O feminismo descolonial de Houria Bouteldja e o Movimento de Mulheres Negras brasileiro: algumas questões a discutir

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O FEMINISMO DESCOLONIAL DE HOURIA BOUTELDJA E O MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS BRASILEIRO: ALGUMAS QUESTÕES A DISCUTIR* Vivian Souza Alves da Silva1 Juliane Bianchi Leão2

Resumo Houria Bouteldja é uma intelectual ativista franco-argelina engajada na construção de um projeto político feminista descolonial. Bouteldja defende que, no contexto das mulheres indígenas da França pós-colonial, modelos organizacionais não-mistos, que excluem os homens indígenas, são inoperantes, uma vez que colonialismo e racismo teriam historicamente se encarregado de forjar a separação entre homens e mulheres de cor. Essa compreensão motiva-nos a comparar a proposta teórica de Bouteldja com a prática política de mulheres negras no contexto brasileiro dos anos 1980, visto que esta experiência organizacional também ensejou questionamentos nesse sentido. Temos, com isso, a intenção de propor reflexões sobre interseccionalidade, machismo no interior das organizações mistas, autonomização das frentes de luta, entre outros temas. Palavras-chave Feminismo descolonial, Houria Bouteldja, Movimento de Mulheres Negras

O eurocentrismo e seu efeito colonialista são formas alienadas de uma teoria e prática que se percebe como libertária (Lélia Gonzalez, 1988a).

1. Introdução Houria Bouteldja é uma intelectual ativista franco-argelina, filha de imigrantes: seu pai um operário, sua mãe uma dona-de-casa. Houria é um dos principais nomes impulsores, respondendo atualmente como porta-voz, do Movimento (que deu origem ao Partido) Indígenas da República – MIR/PIR. O MIR se apresenta no cenário político francês em 2005 com um manifesto no qual seus signatários afirmam que o Estado francês segue conduzindo práticas coloniais não apenas em relação às suas antigas colônias, mas direcionadas fortemente para seus *

O presente artigo foi preparado para o Enlace Temático de número 44, “Feminismos poscoloniales desde el Sur”, do IV Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades, que acontecerá em Salvador (BA), nos dias 27 a 29 de maio de 2015. O Enlace tem a coordenação de Karina Bidaseca e Ana Mariel Weinstock. 1 PPCIS/UERJ e LEMTO/UFF – [email protected] 2 PPGFIL/UERJ – [email protected]

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cidadãos de origem colonial – os indígenas da República. A organização se afirma enquanto antirracista e descolonial, e tem como objetivo prioritário a criação de uma dinâmica de resistência que agregue imigrantes e suas famílias, moradores de bairros populares e as populações originárias dos departamentos e territórios ultramarinos franceses, com o intuito de construir uma força política indígena autônoma, capaz de influenciar ativamente na política francesa. A categoria indígena, diferente da compreensão que adquire no cenário latinoamericano, emerge permeada por referenciais históricos específicos, não aludindo aos povos ameríndios. A apropriação do termo se dá a partir do sentindo que este recebeu durante a exploração colonial francesa no Magreb e na África, quando todos os “nativos” colonizados eram referidos enquanto indígenas. A permanência no cenário pós-colonial francês das discriminações, inclusive do ponto de vista jurídico, contra aqueles que não são lidos pela maioria dominante como “français de souche”, produz o entendimento de que os povos de origem colonial seguem sendo considerados enquanto indígenas em uma perspectiva política – evidentemente não como nos tempos coloniais, mas, ainda assim, enquanto cidadãos de segunda classe3. A defesa de Houria Bouteldja em relação a um feminismo descolonial atento à perspectiva da interseccionalidade surge, portanto, inserida no contexto mais amplo das lutas descoloniais e antirracistas na França e, em realidade, em todo o cenário europeu pós-colonial. Bouteldja compreende que no atual contexto das mulheres indígenas na França – aprisionadas entre dois patriarcados, o branco dominante e o indígena enfraquecido –, modelos organizacionais não-mistos, que excluem os homens indígenas, são inoperantes. Isto porque o colonialismo e o racismo fizeram justamente separar homens e mulheres indígenas quando acusaram os homens de cor de serem os inimigos principais das mulheres de cor. A exclusão dos homens indígenas das estratégias de afirmação feminina poderia facilmente ser interpretada como uma ruptura com a comunidade, por um lado, e aceitação do modelo de emancipação eurocêntrica, por outro.

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“Français de souche” é uma expressão controversa que significa aqueles cidadãos de nacionalidade francesa sem ascendência estrangeira, ou, pelo menos, sem ascendência extraeuropeia. A ligação desta expressão com uma compreensão xenófoba e nacionalista é evidente, devido à crença na possibilidade de pureza de uma identidade nacional, ou pureza racial europeia. O manifesto com que o Movimento dos indígenas da República se apresenta chama atenção para o fato de que o regime jurídico francês mantém um tratamento desigual para seus cidadãos “de souche” e aqueles provenientes de departamentos e territórios franceses ultramarinos.

