O Fenômeno Pokémon Go: Mediatização da Brincadeira e Subversão das Lógicas Tecnológicas na Atualidade

May 24, 2017 | Autor: Fabrício Barbosa | Categoria: Video Games, Mediatization (Communication Studies), Pokemon
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O Fenômeno Pokémon Go: Mediatização da Brincadeira e Subversão das Lógicas Tecnológicas na Atualidade Fabrício BARBOSA C.1 Resumo: O presente trabalho aborda o lançamento do jogo para smartphones Pokémon Go, que propõe um novo padrão de jogabilidade mobile e que se transformou num fenômeno de audiência mundial. Discute-se o processo de mediatização das brincadeiras, a partir da perspectiva de Stig Hjavard (2014), destacando os processos de imaginarização, narrativização e virtualização presentes nesse aplicativo. Também se trata aqui das novas possibilidades apresentadas pelo jogo no que tange ao uso das tecnologias de geolocalização e realidade aumentada e suas implicações diretas na maneira com que os jogadores se relacionam com o seu smartphone e sua comunidade. Palavras-chave: brincadeiras; jogos eletrônicos; mediatização; Pokémon Go; smartphones.

Introdução A relação das pessoas com a tecnologia vem se modificando rapidamente ao longo do tempo, conforme novos gadgets, ferramentas e recursos digitais vão sendo lançados e disponibilizados no mercado. Boa parte dos indivíduos possui hoje um aparelho celular, que permite, além da função original de realizar telefonemas, conectar-se à internet, fazer o download de aplicações, ouvir músicas, assistir vídeos, entre inúmeras outras funcionalidades. De fato, conforme indica o jornalista Michael Harris (2016), em 40 ou 50 anos não existirão mais pessoas que acompanharam a transição do analógico para o digital. E as experiências dessas pessoas sobre como era a vida antes e depois do digital tendem a desaparecer junto com elas, de forma com que a sociedade viverá um momento em que os indivíduos terão contato com a tecnologia digital desde o momento de seu nascimento até o fim de suas vidas. Diante da ascensão e influência do digital, é inevitável não se questionar de que forma a tecnologia está modificando a vida das pessoas (TURKLE, 2011). Uma das esferas em que tais mudanças têm se mostrado mais evidentes é a do entretenimento: hoje, por exemplo, já há uma infinidade de conteúdos audiovisuais que podem ser acessados de qualquer lugar com conexão à internet, como filmes, músicas, vídeos ou jogos. Não existe mais a obrigatoriedade de se locomover até uma sala de cinema para assistir um filme; nem mesmo o aparelho de televisão

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Doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Contato: [email protected]

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tradicional é indispensável. A independência e individualidade são características marcantes do período atual. Dentro desse cenário, um fenômeno recente tem chamado a atenção por ter se aproveitado de recursos tecnológicos da atualidade para inserir um novo modelo de utilização, que vai na contramão do que vinha sendo feito até então. Trata-se do jogo para aparelhos smartphone Pokémon Go, desenvolvido pela Niantic Labs a partir de uma franquia de sucesso da Nintendo. Pokémon Go propõe que os jogadores saiam de suas casas com os seus celulares e se movimentem entre diferentes pontos de sua cidade, a fim de coletar itens e capturar os personagens que aparecem de maneira aleatória pelo mapa, numa espécie de safári digital. E, após isso, os incentiva a competirem entre si para ganharem a liderança de ginásios espalhados em pontos estratégicos para coletarem moedas e trocarem por itens dentro do próprio jogo. Ao invés de reforçar práticas que já são comuns entre os usuários das tecnologias, Pokémon Go se apropria dos recursos e ferramentas disponíveis e subverte a sua lógica dominante até então ao propor que as pessoas saiam de suas casas, visitem pontos de sua cidade e interajam entre si. E, mesmo com uma proposta que, a princípio, pudesse parecer arriscada, o jogo transformou-se num sucesso instantâneo e alcançou a marca de 7,5 milhões de downloads ao redor do mundo em apenas três semanas após o seu lançamento. Uma das correntes teóricas que se dedica a analisar a influência crescente dos meios de comunicação e seus desdobramentos tecnológicos sobre as esferas culturais e sociais é a da mediatização. Dentre os autores que tratam desse conceito, destaco nesse artigo o trabalho de Stig Hjavard (2014), que fez um estudo de caso sobre a mediatização da brincadeira. Como exercício de análise, utilizo aqui os conceitos de imaginarização, narrativização e virtualização, propostos originalmente por Hjavard, para tratar do jogo Pokémon Go, a fim de discutir de que forma o processo de mediatização da brincadeira se faz presente nesse caso e entender como o jogo altera as lógicas das relações entre as pessoas e a tecnologia nos dias atuais, bem como contribui para a formação de novas comunidades ao resgatar e reinventar uma franquia de sucesso.

