O Fazer Midiático e os Discursos sobre a Pirataria (Media Practice and Piracy Speeches)

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O FAZER MIDIÁTICO E OS DISCURSOS SOBRE A PIRATARIA  Angela Meili  RESUMO: O tema da pirataria de bens culturais deve ser tratado de forma a considerar toda a sua complexidade, sendo que as práticas e posicionamentos em relação ao uso de tecnologias midiáticas estão diretamente relacionados aos discursos sobre a propriedade intelectual e a pirataria. Este artigo propõe pensar em uma “ordem discursiva da pirataria” (FOUCAULT, 2010), apresentando uma dinâmica entre o discurso fundante da lei de propriedade intelectual e os diversos outros discursos e posicionamentos. A análise será orientada pela interface discurso e ação, desenvolvendo uma abordagem de análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH, 1995) e toma a pirataria como uma manifestação cultural heterogênea, que articula uma gama de imaginários sobre a propriedade intelectual, o acesso à informação, a tecnologia, o mercado e a cultura colaborativa. PALAVRAS-CHAVE: Discurso. Pirataria. Bens Culturais. Mídia. Propriedade Intelectual.

1. Introdução Os discursos sobre a pirataria da internet suscitam procedimentos e conhecimentos sobre a tecnologia, de modo que a existência do fenômeno da pirataria, ou cópia não autorizada de bens culturais, irá depender de discursos que orientam o uso e produção dos aparatos tecnológicos. De acordo com as reflexões filosóficas sobre a técnica propostas por Simondon (1980), o conhecimento tecnológico é potencialmente aplicável a infinitas combinações de elementos e funções, o que gera toda sorte de aparelhos; esse saber tecnológico integra-se a dinâmicas sociais e simbólicas que elegem prioridades e escolhas, em função de projetos culturais e, principalmente, em função do repertório científico e intelectual das sociedades humanas. Assim, o bloqueio ou desenvolvimento de funções técnicas resulta de escolhas tecnológicas, de discursos sobre a técnica, o que inclui as regulamentações do âmbito legal e as representações ideológicas. Diagrama 1: Relação entre discursos sobre pirataria, tecnologia e práticas.

Discursos sobre a Pirataria

Discursos sobre a Tecnologia

Usos e produção de aparatos tecnológicos - Práticas de pirataria

Fonte: Elaboração da autora



Texto completo de trabalho apresentado na Sessão Análise Crítica do Discurso e Interfaces, do Eixo Temático Estudos da Língua e da Linguagem II do 4. Encontro da Rede Sul Letras, promovido pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem no Campus da Grande Florianópolis da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) em Palhoça (SC). Este trabalho apresenta reflexões desenvolvidas na tese de doutorado da autora (MEILI, 2015), além de integrar o projeto Discursos Sobre a Pirataria na Internet: do imaginário à ação, em desenvolvimento na Universidade Estadual do Paraná (2015-2016).  Docente do Curso de Licenciatura em Letras-Espanhol, da Universidade Estadual do Paraná, UNESPAR. Doutora em Comunicação Social (PUCRS, 2015). E-mail: [email protected].

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Conforme observamos no esquema acima, concepções e conhecimentos sobre a técnica criam condições para práticas comunicacionais e culturais, de maneira que os processos tecnológicos envolvidos na distribuição de informação na era digital correspondem a uma gama de processos discursivos que são estabelecidos em campos de constante conflito de poder. Podese dizer que a produção e desenvolvimento de tecnologias comunicacionais depende do conhecimento técnico-científico, o qual resulta de uma vontade de saber e poder1, ou seja, em uma sociedade técnico-científica e informacional, quanto maior o desenvolvimento e domínio tecnológico, maior o poder de enunciação simbólica, pois o conhecimento e controle das tecnologias de comunicação garante o poder discursivo, já que são justamente essas instâncias que delimitam a circulação e distribuição de textos. Considera-se que as mídias são mediadoras fundamentais de grande parte das práticas discursivas na contemporaneidade, mas elas não são entidades neutras, estando submetidas a estruturas sociais; com isso corroboram grande parte dos teóricos dos meios de comunicação, destacando especialmente os pensadores da crítica à Indústria Cultural (ADORNO & HORKHEIMER, 1985; 2002), mas também o pensamento de McLuhan (1964; 1967). Enquanto os primeiros abriram caminhos para compreender o papel dos meios de comunicação e da indústria do entretenimento na formação das identidades modernas, em um contexto da sociedade industrial, onde a mídia atua como porta-voz da ideologia capitalista; o último aparece como um autor fundamental nos estudos de comunicação, ao chamar a atenção para o papel das estruturas tecnológicas na modulação da percepção humana, ou seja, os meios de comunicação instauram-se como elementos de coesão social, que estimulam os sentidos e se fazem presentes de um modo tão incisivo quanto as próprias mensagens que veiculam. Nos dois casos, ainda que por caminhos diferentes, notamos a importância de não se tomar os meios de comunicação como entidades neutras que apenas transmitem mensagens. 2. Considerações teórico-metodológicas Os discursos são uma interface entre as práticas sociais e as representações ou ideologias, e a sua análise deve ser, por isso, interdisciplinar. Ao pensar o discurso por um viés crítico, temse uma análise interessada, sobretudo, nas relações de poder que os discursos engendram, que podem ser (e, na maioria das vezes, são) excludentes e opressivas. Entender os discursos implica compreender o social e as situações comunicativas, uma condição básica para possibilitar a emancipação em cenários opressivos. Assim, consideramos, com Fairclough (1995), que o estudo dos discursos está, desde o início, inserido em um campo de disputas, dedicando importância às condições de produção, distribuição e consumo de textos. Ao chamar a atenção para o papel da linguagem na manutenção e transformação das relações de poder, também consideramos o papel dos meios de comunicação na manutenção e transformação das relações de poder. O tema da pirataria insere-se justamente nesse campo de disputas. Se, por um viés dialético, para cada dominação, haverá adaptação e também resistência, nossa pesquisa indica que, para além da situação dominadores versus dominados, podemos apontar para aspectos fragmentários de agência subjetiva. Há a negociação da liberdade no uso de tecnologias midiáticas a partir de referências moventes, pois não se trata somente do enfrentamento direto e reativo a uma opressão homogênea, mas de um fenômeno social onde diversos posicionamentos configuram as facetas da pirataria. Estas negociam contradições socioculturais em situações específicas, constituindo lutas sociais. Os discursos sobre a pirataria e a propriedade intelectual estão em constante movimento e participam das mudanças concretas na sociedade, havendo um impacto direto da ontologia social sobre eles; esses discursos, como veremos, movimentam proibições e desobediências. Faz-se referência às reflexões desenvolvidas por Foucault (2010) acerca da função dos sistemas de verdade no estabelecimento de coerções sociais e sistemas de interdição da linguagem. 1

