritanismo é ao mesmo tempo uma doutrina religiosa e uma teoria política (WOLIN, 2001, p. 234). Nessa perspectiva, as comunidades puritanas revelam o signo da utopia como elemento intrínseco de concepção e organização. Assim, cabe-nos discorrer brevemente sobre o idealismo e as arbitrariedades que cercam o pensamento utópico. A obra A utopia de Thomas More, publicada em 1516, representa um marco extremamente importante para o utopismo enquanto reflexão filosófica e produção literária. As características da sociedade ficcional descritas pelo estadista inglês influenciaram diversas produções imaginativas nos séculos posteriores e servem de referência para a discussão que objetivamos desenvolver. Primeiramente, o contraste entre o espaço idealizado e o mundo exterior é um marco fundamental das projeções utópicas. Ao figurar um núcleo social considerado modelar, o utopista rearticula aspectos e características tidas como problemáticas em seu universo experimental. Com isso, a utopia opera ao mesmo tempo um efeito de oposição e espelhamento entre os espaços intra e extradiegéticos. Em outros termos, as diferenças percebidas entre as esferas do real e a do ideal permitem constituir subjetivamente o cenário utópico e questionar traços do mundo empírico nele omitidos ou modificados.

Afirma-se que, a menos que possamos conceber algo perfeito, não podemos entender o que significa a imperfeição. Se, digamos, nos queixarmos de nossa condição aqui na terra apontando para o conflito, a miséria, a crueldade, o vício – “as desgraças, loucuras e crimes da humanidade” – se, em suma, afirmarmos quer nosso estado está longe da perfeição, isso só se torna inteligível pela comparação com um mundo mais perfeito; é pela avaliação do hiato entre os dois que podemos avaliar a extensão daquilo que falta a nosso mundo. (BERLIN, 1991, p. 33-34)

No caso das comunidades puritanas, ideais de pureza, austeridade, trabalho e devoção religiosa objetivavam também expor as deformidades e as fraquezas das estruturas sociais européias. Nesse sentido, a articulação coletiva desses primeiros peregrinos exemplifica uma distinção conceitual entre os termos comunidade e sociedade, que viria a ser discutida e aprofundada por pensadores como, por exemplo, Ferdinand Tönnies. Ao discorrerem sobre a obra do sociólogo alemão, Michael Löwy e Robert Sayre afirmam que Por um lado a comunidade (família, vilarejo, cidadezinha tradicional), universo regido pela concórdia, o costume, a religião, a ajuda mútua, a Kultur e, por outro lado, a sociedade (a grande cidade, o Estado nacional, a fábrica), conjunto movido pelo cálculo, pelo lucro, pela luta de todos contra todos, pela Zivilisation enquanto progresso técnico e industrial. O livro de Tönnies1 pretende ser uma comparação objetiva e “livre de juízos de valor” dessas duas estruturas, mas a nostalgia de Tönnies da Gemeinschaft rural “orgânica” é evidente: a comunidade é a vida comum verdadeira e durável; a sociedade é apenas passageira e aparente. E podemos, de certa forma, compreender a comunidade como um organismo vivo, sociedade como um agregado mecânico e artificial. (LÖWY et SAYRE, 1993, p. 56)

Nas utopias literárias, esse contraste recorrentemente assume dimensão espacial fazendo com que as oposições entre os núcleos sejam fisicamente distanciadas. Na Nova Inglaterra do século XVII, o distanciamento geográfico e o consequente isolamento das vilas puritanas não apenas sublinhavam o idealismo utópico que as inspirava, mas também atribuíam coesão ao grupo. Em sua obra As utopias ou a felicidade imaginada, Jerzy Szachi tipifica esse tipo de organização isolacionista como uma utopia monástica. Um certo ideal é produzido; aparece um pequeno grupo de pessoas que se entregam a ele; não acreditam que a sociedade seja capaz de ser transformada e não acreditam tampouco que seja possível preservar a fidelidade ao ideal vivendo-se no interior dessa sociedade vil. Decidem então fechar-se daquela forma junto aos seus pares a fim de proteger os valores que julgam supremos. Um convento ou uma colônia de sectários 1