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O conceito de mediatização2 e suas implicações Stig Hjavard (2014), em seu livro The mediatization of culture and society, indica que o conceito de mediatização surgiu com intuito de reavaliar questões antigas no que diz respeito ao papel e à influência dos meios de comunicação na cultura e na sociedade, especificamente na compreensão da propagação, entrelaçamento e influência da mídia sobre outras áreas ou instituições sociais. Para tal, parte-se de uma questão principal, que seria: como se opera a influência da mídia sobre a cultura e a sociedade em geral? Dentro da perspectiva dos estudos sobre mediatização, a cultura e a sociedade atual já estão tão permeadas pela mídia que se torna quase impossível concebê-la como algo à parte das instituições culturais e sociais, uma vez que tais instituições e seus processos derivados mudaram de caráter, função e estrutura como resposta à onipresença dos meios de comunicação. Diante de tal realidade, os estudos de mediatização tratam das mudanças estruturais de longo prazo relativas ao papel da mídia na cultura e na sociedade uma vez que os meios de comunicação alcançam “maior autoridade para definir a realidade e os padrões de interação social” (HJAVARD, 2014, p.15). Para Hjavard (2004, p.02), nossa sociedade alcançou uma forma específica de organização social na qual a geração de informação, seu processamento e sua transmissão se tornaram fontes fundamentais de produtividade e poder. O autor destaca que, assim como a imprensa pavimentou o caminho para uma revolução política e social, também irá a internet – como um tipo de plataforma generalizada de mídia – “promover toda uma nova infraestrutura social”. Dessa forma, a mídia não representaria apenas canais de interação, mas também moldaria as formas nas quais tais interações teriam lugar. Manuel Castells (apud Hjavard, 2004, p.02) chama essa nova infraestrutura de comunicação de “cultura da virtualidade real”. Com isso, ele quer dizer que o mundo virtual não é meramente uma simulação de um “pseudo mundo”, mas, de fato, uma realidade social. Os media previamente distintos estariam “convergindo, se fundindo num sistema multimídia que em breve será capaz de abraçar e integrar todas as formas de expressão”. Esse sistema global de

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Em português, são utilizadas duas formas de grafia, mediatização e midiatização, em diferentes traduções. Neste artigo, optou-se por utilizar a forma mediatização, por fazer referência direta aos media e evitar confusões com outros usos da palavra mídia, como, por exemplo, para se referir a CDs, DVDs, pendrives, etc.

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mídia cria uma nova realidade: a definição de algo ser ou não real poderia se dar em consequência e/ou dependência de sua presença nessa estrutura específica de comunicação global. Com base nisso, a mediatização, enquanto conceito, denota que a mídia influencia as instituições sociais em maneiras que excedem o simples fato de que todas as instituições dependem cada vez mais da informação mediada e da comunicação em si. A mediatização implica um “processo através do qual elementos centrais da atividade social ou cultural (como trabalho, lazer, brincadeira, etc.) assumem forma de mídia”, entendendo-se por mídia qualquer tecnologia que permita transferir ou interagir com um conteúdo simbólico através do tempo e espaço (Hjavard, 2004, p.04, grifo meu). Para Hjavard (2014), os media não são apenas tecnologias que podem ou não serem utilizadas conforme um indivíduo ou grupo julgar conveniente; na verdade, sua presença se tornou “uma condição estrutural das práticas sociais e culturais, quer em esferas culturais particulares, quer na sociedade em geral” (LIVINGSTONE, 2009 apud HJAVARD, 2014, p.16). Sob essa perspectiva, qualquer questão relacionada ao uso e ao efeito da mídia precisa considerar as circunstâncias nas quais cultura e sociedade se tornaram mediatizadas. Assim, mediatização indica a transformação estrutural de longo prazo e a larga escala de relações existentes entre meios de comunicação, cultura e sociedade. Tem como objetivo “[...] examinar quando e como as mudanças estruturais entre os meios de comunicação e as diversas instituições sociais e fenômenos culturais vêm a influenciar o imaginário, as relações e as interações humanas” (HJAVARD, 2014, p.16). Dessa forma, uma das contribuições principais dessa teoria está em fornecer ferramentas para analisar e construir uma compreensão teórica sobre as possibilidades de interação dos meios de comunicação com outros processos culturais e sociais, assim como um conjunto de hipóteses sobre possíveis resultados da presença crescente de diferentes mídias na cultura e na sociedade.