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Devido à heterogeneidade e variação entre discursos, bem como à sua complexidade e dinamicidade, conseguimos apenas provisoriamente identificar as suas fronteiras, pois elas são mais ou menos demarcadas e modificam-se com a sociedade. No caso da pirataria na Internet, trata-se de complexidades discursivas multissemióticas (várias linguagens) e multissistêmicas (sistemas da informação e interfaces), que negociam contradições socioculturais em circunstâncias de dúvida e contestação. Quanto à materialidade do discurso, a presente análise restringe-se a uma observação contextual dos aspectos sócio-históricos dos discursos sobre a pirataria, atendo-se ao que, no modelo tridimensional proposto pela análise crítica de Fairclough (1995), corresponderia especificamente à segunda e terceira dimensão de sua metodologia: a) à análise geral das condições das práticas discursivas e b) à análise social2. Ficam, por ora, de lado a análise linguística e as outras etapas da análise discursiva, que poderão ser contempladas em trabalhos posteriores, a partir de investigações mais particularizadas dos materiais textuais que compõem esses discursos. Sendo os discursos instrumentos que aliam a representação à ação social, há, portanto, uma relação interdependente entre eles e a estrutura social. De acordo com Fairclough (1995), trata-se de observar que a constituição discursiva de uma sociedade decorre de práticas sociais arraigadas em estruturas materiais, os discursos são práticas políticas e ideológicas, mantendo ou transformando relações de poder e significados do mundo. Quando se observa as práticas de pirataria mundo afora e a sua relação aos discursos e a política da propriedade intelectual, notamos que os sujeitos são capazes de, progressivamente, reestruturar as relações de poder, a partir de suas práticas; isso quer dizer que os sujeitos podem reelaborar noções e soluções tecnológicas e atuar conscientemente através de práticas desobedientes. Como lembra Wodak (1996), pode-se alterar a distribuição de poder a partir da própria linguagem, ou seja, as enunciações exercem influência nas situações sociais. O procedimento deste trabalho consiste em observar os aparatos de saber, desde a lei, até as práticas cotidianas, e como estes promovem um deslocamento histórico da questão da pirataria a partir da convergência dos meios de comunicação. Como já foi dito, a nossa observação não se deterá em observar especificamente os enunciados, mas refletir sobre a ordem discursiva da pirataria, que se compõe de uma grande quantidade de enunciados, distribuídos de forma bastante heterogênea. Nesse tema específico, as práticas piratas promovem a transgressão e o cruzamento de fronteiras, estabelecendo mudanças discursivas em relação à propriedade intelectual. 3. As Piratarias Seria a pirataria evidência de uma sociedade cada vez mais livre ou ao contrário, uma afirmação direta da necessidade desenfreada de consumo cultural? Trata-se de uma libertação anárquica das possibilidades de troca ou o sintoma de um domínio cada vez maior da indústria do entretenimento e dos media? Apesar da multiplicação da capacidade enunciativa, a pirataria, ao mesmo tempo em que desafia as regras impostas pela lei do mercado, também é dele dependente. É possível aproximar a questão da pirataria de dois temas gerais: a propriedade intelectual e a tecnologia. Isso porque ela é um fenômeno que emerge da sua própria nomeação, dada pelo discurso da propriedade intelectual; quer dizer, a pirataria situa-se nos limites estabelecidos pela lei. Fica, nesse caso, evidente a pertinência da proposição de Foucault (2010) acerca dos sistemas jurídicos, como conjuntos de prescrições, que se apoiam em sistemas de verdades e conformam os outros processos discursivos, justamente porque ritualizam os discursos a partir de suas instituições. 2

O autor propõe outras etapas para o que considera uma análise completa.

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Ainda que os termos da lei estabeleçam a priori o lugar da pirataria, autorizando ou proibindo o que se pode, deve ou não fazer com a tecnologia, a última, devido à sua absoluta resiliência, é objeto das mais diversas intervenções discursivas de resistência, dentre as quais a pirataria poderia ser caracterizada como um “discurso desobediente”. Justamente devido às potencialidades oferecidas pela tecnologia, a pirataria se apresenta como um tema de interesse para os estudos críticos, pois ela é, propriamente, uma reação ao que Van Djik (2008) chama de “restrições sociais” aos discursos. No caso da propriedade intelectual, uma restrição que se dá no campo discursivo da lei. Para Fairclough (1995), a lei representa uma das facetas da tecnologização do discurso, o emprego do discurso como técnica (a técnica do discurso legal); um discurso altamente planejado e que tem como objetivo fundamentar as práticas sociais. Dessa forma, o discurso e a aplicação da propriedade intelectual pauta todas as outras práticas discursivas e sociais em relação à pirataria, originando a seguinte dinâmica. Diagrama 2: Dinâmica entre os discursos sobre Pirataria e a PI

Pirataria e a Economia Liberal

Pirataria e o Acesso à Informação

A Guerra conta a Pirataria

Propriedade Intelectual

Pirataria e Cultura Desobedien te

Pirataria e Cultura Livre

Fonte: Elaboração da autora.