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O debate em torno dos grupos não-mistos motiva-nos a comparar a proposta teórica de Bouteldja com a prática política de mulheres negras no contexto brasileiro dos anos 1980, sobretudo porque a experiência organizacional destas também ensejou questionamentos desta ordem. Além disso, a compreensão quanto as assimetrias de poder existentes entre mulheres brancas e não-brancas em ambos os contextos, muitos distintos entre si mas que guardam aproximações simbólicas e materiais relevantes, encoraja-nos a pensar em uma análise comparada. Para tanto, dividiremos nossa reflexão em duas partes, apresentando a perspectiva e algumas proposições de Houria Bouteldja no primeiro momento para, em seguida, expor brevemente a experiência organizacional das mulheres negras brasileiras durante os anos 1980 com a intenção de levantar questionamentos sobre temas como interseccionalidade, machismo no interior das organizações mistas, autonomização das frentes de luta, entre outros. 2. O feminismo descolonial de Houria Boutledja A perspectiva descolonial a partir da qual o discurso de Houria Bouteldja se anuncia compreende que, apesar do colonialismo global iniciado em 1492 com a chegada dos europeus à América ter sido extinto, em grande medida, após a quase completa erradicação das administrações coloniais no mundo pós-Segunda Guerra Mundial; a colonialidade global a que este processo deu início permanece atuante nos dias de hoje (Grosfoguel, 2012). Segundo Quijano (2007: 93-94), La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una clasificación racial/étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social. Se origina y mundializa a partir de América. Con la constitución de América (Latina), en el mismo momento y en el mismo movimiento histórico, el emergente poder capitalista se hace mundial, sus centros hegemónicos se localizan en las zonas situadas sobre el Atlántico – que después se identificarán como Europa –, y como ejes centrales de su nuevo patrón de dominación se establecen también la colonialidad y la modernidad. En otras palabras: con América (Latina) el capitalismo se hace mundial,

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eurocentrado y la colonialidad y la modernidad se instalan, hasta hoy, como los ejes constitutivos de este específico patrón de poder (grifos nossos).

A noção de colonialidade, portanto, afirma a continuidade estrutural de um padrão de poder que se baseia fortemente em uma classificação racial hierárquica, o que até hoje se configura como um dos traços distintivos do nosso sistema-mundo moderno/colonial. Outras formas fundamentais de diferenciação hierárquica, que se ligam à divisão racial e a fortalecem – entre elas, as categorizações de classe, de gênero e de sexualidade – comporiam uma “matriz de poder colonial que em nível global ainda existe” (Grosfoguel, ibid.: 343). O grande triunfo da colonialidade foi ter sido capaz de “[naturalizar] o imaginário cultural europeu como forma única de relacionamento com a natureza, com o mundo social e com a própria subjetividade” (Castro-Gómez, 2005), dando origem, assim, a “subjetividades favoráveis à colonialidade do saber e do ser”, ou seja, “subjetividades colonizadas epistemologicamente” (Ribeiro, 2013). A colonialidade, portanto, foi uma estratégia necessária para garantir a dominação colonial, permeando, desde então, “as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo” (Quijano, ibid.). O que significa, portanto, defender um projeto político descolonial nos dias atuais? Segundo Houria Bouteldja (2012), a construção da descolonialidade se inicia com o processo de superação da fascinação pelo homem branco e pela civilização ocidental. Não há nada intrínseco em relação a estes que deva ser visto a priori como superior em termos étnicorraciais, morais, intelectuais, culturais ou linguísticos em relação a outros povos e outras tradições. A recusa da premissa integracionista que, no plano ideológico, prega o universalismo branco, a noção de progresso e uma visão linear da História é fundamental nesse sentido, segundo a autora. No plano político, recusar esta premissa significa não aceitar como temática unidirecional ou principal a clivagem de classe, elaborando um pensamento crítico em relação ao marxismo eurocentrado e buscando inspiração para a construção de um projeto político efetivamente capaz de romper com as relações de dominação em escala mundial a partir de pensadores e experiências organizacionais do Sul global (id., ibid.). De nossa parte, acrescentamos que a identidade descolonial, bem como a identidade feminista e todas as identidades possivelmente assumíveis, sejam elas políticas, étnicorraciais, sexuais, de gênero, etc., só podem ser compreendidas à luz da perspectiva de Stuart Hall (2006), para quem “a identidade é realmente algo formado, ao longo do 4

tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento”. Dessa forma, “ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo formada’. Assim, ao invés de falar em identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (id., ibid.). Destacar isto é relevante na medida em que muitas vezes as identidades que assumimos são questionadas por agentes externos que se acreditam no direito de medir nosso feminismo, nosso antirracismo ou o grau de descolonização das nossas mentes. Todas estas posturas e identidades, considerando que vivemos em sociedades amplamente sexistas, racistas e coloniais, estão sempre em construção, uma vez que não raro é preciso que nos empenhemos em desaprender e desconstruir padrões hierarquizantes e discriminatórios dentro dos quais fomos socializados. Bouteldja, possivelmente inspirada por Chandra Mohanty (2008 [1984]), entende o discurso feminista eurocêntrico como se enunciando a partir de uma postura possuidora do que chamou de “privilégio da solidariedade”, uma posição de poder que essencializa as “mulheres do Terceiro Mundo” e naturaliza a defesa destas pelas suas homólogas dos países centrais. Para ilustrar o que seria esse privilégio, Bouteldja (2010) narra um episódio em que mulheres do MIR, participantes de uma marcha pelo 8 de março na França, clamaram solidariedade para com as mulheres ocidentais: “Solidariedade com as suecas! Solidariedade com as italianas! Solidariedade com as alemãs! Solidariedade com as inglesas! Solidariedade com as francesas! Solidariedade com as americanas!”. O estranhamento foi latente, conforme relata: fomos vistas como se fôssemos extraterrestres. O que lhes dizíamos parecialhes surrealista, inacreditável. [...] Não era tanto lembrar-lhes de sua condição de mulheres no Ocidente o que as chocava. Foi o fato de que africanas e árabe-muçulmanas tenham-se permitido inverter a relação simbólica de dominação e estabelecerem-se como as madrinhas protetoras. Em outras palavras, com essa pirueta retórica, mostramos-lhes que elas tinham um estatuto superior ao nosso. Frente o ar incrédulo delas, nos pusemos a rir... (Bouteldja, 2010).

