O FEIJAO E O SONHO (resenha)

June 1, 2017 | Autor: Norma Côrtes | Categoria: Historia, Historia Intelectual, História social da cultura
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O FEIJÃO E O SONHO1 Resenha de Benjamin MOSER. Cemitério da esperança. Recife: Cesárea, 2014, 30pp (e-book | www.cesarea.com.br)*

Norma Côrtes Historiadora | Professora de Teoria e Metodologia da História do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. [email protected]

Benjamin Moser emplacou mais um sucesso. Seu último ensaio sobre a cidade de Brasília, Cemitério da esperança, alcançou as graças da boa recepção crítica tornando-se, rapidamente, objeto de festejos nos cadernos de literatura e em programas culturais da televisão brasileira. Moderníssimo, ultracorreto e politicamente engajado, o livrinho (30 páginas) consiste num ensaio de fácil leitura, vendido a preço módico como e-book, cuja renda deve reverter em benefício de movimentos sociais do Recife. Afora esses aspectos, que revelam altruísmo e inscrevem a obra na atualidade das polêmicas urbanas, o ensaio também parece promissor. Afinal, trata-se de um fruto tardio, mas ainda alimentado pelos estudos acerca da vida e obra de Clarice Lispector — investigações essas que há poucos anos, em 2009, resultaram numa respeitável biografia sobre a escritora. Considerando esses antecedentes, tudo levaria a crer que Cemitério da esperança conservasse a mesma delicadeza que se encontra nos juízos de Clarice Lispector sobre a nova capital da República. Vale lembrar que após visitar a cidade, ela declarou: “Brasília é construída na linha do horizonte — Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. [...] Se eu dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia vêem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem feia, minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. É ponto e vírgula. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.”

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Com modificações e sob o título “Réquiem da sutileza”, esta resenha foi publicada no caderno de domingo, Aliás | pag. E9, do jornal O Estado de São Paulo, de 01 de fevereiro de 2015. Versão digital disponível URL: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,requiem-da-sutileza,1627382 *

Imagem em: http://www.cesarea.com.br/wp-content/uploads/2014/11/benjamin_cesarea_editora-1.jpg

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O problema é que, desconhecendo os matizes do enigmático encantamento poético que Clarice Lispector emprestara à Brasília, Cemitério da esperança convertese num réquiem da sutileza interpretativa. Pesada, sua análise tem início com este postulado a priori: “O aspecto mais comovente da arquitetura monumental é a desastrada traição de seus próprios propósitos.” E, a partir daí, numa cascata de alusões vinculativas, o ensaio segue, primeiro, fazendo menção à figura Hitler e aos totalitarismos; depois, evoca o ufanismo do conde de Afonso Celso; e nessa mesma chave, registra o exótico otimismo brasileiro; em seguida, num contraponto, repete os argumentos de Paulo Prado sobre a tristeza destes trópicos; adiante, insiste em recordar a especialidade médica de Juscelino Kubitschek, referindo-se ao ex-presidente como “o urologista de Belo Horizonte”; para, finalmente, desaguar na lembrança às inclinações stalinistas de Oscar Niemeyer... Enfim, trata-se de uma peça judicativa condenatória que promove uma barafunda anacrônica rejeitando a atual experiência citadina em razão da faraônica artificialidade da nova capital da República. O foco dessa interpretação, portanto, não incide somente sobre o fato de a Brasília de hoje ter enterrado as utopias de seus arquitetos. Cemitério da esperança tem a pretensão da visada histórica e, enfatizando a continuidade temporal, vai encontrar na longíssima duração as razões culturais para o atual insucesso da capital e de suas cidades satélites. Com efeito, inscreve as esperanças da geração bossa nova — que nos anos 1950 se notabilizou justamente pela ruptura, pois assumiu um ímpeto novidadeiro inédito na cena cultural brasileira — numa tradição intelectual que, supostamente e desde sempre, já possuiria as marcas do triunfalismo ufanista, do esteticismo autoritário ou da exclusão social. Tais críticas repetem a tônica do conservadorismo de Gilberto Freyre. Nos fins da década de 1950, em meio às polêmicas sobre a transferência da sede do governo para o descampado do Planalto Central, o pernambucano acusou o traçado urbanístico e a arquitetura da nova capital de postiços. A seu ver, a imagem de Brasília não representava a genuína essência do país real, uma vez que suas formas não mimetizavam o desalinho das cidades coloniais, que fora acumulado espontânea e historicamente. Brasília contrariava a sensibilidade estética do sociólogo modernista. (E ele não foi o único; outros importantes modernistas de 1922 também se horrorizaram com a ruptura do compromisso figurativo preconizado pelas vanguardas abstracionistas.) Contudo, não obstante a importância dessas vozes críticas, é preciso salientar que foram justamente as qualidades não representacionais da nova cidade que encantaram a geração bossa nova. Os juízos de Clarice Lispector expressam precisamente tal encantamento. Afinal, tanto ultrapassaram as dicotomias do gosto, que opõem o belo à fealdade, quanto também desconheceram os dilemas de cariz realistas e/ou pragmáticos, que opõem o genuíno ao espúrio; o sério ao lúdico; o peso do passado às utopias de futuro; o útil ao desnecessário etc. Repelindo qualquer desses antagonismos, a romancista escolheu dar ênfase ao espanto, ao assombro e maravilhamento (primevo?

