O filme voyeurista no cinema contemporâneo e sua retratação em \"As virgens suicidas\"

June 1, 2017 | Autor: H. de Oliveira An... | Categoria: Cinema, Audiovisual, Voyeurism, Opression, Sofia Coppola
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O filme voyeurista no cinema contemporâneo e sua retratação em “As virgens suicidas” 1 Heitor de Oliveira ANDRADE2 Gabriela Santos ALVES3 Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES

RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar o filme de voyeurismo através do longa-metragem “As virgens suicidas”, de Sofia Coppola, mostrando o desenvolvimento de tal gênero na cinematografia até a era contemporânea, a inserção do conceito de opressão à temática, passando pelas características da cineasta e a maneira a qual ela retrata o assunto na obra, estética e narrativamente, com ênfase nas marcas voyeuristas no filme.

PALAVRAS-CHAVE: voyeurismo; cinema voyeurista; opressão; Sofia Coppola; As virgens suicidas.

1) INTRODUÇÃO O ato de ver sem ser visto, conhecido como voyeurismo, está na essência da linguagem cinematográfica desde seus primórdios, na atitude do espectador em observar as situações vividas por um personagem numa história. De acordo com Machado (2011), esse desejo de observar ações privadas de outras pessoas gerou, no primeiro cinema, um dos gêneros fílmicos mais populares, o filme voyeurista, que consistia na escopofilia, ou seja, o erotismo do olhar, causando grande sucesso nas bilheterias do final do século XIX e início do século XX. Tal estilo primeiramente simples foi sendo aperfeiçoado, ganhou maturidade estética e narrativa nos primeiros anos da cinematografia, passou pelo período de afirmação da linguagem, foi utilizado com êxito pelos cinemas clássico e moderno, e também refletiu na era contemporânea da sétima arte. 1

Trabalho realizado para a disciplina de Teorias da Comunicação – Perspectivas Contemporâneas, do segundo semestre de 2014. 2

Estudante do 3º semestre do Curso de Comunicação Social – Cinema e Audiovisual da UFES.

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Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Comunicação Social da UFES.

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Dentro do cinema contemporâneo, o voyeurismo foi retomado com sua base antiga, mas com uma linguagem estética e narrativa diferentes à primeira fase da cinematografia, carregando uma liberdade maior de criação e trazendo aos filmes que o possuem como tema mais originalidade. Devido à complexidade de formas e possibilidades da era contemporânea, o ato de observar sem ser observado não é o único assunto nos filmes que o retratam: outras questões são colocadas para complementar a temática e acrescentar a ela mais vivacidade e chance de questionamento. Dentro dessa etapa fílmica, o longa-metragem “As Virgens Suicidas”, de Sofia Coppola, traz como base a escopofilia, sendo um destaque dessa categoria cinematográfica no cinema pós-moderno ao abrigar tal questão e agregar novos assuntos a ela, sob uma técnica e enredo diferentes dos moldes clássicos. Para chegar a essa análise do gênero voyeurista no filme de Coppola, primeiramente é preciso passar por um contexto histórico do voyeurismo e sua presença no cinema, seguindo pelos conceitos de opressão e controle do corpo, questão que acompanha a obra em seu enredo baseado no prazer em espionar, e por último pelas características estéticas e narrativas da diretora do longa-metragem. Esses são os pontos principais de condução ao estudo do gênero citado anteriormente sob outro olhar cinematográfico. 2) VOYEURISMO NO CINEMA DE ANTES E DE HOJE A arte cinematográfica já traz em si o ato de observar sem ser observado a partir do momento em que o espectador vai à frente das telas com o desejo de ver a vida e a realidade do outro retratada no filme. As primeiras imagens em movimento, de vista individual, eram basicamente voyeuristas, já que consistiam na observância de uma ação aparentemente escondida e de impossível visualidade em condições naturais, e essa forma de exibição resultou, nas grandes projeções, no filme de voyeurismo dentro do primeiro cinema, com temáticas que evocavam o erotismo do olhar em grande parte das obras dos quinze anos iniciais da cinematografia. Esse gênero se destacou por desenvolver uma nova maneira de narrar uma história, com o olhar subjetivoe a aproximação da câmera, esta última novidade usada como um artifício erótico que tirava o público do comodismo, aproximando-o do personagem fílmico. Para que o espectador entendesse a proximidade do quadro com naturalidade, “uma máscara circular negra sugeria o dispositivo de ampliação” (MACHADO, 2011, p. 117), e o filme “As seenthrough a telescope” (George Albert Smith, 1900) foi inaugural nessas inovações tragas pela vertente voyeurista ao inserir o plano subjetivo como olhar do observador e ao colocar