O ponto nodal, portanto, deste projeto político é precisamente o desvelamento das hierarquias intragênero, isto é, a compreensão de que a categoria gênero está sempre atravessada por outros marcadores identitários – como raça/etnia, classe, sexualidade, localização geopolítica, etc. – que conformam indivíduos inseridos em um contexto de relações sociais hierárquicas e desiguais. A simples identificação com o gênero 5

feminino, portanto, não apaga, esmaece ou torna desimportantes os demais marcadores identitários que irão promover a diferenciação entre as mulheres e as hierarquias intragênero. O questionamento de Bouteldja (ibid.), nesse sentido, é enfático: “por que é que vocês, as mulheres brancas, têm sozinhas o privilégio da solidariedade? Vocês também são espancadas, violadas, vocês também sofrem a violência masculina, vocês também são mal pagas, desprezadas, os corpos de vocês

também são

instrumentalizados” (id., ibid.). Chandra Mohanty (op. cit.) diria que esta postura emerge das premissas de privilégio e universalismo etnocêntrico e da consciência inadequada dos efeitos da produção teórica e das práticas políticas ocidentais sobre o “Terceiro Mundo”, no contexto de um sistema mundial dominado pelo Ocidente. Em sua visão, o feminismo ocidental assumiria “uma noção homogênea da opressão das mulheres como grupo”, de forma que a mulher mediana do terceiro mundo [levaria] uma vida essencialmente truncada devido ao seu gênero feminino (leia-se: sexualmente constrangida) e seu pertencimento ao terceiro mundo (leia-se: ignorante, pobre, sem educação, limitada pelas tradições, doméstica, restrita à família, vítima, etc.). Isto, sugiro, contrasta com a autorrepresentação (implícita) da mulher ocidental como educada, moderna, no controle de seu corpo e sua sexualidade, e com liberdade de tomar suas próprias decisões (Mohanty, 2008: 120-121).

Ora,

evidentemente

estamos

tratando

aqui

de

uma

postura

eurocêntrica/ocidentalocêntrica assumida pelo feminismo branco. É preciso ter em conta que tal postura, hegemônica, vem sendo denunciada, com ecos na academia, há décadas por diversas mulheres não-detentoras dos privilégios brancos e burgueses, como as amefricanas4 Angela Davis, Audre Lorde e Patricia Hill Collins nos Estados Unidos; Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Jurema Werneck no Brasil, além das chicanas Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, para citar apenas alguns exemplos. Houria Bouteldja destaca ainda uma questão bastante relevante no contexto de hegemonia dos feminismos ocidentais, que é “a carga bastante negativa” com que a

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Lélia Gonzalez, intelectual ativista negra brasileira, critica os termos Afro/African-americans (afro/africano-americanos), utilizados no contexto norte-americano, por entender que estes sustentam “a reprodução inconsciente da posição imperialista dos Estados Unidos, que afirmam ser ‘A AMÉRICA’”. Em contraposição, sugere a denominação amefricanos “exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela [a amefricanidade] se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular)” (Gonzalez, 1988b: 76).

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palavra “feminismo” é recebida entre mulheres e homens indígenas (Bouteldja, 2013). De acordo com Grosfoguel (2007), a lógica que rege a modernidade eurocentrada dita um discurso hegemônico que nos leva a crer que ideias como democracia, cidadania, liberdade, direitos civis e – o que nos interessa aqui particularmente – o feminismo são construções “inerente e naturalmente ocidentais”. Por suposto, “isto não é certo nem biologicamente, nem historicamente, nem socialmente” (id.; ibid.). No entanto, é esse discurso hegemônico e os efeitos que dele se desprendem que fazem com que o termo “feminismo” seja percebido “antes de tudo como uma arma do imperialismo e do racismo tanto por homens, quanto por mulheres indígenas” (Bouteldja, ibid.). Não à toa, portanto, muitas mulheres indígenas, “conscientes da necessidade de lutar contra o patriarcado”, têm dificuldade de ampararem-se “em uma identidade feminista assumida” (id.; ibid.). Nesse sentido, a proposta feminista descolonial defendida por Bouteldja faz cair por terra qualquer interpretação das mulheres como um bloco razoavelmente monolítico, que compartilham uma mesma experiência no mundo social ou uma mesma opressão; assim como a noção de um patriarcado universal e transhistórico que subjuga igualmente mulheres de diferentes espaços-tempo. Quanto a este último ponto, aliás, Chandra Mohanty (op. cit.: 117) já dizia ser “evidente que não existe um marco de análise universal do patriarcado contra o qual os esforços acadêmicos possam dirigir sua resistência, a menos que se creia em uma conspiração masculina internacional ou uma estrutura de poder anti-histórica e monolítica”. Esta compreensão vai ao encontro da tese defendida por Ramón Grosfoguel, para quem a ideia de um patriarcado único, imutável e transhistórico também não encontra sustentação. Segundo este, o patriarcado europeu teria se globalizado “como parte da expansão colonial europeia”, sendo imposto em regiões do mundo onde não existia patriarcado; hibridizando-se, em outras regiões, com formas existentes de patriarcados não-ocidentais (dentre as quais as regiões dominadas pelo Islã); e sendo, ainda, instituído à força após a destruição de formas locais de matriarcados e patriarcados nãoocidentais (Grosfoguel, 2007). Grosfoguel (ibid.: 328) afirma ainda que Es en el patriarcado europeu globalizado como constitutivo de las relaciones de poder del “sistema-mundo europeu/euro-americano capitalista/patricarcal moderno/colonial” que por primera vez en la historia de la humanidad tenemos unas mujeres que se consideran racialmente superiores a otros hombres. Esto tiene que ver con la idea de raza/racismo que no existe en