Gemeinschaft und Gesellschft (Comunidade e sociedade), publicado em 1887.

religiosos que se isola do exterior são exemplos deste tipo de alternativa. (SZACHI, 1972, p. 26-27)

Além disso, a mistificação religiosa das florestas que cercavam as comunidades puritanas exercia um papel importante na manutenção da estabilidade social. O ambiente natural era entendido pelo grupo como um espaço dominado por entidades malignas que observavam das sombras a construção e o fortalecimento da utopia virtuosa. Complementarmente, os puritanos acreditavam que os seres humanos eram irremediavelmente marcados pelo pecado original e, portanto, naturalmente propensos ao mal. Assim, normas rígidas de comportamento deveriam ser adotadas por todos os indivíduos e monitoradas pela coletividade no intuito de proteger o grupo. Ao se referir às organizações comunais de grupos religiosos posteriores ao puritanismo, mas semelhantes em termos organizacionais, Michel Foucault aponta para esse tipo de vigilância permanente. Os quakers, os metodistas, exerciam o controle sempre sobre aqueles que pertenciam aos seus próprios grupos ou sobre aqueles que se encontravam no espaço social ou econômico do próprio grupo. Só mais tarde é que as instâncias deslocaram-se para cima e para o Estado. Era o fato de um indivíduo pertencer a um grupo que fazia com que ele pudesse ser vigiado e vigiado pelo próprio grupo. (FOUCAULT, 1996, p. 111)

Com isso, o propósito de preservar os princípios ético-religiosos e a estabilidade das comunidades puritanas redundou em práticas, muitas vezes, marcadas pela arbitrariedade e pela intolerância. Como salienta Carolina Nabuco: Os pilgrim fathers que se refugiaram na Nova Inglaterra fugindo da perseguição religiosa foram na maioria homens de valor. Na terra que seria de liberdade mostraram, porém, intolerância igual à dos seus inimigos no Velho Mundo. As regras de conduta e doutrina por eles impostas a seus rebanhos-colônias foram de inflexível rigidez. (NABUCO, 2000, p. 19)

Ainda que a estrutura de poder fosse alegadamente baseada na igualdade de todos os membros da colônia, um pequeno grupo privilegiado de indivíduos tomava todas as decisões políticas. As mulheres eram mantidas em posição de submissão extrema, o que incluía a aceitação incondicional das interpretações bíblicas impostas pelos homens. Diferentes formas de punição física foram instituídas e aplicadas àqueles considerados subversivos, sectários ou heterodoxos, muitas vezes, como resultado de julgamentos cuja

imparcialidade era bastante duvidosa. Finalmente, o conflito entre os supostos interesses da coletividade e as aspirações individuais foi uma das grandes marcas da utopia puritana. Though each communal utopia was unique in purpose, membership, and length of existence, together they shared a number of common features. Whether religious or secular, they showed a persistent dichotomy between a full commitment to communal goals and assertive self-interest2. (SUTTON, 2003, p. 10)