A mediatização da brincadeira Em um de seus estudos sobre a mediatização, Hjavard (2014) se dedica a analisar o processo de mediatização das brincadeiras, brinquedos e jogos em geral. Segundo o autor, no princípio, os brinquedos eram todos feitos de materiais sólidos e o brincar era sinônimo de 4

atividade física. Hoje, no entanto, os brinquedos são cada vez mais dotados de uma natureza imaterial, muitas vezes nas formas e/ou desdobramentos de softwares para computadores e videogames e ainda em suas representações simbólicas em filmes e programas de TV. A atividade física ainda é, de maneira delimitada, parte necessária do brincar, mas a manipulação de objetos não mais envolve a mesma ação senso-motora concreta de antes. Para Hjavard (2014, p. 167), o ato de brincar transformou-se em uma atividade mental que envolve, entre variados processos, “imaginação, planejamento, simulação, comunicação [e] representação de papeis, entrelaçados com a manipulação de representações e narrativas audiovisuais”. É a esse movimento de transformação gradual de brinquedos sólidos para imateriais que Hjavard chama de mediatização da brincadeira. O processo de mediatização não seria, no entanto, limitado ao mundo dos brinquedos e brincadeiras. Ao contrário, ele é considerado por Hjavard como um elemento central nas atuais transformações sociais, econômicas e culturais e, como tal, fator chave no movimento atual em direção a uma sociedade globalizada e interconectada. Dessa forma, a mediatização estaria de mãos dadas com a globalização e com a comercialização e a lógica da mediatização se aplicaria a toda uma gama de instituições sociais: política, economia, sexo, cultura e, entre outras, “o mundo das brincadeiras infantis e seus artefatos culturais, os brinquedos” (HJAVARD, 2004, p.02). No contexto americano, no qual Hjavard realiza a sua pesquisa, a mediatização dos brinquedos não é um fenômeno novo - existiria uma cooperação entre agências de propaganda, programas de televisão e fabricantes de brinquedos, de forma a desenvolver um circuito econômico que gera benefício financeiro para todos. A combinação da televisão e da indústria dos brinquedos, em específico, causou um grande aumento nas vendas desses produtos, mas seu papel foi mais além, uma vez que a televisão também atuou ao influenciar diretamente no conteúdo simbólico e na estrutura do brinquedo. Para Hjavard (2004, p.05), foi a capacidade da televisão de caracterizar e narrativizar figuras ficcionais que fez esses brinquedos atrativos, e a “sinergia entre o brinquedo e a indústria da televisão fomentou uma corrente sem fim de brinquedos de figuras e personalidades, cada qual com seu próprio universo ficcional e acessórios”: Com o posterior surgimento de novas tecnologias, como o computador e a internet, houve uma transformação decisiva na relação entre os media e os brinquedos, que

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(...) cada vez mais se tornaram tecnológicos (como jogos de computador e softwares similares) ou inteligentes, como por exemplo bonecas com microchips que as permitem falar, mover-se e responder a certos estímulos. Dessa forma, não é mais o caso da mídia atuando apenas como propaganda para os brinquedos. Os media se tonaram brinquedos e os brinquedos se tornaram media, fazendo a sinergia entre brinquedos e indústrias de mídia não apenas mais complexa, mas também mais intensa (HJAVARD, 2004, p.05, tradu-