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um primeiro plano como indicativo de proximidade. Essa alternância entre tomadas subjetiva e objetiva é a base do voyeurismo, principalmente em sua etapa inicial, onde também era de costume a punição do voyeur como finalização. Posteriormente, tal estilo começou a amadurecer ao tirar a máscara negra para indicar ampliação nos planos mais próximos, devido aos diretores dos filmes chegarem à conclusão de que os espectadores já entendiam o significado dos enquadramentos aproximados e acharem que não era mais necessário colocar algo que gerasse esse entendimento. Essa mudança, assim como as seguintes, foi feita aos poucos para não causar espanto no público, com obras como “The gay shoeclerk” (Edwin S. Porter, 1903) se destacando nesse primeiro aperfeiçoamento. Por ter surgido numa fase bastante primitiva da sétima arte, o voyeurismo ainda carregava uma falta de espontaneidade ao transitar entre os planos: devido ao não conhecimento da época sobre campo e contracampo, hoje filmados com obliquidade, os quadros mais próximos não tinham uma continuidade do espaço como a conhecida atualmente e popularizada pelo cinema clássico, o que fazia com que os personagens fossem mostrados frontalmente na visão subjetiva. Na época, as regras de seguimento à maneira gerada pelo desenvolvimento da linguagem que conhecemos hoje não existiam ainda (MACHADO, 2011), e a busca de uma coerência espacial, narrativa e na construção fílmica geral passou a ser um objetivo maior, com cada filme do gênero trazendo um avanço nesses quesitos. Em relação às inovações que vinham surgindo, “The story the Biograph told” (Biograph, 1904) é notório ao utilizar uma transição de um plano conjunto para um detalhe de um beijo sem usar indicativos de aproximação, além de realizar um deslocamento de câmera, alterando o ponto de vista. Junto ao anterior, “A search for evidence” (Biograph, 1903) é o que mais se destaca no que diz respeito à maturidade técnica, já que coloca o olhar do voyeur em função do enredo, e não como simples diversão. Nesses dois filmes, há uma inversão da finalização das obras voyeuristas de antes: quem passa a ser punido é o observado, que realiza atitudes incorretas. Esse desfecho acrescenta uma função moralista ao gênero, e quem os produziu foi a Biograph, produtora que futuramente irá realizar outras obras desse estilo com mais coerência estética e de enredo. O filme de voyeurismo se torna presente, em seguida, nas peças fílmicas de Griffith, pai da linguagem cinematográfica do início do cinema, e o ato de observar já se encontra, nas suas produções, totalmente inserido numa complexidade narrativa maior. “A câmera está agora a