A aparente impossibilidade de realização concomitante dos anseios coletivos e individuais nos remete a um conceito que, mesmo tendo surgido apenas no século XIX, pode ser aplicado analiticamente ao modelo social puritano: o de distopia. Por meio da figuração de núcleos sociais no quais a estabilidade foi alcançada ao custo do apagamento das identidades e da homogeneização das individualidades, as narrativas distópicas problematizam o impulso normalizador e totalitário das idealizações comunais. Dessa forma, o modelo comunal puritano pode ser analisado criticamente, tendo em vista os seus limites, apenas supostamente claros, entre o idílio e o pesadelo social. A importância da herança puritana para a história cultural dos Estados Unidos atribui ulterior significância a essa reflexão. Como reforça Carolina Nabuco, “o fanatismo religioso, que castigava com severidade bíblica os desvios pessoais dos concidadãos, deixou uma marca indelével na literatura americana” (NABUCO, 2000, p. 21). Neste cânone literário, Nathaniel Hawthorne ocupa uma posição de destaque, uma vez que uma parcela considerável de sua bibliografia foi dedicada à crítica das utopias puritanas. Nascido na cidade de Salém - marco histórico da severidade e da histeria puritana no século XVII - o autor parece ter assumido um comprometimento artístico e ético de desvelar o caráter distópico das comunidades puritanas. No entanto, as análises de Hawthorne não se restringem à esfera sóciopolítica e perscrutam as profundezas obscuras da própria consciência humana, seus medos e seus terrores. Semelhantemente a outros românticos célebres como Edgar Allan Poe, Hawthorne estabelece em suas narrativas conexões indeléveis entre interioridade e exterioridade; entre o universo público e o privado; entre o natural e o sobrenatural, enfatizando suas mútuas influências. São correlações como essas que podem ser percebidas em obras como A letra escarlate (1850), A casa das sete 2

Tradução nossa: Ainda que cada utopia comunal fosse única em propósito, filiação e tempo de existência, elas compartilhavam uma série de aspectos. Fossem religiosas ou seculares, elas apresentavam uma dicotomia persistente entre o total cumprimento dos objetivos comunais e o assertivo interesse individual.

cumeeiras (1851), Feathertop (1852) e, nosso objeto de estudo neste artigo, “O jovem Goodman Brown” (1835). O fantástico surge, assim, como um mecanismo de desvelamento da influência do misticismo na esfera social puritana e de suas sombrias conseqüências, tanto em termos individuais quanto coletivos. Tzvetan Todorov, em sua obra Introdução à literatura fantástica, discorre sobre pressupostos fundamentais para a caracterização do gênero em questão. Num mundo que é exatamente o nosso (...) produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e, nesse caso, as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas por nós. (TODOROV, 1981, p. 30)

Especificamente em relação ao conto de Hawthorne, é preciso distinguir entre as perspectivas de realidade das personagens do texto e do leitor. Como vimos, a presença do sobrenatural era tida como perfeitamente aceitável nas comunidades puritanas e, conseqüentemente, pelas personas figuradas na obra. Assim, a existência de demônios e bruxas não lhes causaria necessariamente estranhamento ou, como define Todorov, hesitação. Já para o leitor (e nesta caracterização incluímos também aquele cujo conhecimento histórico abrange o puritanismo colonial), os acontecimentos narrados parecem desde o início, no mínimo, insólitos. Ambientada na emblemática cidade natal de Hawthorne, a narrativa inicia com a partida do recém-casado protagonista para uma misteriosa empreitada na floresta. Já nos primeiros parágrafos do conto, o caráter sinestésico da cena descrita antecipa o potencial simbólico de uma das dicotomias mais importantes na obra: luz versus escuridão. O pôr-dosol marca o início da jornada de Brown e o término da claridade predispõe o leitor para o tipo de trajetória que será desenvolvida. No entanto, os exatos motivos e objetivos do protagonista são mantidos na obscuridade da própria trama.

"Pobre Faith!", pensou com o coração combalido. "Sou um desgraçado por deixá-la por tal coisa! E ela ainda me fala de sonhos. Seu rosto, enquanto falava, pareceu-me preocupado, como se um sonho a tivesse advertido do que está para acontecer esta noite. Ora, não, não; tal pensamento a mataria.