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otros sistemas-históricos anteriores al presente sistema-mundo. Esto es lo nuevo del patriarcado que se globalizó en este sistema-mundo: algunas mujeres son consideradas como superiores cultural y genéticamente a algunos hombres, obteniendo así mayor acceso a riquezas y recursos materiales que estos últimos (grifos no original).

Houria Bouteldja (2013), igualmente, defende que, na França, “as mulheres árabes, negras, muçulmanas [...] padecem da opressão de dois patriarcados (o dos brancos através das instituições e do poder, e o dos indígenas através da manutenção e/ou a recomposição das estruturas patriarcais tradicionais)”. Segundo ela, “os dois patriarcados possuem inúmeros traços em comum, mas também interesses contraditórios”. A autora (ibid.) afirma que durante o colonialismo, um dos eixos estratégicos da política colonial foi justamente liberar as mulheres julgadas oprimidas ainda que as mulheres na própria França não possuíssem o direito de votar. [...] Retirar publicamente o véu das mulheres foi uma das armas privilegiadas para destruir o patriarcado dos indígenas. Assim, não foram as mulheres indígenas que enfraqueceram o patriarcado indígena, mas os brancos com seu patriarcado racista, e isto faz toda a diferença. Na Europa, por outro lado, foram os movimentos feministas brancos que atacaram seu próprio patriarcado, não potências estrangeiras (grifo no original).

Seguindo no exemplo do véu islâmico, Bouteldja (ibid.) comenta a emergência deste símbolo na França “após a derrota do antirracismo oficial”. Segundo ela, “através do véu, as mulheres dizem aos homens brancos: ‘nossos corpos não estão à sua disposição. Não é para o seu consumo. Recusamos seu convite para a libertação imperialista’” (grifo no original). A utilização do véu, no entanto, representa igualmente “um compromisso entre o patriarcado de cor e as mulheres de cor” (id., ibid.). Como, então, pode se dar a libertação destas mulheres, num contexto de estreita margem de manobra entre dois patriarcados?

2.1 A questão dos grupos não-mistos Muito embora Houria Bouteldja, assim como outros autores5, acreditem que, devido à globalização do patriarcado europeu branco, muitas mulheres se encontrem, hoje em 5

Para além de Ramón Grosfoguel, temos no contexto latino-americano, entre tantas intelectuais e ativistas pensando esta temática, a feminista Francesca Gargallo (2014) que, em seu trabalho com

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dia, constrangidas simultaneamente por dois modelos patriarcais, o ocidental e os “tradicionais”, isto não significa dizer que estes possuem o mesmo peso, nem que seus defensores estejam em uma relação de horizontalidade uns frente aos outros. O patriarcado branco europeu, assim como o homem branco europeu, são hegemônicos e, portanto, colocam em posição subalterna tudo e todo aquele que conteste essa hegemonia. Quando Bouteldja (2013) afirma que “o homem indígena não tem nenhum poder: nem político, nem econômico, nem simbólico”, não é difícil enxergar nesta frase a posição dos homens não-brancos (e/ou não-embranquecidos) nas sociedades latinoamericanas em geral. Na França, como aqui, a poder patriarcal que estes homens nãobrancos exercem sobre as mulheres de suas comunidades tenciona o tempo todo o poder patriarcal hegemônico que, para além de almejar o controle sobre os corpos e as subjetividades das mulheres não-brancas, almeja igualmente destituir estes homens do único poder que lhes resta: o que exercem sobre suas famílias (mulheres e filhos). Para tanto, constroem os “homens de cor [como] os inimigos principais das mulheres de cor”, julgando suas origens culturais como retrógradas e contrárias ao progresso e, portanto, fatalmente sexistas e homofóbicas (id., ibid.); e oferecem às mulheres de cor um “modelo de emancipação eurocêntrica” que, no fim das contas, nada mais é do que a “ideologia dominante [que propõe] às mulheres da imigração liberar-se de sua família, de seu pai, irmão, religião, tradição” (id., ibid.). Nesse sentido, a “liberação imperialista” teria um forte componente de colonização das subjetividades das mulheres indígenas, afastando-as de suas tradições culturais e suas comunidades e incentivando-as a abraçar os ideais de universalismo branco, progresso e de uma visão linear da História que, nas palavras de Bouteldja, significariam precisamente a cristalização de uma “fascinação pelo homem branco”. No lugar de escolher entre a submissão a um dos tipos de patriarcado ou se colocar nesse espectro de “libertação imperialista” se distanciando da própria comunidade – o que significa, de certa forma, o distanciamento com a própria identidade enquanto mulher indígena – Bouteldja (2013) propõe a recusa do pressuposto de que os movimentos devem se articular de maneira não mista; isto é, deliberadamente compostos só por mulheres, excluindo homens para a construção a de um poder feministas comunitárias e indígenas da região, visibiliza a noção de “entronque patriarcal” desenvolvida por estas – uma tentativa de demonstrar a realidade que é viver tanto sob os efeitos do “patriarcado cristão colonialista”, como do “patriarcado ancestral que sobrevive em suas comunidades”. O “patriarcado ancestral” de Gargallo seria o equivalente a ideia de “patriarcado indígena” proposta por Bouteldja.