ção e grifo meus). Essa transformação da brincadeira teria sido estimulada principalmente pela proliferação dos meios de comunicação, de forma que o ato de brincar passou a ser progressivamente influenciado pela lógica da mídia, com toda sua tecnologia, conteúdo simbólico, infraestrutura econômica e affordances comunicativas. A brincadeira mediatizou-se de tal forma que parte considerável da diversão de crianças, jovens e adultos ocorre hoje a partir de sua interação com os meios de comunicação, sendo os maiores exemplos disso os já citados jogos para computadores e videogames, que não apenas adaptaram uma infinidade de atividades e brincadeiras do mundo físico, como jogos de tabuleiro, cartas, esportes, etc., mas também criaram seus próprios gêneros de jogos a partir de suas particularidades e possibilidades tecnológicas. Como indica Hjavard, (...) no final dos anos 1990, empresas como a Nintendo, Sony e Microsoft despontaram como importantes atores do setor de brinquedos, levando fabricantes tradicionais a perderem participação de mercado ou serem forçados a desenvolver brinquedos com um componente midiático. Com efeito, os meios de comunicação já não constituem aspectos secundários dos brinquedos, tampouco sua função se resume à de anunciantes de brinquedos ‘reais’; eles passaram a fazer parte dos brinquedos e do próprio ato de brincar (2014, p.180).

Uma consequência importante dessa mediatização da indústria dos brinquedos é que ela coloca as crianças em contato mais próximo com a cultura do consumo do mundo adulto. Quando se observa a natureza histórica dos brinquedos, percebe-se que eles sempre foram parte dessa cultura no sentido em que brinquedos são produtos a serem comprados e consumidos; no entanto, a mediatização empurrou os brinquedos e as crianças ainda mais longe, porque o próprio conteúdo da brincadeira também se tornou agora investido de valores de mercado. Somado a isso está também o apelo tecnológico, uma vez que, além de caráter constitutivo dessas novas formas de brincar, ele também se manifesta no comportamento e na identidade desses jovens consumidores, já que tem se tornado cada vez mais ‘infantil’ brincar com brinquedos tradicionais e mais atrativo brincar com mídia. Como indica Hjavard (2004, p.10), se a indústria dos brinquedos quiser se manter ativa nesse jogo, deverá se adaptar a essas mudanças nos estilos de vida e comportamento de seu público-alvo. 6

Para discutir e exemplificar sua pesquisa sobre a mediatização das brincadeiras, Hjavard (2014) realizou um estudo de caso sobre a mediatização dos produtos da franquia LEGO e, para tal, identificou e descreveu três aspectos desse processo, distintos, porém dependentes: imaginarização, narrativização e virtualização. O autor indica que, apesar de ter tomado a LEGO Company como centro de sua análise, essa tendência em torno da mediatização se aplica à indústria dos brinquedos como um todo (HJAVARD, 2004, p.10). Partindo desse pressuposto, proponho agora, como exercício, uma tentativa inicial de replicação dos conceitos utilizados por Hjavard, ao estudar a franquia LEGO, para discutir o lançamento mundial do jogo eletrônico para smartphones Pokémon Go e suas relações com o processo de mediatização das brincadeiras de forma geral.