Ora, ela é um anjo abençoado que veio a este mundo; e depois desta noite vou me agarrar a ela e segui-la até o céu. Com esse honroso plano para o futuro, Goodman Brown sentiu que tinha justificativas para apressar-se ainda mais no diabólico empreendimento”. (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 174)

Esse deslocamento espacial da vila puritana ao coração da floresta pode ser entendido como uma transgressão ética da personagem tanto em termos religiosos quanto socioculturais, dualidade que se justifica pela concepção do puritanismo ao mesmo tempo como crença e modelo de comunidade. Como é possível perceber, o elemento fantástico permanece apenas sugerido ao leitor até este momento da narrativa. Como vimos anteriormente, os ideais que permearam a organização das colônias puritanas as caracterizavam como espaços de fé, pureza e organização que se opunham diretamente ao caos e as tentações do mundo exterior. Assim, seria possível afirmar metaforicamente que a utopia puritana correspondia idealisticamente a um local de iluminação em meio às trevas que o circundavam. É justamente para longe desse refúgio protetor que o protagonista se encaminha, configurando um movimento simbólico de afastamento da luz em direção à escuridão. Além disso, a separação de sua esposa significa o distanciamento da imagem corporificada de sua fé, aspecto claramente enfatizado pelo nome atribuído a ela. Nesse sentido, Faith simboliza simultaneamente o compromisso do protagonista com laços de afeto e com a força de sua crença religiosa. É interessante notar, todavia, que alguns traços da caracterização de Faith podem ser vistos como dúbios. Se, por um lado, a personagem pode ser vista como uma personificação de pureza e equilíbrio; por outro lado, a personagem coloca em dúvida a sua própria capacidade de resistência, caso Brown a deixe por muito tempo desatendida. "Meu amor" sussurrou ela, débil e muito tristemente, quando seus lábios estavam perto do ouvido dele, "termina o que deves fazer antes do nascer do sol e vem dormir na tua própria cama esta noite. Uma mulher solitária se vê tão tomada de sonhos e pensamentos que teme às vezes até a si mesma." (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 174)

Dessa forma, Brown adentra a mata, deixando às suas costas o abrigo utópico da comunidade puritana e a materialidade dúbia de sua fé, carregando consigo apenas a relevância subjetiva que essas crenças exercem sobre a sua identidade. Contudo, o adjetivo

“jovem” que acompanha o nome do protagonista no título e em recorrentes passagens do conto serve de índice para um horizonte semântico de termos associativos que podem contribuir para a sua caracterização como, por exemplo, inexperiente, imaturo ou ingênuo. Seriam, portanto, as convicções de Goodman apenas resultados de sua pouca idade? Consequentemente, a idealização utópica do ethos puritano não corresponderia a uma visão pouco experimentada da realidade social? Retornaremos a essas. Se, para os puritanos, a floresta representava a morada de espíritos e entidades demoníacos, o texto de Hawthorne promove um encontro insólito entre uma dessas criaturas e o protagonista, reunião visivelmente aguardada por ambas as personagens. Antes de virar uma curva, voltou-se para trás. Depois, adiante, avistou a silhueta de um homem, em trajes sérios e decentes, sentado ao pé de uma velha árvore. O vulto levantou-se ao ver Goodman Brown se aproximar e pôs-se a caminhar a seu lado. "Você está atrasado, Goodman Brown", disse o outro. "Quando atravessei Boston o relógio de Old South estava soando, e isso foi há uns bons quinze minutos.""Faith me atrasou um pouco", respondeu o rapaz, com a voz meio trêmula por causa do encontro, aliás não inteiramente inesperado. (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 175)

A natureza sobrenatural desse homem que aguarda por Brown em uma das curvas da mata é retomada em diversos pontos do texto. O tempo desprendido pelo homem para se deslocar de Boston a Salém, aproximadamente 24 km, e o cajado em forma de serpente que parece assumir vida diante dos olhos de Goodman são apenas evidências iniciais que estimulam o leitor a reconhecer a figura do Demônio nesse companheiro de viagem. Com isso, a hesitação do leitor diante das possibilidades de explicação para esses fenômenos se torna patente, o que atende a um dos princípios básicos do fantástico segundo Todorov. “O fantástico implica pois uma integração do mundo do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que o próprio leitor dos acontecimentos narrados (...) A hesitação do leitor é pois a primeira condição do fantástico” (TODOROV, 1981, p. 37). Em termos estruturais, tal reação do leitor é mantida por recursos como, por exemplo, a modalização: a utilização de locuções introdutivas como “pareceu-lhe” ou “imaginou ter visto ou ouvido”. Esse procedimento de escritura mantém o leitor na incerteza dos acontecimentos por meio da própria imprecisão do foco narrativo.