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serviço da narração, ela é testemunha dos fatos arrolados na história, ela os expõe e os interliga, ela extrai dos fatos a sua ‘verdade’” (MACHADO, 2011, p. 125). Com o desenvolvimento da sétima arte, o gênero ganha mais prudência nas questões estéticas e de enredo, e se torna, no cinema clássico, tema de um longa-metragem bastante aclamado, “Janela Indiscreta”, de 1954 e dirigido por Alfred Hitchcock. Na história, é o ato de observar do protagonista que conduz a trama e gera o desequilíbrio inicial que leva ao grande clímax e ao fim com a punição do criminoso observado, e os planos criados e desenvolvidos pela vertente voyeurista estão presentes em todo o filme, colocando o espectador no olhar do personagem e conduzindo o enredo através da situação de escopofilia.Mais tarde, a temática chega a filmes considerados modernos, como “A tortura do medo”, de 1960 e dirigido por Michael Powell, e “BlowUp”, de 1966 e dirigido por Michelangelo Antonioni, e cai na era contemporânea da cinematografia ao ser retratado em “Não amarás”, de 1988 e dirigido por KrzysztofKiéslowski, e “As virgens suicidas”, de 1999 e dirigido por Sofia Coppola. Os enredos voyeuristas dessa fase mais moderna e contemporânea trazem novas questões mescladas ao ato de observação, o que acrescenta novas formas de interpretação, e no filme de Coppola, objeto de estudo deste artigo, nota-se que em toda a história, a situação de observância à qual as protagonistas se encontram se mescla à opressãoe ao controle que elas sofrem em relação ao corpo, e esse ponto precisa ser analisado para que haja uma abordagem completa do voyeurismo na obra. 3)OPRESSÃO E CONTROLE Para entender melhor a noção de controle, é necessário saber o porquê da dominação presente na sociedade. Segundo Foucault sobre o corpo (1979, p. 231), “Vivemos numa sociedade que [...] produz e faz circular discursos que funcionam como verdade, que passam por tal e que detêm por este motivo poderes específicos”, e por isso acabam sendo postos na mente das pessoas como princípio pleno e incontestável, exercendo controle sobre a vida delas. Um assunto sempre controlado e vigiado de perto no corpo social é o sexo, principalmente quando diz respeito a crianças e adolescentes, fases em que as opiniões acerca do corpo são formadas. Partindo de uma análise do domínio sexual ao qual os mais novos são submetidos, no século XVIII a masturbação infantil ganhou ênfase ao ser reprimida ao extremo, sendo considerada um mal terrível e comprometedor, já que, para os adultos, a criança era o futuro da sociedade e o importante era trazê-la a uma perfeição moral de acordo com os moldes pré-definidos. O conhecimento que os pequenos começavam a ter sobre seus instintos sexuais representava um

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poder que eles possuíam sobre si, portanto era uma ameaça às verdades plenas e controladoras do grupo social, e por isso a sexualidade infanto-juvenil virou alvo de domínio e opressão, causando a falta de entendimento do sexo pelos indivíduos mais jovens, o que levou as gerações seguintes a adotarem a mesma linha de ensinamento, calando e perseguindo quaisquer ações e questionamentos sexuais das crianças e adolescentes, e essa omissão de tal assunto acontece até os dias atuais, na sociedade contemporânea. Uma forma eficaz de autoridade e poderio têm como resultado a dominação de certa classe, a manutenção dessa proibição e a sua reprodução, e o que causou esse domínio ao sexo desde séculos atrás até a atualidade foi a imposição de comportamentos e normas aos indivíduos e a seus corpos, através de uma teia de relações de poder mais ou menos pré-definidas e predestinadas cujas formas de opressão se encontram das pequenas relações de dominação até as menores formas de soberania. O controle à sexualidade não se limita somente ao ato, mas aos órgãos, ao corpo, aos desejos, às relações (FOUCAULT, 1979), a tudo que o envolve, e por detrás desse controle antigo, o que é repreendido se faz presente em sua forma mais espontânea e viva, no desejo sexual genuíno e fresco, e é nesse anseio que surge a vontade de resistência ao domínio. A resistência e o poder caminham juntos, coexistem no mesmo tempo, e um não vem antes do outro, logo, quando se cria uma relação de controle através do poder, a possibilidade de resistir ao mesmo também é criada. Dentro do ser humano, há sempre uma luta entre duas vertentes opostas presentes na mente (FOUCAULT, 1979), e no sexo, a “liberação sexual” segue essa linha ao acontecer a partir de atitudes afirmativas vindas do sentimento sexual interno ao qual o indivíduo está preso, chegando a seu limite, e simultaneamente se libertando desse mesmo sentimento e ultrapassando-o. O ato de resistir ao controle imposto à sexualidade consiste em partir do próprio dispositivo do sexo para alcançar a libertação, usando o poder e a oposição a ele. Dentro dessa opressão à sexualidade, o corpo feminino sofreu consideravelmente mais, conhecido desde os tempos antigos como o sexo frágil e sendo mais perseguido a partir do século XVIII, época em que ganhou uma exaltação maior e foi considerado, em um grau superior aos períodos anteriores, objeto de desejo e satisfação. Quando a liberação sexual feminina e os seus movimentos de resistência começaram, teve destaque o modo com que elas o fizeram, partindo do próprio discurso sexual que as oprimia e passando a contestar uma autenticidade do seu sexo, com novas formas de tratamento, linguagens e conceitos.