O caso Pokémon Go Pokémon Go é um jogo de realidade aumentada no qual os jogadores, ao se movimentarem, usam a câmera, a tela touch e a geolocalização de seus aparelhos smartphone para encontrar, capturar e batalhar com seus Pokémon, que aparecem nas telas dos aparelhos como se estivessem no mundo real. Pokémon, forma abreviada de pocket monsters (monstros de bolso), são personagens ficcionais de uma série de videogames, animes e jogos de cartas TCG (trading card games) mundialmente conhecida (GREEN, 2016). No Brasil, a popularidade da série se deu, principalmente, com a exibição do anime (desenho animado) na TV aberta a partir de meados dos anos 2000, contando a história do protagonista Ash e de seu parceiro Pikachu em uma jornada para se tornar um mestre Pokémon, e que foi lançado simultaneamente a outros produtos da franquia. Jogos de realidade aumentada envolvendo atividade física já existiam antes de Pokémon Go, como, por exemplo, Ingress e Zombies, Run!. No entanto, as mecânicas de exploração do mundo real a partir da realidade aumentada combinadas com a popularidade de Pokémon resultaram num sucesso sem precedentes. Como resultado de uma colaboração entre a Nintendo, criadora e proprietária das licenças sobre a marca e a Niantic, uma subsidiária do Google que se especializou em jogos de realidade aumentada, vimos o surgimento de um fenômeno nas mídias sociais, sem precedentes na história dos jogos mobile e sem comparações no que tange a angariar usuários de maneira massiva num período tão curto de tempo (GUPTA, 2016). Lançado em 06 de julho de 2016, o jogo obteve mais usuários ativos do que o Twitter e o Facebook 7

nas primeiras semanas após o seu lançamento e a Nintendo viu o valor de suas ações aumentarem em 7,5 bilhões (GREEN, 2016). Ao se observar como se dá a utilização do aplicativo, é possível identificar procedimentos bastante semelhantes aos propostos por Hjavard (2014) ao tratar da mediatização das brincadeiras. Segundo tal autor, o primeiro dos três aspectos que envolve esse processo seria o da imaginarização, na qual o conteúdo simbólico do brinquedo/jogo passa a designar um mundo imaginado, ao invés de uma realidade existente. Apesar de se manter no centro, o brinquedo/jogo é utilizado para criar universos fantasiosos e irreais. No caso de Pokémon Go, vemos o jogo se utilizar de referenciais reais, como mapa, localização e pontos específicos das cidades, para construir o cenário de sua ação fictícia, na qual os personagens vivem e devem ser procurados pelos jogadores. Cada ponto do mapa, de acordo com suas próprias características, se torna o habitat ideal para determinados tipos de monstrinhos: se você se dirigir a uma região litorânea ou próxima a rios e lagos, terá uma chance maior de encontrar um Pokémon aquático, por exemplo. Além disso, o jogo também se apropria de pontos estratégicos no mapa e os transforma em ginásios, nos quais os jogadores devem levar seus Pokémon para batalharem. Muitos desses ginásios estão em locais com uma lógica no mundo real muito distinta daquela proposta no jogo; não foram poucos os casos de igrejas, cemitérios ou museus que foram transformados em ginásios em Pokémon Go e tiveram problemas com o número crescente de jogadores que passaram a frequentar os espaços com objetivos distantes daqueles aos quais tais localidades se dedicam normalmente. Nota-se aqui que, apesar de haver um referencial real, os jogadores tendem a ignorar em qual local, de fato, se encontram, e passam a trata-lo apenas como o ginásio virtual que faz parte do universo imaginário do jogo. O segundo aspecto descrito por Hjavard (2014) é o da narrativização, processo no qual o brinquedo/jogo estimula a brincar com propriedades narrativas. Uma narrativa consistiria em “uma sequência de eventos (p.ex., uma luta, uma perseguição, etc.) organizados em uma unidade de ação dotada de interesse humano e configurada como projeto humano” (BREMOND, 1973 apud HJAVARD, 2014, p.196). As ficções midiáticas não apenas proporcionariam um contexto narrativo para a brincadeira, como ofereceriam ainda papeis e personagens altamente desenvolvidos para nela ser representados. No caso de Pokémon Go, desde os momentos iniciais já somos apresentados ao papel que devemos desempenhar, que é o de um treinador Pokémon. Apesar de permitir que o usuário escolha entre algumas variações de roupas e acessórios, o avatar é padronizado e não é passível de sofrer grandes alterações. O seu primeiro objetivo é 8