No entanto, com a progressão da narrativa, a perspectiva sobrenatural do leitor é confirmada e outras marcações textuais são ressignificadas como, por exemplo, as sóbrias vestimentas que ostenta, as quais remetem ao código de vestuário dos puritanos do século XVII. Considerando, portanto, essa aparente resolução da hesitação, o leitor passaria a entender a obra como um exemplo do gênero maravilhoso, uma das categorias limítrofes do fantástico. Segundo Todorov, a própria narrativa direciona o receptor a adentrar um dos dois gêneros vizinhos, tendo em vista a explicações potenciais para os eventos narrados. Se ele decide que as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero maravilhoso. (TODOROV, 1981, p. 48)

Mas, se a hesitação esvaece tão precocemente no texto, poderíamos questionar qual o objetivo desse flerte com o fantástico. Como veremos posteriormente, a visão ambígua do leitor será instigada pelo texto em momento oportuno. No entanto, a caracterização temporária do gênero maravilhoso atende ao intuito de enfatizar a problematização e a crítica às utopias puritanas. De certa forma, Hawthorne utiliza os próprios termos do misticismo puritano para desnudar a sua hipocrisia e a sua arbitrariedade. Assim, os elementos sobrenaturais não são figurados com o único propósito de provocar a hesitação no leitor, mas também com a finalidade de promover uma análise ainda mais ferina de uma ética puritana considerada falaciosa e manipuladora, características que parecem assumir forma e voz na própria criatura que acompanha o protagonista. O conto atribui à personagem demoníaca a posse de um conhecimento que ao mesmo tempo incita os desejos humanos e provoca terríveis sofrimentos, como os de Adão, Eva e Fausto. Em sua jornada ao lado de Brown, a condução desse processo de conscientização do protagonista é a principal função temática3 do Demônio. O acesso de Brown a esse conhecimento deflagra um processo de desconstrução dos ideais que sustentam a sua fé religiosa e comunal. Novamente, as figurações de espaço e de deslocamento assumem importância, principalmente quando associadas à luz e à escuridão. À medida que o protagonista e seu companheiro se embrenham na floresta, a utopia 3

Ver: PHELAN, James. Reading people, reading plots: character, progression and the interpretation of narrative. 1989.

iluminadora do puritanismo fica cada vez mais distante e as trevas caóticas da mata se intensificam. Não obstante, conforme as convicções da personagem são desmitificadas pelas experiências da jornada, o aparente movimento simbólico se inverte, uma vez que a floresta se revela como o verdadeiro espaço de conhecimento e iluminação enquanto a comunidade puritana é exposta como um local de ignorância e obscurantismo. O percurso epifânico de Goodman Brown é formado por três etapas que se relacionam diretamente com as bases de sustentação de sua visão utópica do puritanismo. Primeiramente, a exemplaridade de seus ancestrais como bons puritanos é aludida pelo protagonista como argumento e justificativa para a sua interrupção da jornada. "Meu pai nunca andou na floresta feito um vagabundo e nem o pai dele. Somos uma linhagem de homens honestos e bons cristãos desde os dias do martírio; e eu serei o primeiro dos Brown a andar por este lugar” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 175). Ao se referir ao passado ilibado de sua linhagem, Brown recebe uma resposta que desestabiliza não apenas a sua visão sobre sua ascendência, mas também sobre o seu conceito de um bom puritano. "Bendito, Goodman Brown! Sou tão íntimo de sua família, a ponto de quase ser eu mesmo um Puritano; para mim é fácil dizer certas coisas. (...) Éramos bons amigos, os dois; e tivemos caminhadas agradáveis por aqui, voltávamos felizes depois da meia-noite. Até por respeito a eles eu gostaria de ser seu amigo." (...) Tenho ótima fama aqui na Nova Inglaterra. Os diáconos de muitas igrejas bebem em minha companhia o vinho da comunhão; os melhores homens de diversas cidades fazem-me seu representante; e a maior parte das duas cortes principais apóia firmemente os meus interesses." (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 176)

