O fazer artístico em (signific)ação: um diálogo entre Ginsberg e Pollock

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Vinícius Moraes Tiago (UFJF)

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O FAZER ARTÍSTICO EM (SIGNIFIC)AÇÃO: UM DIÁLOGO ENTRE GINSBERG E POLLOCK

A partir das três grandes feridas narcísicas sofridas pela humanidade – com o heliocentrismo de Copérnico, a teoria evolucionista de Darwin e a teoria do inconsciente de Freud – altera-se completamente a forma com que o homem se vê diante do mundo. Através desses abalos, o indivíduo moderno transita do ad aeternum para o hic et nunc1. Essa mudança da relação entre o homem e o mundo, consequentemente, também altera a própria noção de arte. Portanto, na modernidade, alguns aspectos formais encontram-se secularizados2 e o homem não utiliza mais um tempo bem diferente do aqui e agora para estabelecer seu fazer artístico. A obra, então, passa a fundar sua própria estética. Nesse sentido, a partir da pena de Allen Ginsberg e da paleta de Jackson Pollock, o presente trabalho faz uma breve investigação acerca dessa nova significação desses fazeres artísticos. Para tanto, inicialmente, analisa-se a tela Convergence do pintor expressionista para, em seguida, relacioná-la ao poema Howl do poeta da geração beat. Nossas belas-artes foram instituídas, assim como os seus tipos e práticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante face àquele que possuímos. Mas o admirável incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisão que alcançam, as ideias e os hábitos que introduzem, asseguram-nos modificações próximas e muito profundas na velha indústria do belo. Existe, em todas as artes, uma parte física que não pode mais ser encarada nem tratada como antes, que não pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo, ainda são decorridos vinte anos, o que eles sempre foram. É preciso estar ciente de que, se essas tão imensas inovações transformam toda a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria invenção, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modificar a própria noção de arte, de modo admirável. (VALÉRY, 1934, p. 103-104)

Conforme nos lembra Ruzzarin e Rücker no artigo De Jack Kerouac a Jackson Pollock: a espontaneidade na prosódia beat e na action painting, o contexto multifacetado dos Estados Unidos da década de 1950 foi marcado por inúmeras manifestações culturais contrárias ao rumo que a nação estava tomando no período pós-guerra. Almejando a libertação dos formalismos impostos pela cultura europeia e apresentando uma valorização da espontaneidade sobre os métodos de produção artística, duas manifestações culturais se destacaram: na literatura, a geração beat e, nas artes visuais, o expressionismo abstrato. Portanto, apesar das produções artísticas de Pollock e de Ginsberg terem ocorrido de maneira independente entre si, em uma análise inicial, é possível constatar que ambas produções possuem referências de um mesmo contexto sociocultural.

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Do eterno para o aqui e agora. BENJAMIN, 1995, p. 11.

Juiz de Fora, dezembro de 2016

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O culto do espontâneo, do instantâneo, a primazia da intuição sobre o intelecto, da emoção sobre a frieza acadêmica – todas estas tendências começavam a surgir no pós-guerra e anunciavam a explosão criativa dos anos 50 nos EUA: a action painting de Jackson Pollock, o Actor’s Studio de Marlon Brando e James Dean (...), a improvisação do bop e a literatura beat. (BIVAR, 1984, p. 74)

Em meio à efervescência criativa do cenário pós-guerra, jovens rebeldes, que possuíam um estilo de vida fora dos padrões e que desejavam uma literatura mais real e próxima à vida, encontraram no culto ao espontâneo os alicerces para a elaboração de uma nova estética que celebrava a valorização do movimento, do processo e da ação do inconsciente sobre a obra – um caminho que veio a ser seguido por diversas manifestações artísticas ocidentais, como o expressionismo abstrato de Jackson Pollock. Não obstante, para elucidar o contexto vale ressaltar a relevância do próprio nome oriundo do termo musical batida (beat), o qual proporcionava um resgate “do jazz feito pelos jovens negros norte-americanos de maneira informal e espontânea, que havia encantado os poetas que o incorporaram ao seu processo de produção escrita” (RUZZARIN e RÜCKER, 2014, p. 3).

Convergence, Jackson Pollock (1952)

Contrário à tradicional e restritiva pintura de cavalete, Pollock coloca suas enormes telas no chão e desafia os limites da arte ao experienciá-la de uma maneira mais física. O pintor, caminhando (action painting) e distribuindo gotejos (dripping painting) de tinta livremente por toda superfície de suas obras, alcança sua liberdade dos meios formais, da Juiz de Fora, dezembro de 2016

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frieza acadêmica e da primazia do intelecto sobre a intuição. Com traços contínuos e sem um ponto focal explicitado, Convergence faz com que o olhar do espectador percorra por toda superfície da obra sem repousar em um elemento específico. A liberdade de movimentos do artista gera uma obra contínua, interrupta e extremamente expressiva do ponto de vista do seu processo de criação – apresentando uma ligação direta entre a tela e o corpo, a arte e a vida. A minha pintura é direta... O método de pintar é o crescimento natural a partir de uma necessidade. O que eu quero é expressar meus sentimentos, não os ilustrar. A técnica é apenas um meio de se chegar a uma declaração, um depoimento. Quando estou pintando tenho uma noção acerca do que me proponho realizar. Posso controlar o fluxo de tinta: não há nenhum acidente, assim como não há começo nem fim. (POLLOCK, 1951, apud STANGOS, 2000, p. 147)