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adâmico?) expresso na força poética que se encerra nos gestos de criação de uma nova experiência de cidade. Em consonância com tal percepção, em 1960, Roland Corbisier, filósofo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), também declarou: “Salientamos que não bastaria interiorizar a Capital. O que nos parece de maior significação e importância é a concepção e a realização de Brasília como obra de arte, como expressão autêntica da nova cultura brasileira. [...] O plano urbanístico [...] de Lúcio Costa e a realização arquitetônica de Oscar Niemeyer [...] constituem, pela audácia e pela originalidade, a prova eloquente de que não estamos mais condenados a traduzir, imitar, ou copiar apenas, mas de que já nos tornamos capazes de afirmar livremente o nosso gênio, a nossa força criadora.” É importante resgatar as diferentes vozes que querelaram em torno da construção de Brasília. Pois, caso contrário, nos depararíamos apenas com uma perspectiva, única e tendenciosa, daquela realidade histórica. E essa é a fragilidade do novo ensaio de Benjamin Moser. Lamentavelmente, o autor preferiu ignorar a riqueza conflituosa do contexto intelectual que, durante os chamados anos dourados, antagonizou múltiplas visões de mundo com suas distintas concepções estéticas, urbanísticas, políticas, históricas etc. E, ao fazê-lo, nos apresenta tão-somente uma caricatura das ambições que embalaram os criadores da nova capital da República. Ademais, é anacronismo e equívoco histórico estabelecer continuidade intelectual entre a jactância de Por que me ufano de meu país, publicado em 1900 — cujas razões para o ufanismo residiam numa atitude contemplativa da exuberância da nossa natureza e da bondade do povo — e o ímpeto projetivo futural compartilhado pela geração bossa nova. Sob cada um desses horizontes de futuro, a despeito de semelhanças superficiais, encontram-se ânimos, fundamentos, atitudes, percepções de realidade e prognósticos rigorosamente distintos. Em suma, não há qualquer proximidade entre o embevecimento patriótico de Afonso Celso e a ousadia poética inventiva que se encontra nas obras de Oscar Niemeyer; Guimarães Rosa; Roland Corbisier; Lygia Clark; Lucio Costa; Guerreiro Ramos; Dolores Duran; Juscelino Kubitschek; Campos de Carvalho; Vinicius de Moraes; Álvaro Vieira Pinto; Benedito Nunes; Ferreira Gullar; Clarice Lispector etc... Engajada em torno de esperanças societais democráticas e igualitárias, essa geração de intelectuais e artistas inventou formas expressivas / linguagens (não representacionais) inéditas que instalaram ou ofereceram ex nihilo novas experiências de ser e estar no mundo. É verdade, sim, que entre o feijão e o sonho, eles preferiram os encantos do último. Contudo, se os atuais juízos históricos não pretendem apenas reclamar as vantagens do primeiro, amesquinhando as ousadias estéticas e/ou societais da geração bossa nova, convém não enterrar as esperanças deles.

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