Além disso, o companheiro sombrio do protagonista Brown utiliza um recurso retórico-visual, o qual questiona, ao mesmo tempo, a honestidade dos antepassados de Brown e de seus concidadãos. Já no início do texto, o narrador afirma que Brown e seu companheiro poderiam ser tomados como pai e filho, dadas as semelhanças de gestos entre eles. Ao se encontrarem com a catequista Goody Cloyse na mata, percebe-se que a criatura demoníaca exibe os traços do avô do protagonista. "Que diabo!", gritou a piedosa mulher. "Então Goody Cloyse conhece meu amigo?", notou o jovem, vendo que ela se apoiava no bastão contorcido.

"Ah, cavalheiro, é o senhor mesmo?", gritou a boa dama. "Claro, é o senhor, e na antiga aparência do velho fofoqueiro, Goodman Brown, o avô do garoto bobo.” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 177)

A descrição desse encontro (coerente com os pressupostos do gênero maravilhoso) reafirma, pelo jogo de palavras no diálogo, a natureza diabólica do viajante ao mesmo tempo em que insere o antepassado de Brown e outros membros da comunidade puritana no círculo de suas relações. Obviamente caracterizada como uma bruxa, Goody Cloyse é apenas a primeira de um grupo de puritanos que é visto pelo protagonista na mata em direção ao ritual satânico a ser realizado naquela noite. É justamente nestes insólitos encontros que se plasma a segunda etapa de desconstrução das convicções da personagem. O suporte e os ensinamentos oferecidos pelo grupo se dissipam diante dos olhos de Brown, que passa a enxergar apenas hipocrisia onde antes vislumbrava santidade. "Aquela velha mulher ensinou-me o catecismo, disse o jovem; e havia um mundo de significados nesse simples comentário” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 178). Nesse espaço paradoxal de revelação, a utopia puritana assume paulatinamente os contornos de distopia. Contudo, Brown ainda conserva um último sustentáculo de sua fé na imagem de sua esposa. Neste ponto da narrativa, a duplicidade de Faith, ao mesmo tempo laço afetivo e credo religioso, se torna ainda mais relevante para a manutenção da sanidade do protagonista. “Com o céu sobre mim e Faith ao meu lado, vou me manter firme contra o diabo! gritou Goodman Brown” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 179). No entanto, ao encontrar a fita rosa usada por esposa presa a um ramo de árvore, o protagonista perde o último alicerce de seu idealismo e se entrega ao mal que o envolve. "Minha Faith se entregou!", gritou ele, depois de um momento de espanto. "O bem não existe no

mundo; e o pecado é só uma palavra. Venha, diabo; o mundo é seu” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 180). O desespero toma conta de Brown e ele percorre alucinadamente as trilhas da floresta como se desejasse se unir às trevas do mundo recém descoberto. “Na verdade, não havia nada na floresta mal-assombrada mais assustador que a figura de Goodman Brown (...) O diabo em sua própria forma é menos hediondo do que quando se alastra no peito do homem” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 181). Diante disso, a viagem do protagonista para o negror da floresta é também uma jornada para dentro de sua própria escuridão. Neste ponto, retomamos os questionamentos que levantamos anteriormente sobre a juventude e a possível inexperiência do protagonista.