Tendo em vista extensão de cada um desses aspectos e o tamanho limitado do presente trabalho, restringimo-nos a apontá-los brevemente, de modo a configurar um mapeamento da ordem discursiva da pirataria. Vale ressaltar que alguns aspectos dessa dinâmica discursiva já foram previamente apresentados por Lobato (2012), todavia aqui propomos uma formulação própria em relação a esses discursos, ainda que inspirada na análise do autor. 4. A Propriedade Intelectual De modo geral, o discurso da propriedade intelectual vê a tecnologia como um conjunto de práticas científicas, comerciais e culturais que precisa ser regulado, discurso versado pela lei positiva dos estados democráticos. Trata-se de uma instância discursiva normativa que se desenvolve no contexto das instituições públicas e regula as práticas sociais. A propriedade intelectual é um direito estabelecido que se impõe ao corpo social a partir de mecanismos punitivos e burocráticos. Na era da reprodutibilidade imaterial da informação, a regulamentação propriedade intelectual ocorre em um cenário de conflitos: enquanto a ubiquidade da pirataria e os discursos que defendem o livre acesso à informação pressionam pelo afrouxamento e atualização dessas legislações, há outros interesses que defendem um controle ainda maior das informações e rigor na aplicação da lei. Saqueadores sem pátria, no alto mar, os piratas em seus navios foram os primeiros a receber essa nomeação; contudo, desde os primórdios da sociedade letrada e industrial, o termo adquire um espectro de significado mais amplo, entre os séculos XIV e XVII, passando a ser um 120

nome para as violações do direito autoral, propriedade intelectual, plágio ou impressão e venda não autorizada de cópias de livros. Por deslizamento semântico (SPAZIANI, 2007), o termo pirata passa, de “agressão à propriedade material”, para “agressão à propriedade imaterial/intelectual”. Transição que acompanha a mudança, nesse período, na noção de propriedade, que se expandiu do campo dos bens materiais para os bens simbólicos (propriedade + intelectual). De acordo com Johns (2010), a percepção social e jurídica da pirataria variou, no estabelecimento das legislações autorais e dos mercados culturais. Na Europa renascentista, quando o desenvolvimento de conhecimentos aplicáveis ao domínio da natureza (incluindo as publicações desses conhecimentos) passam a trazer poder e enriquecimento, o valor do intelecto adquire uma dimensão econômica e promove ampla transformação dos modos de vida. O direito autoral surge, nessa época, juntamente com a própria imprensa e, também, a noção de autoria3. O conhecimento e a sua reprodução ganham valor econômico, o que estabelece um novo contexto para o termo pirata. Enquanto a relação entre conhecimento e riqueza material torna-se mais complexa, a ideia de pirataria coaduna com uma série de contextos históricos, dialogando com as dimensões legais, econômicas e culturais da sociedade. Se a Renascença foi uma era favorável para a consolidação da propriedade intelectual e do autor, o tema, hodiernamente, entra em crise por razões contextuais de mesma natureza: da ordem tecnológica, econômica e cultural. Sobretudo, a tecnológica tem um peso importante, tanto na Renascença, com as invenções mecânicas, quanto na contemporaneidade, com as invenções eletrônicas. Ao longo do estabelecimento da propriedade intelectual, houve uma série de esforços para produzir um aparato regulatório internacional. Como assinala Seville (2010), as reimpressões e a distribuição de obras literárias entre a América e o Reino Unido, desde o século XVIII, suscitaram desacordo de interesses, acarretando uma relação de instabilidade entre os dois países, até a consolidação de um aparato regulatório. Somente após a Guerra Civil, foi possível estabelecer um copyright internacional, amenizando dissimetrias entre as legislações nacionais, tal foi o objetivo das convenções internacionais, que passaram a servir de base para as legislações locais, tal como a Convenção de Berna4. Na era digital, o movimento pelo fortalecimento e atualização das legislações da propriedade intelectual é influenciado pela pressão norte-americana, cuja política é de fortalecimento do copyright. Desde os anos 1980, o governo norte-americano é o mais comprometido em promover a defesa da propriedade intelectual, colocando-a no centro da sua diplomacia. O investimento no âmbito legislativo5 é prova do impacto que a transformação do contexto tecnológico trouxe para as velhas legislações, que antes asseguravam a predominância do regime de propriedade intelectual. A violação da lei pelo usuário em larga escala põe em questão se as normas atuais do copyright respondem à conduta geral, ou seja, a emergência do consumidor como um violador de massa é muito mais um sintoma do que a causa da desagregação do copyright.

Regulamentações do século XVII (Paris Guild, 1618) confirmaram a obtenção de privilégios estendidos e ilimitados (sobre a cópia) de um livro autoral. 3

4 Convenção utilizada oficialmente pela maioria dos países signatários da

Organização mundial do comércio (OMC). Seu princípio básico é o de que o autor tem pleno controle sobre o valor da sua obra. Já passou por uma série de revisões, desde a sua criação em 1886 – completada em Paris em 4 de maio de 1896, revista em Berlim, em 13 de novembro de 1908, completada em Berna, em 20 de março de 1914 e revista em Roma, em 2 de junho de 1928, em Bruxelas, em 26 de junho de 1948, em Estocolmo, em 14 de julho de 1967 e em Paris em 24 de julho de 1971. (BERNA, 1971) Cf. Meili (2015, p. 107): Uma série de estratégias jurídicas têm sido levadas a cabo para a execução da propriedade intelectual mundo afora: responsabilização dos provedores, resposta gradual, punições exemplares para indivíduos, fechamento ou bloqueio de sites facilitadores, entre outras. 5