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Esse controle sexual sobre a fase infanto-juvenil, principalmente em relação ao sexo feminino, é o complemento dado ao voyeurismo em “As Virgens Suicidas”, onde Sofia Coppola mescla o gênero voyeurista a uma situação opressora que permeia a sociedade desde muitos anos. Tanto na narrativa quanto na estética, a diretora utiliza o ato de proibir e traz um tom original á temática da escopofilia, tema no qual se baseia o enredo. O último ponto necessário para que, variegado ao conceito de opressão, o longa-metragem citado anteriormente seja analisado como voyeurista são as marcas e características de Coppola como cineasta, seus aperfeiçoamentos à linguagem cinematográfica e sua presença no cinema contemporâneo. 4) O CONTEMPORÂNEO DE SOFIA COPPOLA A fase contemporânea da cinematografia é alvo de discussões desde os anos 80, quando críticos de cinema começaram a elencar obras fílmicas com essa denominação. É preciso frisar que nem todos os filmes mais atuais são considerados contemporâneos, pois na atualidade, coexistem junto a esse estilo o clássico e o moderno (RIBEIRO, apud PUCCI JR, 2008), e o que serviu de motivo para a nomeação de tal gênero foi o levantamento de novas questões narrativas, como o destaque ao cotidiano e ao banal, e estéticas, como a mistura de diversas linguagens, diferentes às características clássicas e modernas. É dentro desseestilo que os filmes de Sofia Coppola se encontram, carregando novas propostas no enredo e nas técnicas utilizadas. Nascida na cidade de Nova York em 1971, a diretora é filha do premiado cineasta Francis Ford Coppola e de Eleanor Coppola, é criadora de cinco longas-metragens, além de dois curtas, e foi a primeira mulher norte-americana a receber uma indicação ao Óscar de melhor direção por “Encontros e desencontros” (2003), obra pela qual levou a estatueta de melhor roteiro original. Ligada não só ao cinema, mas à televisão, à moda, à música e à fotografia, e criada em meio a grandes nomes da arte, Sofia Coppola traz, em sua obra fílmica, elementos estéticos referentes a várias vertentes artísticas, como a pop art, o renascentismo e movimentos vanguardistas como o cubismo, em seu enredo e estética. As histórias de Coppola permeiam o universo de solidão vivido pelo ser humano, destacando nos protagonistasa melancolia e o estado tedioso nos quais eles se encontram, com umaaceitação à situação e uma tentativa de sair dessa condição, e utilizando para expor esse estado solitário um meio que é uma de suas principais marcas narrativas: o cotidiano, presente em todos os seus filmes. É nessa apresentação do banal que a diretora traça seu estilo, ao