Conforme retratado por meio de entrevistas utilizadas no filme Pollock, do diretor Ed Harris indicado ao Oscar de 2001, o pintor norte-americano entendia seus métodos como uma necessidade natural para expressar seus sentimentos e angústias. Simultaneamente a esse fazer artístico de Pollock, Allen Ginsberg libertava sua poesia das amarras formais e interpretativas, colocando em evidência obras mais intimistas e, ao mesmo tempo, abertas à interpretação do público. Portanto, a geração beat e o expressionismo abstrato demonstram compartilhar aspectos para além das próprias influências geradas por um mesmo contexto sociocultural. O movimento beat é marcado principalmente pela sua escrita em movimento contínuo, com “textos em ação, prosa espontânea, frases do corpo em movimento, poesias brotando como visões do céu e do inferno, ligação direta da arte e da vida, da palavra e do corpo” (BUENO e GOES, 1984, p. 12). Avesso à poesia dos sisudos gabinetes acadêmicos, Allen Ginsberg leva seus versos intimistas e autobibliográficos para as ruas e coloca em evidência temas como as liberdades individual, sexual e linguística, desafiando não só acadêmicos e críticos, como também a própria sociedade. Inovador no plano formal e libertário à nível existencial, o poeta rompe as barreiras entre individual e coletivo, entre autor e público, ao criar uma poesia aberta, espontânea e imersa nas questões de seu tempo. Nesse sentido, como constatado por Ruzzarin e Rücker (2014), a mesma celebração à vida, à palavra e ao corpo, assim como à primazia do espontâneo sobre o racional, também “foi abordada pelos artistas que se utilizavam da técnica chamada ‘pintura em ação’” (p. 5), como demonstrado a partir da breve análise da obra Convergence de Pollock. Assim, em uma noite antológica de 7 de outubro de 1955 em um importante evento de poesia em São Francisco, o Six Gallery reading, Allen Ginsberg dá voz e corpo publicamente pela primeira vez ao seu poema Uivo e transforma para sempre a poesia norte-americana. Juiz de Fora, dezembro de 2016

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Vinícius Moraes Tiago (UFJF)

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O Uivo (Howl) I Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa, hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite, que pobres esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando o jazz, que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos, que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra, que foram expulsos das universidades por serem loucos & publicarem odes obscenas nas janelas do crânio, que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descascada em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestos de papel escutando o Terror através da parede, que foram detidos em suas barbas púbicas voltando por Laredo com um cinturão de marihuana para Nova Iorque, que comeram fogo em hotéis mal pintados ou beberam terebentina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram seus torsos noite após noite com som, sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília, álcool e caralhos em intermináveis orgias, incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula, e clarão na mente pulando nos postes dos pólos de Canadá & Paterson, iluminando completamente o mundo imóvel do Tempo intermediário, solidez de Peiote dos corredores, aurora de fundo de quintal das verdes árvores do cemitério, porre de vinho nos telhados, fachadas de lojas de subúrbio na luz cintilante de neon do tráfego na corrida de cabeça feita do prazer, vibrações de sol e lua e árvore no tronco de crepúsculo de inverno de Brooklyn, declamações entre latas de lixo e a suave soberana luz da mente, que se acorrentaram aos vagões do metrô para o infindável percurso do Battery ao sagrado Bronx de benzedrina até que o barulho das rodas e crianças os trouxesse de volta, trêmulos, a boca arrebentada o despovoado deserto do cérebro esvaziado de qualquer brilho na lúgubre luz do Zoológico, que afundaram a noite toda na luz submarina de Bickford´s, voltaram à tona e passaram a tarde de cerveja choca no desolado Fuggazi´s escutando o matraquear da catástrofe na vitrola automática de hidrogênio, que falaram setenta e duas horas sem parar do parque ao apê ao bar ao Hospital Bellevue ao Museu à Ponte do Brooklyn, (...) — Fragmento inicial de Uivo (GINSBERG, 1955 [1999])