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Apesar da manifesta universalidade da noção “pirataria é roubo”, a sua aplicação não está longe de conflitos, pois o direito autoral não tem um valor absoluto, mas deriva de uma organização discursiva histórica e social e está sujeito à força de toda sorte de interesses. Conforme aponta Dent (2012), no século XXI, o controle e a expansão da propriedade intelectual, a ênfase no consumidor individual, o crescimento da economia informal e as ansiedades acerca do copyright fizeram da pirataria um solo referencial para a legitimidade circulatória. Segundo o autor, os proponentes da propriedade intelectual – advogados, companhias farmacêuticas, empresas de filme e música, etc. – lutam para aplicar a PI a um maior espectro possível de práticas humanas, clamando que este é um direito fundamental e trans-histórico. Entretanto, conforme Lemos (2005), a relação entre a estruturas normativas e a sociedade não é estável, notadamente quando se fala em políticas da tecnologia, não é raro haver disparidade entre a norma, de caráter ideal, e a constante transformação social, de modo que as normas jurídicas se enfraquecem diante da importância factual das comunidades de conhecimento. Problemas dessa natureza revelam uma crise na ciência jurídica, quando problemas de ordem social desestabilizam instâncias reguladoras. Pelo fato de a informação multiplicar-se com facilidade, as leis de direito autoral são mais vulneráveis à resistência do que a maioria dos regimes legais, além do que suas violações são difíceis de policiar (devido ao caráter massivo do fenômeno) e o policiamento efetivo conflita com direitos fundamentais de privacidade e liberdade individual. Com o aparecimento e crescimento da pirataria digital, os sistemas legais tornaram-se um campo de disputas e tensão, haja vista a necessidade de revisão dos mecanismos de controle da informação em um cenário reconfigurado tecnologicamente. Nesse aspecto, nota-se uma tendência em encontrar medidas estratégicas para o fortalecimento do direito de autor. Por fim, vale ressaltar que o maior desafio para as legislações atuais é monitorar a circulação dos conteúdos nas redes digitais, tendo em vista as estratégias de invisibilidade e a presença abundante da pirataria no mundo: a quantidade de circulação é tão pervasiva que monitorá-la é mais dispendioso do que o possível prejuízo causado pela circulação informal. Ainda, a resiliência das soluções tecnológicas e a flexibilidade e fluidez das relações informais fazem com que as práticas desobedientes encontrem rapidamente desvios em relação ao controle do estado. 5. Discursos sobre a Pirataria 5.1 Pirataria e economia liberal Consiste em uma série de políticas e acordos internacionais e resulta da própria constituição do mercado a) das tecnologias e b) dos bens culturais; equivale ao que Fairclough (1995) denomina “comodificação”: no sistema capitalista, serviços e produtos informacionas estão inseridos em estruturas de produção e distribuição dentro de uma lógica mercadológica. Pensa-se, assim, o consumo cultural, no estudo da pirataria, como integrado a uma lógica de oferta demanda nas estruturas produtivas. Há dois polos importantes quanto ao liberalismo econômico, pois, por um lado, associa-se diretamente à propriedade intelectual e, por outro, pode ter a sua lógica totalmente adaptada aos mercados informais6 ou, até mesmo, conforme notamos na pesquisa, uma exploração econômica de várias instâncias da economia informal pelos agentes formais e estabelecidos. O liberalismo econômico é um campo de disputa, onde observamos claramente as instâncias de dominação e colonização, tendo em vista o imperialismo econômico das nações desenvolvidas7, mas configura-se também como um campo difuso, de uma economia cada vez 6 7

Cf. Mason (2009); Anderson (2006; 2009) Cf. Chomsky (1978)

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mais fluida e interconectada. No liberalismo econômico, a tecnologia é uma ferramenta utilizada dentro da dinâmica do mercado e a sua resiliência e eficiência será adaptada a qualquer necessidade ou intenção. O mercado é um dispositivo que representa a interação social, e é relativo tanto aos mecanismos institucionalizados, quanto às trocas não institucionalizadas, um espaço conceitual onde atores são representados por suas demandas, pelo cálculo dos recursos disponíveis, pelas possibilidades de cooperação entre os agentes, pela troca de bens e valores na mútua satisfação de interesses (BARRON, 2010). No cenário circulação dos bens informacionais, a pirataria é uma atividade que encontra as necessidades de mercado, integrando-se à lógica capitalista, pois satisfaz demandas negligenciadas; ainda que excluídas de autorização pelo aparato regulatório oficial, ainda que desobedientes, essas práticas encontram legitimidade social e também podem se tornar atividades lucrativas. A pirataria dos bens midiáticos integra uma economia informal altamente complexa e ubíqua. Como aponta Mattelart (2012), as atividades econômicas informais, mesmo que fora dos circuitos oficiais, desenvolvem-se abertamente em economias que se conectam com as economias formais. Assim, a ideia de subterrâneo ou informal não deveria levar diretamente à conclusão de que se trata de uma circulação marginal, pois, em volume, impacto e importância para essas economias ela é central. Também observamos uma possiblidade de articulação entre o liberalismo econômico e os discursos das culturas livres. A integração da cultura livre à cultura capitalista tem um marco na ideologia californiana, movimento cultural que articulou a utopia tecnológica e contracultural boêmia de São Francisco (CA) ao empreendedorismo liberal da Sillicon Valley. Trata-se da articulação entre o espírito anárquico dos anos sessenta e o entusiasmo tecnológico e do empreendedorismo. Nesse momento específico pode-se falar de um empreendedorismo contracultural que, ao longo das décadas, transforma radicalmente a realidade social, que aos poucos, vai se integrando à era digital. 5.2 Prataria e Cultura Livre Esse discurso fundamenta-se em uma crítica à propriedade intelectual, mas é também resultado de um cenário colocado pelo liberalismo econômico. A free culture possui dois sentidos na tradução para o português da palavra free: grátis (receber algo sem pagar) e livre (ideologia da desconstrução da propriedade intelectual) (ANDERSON, 2009). A dualidade não é apenas coincidência lexical, mas um fato da sociedade em relação ao conhecimento, aos bens simbólicos e às tecnologias. Ou seja, por um lado, temos um comportamento de massa, que consiste em consumir e replicar conteúdos culturais, sem respeitar as restrições dadas pela propriedade intelectual (a cultura do grátis) e, por outro lado, temos atitudes de apropriação tecnológica motivadas ideologicamente pelo discurso da liberdade de acesso ao conhecimento (cultura livre). A cultura livre tem suas sementes plantadas na própria origem da computação digital, a sua articulação discursiva progride e se complexifica ao passo que as próprias tecnologias se desenvolvem. O software livre, em grande parte, ajudou a compor as bases das estruturas comunicacionais da era digital, mas não se trata tão somente de um produto tecnológico, mas de um movimento que se posiciona ativamente em relação à propriedade intelectual, exigindo a sua reconfiguração, a partir da ideia de commons, e também interferindo diretamente nas dinâmicas econômicas globais, ao oferecer soluções tecnológicas e possibilidades de rearranjos dos recursos informacionais que inauguram a cultura do compartilhamento. Não apenas discurso e ideologia, o commons é um princípio de organização coletiva, que gera de modos de trabalho e práticas sociais e discursivas. Trata-se de um posicionamento crítico que desafia instâncias de poder estabelecidas pela estrutura da propriedade intelectual. Para a cultura livre, o saber tecnológico deve ser público, para que as soluções e linguagem sejam mais facilmente alteradas e adaptadas a qualquer necessidade, sem o domínio exclusivo/excludente da propriedade. 123