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feminino. A ineficácia desse tipo de articulação dentro de contextos indígenas se daria em primeiro lugar porque supõe o desejo de criar relações de oposição com os homens da comunidade. Ora, se já há uma separação entre homens e mulheres de cor construída pela lógica de fascinação pelo homem branco, o primeiro passo seria desconstruir o princípio do homem de cor como principal inimigo, afirmando “solidariedade com os homens dominados”. Tal postura se verifica, por exemplo, na articulação de mulheres nos movimentos contra a violência policial e as condições desumanas do sistema carcerário. De acordo com Bouteldja (2013), portanto, Não é preciso para as mulheres indígenas na França agir enquanto feministas declaradas ou enquanto anticapitalistas declaradas. Elas agem por seus interesses imediatos que são sempre uma imbricação indireta do seu interesse enquanto proletárias, mulheres e indígenas. Assim, não podemos as reprovar por descuidarem de um combate estritamente feminista, que seria uma luta contra o sexismo, pela igualdade homens-mulheres, pelo aborto, contra as violências conjugais, quando elas estão constrangidas pela violência das urgências sociais, da precariedade, desemprego, violências policiais, a educação de seus filhos e a discriminação a qual estes são expostos cotidianamente. Assim, a violência masculina, que é uma realidade preocupante nos bairros populares onde vive a maioria esmagadora das populações indígenas (me refiro principalmente à violência física, ao estupro, ao controle familiar das mulheres e de seus corpos, à rigidificação dos papéis sociais de homens e de mulheres que imobiliza as mulheres nos papéis restritos de mães e esposas...) não é mais que uma opressão entre outras.

A estratégia de afirmar a reunião de todos juntos como indígenas, colocando a luta antirracista em primeiro lugar, serve, ainda, para criação de um consenso entre homens e mulheres indígenas, por se tratar de uma opressão compartilhada entre eles. Infelizmente, porém, essa solidariedade parece ser uma via de mão única: apesar de esperar garantias, homens não se solidarizam com as mulheres. Mesmo no caso do direito ao uso do véu em espaços públicos na França, o posicionamento masculino costuma se dar mais com vistas à defesa da comunidade e do Islã do que pensando no direito feminino de autodeterminação dos próprios corpos. Apesar disso, é preciso perceber que as mulheres indígenas muitas vezes não podem se dar ao luxo de uma ruptura com os homens indígenas: elas dependem da solidariedade da comunidade e da família, em muitos casos, inclusive em termos 10

materiais e financeiros. E, para além disso, há uma questão materialista: romper pode significar cumplicidade com os brancos. Nesse sentido, Bouteldja afirma que “no cruzamento de opressões interligadas e interesses contraditórios, sabemos que ao invés do confronto frontal é preferível se adaptar passo a passo às situações”. Seria preciso, portanto, adaptar a política feminista aos constrangimentos que passam as mulheres nos diferentes contextos. Na perspectiva de Bouteldja, identificar a interseccionalidade não é abrir diversas frentes de luta; cada movimento pode definir suas próprias prioridades. O foco deve estar nos resultados e nos “meios que se dão a si mesmas as mulheres indígenas aprisionadas entre dois patriarcados” e não em palavras como “feminismo” e “antirracismo”. O mais importante é respeitar as lutas e as diferentes maneiras de proceder, “mesmo quando pareça contraditório com os interesses das mulheres”, caso contrário há o risco de subestimar “as dificuldades que se desenvolvem entre aqueles que vivem em contextos nos quais as opressões são múltiplas” (Bouteldja, 2013). 3. A articulação feminina negra no Brasil: entre o racismo e o sexismo, a autonomização solidária No final dos anos 1970, quando a ação política de mulheres negras brasileiras começa a se fortalecer no interior de organizações do movimento negro, o conceito de interseccionalidade ainda não tinha sido formulado. Será apenas a partir de meados dos anos 1990 que essa noção passará a integrar as reflexões teóricas e o discurso político do Movimento de Mulheres Negras (MMN), alcançando maior expressividade após a virada dos anos 2000. Antes disso, para se fazerem visíveis politicamente a partir de sua própria especificidade, era comum que as mulheres negras lançassem mão de uma perspectiva aditiva, isto é, que via na “soma” opressões (de gênero + de classe + de raça, etc.) a razão de sua condição social tão intensamente desfavorável. Segundo Marjorie Chaves (2008), o conceito de interseccionalidade abre caminho para uma visão mais integral da identidade feminina negra, enxergando “as mulheres negras como sujeitos de si, e não [como] pedaços de outros sujeitos: pedaço de um sujeito mulher, pedaço de um sujeito negro, pedaço de um sujeito pobre [...]”. Atualmente, portanto, “as formulações teóricas e análises políticas da desigualdade, reconhecem que os sujeitos são diversos, as mulheres negras não são triplamente