Juiz de Fora, dezembro de 2016

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Com um novo ritmo e tipo de linguagem, o Uivo de Ginsberg confronta a sociedade conservadora e turbulenta de sua época, rompendo quaisquer limitações social, política ou cultural. Devido à escassez de pontuação final e à linguagem espontânea, Howl faz com que o leitor percorra longos trechos do poema de forma ininterrupta, sem que este consiga fixar a atenção em um objeto ou cenário específico, algo notavelmente semelhante aos movimentos do espectador diante dos traços contínuos e sem ponto focal de Convergence. Enquanto Jackson Pollock encontra parte de sua liberdade das amarras formais ao caminhar sobre suas telas de maneira livre, Allen Ginsberg celebra essa mesma liberdade permitindo que seus pensamentos fluam de maneira menos restritiva para o papel. Nesse sentido, por meio do desconhecido e da primazia do espontâneo, ambos artistas, do verbo e das artes visuais, se expressam de maneira única e rompem barreiras ao criar novas concepções sobre aquilo que é considerado arte e sobre o próprio fazer artístico. A partir desse novo contexto, se faz necessário considerar os diversos modos pelos quais uma obra pode ser significada e também produzida, agora sem a estabilidade de sempre se recorrer a uma estética universal e anacrônica. Contudo, o rompimento com as tradições formais instaura uma nova perspectiva, não só para a produção artística e para ambas artes (poesia e artes visuais), mas também para o intérprete – o espectador-leitor. Apreciar a arte é muito mais do que um mero prazer estético; é aprender a compreender o seu significado. Nenhuma obra de arte pode ser compreendida fora do seu contexto histórico. Todas as 'leis' estéticas até agora propostas se têm mostrado insatisfatórias e, na maior parte dos casos, apenas têm servido para dificultar a nossa compreensão. Mesmo que se viesse a encontrar uma lei válida — e até à data isso não aconteceu — ela seria provavelmente tão elementar que de pouco serviria, ante a complexidade da arte. (JANSON, 1992, p. 18)

Ainda que seja por um breve intervalo, é preciso que o espectador-leitor esteja disposto a dividir o olhar com esses artistas, e através desse movimento de alteridade, então, tentar compreender o contexto e o fazer artístico; não como uma forma de validação única e absoluta de compreensão dos significados3, mas como uma dentre as várias possibilidades que são apresentadas ante a complexidade da poesia e das artes visuais. Afinal, é essa complexidade que caracteriza ambas artes no devir, as recusando qualquer tipo de formalismo universal, pois é parte do fazer artístico não só poder instituir e consolidar uma tradição, como também possuir liberdade diante desta. Na citação, Janson faz uso do singular ao se referir “a aprender o significado da arte”. Mediante à percepção da insustentabilidade de uma estética universal ao fazer artístico, utilizo o plural (significados) para explicitar o mesmo em relação à significância. Pois, parte-se do pressuposto que não existe um significado absoluto a ser descoberto ou aprendido, e sim que estes são múltiplos – dada a singularidade de cada encontro entre artista e espectador, poeta e leitor. 3

Juiz de Fora, dezembro de 2016

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Olhares Flutuantes, Marcos Beccari (2011)

Juiz de Fora, dezembro de 2016

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Vinícius Moraes Tiago (UFJF)

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Em última análise, em contraste a um certo “automatismo” frequentemente atribuído ao fazeres artísticos de Allen Ginsberg e de Jackson Pollock, ao se tentar compreender a escolha de ambos pela espontaneidade ante a racionalidade, o paradoxo apresentado pelos dois parece ser precisamente o contrário: a busca pela possibilidade de agir, de produzir, de significar ante a tantos automatismos sociais, formais e acadêmicos. Afinal, diante da supremacia da busca por um resultado final idealizado, colocar em evidência a valorização do processo acima desses paradigmas formais é uma possibilidade de fuga do automatismo e, portanto, possibilidade de (signific)ação – sobre si, sobre a obra e sobre o próprio fazer artístico. Nesse sentido, tanto Allen Ginsberg quanto Jackson Pollock contribuíram para uma nova perspectiva em relação às artes poética e visual, em que a obra passa a existir enquanto encontro, entre poeta e leitor, entre pintor e espectador, entre obra e vida – e não mais como uma mera interpretação de idealizações previamente estabelecidas e contempladas. Por fim, aproveitando a deixa de um dos mais influentes textos da geração beat, o On the Road (1957) de Jack Kerouac, Ginsberg e Pollock desfrutaram de suas obras como uma espécie de estrada sem destino final e instigaram permanentemente a forma de se vivenciar a poesia e as artes visuais.

“A grandeza do homem é ele ser uma ponte e não uma meta, o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem, uma transição.” — Friedrich W. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra (1883 [1964], p.15)

Referências & Bibliografia BECCARI, M. N. Articulação Simbólica: uma abordagem junguiana aplicada à Filosofia do Design. 2012. 369 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2012. BENJAMIN, W. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1995. BIVAR, A. Alma Beat. Porto Alegre: L&PM, 1984. BUENO, A.; GOES, F. O que é a geração beat. São Paulo: Brasiliense, 1984. GINSBERG, A. Uivo, Kaddish e outros poemas. Tradução de Claudio Willer. São Paulo: L&PM, 1999. JANSON, H. W. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1992. NIETZSCHE, F. W. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1964. RUZZARIN, J. A.; RÜCKER, J. De Jack Kerouac a Jackson Pollock: a espontaneidade na prosódia beat e na action painting. Anais do 3º Seminário de Iniciação Científica da ESPM. São Paulo: [s.n.]. 2014. p. 1-17. STANGOS, N. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. VALÉRY, P. Pièces sur l'Art. Paris: Conquête de l'Ubiquité, 1934.

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