No discurso da cultura livre, a tecnologia pode ser explorada economicamente, mas também deve servir para viabilizar o livre acesso à informação e à liberdade de expressão. Esses atores discursivos levantam questões sobre políticas da tecnologia e da comunicação e, quando alguma delas se mostra pertinente à sociedade, há discussões que podem conduzir a transformações nas leis. O movimento da cultura e software livre, que tem como um de seus principais representantes a EFF (Eletronic Frontier Foundation), exigiu o debate político sobre a reforma das leis de direito autoral e a neutralidade da internet, defendendo uma liberdade informacional e pessoal que é oprimida pelo controle dos meios de informação. Entre outros agentes desse discurso, temos o ethos hacker, o ativismo cultural, a cultura do remix e as iniciativas de se desenvolver novas formas de licenciamento de obras, como o Creative Commons8 e a GPL9, as quais sugerem sua própria modalidade de propriedade intelectual. Desde o início dos anos 2000, políticas a favor do software livre ganham repercussão mundo afora. A ideia de criar estratégias políticas e jurídicas para que o direito básico da liberdade de expressão se faça valer originou-se de um movimento ativista a favor de uma internet livre. Esse discurso sugere que princípios básicos como neutralidade da rede e privacidade devem ser garantidos para que seja possível um uso livre dos bens informacionais, que estariam prejudicados se o direito à propriedade intelectual for priorizado a qualquer custo. Se pensarmos a pirataria em relação à cultura livre, podemos dizer que ela participa como catalisadora de um processo democrático. O fenômeno do compartilhamento de arquivos, se desenrola como um movimento ativo e representa uma transformação em relação às éticas coletivas contemporâneas, que já não separam a lógica de mercado, as comunidades (digitais ou não) e a motivação política (ANDERSSON, 2011). Nesse sentido, é emblemático fazer referência ao Partido Pirata, que se origina na Suécia, com o propósito de fazer um enfrentamento político direto à propriedade intelectual. Pode-se dizer que o fenômeno sueco aparece como uma iniciativa de estabelecer fundamentos para políticas digitais no novo milênio, fazendo confluir a produção intelectual (Piratbyrån), o ativismo tecnológico (The Pirate Bay) e o discurso político-institucional (Pirate Party); estas chamadas instituições piratas suecas utilizam provocativamente o termo pirata, com o objetivo de, retoricamente, transformar a percepção pública do termo, removendo-o da marginalidade para representar uma parcela significativa da população. Os dois primeiros representam um caráter mais ativista informal, que segue uma agenda hacktivista, mas não deixam de corresponder a uma ação tecnológica discursivamente orientada. Conforme Andersson (2011), esse fundamento discursivo foi inserido, principalmente, pelo Piratbyrån, que, desde 2002, funciona como uma espécie de think-tank alternativo, que formula um aparato crítico acadêmico em torno do file sharing e das políticas de direito autoral, oferecendo base argumentativa para uma série de práticas ativistas. Segundo o autor, um dos fundamentos conceituais propostos pelos Piratbyrån é a superação de dicotomias como legal-ilegal, privadopúblico, grátis-pago, arte-tecnologia-vida, fundamentando-se em teorias sobre o materialismo midiático e a filosofia crítica contemporânea. O Partido Pirata consolidou-se como uma forma de representação política e formal desse discurso, que, desde 2006 apresentou-se como uma alternativa política que se situa fora da dualidade esquerda-direita, focando exclusivamente nos temas da reforma do copyright e da privacidade na rede. O debate sueco, mesmo sendo sofisticado e com significativas repercussões Conjunto de licenças flexíveis para bens culturais, softwares e documentações em geral, criada em 2002, pela organização governamental de mesmo nome, localizada nos Estados Unidos. Disponível em . Acesso em: 22.09.2014. 9 General Public License. Um tipo de licença alternativa para bens autorais, que foi idealizada por Richard Stallman e pela Free Software Foundation para facilitar o desenvolvimento de softwares e outros bens culturais, a partir de proteções mais flexíveis . Acesso em: 22.09.2014. 8