capturar o maior número possível de Pokémon e, ao atingir determinado nível dentro do jogo, poderá escolher à qual das três equipes existentes você irá se filiar: Team Valor, Team Mystic e Team Instinct, cada uma com uma cor, símbolo, filosofia e capitão diferentes entre si. A maneira como essas escolhas são conduzidas não são aleatórias; o jogador é instigado a criar a sua narrativa e embarcar nela – “escolherei a Team Mystic porque seus valores são mais próximos dos meus” ou “escolherei a Team Valor porque é lá que estão os treinadores mais fortes/meus amigos” ou ainda “escolherei a Team Instinct porque possui a minha cor favorita e o capitão com o qual me identifiquei mais” são todas possibilidades plausíveis dentro do contexto do jogo. Além dos estímulos proporcionados pelo próprio jogo, há ainda uma parcela do público que também assiste o desenho animado baseado na franquia Pokémon; esse grupo, em específico, contará com um estímulo ainda maior: o de replicar as narrativas contadas pela animação televisiva ao se colocar no papel de um treinador Pokémon enquanto joga em seu smartphone. O terceiro e último aspecto seria o da virtualização, na qual objetos ou ações perdem parte de suas características ou atributos físicos em favor de uma representação e interação de caráter simbólico, muitas vezes por intermédio de um joystick, mouse ou teclado (HJAVARD, 2014). Aqui destacamos como a interação com o dispositivo smartphone é traduzida para ações dos personagens dentro do jogo, ou, em outras palavras, como nossas ações no mundo real são virtualizadas e repropostas dentro do universo do aplicativo. Devemos mover o aparelho com a câmera apontada para onde desejamos visualizar o Pokémon; existem movimentos específicos realizados com o dedo na tela touch para lançar Pokébolas de diferentes maneiras (diretas, curvas, giratórias, etc.); em uma batalha de ginásio, podemos deslizar o dedo pela tela a fim de que o Pokémon desvie dos ataques adversários ou tocá-la repetidas vezes para que nosso Pokémon utilize seus ataques; e, é claro, precisamos nos movimentar no mundo real para que nosso personagem se movimente dentro do universo virtual do jogo. No entanto, além de identificar os três estágios de um processo de mediatização da brincadeira definidos por Hjavard, acredito também que Pokémon Go conseguiu, de certa forma, transpor algumas das lógicas tecnológicas que já estavam estabelecidas entre os usuários de smartphones e suas aplicações. A primeira e mais marcante característica do aplicativo é a de que ele exige que o jogador se movimente de fato para que consiga progredir in game. Os videogames, em sua maioria, são jogados de maneira sedentária – você se senta no sofá ou em uma cadeira e movimenta apenas os olhos e os dedos, mas isso não é o suficiente aqui. Como indica Green (2016), Pokémon Go tem o potencial para inspirar um boom nas aproximações 9

gameficadas na área da saúde pelos setores privados. A maioria dos aplicativos de saúde que promovem atividade física tendem a atrair usuários que querem ser saudáveis; Pokémon Go não está classificado como um “aplicativo de saúde”, mas acaba contribuindo, de forma indireta, com que seus usuários façam bastante caminhada. As possibilidades dos aplicativos transformarem as ruas em um “playground ativo e requisitado” são ilimitadas e o aumento da atividade física seria “um efeito colateral tentador” (McCARTNEY, 2016, p.1). Logo, além de uma brincadeira mediatizada, abrem-se portas para que também as áreas da saúde e dos esportes sejam mediatizadas, a partir de aplicativos que, assim como Pokémon Go, incentivem atividades físicas a partir de interações gameficadas com um dispositivo tecnológico comum, como o smartphone. Especialistas em saúde tem elogiado o jogo por ele encorajar jogadores a caminhar; usuários tem utilizado o aplicativo para explorar sua vizinhança de diferentes maneiras e os negócios locais estão se beneficiando nesse aumento de tráfego; e muitos jogadores inclusive destacaram melhoras em sua saúde mental e bem-estar graças às possibilidades de interação social proporcionadas pelo jogo. De fato, conforme ressaltado por Quinn (2016), esse aplicativo é apenas um exemplo de como um jogo pode afetar a dinâmica das comunidades: “Este jogo parece ter criado uma mudança nas prioridades que está dando às pessoas motivação para fazer coisas que elas normalmente não fariam. Pessoas que normalmente se sentam em seus quartos durante horas [para jogar ou utilizar a internet] de repente obtêm motivação para andar, correr, pedalar ou realizar qualquer forma de exercício, a fim de chocar ovos de Pokémon. Pessoas que normalmente são muito cuidadosas com sua segurança pessoal estariam dispostas a caminhar por um bairro mais perigoso para chegar até um [ponto com] incenso para atrair Pokémon. Pessoas que normalmente são tímidas com estranhos vão conhecer outros jogadores e iniciar uma conversa que pode até levar a uma nova amizade, especialmente se eles estão na mesma equipe. A emoção do jogo combinada com as interações dentro de uma comunidade de jogadores cria uma experiência nova e divertida para quem joga (QUINN, 2016, p.1-2, tradução minha).