Se considerarmos que a ida para a mata constituía um teste de fé para o jovem puritano, o resultado foi a desestabilização de todos as bases que a fortaleciam e o profundo desencantamento com o idealismo social e religioso do puritanismo. Todavia, experiência e conhecimento foram adquiridos e a personagem se transforma de forma visível ao longo da narrativa em um sujeito mais maduro. Sob esse ponto de vista, o percurso de Brown pode ser também considerado um processo de iniciação aos verdadeiros paradigmas da comunidade puritana. Tal perspectiva assume força no ritual do qual Brown participa ao lado de Faith na floresta, que apresenta traços do batismo e do matrimônio cristãos. "Que venham os conversos!", gritou uma voz que ecoou através do campo e perdeu-se na floresta. Com aquilo, Goodman Brown deu um passo na sombra das árvores e aproximou-se da congregação, da qual sentiu uma relutante proximidade pela simpatia daqueles que para ele eram imorais. "Bem-vindos, meus filhos", disse a figura sombria, "à comunhão com o seu povo”. (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 182)

Ao olhar para Faith, no entanto, Brown encontra um último resquício de força e tenta resistir a essa forma de eucaristia. "Faith! Faith!", gritou o marido, "olhe para o céu e resista ao mal" (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 184). A conclusão da cena não é apresentada ao leitor e a informação seguinte é a de que Goodman acorda sozinho na floresta úmida e fria, sem indícios concretos do que havia ocorrido. É neste ponto que a hesitação típica do fantástico parece ser recuperada pelo leitor, levando-o, inclusive, a problematizar os eventos anteriores da narrativa. No entanto, a escolha possível entre o estranho e o maravilhoso como gênero para a narrativa perde sua relevância diante do principal efeito retórico do conto: a crítica às utopias puritanas. “Teria Goodman Brown apenas caído na floresta e tido um pesadelo? Acredite se você desejar; mas, ora! O jovem Goodman Brown teve um sonho de mau presságio” (HAWTHORNE in CALVINO, 2004, p. 185). Independentemente de seu caráter sobrenatural ou não, o impacto da experiência, seja ela factual ou onírica, atinge de forma contundente o protagonista e o transforma permanentemente. Na manhã seguinte, um homem mudado adentra as ruas de Salém. A partir daquela noite, ele se tornou um homem triste, desconfiado e estranhamente pensativo, para não dizer desesperado. No dia do sabá, quando a congregação estava cantando um salmo sagrado, uma canção pe-

caminosa soprava alto em sua orelha e afogava toda a melodia sagrada, impedindo-o de ouvir. Quando o pastor falava do púlpito com poder e férvida eloquência, e com a mão sobre a Bíblia aberta, explicando as verdades sagradas da nossa religião, e contando vidas santificadas e mortes triunfantes, pregando felicidades no futuro ou miséria indizível, Goodman Brown empalidecia, cheio de medo de que o telhado desabasse sobre o blasfemo grisalho e sua platéia. (HAWTHORNE in CALVINO, 2004,

p. 185) Como vimos, a narrativa de Hawthorne operacionaliza elementos do fantástico reconhecidos posteriormente por Todorov e outras estruturas de ambigüidade para desenvolver uma ácida crítica ao puritanismo do século XVII. Nas últimas linhas do conto esse mecanismo estético-retórico ainda se mantém. Se, por um lado, as atitudes céticas e hostis de Goodman Brown evidenciam a sua consciência das deformidades da comunidade puritana; por outro lado, o processo de iniciação ocorrido na floresta o tornou, em vários aspectos, um típico puritano, ou seja, desconfiado, autocrático e obcecado pela presença constante do mal entre os indivíduos, atitudes, em grande medida, responsáveis por eventos trágicos na história estadunidense como a caça às bruxas de 1692, na própria cidade de Salém. Referências CALVINO, I. Contos fantásticos do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BERLIN, I. Limites da utopia: capítulos da história das idéias. São Paulo: Companhia das Letras: 1991. FOUCAULT. M. A Verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 1996. LÖWY, M; SAYRE, R. Romantismo e política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. NABUCO, C. Retrato dos Estados Unidos à luz de sua literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. SUTTON, R. P. Communal utopias and the American experience. Westport: Praeger, 2003. SZACHI, Jerzy. As utopias ou a felicidade imaginada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003. WOLIN, S. S. Tocqueville between two worlds: The making of a political and theoretical life. New Jersey: Princeton University Press, 2001.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.