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não se mostra como caso isolado, mas é um debate pertinente para a questão da propriedade intelectual em todo o mundo, além de ser um dos desdobramentos do discurso da cultura livre que se relaciona diretamente à cultura desobediente. 5. 3 Pirataria e Cultura Desobediente A cultura desobediente é uma radicalização da cultura livre, pois, ao invés de propor e contribuir com a reformulação dos mecanismos legislativos, apropria-se dos recursos tecnológicos para criar espaços e dinâmicas paralelas, que desafiam a lei e conformam práticas desvinculadas das instituições sociais. Esse discurso-ação consiste em grupos e indivíduos que atuam para promover a circulação informal dos bens de informação e desafiar as barreiras legais e técnicas para o livre exercício da expressão e da comunicação. A pirataria pode ser apoiar utopicamente na ideia de autonomia intelectual e material, sendo o autodidatismo tecnológico, ou seja, a produção independente de saber tecnológico, semente dos espaços, ambientes de liberdade na internet, em outras palavras, uso livre da tecnologia requer mais do que a interação reativa, ela requer conhecimento tecnológico. Assim, a pirataria enquanto cultura desobediente demonstra que a liberdade na rede não é uma consequência natural da digitalização, mas resultado de construções coletivas. Para a cultura desobediente, a tecnologia é um instrumento de emancipação política e resistência cultural, com potencialidades de subverter o sistema dominante ou criar desvios que não consideram legítima a política da propriedade intelectual. É uma cultura crítica e marginal que pretende desestabilizar ou descontruir modelos sociais. Apesar da propriedade intelectual, a pirataria funciona, de fato, em desobediência às determinações abstratas do estado racionalizado e corresponde a toda sorte de demanda social; os piratas fundamentam sua moral a partir de referentes outros que o discurso legislador. Por isso, a pirataria depende das liberdades individuais e de processos de identidade, que conformam posicionamentos subjetivos. Aqui podemos ver a importância dos posicionamentos subjetivos, pois ainda que se trate de um fenômeno coletivo, a pirataria depende das escolhas individuais, ou seja, depende do posicionamento discursivo dos sujeitos. Praticar ou não pirataria é escolha de um indivíduo exposto e integrado, que negocia com diversos níveis de identificação. O pirata pode carregar concepções racionalizadas de conduta ou seguir um propósito ideológico, uma utopia. Ele também pode ser alguém cuja ação é motivada pela necessidade de sobrevivência ou superação de limitações contextuais. Por isso, a prática pirata pertence ao âmbito das relações do indivíduo com o seu contexto. No jogo do indivíduo com o sistema, que determina as condições de sua existência, nem sempre há a total sujeição às normas coercitivas, há desvios subterrâneos por onde os piratas movem textos, negociando e desviando-se da interferência da lei, dos impostos e da censura. Conforme Andersson (2011), a emergência da cultura do compartilhamento não ocorreu sem controvérsias e os hackers foram agentes estruturais dessa transformação, que sempre ocuparam uma posição estigmatizada. O hacker tem sido uma figura dúbia: símbolo de um comportamento social desviante, anárquico ou, então, o herói do novo milênio (SCHWARZ, 2013) que, via tecnologia, abalaria estruturas econômicas e de pensamento por tanto tempo implantadas. Assim, notamos a importância histórica da desobediência, Negar que uma soma de pequenos fatos, produtos de iniciativa humana possam modificar a natureza de um Sistema, significa negar a própria possibilidade das alternativas revolucionárias, que se manifestam apenas num dado momento, em seguida à pressão de fatos infinitesimais, cuja agregação (embora puramente quantitativa) explodiu numa modificação qualitativa. (ECO, 2008, p. 51)

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Não se deve desconsiderar, portanto, o que as posturas desobedientes tentam denunciar e transformar em relação aos fatos sociais. De acordo com Mylonas (2012, p. 711), a pirataria é um processo cívico originado na base da sociedade, a partir do desenvolvimento de uma consciência social sobre classe, historicidade, política global e poder. Consequentemente, o ato da pirataria pode ser uma manifestação direta do engajamento civil que envolve valores (legitimidade), confiança (coletividade), conhecimento (tecnologia), práticas (táticas), identidade e espaço (ibid.). A desobediência à lei pode ou não ser vista como uma atividade criminosa, isso vai depender se restringimos a análise no âmbito de uma lei específica ou se pensamos em aspectos mais gerais da lei e da democracia. 5.4. Guerra contra a pirataria Um dos desdobramentos do discurso da propriedade intelectual é a guerra conta a pirataria, que consiste em um conjunto de práticas discursivas, políticas e institucionais que visam o cumprimento das leis da propriedade intelectual. Nesse caso, um desenvolvimento da legislação que é resultado de uma pressão política exercida pelas partes interessadas na aplicação dessas leis, quais sejam, empresas de mídia detentoras de direitos autorais. Esse corpo discursivo é formado, basicamente, por campanhas antipirataria promovidas por empresas ou instituições públicas, movimentos políticos em prol do acirramento da propriedade intelectual, pesquisas desenvolvidas por empresas que tentam demonstrar o quanto a pirataria é prejudicial, serviços jurídicos e procedimentos destinados a processar e punir práticas de pirataria, além de textos e informações divulgados pela imprensa. A guerra contra a pirataria recebe muitos investimentos, chegando a produzir uma indústria especializada, que inclui profissionais como analistas de tráfego de rede, investigadores especializados em tecnologia informacional, especialistas em proteção de conteúdo, litígios em propriedade intelectual, inteligência de mercado, soluções técnicas contra a pirataria, entre outros. Conforme Lobato e Thomas (2012), o dinheiro gerado pelos processos legais tem criado uma nova economia, que compensaria as perdas em venda; indústria que atrai até mesmo pessoas que costumavam atuar em redes piratas e passam a prestar serviços a empresas interessadas em desmontar essas mesmas redes. Esse discurso enfatiza o aspecto da criminalização da pirataria, defendendo a aplicação das leis com maior rigor, a partir do reforço no controle da circulação da informação. Nesse contexto, o termo ou rótulo “pirata” tem uma função retórico-discursiva (BENTLY, DAVIS e GINSBURG, 2010), utilizado estrategicamente por partes interessadas, particularmente grandes detentoras de copyright, que desejam ampliar os seus direitos de propriedade. Como resultado, conforme ressalta Dent (2012), as instituições com maior poder passam a decidir quem está autorizado ou não a competir no mercado informacional. Grande parte das pesquisas e discursos relacionados à pirataria estão fundamentados nessa perspectiva, justamente porque resultam de investimentos por parte da indústria midiática para produzir um corpo de conhecimento (sobre a pirataria) que contribua para a criação de estratégias combativas. A guerra contra a pirataria é uma empreitada discursiva que utiliza os dispositivos disciplinares para produzir um saber especializado, o qual serve como um instrumento de poder estratégico, no enfrentamento direto às práticas desobedientes. Joe Karaganis (2011) critica essas perspectivas de estudo, considerando-as contraproducentes, tanto para governos, quanto para consumidores e proprietários, pois falha em fazer perguntas mais compreensivas sobre a função social e cultural da pirataria, de modo que o cego fortalecimento das regras de controle da circulação dos bens culturais corre o risco de gerar custos intelectuais, políticos e, sobretudo, sociais. Na mesma linha, Mattelart (2012) acrescenta que os estudos sobre a pirataria estão saturados por conhecimentos produzidos a partir do investimento de empresas ou organizações que publicam relatórios, com o objetivo de reduzir o fenômeno à sua dimensão criminal, tentando convencer a opinião pública e os governos de que ela é uma grande ameaça e deve ser combatida, procurando, até mesmo, associar a pirataria a organizações criminosas ou 126