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mostrar ao espectador o que geralmente não é mostrado, um momento onde nada de mais acontece, analisando muitas vezes os personagens a partir dessas ocasiões, e também ao criar finais com conclusões em aberto ou sem desfechos felizes, proporcionando ao público a oportunidade de imaginar o que pode ter acontecido e retratando em seus enredos a realidade da sociedade contemporânea. Nas realizações da cineasta, de acordo com Contreras (2009, p. 21), “se aprecia a vontade de romper com uma maneira tradicional de filmar, a maneira ‘clássica’ ou ‘transparente’ do cinema clássico hollywoodiano”, e essa ruptura ocorre, além do enredo, através das técnicas postas em suas obras. Em seus filmes, destaca-se a inserção de outros formatos audiovisuais, como o videoclipe e o spot publicitário, além da recriação e referência a grandes obras de arte e a períodos das artes visuais como o cubismo e a “pop art”, o que se deve à sua ligação com diferentes formatos artísticos. Também é notável nas obras de Coppola uma estética mais contemplativa e intimista, com planos de duração longa, muitas vezes fixos e retratando em alguns momentos a visão subjetiva, dando a ideia de contemplação e reflexão dos personagens. Essa ideia também é insinuada pela trilha sonora (RIBEIRO, 2014), utilizada como um elemento narrativo essencial para complementar a história como algo decisivo e não somente como um artifício técnico. Outra característica presente na cinematografia da diretora é a colocação de duas visões aparentemente opostas do ser humano: a fantasia, demonstrada pela “magia” do cinema e realçando a diversão, e a realidade, retratada no cotidiano e na vivência dos indivíduos. Sofia Coppola busca, em sua filmografia, colocar o espectador numa certa aproximação e empatia com a história apresentada e ao mesmo tempo distanciá-lo da mesma através de sua estética dessemelhante a formas anteriores, além de exibir conceitos da cultura pop, de massa, com um olhar mais aprofundado e misturar linguagens, reforçando a ideia de que a sétima arte está num jogo entre o tradicional e o moderno. Com seus filmes, ela pretende mostrar ao público o espetáculo que é o cinema e simultaneamente expor aspectos da condição humana presentes em toda a sociedade. Dentre suas obras, “As Virgens Suicidas”, primeiro longametragem de sua carreira, é o objeto de estudo para pensar nas marcas contemporâneas da diretora, nos conceitos de opressão e controle sociais, caindo por último na temática voyeurista, que está presente em todo a história, narrativamente e esteticamente, abrigando novas formas de representar o ato de observar.

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‘AS

VIRGENS

SUICIDAS'