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discriminadas, as desigualdades caem sobre elas com um peso imenso, mas não de forma escalonada” (id., ibid.: 103). O Movimento de Mulheres Negras brasileiro, num primeiro momento, assume a opção consciente de se afastar do rótulo de feminista, uma vez que, a exemplo do que nos conta Houria Bouteldja em relação às mulheres indígenas da França pós-colonial, no interior da comunidade negra brasileira este termo também era visto com certa desconfiança, como uma ideologia que respondia apenas aos interesses das mulheres brancas e de classe média. Não obstante esta desconfiança e afastamento, o movimento feminista foi encarado, desde o início da articulação feminina negra, como um dos interlocutores principais do MMN. Na visão de Lélia Gonzalez, uma das principais intelectuais ativistas do projeto feminista negro no Brasil, o atraso político dos movimentos feministas brasileiros é flagrante, na medida em que são liderados por mulheres brancas de classe média. Também aqui se pode perceber a necessidade de denegação do racismo. O discurso é predominantemente de esquerda, de enfatização da importância da luta junto ao empresariado, de denúncias e reivindicações específicas. Todavia, é impressionante o silêncio com relação à discriminação racial. Aqui também se percebe a necessidade de tirar de cena a questão crucial: a libertação da mulher branca se tem feito às custas da exploração da mulher negra (Gonzalez, 1979: 15).

Sueli Carneiro (1984), outra intelectual ativista de peso do MMN, aponta na mesma direção que Gonzalez e esclarece os principais motivos que geram as “dificuldades de relacionamento entre o movimento feminista e as mulheres negras, marcado por ressentimentos históricos e desigualdades latentes”. Estas ocorrem, entre outros motivos, porque, mesmo oprimida, a mulher branca vem se beneficiando da desqualificação profissional, moral e estética das mulheres negras e não-brancas em geral. Seja porque é parceira do homem branco dominador, seja porque encarna o ideal feminino, seja porque possui a chamada boa “aparência” que, nesta sociedade, é sinônimo de brancura (Carneiro, 1984),

e conclui que “uma aliança entre mulheres negras e brancas só será possível se o movimento feminino questionar os privilégios sociais da mulher branca” (id., ibid.). Isso significa, em última instância, admitir os privilégios decorrentes do pertencimento

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ao grupo racial hegemônico e abrir espaço para que a crítica a esse sistema hierarquizante se torne uma pauta fundamental da luta pela libertação feminina. O MMN brasileiro esteve consciente desde o começo de que “o combate estritamente contra o sexismo” poderia “contribuir para reforçar a dominação masculina branca sobre os homens [de cor]”, conforme compreende Houria Bouteldja (2013). Nesse sentido, dentro da pluralidade de posições defendidas no interior deste movimento, “a suposição de que uma perspectiva feminista para o movimento de mulheres negras [passasse] pela oposição ou distanciamento do homem negro” simplesmente não era cabível, conforme afirmam Sueli Carneiro e Thereza Santos (1985: 37). A solidariedade com o homem negro, alvo prioritário das políticas de extermínio da polícia racista, era um fator primordial na sustentação da postura de resgate da dignidade do grupo negro, objetivo que guiava os esforços organizativos das mulheres negras brasileiras durante a década de 1980. O discurso do MMN se forma, portanto, a partir da constatação – bastante óbvia – das diferenças entre mulheres brancas e negras na sociedade brasileira, e da elaboração política em relação a estas diferenças, evidenciando o racismo estruturante das nossas relações sociais e a necessidade que o discurso feminista hegemônico tinha de manter-se afastado desse tipo de questionamento, uma vez que pregava a igualdade de uma “mulher universal” em relação a um “homem universal”, ambos implicitamente brancos e ocidentalizados. O “privilégio masculino”, nesse contexto, nunca foi um privilégio masculino desracializado, assim como nunca foi desracializada a “subjugação feminina”. Em uma sociedade marcada pelo colonialismo, o genocídio indígena e a escravidão negra, o “privilégio masculino” tendeu a ser um privilégio de homens brancos detentores de bens, e a “subjugação feminina”, no mesmo sentido, tendeu a ser mais ou menos intensa a depender dos outros marcadores identitários que compunham cada ser mulher. É por esse motivo que a tomada de consciência em relação à opressão por parte de homens e mulheres amefricanos e ameríndios se dá, conforme afirma Lélia Gonzalez (1988a), “antes de tudo, pelo racial”: Exploração de classe e discriminação racial constituem os referentes básicos da luta comum a homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. A experiência histórica da escravidão negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, fossem crianças, adultos ou velhos. E foi no interior da comunidade escrava que se desenvolveram

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formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuam uma luta pluri-secular de libertação. Por tudo isso, nosso pertencimento nos [movimentos étnicos] é bastante visível; alí nós, amefricanas e ameríndias, temos participação ativa e, em muitos casos, somos protagonistas.