terroristas10. Certamente que, em alguns segmentos, tal ligação pode existir, todavia esses relatórios procuram rotular a pirataria, ao invés de analisar a realidade empírica como um todo, no intuito de legitimar a implementação de um arsenal punitivo. Na maioria dos países, especialmente nos Estados Unidos, onde a contenda sobre pirataria é polarizada, essa guerra torna-se um exercício de relações públicas que quer promover o respeito do direito autoral e revela, pela sua própria existência, o lado vulnerável de uma poderosa indústria. A guerra contra a pirataria tem um caráter moralizante, que define como roubo qualquer tipo de troca não autorizada, responsabilizando o consumidor e incentivando as pessoas a delatarem transgressores. As campanhas asseveram que a pirataria é uma pandemia e resulta de relações criminosas escusas, protestando por um maior rigor da propriedade intelectual. Ao associar a pirataria à perda de lucros, as indústrias e profissionais liberais encontram formas de obter proveitos econômicos da situação através de meios lícitos. Conforme Lobato e Thomas (2012), essa economia da propriedade intelectual, que surgiu no lastro da guerra contra a pirataria, produz empreendimentos antipirataria e abrange quatro setores i) ii) iii) iv)

Prevenção tecnológica: interfere no mercado tecnológico, criando soluções e ferramentas que atrapalhem tecnicamente a pirataria; Captação de receitas: empresas valem-se do espaço das plataformas piratas para criar plataformas de anúncios, que retornam o lucro para os proprietários de conteúdo; Produção de conhecimento: formam-se grupos de estudo para a investigação do fenômeno da pirataria que comercializam esse conhecimento para as indústrias ou ajudam a influenciar a opinião pública e os debates políticos; Policiamento e aplicação da lei: grupos de advocacia, investigadores e grupos de mídia trabalham na detecção das infrações e execução de processos legais

As grandes empresas de telecomunicação agenciam campanhas de conscientização do público, encetam processos civis e criminais e pressionam o sistema judiciário local e global para leis mais rigorosas, além de exigirem a ampliação do monitoramento da internet. Segundo Mattelart (2012), essa campanha não atua tão-somente no campo legislativo, mas também político, sendo notada a presença de campanhas globais conduzidas por essas empresas. De um país a outro, são abertos escritórios para orientar os governos, pressionando-os a contribuir na com a defesa do copyright, ameaçando-os com sanções comerciais e submetendo-os às determinações dos espaços transnacionais de poder, onde as grandes redes midiáticas têm um papel preponderante. 5.5 Pirataria como acesso A pirataria também pode ser associada a uma crítica pós-colonial à propriedade intelectual (LOBATO, 2012; KARAGANIS, 2011), no sentido de que há lugares (geográficos ou sociais) onde o acesso legal à mídia não é opção, devido a uma situação de opressão social e econômica. Nesses casos, o acesso aos bens culturais, se não for feito informalmente, através da pirataria, não será feito de forma alguma; a pirataria é uma atividade cotidiana praticada em contextos onde alternativas legais não existem, é o único modo de acesso para quem é deixado de fora do consumo cultural, por restrições econômicas, políticas e tecnológicas. Essa faceta da Em 2009, a organização de pesquisa Rand Corporation, com o apoio da MPA (Motion Picture Association), lançou um relatório, no qual apontava o envolvimento da pirataria de filmes com o crime organizado, incluindo estudos de caso no qual afirmava que tais organizações estariam também financiando grupos terroristas. Segundo o texto do documento, a pirataria de DVDs estaria contribuindo para financiar organizações islâmicas terroristas, como o Hezbollah, o que elevaria a pirataria ao patamar de um problema de segurança nacional (TREVERTON, MATTHIES, et al., 2009). 10