E SUA RETRATAÇÃO DO VOYEURISMO

COMPLEMENTADO DE OPRESSÃO Lançado em 1999, o primeiro filme de maior duração de Coppola conta a história da família Lisbon, que vive no subúrbio de Michigan nos anos 70 e é composta pelos pais e cinco irmãs adolescentes, que são educadas de forma rigorosa e conservadora e alvo dos olhares dos vizinhos jovens que as observam desejosos constantemente. A obra é marcada pela narração de um dos ‘voyeurs’ 25 após os acontecimentos apresentados, e tem como ponto de partida a tentativa de suicídio de Cecilia, a mais nova, retratando o cotidiano posterior a esse fato na família e na vizinhança até o ato de suicídio de todas as outras irmãs,num ambiente carregado de opressão e voyeurismo com uma estética que marca esses conceitos de uma maneira própria da diretora. Na sequência inicial, a cineasta convida o público a adentrar no universo da história, o bairro de uma cidade norte-americana, dando ênfase ao cotidiano, ao que é comum àqueles moradores, através de planos gerais das ruas, casas e vizinhos, com o plano médio de 6 segundos de Lux, uma das irmãs e interpretada por Kirsten Dunst, lambendo um picolé e saindo do quadro anunciando o que virá a seguir. Durante várias sequências, os planos são longos, insinuando a ideia de contemplação ao ambiente e à situação das meninas, e a exibição do nome do filme ao início já faz uma alusão ao objeto misterioso e idealizado que elas representam através da estética, utilizando uma sobreposição superexposta de uma imagem do céu e do rosto aproximado da personagem de Dunst. Essas imagens sobrepostas e mais iluminadas aparecerão ao longo da obra para indicar a imaginação dos ‘voyeurs’ em relação às Lisbon, com exibições de enquadramentos mais rápidos e fragmentados com fotografia mais estourada, colocando o espectador diante de uma linguagem diferente da cinematográfica e mais aproximada do videoclipe, o que confirma a mistura de vertentes que Coppola introduz em seus filmes. Além dessa ocasião, essa mescla de estilos ocorre no instante em que as garotas, após a segunda tentativa de suicídio da caçula, que foi bem sucedida, estão deitadas no quarto com o enquadramento e a composição fazendo referência ao quadro cubista “As senhoritas de Avignon” (1907), de Pablo Picasso (CONTRERAS, 2009), na segunda metade do filme ao usar diversas imagens em “stop-motion” mostrando a casa como forma de passagem de tempo e foco no cotidiano, e também mais ao final, quando os meninos fantasiam momentos vividos junto às irmãs em pontos turísticos mundiais e são mostradas colagens de fotos do ambiente com fotos dos rapazes e das moças.

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No longa-metragem, é notável o uso da trilha sonora, que dá o tom solitário e contemplativo da trama através de melodias instrumentais, e que complementa as ações dos personagens se encaixando ao que as irmãs estão vivendo por meio de canções ‘pop’ com letras pertinentes aos momentos em que são tocadas, como na entrada de Trip, pretendente de Lux, na história, no beijo entre os dois e no baile, por exemplo.O deslocamento temporal na trama é realizado de uma forma alternada, com a inserção da voz do narrador indicando que o que é visto é uma memória, e com planos de Trip mais velho relatando sua vivência com a família Lisbon, e o final aberto acontece na obra, já que não é revelado o que se sucedeu na vida dos vizinhos após os trágicos acontecimentos, deixando para o espectador a possibilidade de supor desfechos para eles. Outra característica da diretora retratada na obra é a mistura entre fantasia e realidade, que acontece na cena do baile da escola, onde a personagem de Dunst e seu parceiro são coroados reis. Na sequência, muitas luzes refletindo de diversos pontos, balões coloridos, efeitos de fumaça e imagens dos estudantes dançando e comemorando dão o tom de espetáculo à vida das irmãs, que são submetidas a uma situação de opressão constante, insinuada diretamente e indiretamente durante todo o enredo. A opressão que permeia todo o filme já vem no início, quando Cecilia se consulta com o médico após tentar se suicidar e ouve-se um som constante de ponteiros de relógio na sala sugerindo um controle à vida da garota, e é mostrada pela primeira vez de forma direta no jantar em família com a presença de um garoto convidado:por Lux ter vestido uma blusa que mostra seu colo e ombros, a Sra. Lisbon a adverte, mandando-a colocar um casaco. O domínio excessivo dos pais sobre as garotas gera nelas o distanciamento em relação às pessoas próximas, o que acontece na festa que precede a morte da caçula, instante em que as irmãs se inibem diante dos vizinhos convidados, e as atitudes das meninas ao estarem na presença da matriarca, com expressões corporais cabisbaixas e posturas submissas durante todas as cenas em que estão com ela reforça o sistema opressor em que vivem. Esse sistema é expresso na visita de Trip à casa da família protagonista, onde todos assistem à televisão e a Sra. Lisbon o impede de sentar perto da filha, ficando no meio dos dois e não permitindo nenhuma interação entre o casal, e as sequências que precedem o baile, com as adolescentes comprando tecidos, se arrumando e os garotos buscando-as em casa refletem a dominação do corpo delas pelos seus progenitores ao mostraro controlena escolha dos tecidos na hora da compra, os vestidos de festa semelhantes a túnicas que elas usam e a rigidez das regras impostas aos pares das filhas pelo casal.