Não à toa, portanto, no momento de emergência dos novos movimentos sociais a partir do fim da década de 1970 no Brasil, as mulheres negras irão se concentrar nos movimentos negros em maior quantidade que nos movimentos feministas. A compreensão de um histórico compartilhado de discriminação e opressão racista fazia com que a rebeldia e o espírito crítico das mulheres negras fossem recebidas “em um clima de maior familiaridade histórica e cultural” no interior das entidades do movimento negro (Gonzalez, 1988a). No entanto, conforme narra esta mesma autora (ibid.), a exemplo de muitas intelectuais ativistas negras brasileiras, o convívio com os homens negros no interior das organizações antirracistas nem sempre se deu em um clima de respeito mútuo e compreensão, sendo em muitos casos a própria participação nesses movimentos o que as levou “à consciência da discriminação sexual”, uma vez que seus “companheiros de movimento reproduzem as práticas sexistas do patriarcado dominante e tratam de excluir-nos da esfera de decisão do movimento” (Gonzalez, ibid.). Nesse contexto, é correto afirmarmos que a inserção feminina nas entidades negras não se traduzia na “ocupação de espaços políticos ou [de] visibilidade política na mesma proporção em que ocorre com os homens negros” (Carneiro, 1993: 15). Devido a enfrentamentos desta natureza, as mulheres negras inseridas em organizações mistas passaram a criar grupos exclusivamente femininos, que estiveram num primeiro momento subordinados aos grupos amplos de homens e mulheres negros. Estes grupos iniciais tinham por objetivo fortalecer o posicionamento político das mulheres negras para que elas pudessem assumir espaços de maior destaque nas organizações mistas, numa tentativa de desconstruir a lógica que as encarcerava em funções subalternas e as destituía de protagonismo. A expansão dos grupos de mulheres nas entidades, no entanto, levou, segundo Carneiro (op. cit.), a “várias investidas de algumas lideranças masculinas negras para tutelar o Movimento de Mulheres Negras através de mecanismos de controle que vão desde as tentativas de enquadramento ideológico do [MMN], passando por várias formas de desqualificação da importância política do mesmo”.

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Diante de tais embates, começaram a surgir algumas organizações de mulheres negras que se posicionavam de maneira deliberadamente autônoma em relação ao movimento negro misto. Como é possível imaginar, a presença de um ideário machista entre os homens que se encontravam à frente das entidades negras à época, aliada à ideia de que outras questões deveriam se manter subordinadas à questão racial, entendida como prioritária, geraram diversas acusações de que as mulheres, ao tentaram uma organização autônoma, estariam dividindo “a luta antirracismo, enfraquecendo o conjunto das forças de enfrentamento do racismo” (Cardoso, 2012: 16). Muitos grupos foram mesmo ridicularizados por supostamente copiarem “‘modelos’ de organização das mulheres brancas” (id., ibid.). É preciso termos em conta, no entanto, que a autonomização das mulheres negras em seus próprios coletivos e grupos não significou um afastamento em relação ao homem negro ou à comunidade negra. Significou, mais bem, a construção de um espaço no qual as especificidades do ser mulher negra pudessem ser trabalhadas livremente e formuladas politicamente. Neste caso, portanto, a reunião em grupos não mistos não significou cumplicidade com os modelos de libertação brancos, sobretudo porque a dimensão da crítica radical ao racismo do feminismo branco burguês, e também das esquerdas brasileiras, nunca saiu de foco. A estratégia de reunião em grupos não mistos, neste caso, poderia ser entendida a partir da ideia de “autonomização solidária”, isto é, a busca pela autonomia de pautar e discutir politicamente aquelas questões identificadas enquanto relevantes pelo grupo, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer laços de solidariedade que sirvam tanto para influenciar as pautas do próprio grupo, quanto para apoiar a luta de outros grupos com os quais se tenha uma identificação cultural e/ou política. 4. Conclusão Diante das questões apresentadas, podemos observar alguns pontos em que a experiência organizativa incipiente das mulheres negras brasileiras se aproxima do projeto político veiculado por Houria Bouteldja sob a denominação de “feminismo descolonial”. Poderíamos citar as diferenças e os embates político-ideológicos em relação às feministas ocidentais/ocidentalizadas, o desconforto em relação a assumir-se a partir do termo “feminista”, o foco em questões muitas vezes não consideradas como parte da agenda hegemônica de luta feminista, a busca pela construção de espaços 15