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pirataria, que aparece muito mais no domínio da prática do que de um discurso propriamente organizado, tem capacidade de disseminar cultura, conhecimento e capital, solucionando problemas sociais negligenciados pela estrutura econômica vigente, em grande parte dos países que não participam, enquanto consumidores culturais, dos mercados desenvolvidos. O extremo rigor da propriedade intelectual causa limitações na distribuição, atraso nos lançamentos e controle dos mercados, o que, por consequência, atrapalha o desenvolvimento cultural de regiões situadas fora dos eixos centrais. Em países de menor desenvolvimento, a exclusão é generalizada e, consequentemente, a pirataria também será generalizada, como é o caso da América Latina, do Sudeste Asiático, da Rússia e da África. De acordo com Dent (2012), nessas regiões, as práticas informais são antídotos ao desemprego e ao alto preço dos bens culturais (definido por um regime de propriedade intelectual que encoraja tendências de mercado monopolistas). A popularização da internet e do compartilhamento de arquivos gera ansiedade para as indústrias culturais, pois a tecnologia digital que fora desenhada para minimizar custos de produção, passa a oferecer a possibilidade de reprodução quase sem custos, estabelecendo condições ideais para a proliferação da pirataria. De acordo com Karaganis (2011), os altos preços dos bens culturais, a baixa renda da maioria da população e o barateamento das tecnologias digitais são ingredientes essenciais para a pirataria global de mídia. Os valores cobrados pelos conglomerados midiáticos para os seus produtos são muito caros se comparados às rendas da população, na maior parte do mundo, onde comprar produtos midiáticos lícitos é um luxo, de modo que os mercados regulares para esses bens acabam sendo ínfimos se comparados ao mercado ilegal. Esse aspecto da pirataria é responsável pelo seu maior impacto na sociedade e também permite entrever o fenômeno como sintomático das relações de desigualdade social e econômica. Quando as tecnologias de comunicação são elementos fundamentais para a configuração dos espaços simbólicos de uma sociedade, a participação social exige algum nível de saber e manipulação dos aparatos tecnológicos, por isso, quando o acesso à cultura passa a ser tecnologicamente mediado, a pirataria passa a ter um papel importante no campo de relação entre conhecimento e cidadania. O engajamento cívico requer conhecimento especializado, por isso, quando a pirataria é uma ferramenta indispensável para a cidadania, ela é também um caminho ativo dos indivíduos e onde notamos claramente o que a análise crítica do discurso entende como ação discursiva. A reação desobediente em massa, neste caso, não é motivada ideologicamente por bandeiras ativistas, ela é pura e simplesmente uma força reativa e criativa de sobrevivência, ela ecoa as infinitas possibilidades de agenciamento da técnica para além dos caminhos formais, ela se alia às mais extremas condições de precariedade material e corresponde a uma dimensão muito mais social da pirataria, ela é onde verificamos a sua pervasividade. Trata-se, por isso, de um fenômeno de natureza paradoxal, em que o compartilhamento de arquivos opera em oposição aos centros estabelecidos, ao mesmo tempo em que os reforça, na ânsia de estar integrado, multiplicando o poder simbólico de agentes dominantes na indústria cultural (ao espalhar o acesso e incluir o público), ainda que, ao mesmo tempo, seja também um fator favorável à produção de uma multiplicidade maior de centros enunciadores. O grande número de formas de apropriação das tecnologias, ao mesmo tempo em que continua alimentando a economia dos bens informacionais e tecnológicos, também desestabiliza antigos regimes da propriedade intelectual. Em consequência, nascem economias marginais dificilmente compreendidas, muitas vezes ilegais, que, ao contentarem demandas, forçam o sistema econômico a incorporá-las ou, ao menos, tolerá-las. Esse é o caso tanto das economias marginais piratas nas ruas de países em desenvolvimento, como também de toda sorte de empreendimentos on-line. A apropriação tecnológica e ativa dos cidadãos os coloca numa posição de reivindicação pela legitimidade de práticas e por direitos não contemplados. Por fim, vale reafirmar que acesso e o compartilhamento ativo de bens culturais é um fenômeno com implicações diretas na questão da cidadania cultural e política (URICCHIO, 2004), 128

e leva a reorganizar a consciência social, pois a fragmentação dos polos enunciadores e das vias comunicativas entra em confronto com a monopolização de atores midiáticos, a qual ocupa de forma dominante os espaços simbólicos da sociedade global, além de coadunar com uma série de interesses do capital financeiro. Considerações Finais Fez-se aqui uma breve apresentação do que pode ser pensado como a ordem discursiva da pirataria. Nota-se, a partir dessa dinâmica, que a cultura da pirataria não é homogênea, mas desenvolve-se em um cenário de conflitos e diversidade, em uma sociedade globalizada e de relação intrínseca com a tecnologia. Trata-se de um fenômeno massivo, integrado e abrangente e, ao mesmo empo, altamente diversificado e fragmentado, ocupando múltiplas dinâmicas e atores. Levando em consideração a multiplicidade semântica travada pelo tema da pirataria na internet; concordamos com Fairclough (1996) que os discursos, em constante movimento, participam das mudanças concretas na sociedade. A pesquisa demonstrou que o fenômeno da pirataria apresenta manifestações discursivas, cujas textualidades dependem das condições de consumo e produção e estabelecem uma densa rede referencial. Essa textualidade é o elemento através do qual a participação ocorre nas comunidades, por onde se manifesta o engajamento do usuário – no sentido de que texto/discurso é também ato, performance; ela é também um instrumento para o estabelecimento de políticas e debates em torno da propriedade intelectual e dos direitos sociais. Tendo observado a dinâmica discursiva da pirataria e da propriedade intelectual, notamos que os diversos agentes e proponentes políticos em torno dessa questão provocam um deslocamento histórico do tema. Ao refletirmos sobre a ordem discursiva da pirataria, notamos que as práticas piratas desafiam e forçam as fronteiras estabelecidas pela propriedade intelectual, questionando sistemas de verdades que, por algum tempo, permaneceram estáveis na sociedade moderna. Referências ANDERSON, C. The Long Tail: Why the Future of Business is Selling Less of More. New York: Hperion , 2006. ANDERSON, C. Free: the future of radical price. London: Business Books, 2009. ANDERSSON, J. The origins and impacts of the Swedish file-sharing movement: A case study. Critical Studies in Peer Production, p. 1-18, 1 (1) 2011. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985 [1944]. ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. A Indústria Cultural - o iluminismo como mistificação das massas. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BARRON, A. Copyright Infringement, 'free-riding' and the life world. In: BENTLY, Copyright and Piracy: an interdisciplinary critique. Cambridge: University Press, 2010. BENTLY, L.; DAVIS, J.; GINSBURG, J. C. (org.) Copyright and Piracy. An Interdisciplinary Critique. Cambridge: University Press, 2010. BERNA, C. D. Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas. Site da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1971. Disponivel em: 129

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