Com o fenômeno Pokémon Go, foi possível ver comunidades se reunirem fisicamente e espontaneamente em torno de um interesse em comum, e é muito provável que essas situações não aconteceriam sem o jogo/tecnologia que motivou tais eventos, caracterizando-o, portanto, como um dentre vários exemplos de processos de mediatização presentes em nossa sociedade atualmente.

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Considerações finais Neste artigo, procurei retomar a ideia principal da teoria da mediatização, que busca entender de que forma os meios de comunicação e seus desdobramentos afetam a cultura e a sociedade. Dentro dessa perspectiva, utilizei os conceitos de imaginarização, narrativização e virtualização, propostos por Hjavard (2014) para tratar da mediatização da brincadeira, e os apliquei ao caso de Pokémon Go, aplicativo para smartphones que propõe uma experiência de jogo que vai contra as lógicas dominantes no mercado de jogos mobile no momento atual, a fim de verificar se tal caso poderia ser considerado um exemplo contemporâneo de mediatização da brincadeira. Foi possível identificar em Pokémon Go os três processos descritos por Hjavard (2014), uma vez que o aplicativo: 1) incentiva os jogadores a participarem de um universo imaginário, 2) criarem suas narrativas e 3) verem suas ações no mundo real serem virtualizadas e replicadas dentro do jogo; no entanto, percebeu-se também que esse aplicativo vai além no uso das affordances disponíveis em seu suporte e propõe novos usos para tecnologias que já estão consagradas entre o grande público, como o smartphone e suas diversas aplicações e funcionalidades. Ressalto que, conforme indicado por Hjavard (2014, p.196), a brincadeira, em seu sentido mais essencial, sempre envolveu elementos de caráter imaginário e/ou narrativo, de forma que o processo de mediatização não significa, necessariamente, “a passagem absoluta de uma atividade realista, não narrativa, do mundo físico, para outra imaginária, de caráter narrativo, realizada em um ambiente virtual”. De fato, se olharmos atentamente para as ações incentivadas por Pokémon Go em seu caráter mais essencial, encontraremos aí muitas similaridades com outras brincadeiras infantis: é possível comparar o ato de capturar um personagem e o trazer para seu time com uma brincadeira de pega-pega; um Pokémon escondido no mapa se assemelha a alguém escondido numa brincadeira de esconde-esconde; e mesmo o ato de procurar todos os Pokémon a fim de completar sua coleção tem seu equivalente no hábito de completar álbuns de figurinhas, por exemplo. No entanto, minha intenção aqui foi sinalizar o quanto a tecnologia, por meio da mediatização dessas brincadeiras, pode potencializar tais elementos e propor novas possibilidades de engajamento e interação entre os usuários – no caso de Pokémon Go, princi-

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palmente a partir do uso da realidade aumentada e da geolocalização dos dispositivos smartphone embaladas pelo universo ficcional de uma franquia de personagens já mundialmente conhecida. A avaliação da influência global deste jogo sobre a dimensão cognitiva, física e emocional da sociedade neste momento, no entanto, será puramente conjectural, uma vez que o jogo foi lançado apenas alguns meses atrás e o seu futuro ainda é, de certa forma, incerto – inclusive, já foi reportado que o interesse dos usuários tem diminuído e que o número de jogadores ativos continua decrescendo dia após dia. Ainda assim, conforme assinala Gupta (2016), um estudo do impacto geral do jogo depois de algum tempo fornecerá algumas informações interessantes e levantará uma série de questões que envolvem o papel da tecnologia em uma sociedade mediatizada e nos comportamentos dos usuários de jogos eletrônicos em particular.

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