mistos de solidariedade racial/comunitária e combate ao racismo, entre outros. O ponto que escolhemos nos ater efetivamente, no entanto, é o debate em relação aos grupos mistos. Bouteldja defende que a estratégia da reunião apenas entre mulheres é falha no contexto a partir do qual constrói sua reflexão, uma vez que homens e mulheres de cor já estariam separados por estruturas e práticas racistas que se encarregaram de afrouxar os laços de solidariedade entre estes. Observamos no MMN dos anos 1980, por sua vez, a tentativa de construção de uma reflexão e uma prática antirracista que unisse homens e mulheres, com a intenção de resgatar precisamente esses laços de solidariedade entre a comunidade negra e a fortalecer para o combate cotidiano contra as formas, institucionais ou não, de racismo. O que notamos, no entanto, foi que em diversos momentos esta solidariedade esteve ameaçada pelo peso do sexismo arraigado na mentalidade masculina. Nesse sentido, aplica-se ao contexto das mulheres negras brasileiras em vias de se organizarem, a partir de finais dos anos 1970, a constatação de Bouteldja (2013) de que “a solidariedade das mulheres em relação aos homens é uma via de mão única. Não há reciprocidade. Os homens esperam garantias, mas nunca se solidarizam com as mulheres”. Evidentemente não falamos em termos individuais, conhecendo a contribuição de alguns homens negros para a articulação feminina negra. Enquanto grupo, no entanto, os homens dos movimentos negros desse período esperavam das mulheres que estas servissem de mão-de-obra para a organização dos encontros, para o cuidado com a logística, para o preparo de eventos (notadamente almoços, o que significa destinar às mulheres à cozinha, terreno tradicionalmente feminino a partir de uma ótica sexista) para angariar fundos para as organizações, etc. Ou seja, esperavam solidariedade por parte destas, mas recusavam-se a incorporar as temáticas específicas das mulheres negras nas discussões políticas mistas e a conceder-lhes espaço de fala e protagonismo, e faziam-se de surdos às denúncias quanto ao seu próprio machismo. Ainda assim, uma parcela das mulheres negras brasileiras adotou um posicionamento político que, nas palavras de Sueli Carneiro (1993), embora reconhecesse a importância e a gravidade da questão da mulher negra na sociedade brasileira, entendia que esta era uma temática que representava, antes de tudo, mais um dos aspectos da opressão e marginalização social do negro e, enquanto tal, deveria ser tratada de forma associada ou subordinada à agenda do Movimento Negro. Ainda segundo Carneiro (ibid.), as defensoras desta visão temiam “que a ação política das 16

mulheres negras [viesse] a promover a quebra de uma suposta unidade na luta geral do negro pela possível dispersão de quadros militantes em outro espaço de ação política”. Temia, ainda, “pelo estabelecimento de competições entre negros, homens e mulheres por espaços políticos e sociais”. Essa postura nos parece próxima, em muitos sentidos, da estratégia defendida por Houria Bouteldja em relação aos grupos indígenas na França pós-colonial – isto é, a manutenção da unidade entre o grupo indígena como forma de evitar respaldar a ideologia dominante que almeja justamente a fragilidade deste grupo político. A visão dessa parte das mulheres negras brasileiras em vias de organizarem-se também nos parece compatível com as ideias de Bouteldja na medida em que acreditam que a opressão da mulher negra é apenas uma parte da opressão mais geral em relação a todo o grupo negro, devendo a luta feminina, portanto, estar subordinada à luta geral do grupo negro. De forma nenhuma queremos sugerir que uma estratégia seja superior à outra, ou mais correta em termos políticos. As diferenças, enormes, entre os distintos contextos permitem que diferentes estratégias sejam mais apropriadas para cada caso. Poderíamos reivindicar a ideia de “autonomização solidária” para o caso das mulheres indígenas na França, mas, como afirma a própria Bouteldja (2013), quando “confrontados com a realidade a as lutas concretas”, muitos conselhos de pessoas não implicadas diretamente na vivência cotidiana daquela realidade acabam sendo “de pouca utilidade, ainda que sejam perfeitamente sinceros e benévolos”. Constatar as opressões, as teorizar e, então, formular, a partir disso, um projeto político factível, que esteja atento às inúmeras variáveis envolvidas na problemática, são coisas bastante distintas entre si. Nenhuma resposta nesse sentido vem fácil. Algumas diferenças fundamentais entre as mulheres negras brasileiras e as mulheres indígenas da França pós-colonial, no entanto, podem ajudar-nos a pensar nas diferenças em termos de estratégias de organização. Houria afirma que “as mulheres da imigração, majoritariamente pobres, são dependentes das solidariedades familiares e comunitárias”. Esta seria, portanto, “a razão pela qual elas não podem se permitir ao luxo da ruptura” (Bouteldja, 2013). As mulheres negras brasileiras, por sua vez, devido a um longo histórico de exploração escravagista e desarticulação da família negra, acabaram por autonomizarem-se em relação ao homem negro, muitas vezes vitimado pelo desemprego e pelas violências cotidianas de um Estado e uma sociedade racistas. Nesse sentido, ainda que empobrecidas e precarizadas, estiveram, em geral, em situação de 17

independência financeira em relação ao homem negro, assumindo o papel de “chefes de família” e, não em raros casos, criando sozinhas seus filhos e demais crianças do núcleo familiar estendido. A “ruptura” das mulheres negras em relação ao homem negro, nesse sentido, também já havia se dado por razão da exploração colonial e racista. Essa “ruptura”, no entanto, não se deu primordialmente no plano da solidariedade comunitária, não obstante o ideário racista de “limpeza do sangue”, mas sim em termos materiais. A solidariedade comunitária sempre foi um traço distintivo da cultura negra no Brasil, vide a existência de diversas associações, a partir do fim da escravidão, de ajuda e socorro mútuo entre “homens e mulheres de cor”. Sugerimos, portanto, que autonomia material e financeira da mulher negra brasileira tornou menos problemática a perspectiva de autonomia política em relação aos homens negros num contexto em que esses não se abriam para agrega-las nas associações e nas pautas de reivindicações do Movimento Negro. Reafirmamos, com base nas leituras das intelectuais ativistas do Movimento de Mulheres Negras brasileiro, que essa autonomia política se deu fundamentalmente baseada numa lógica de solidariedade e atenção às causas gerais do Movimento Negro. Supomos, nesse sentido, que apenas o desenvolvimento das lutas das comunidades indígenas na França poderá responder ao questionamento de se a luta das mulheres indígenas deve se dar num plano autônomo ou subordinado às questões gerais. A estas e suas comunidades, toda a força!

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