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No meio desse controle, há a resistência, representada na obra pela personagem de Dunst. “Lux é a única, entre as irmãs, a resistir à mãe e rebelar-se contra ela” (CONTRERAS, 2009, p. 60), e isso é revelado na cena do jantar ao destacar a moça mexendo em sua blusa para evidenciar seu colo e impressionar o rapaz e roçando suas pernas nas pernas dele por debaixo da mesa durante a refeição, realizando pequenas ações resistentes à mãe que a oprime. Num plano das quatro garotas, depois da morte da mais nova, no banheiro da escola, Lux está fumando, atitude que a destaca como a irmã que quer ir contra as regras dos pais, o que é evidenciado quando Trip visita a sua casa e ela, diante da família, o seduz roçando os pés na mesinha da sala, além de sair escondida e beijar o rapaz antes de ele ir embora. Ao não cumprir as especificações determinadas para que fosse ao baile, permanecendo no local e perdendo a virgindade com seu acompanhante, a moça busca um caminho diferente da opressão pela qual sofreu, o que gera uma atitude ainda mais agressiva para as quatro irmãs: o isolamento total das mesmas. A ida de táxi da filha desobediente para casa ao amanhecer já sugere a consequência controladora que virá ao exibir um primeiro plano da garota vista de fora do carro com o vidro fechado, e a fumaça que aparece na residência dos Lisbon em uma das cenas em que as adolescentes já estão trancafiadas, causada pelos discos queimados, indica uma asfixia das meninas perante o castigo severo imposto a elas. Diante do domínio, Lux é quem enfrenta a mãe e a questiona, além de lutar contra o castigo indo para o telhado de casa fumar e encontrar com rapazes e liderar a última tentativa de resistir às atitudes forçadas dos pais: o suicídio coletivo das quatro irmãs, ato que mostra a tentativa das jovens de se libertarem da opressão constante à qual são submetidas, opressão que só aumenta durante a história. Dentro do enredo, é o controle e a dominação sofridos pelas garotas que as fazem ser alvo do interesse dos vizinhos e objetos de observação, causando o voyeurismo dos garotos em relação a elas, prática presente desde o início da obra e que é fundamental para o seu desfecho. No princípio do filme, a tentativa de suicídio de Cecilia jámostra a observação dos garotos da vizinhança sobre as cinco irmãs e essa atitude voyeurista é apresentada de fato na primeira cena após a vinheta de abertura, com os rapazes observando a casa dos Lisbon enquanto as adolescentes entram enquanto são usados planos subjetivos indicando a visão deles, o que se refere ao período clássico do gênero de escopofilia. O propósito dos vizinhos na obra está centrado em tentar descobrir algo a mais sobre a vida das garotas, já que as mesmas possuem uma aura de mistério por serem rigidamente controladas pelos pais, o que aumenta o desejo sobre elas, que também são alvo, de uma maneira leve e menos intensa, dos moradores

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adultos, que em suas casas analisam a situação vivida por aquela família, e nos primeiros minutos um enquadramento aparentemente da visão de uma das vizinhas conversando com alguém sobre os Lisbon enquanto os observa entrar confirma novamente a estética do filme de voyeurismo. Os atos cotidianos das garotas como sair para a escola e ficar na porta de casa conversando leva os garotos à observação distanciada e desejosa em relação às irmãs, e o momento em que os voyeurs têm contato físico direto com elas, na festa em que a caçula se mata, nota-se um distanciamento por parte deles, que se inibem diante dos seus objetos de desejo, mostrando que o voyeurismo se concentra mais ao erotismo do olhar distante e não à realização da vontade. No jantar com a presença do rapaz convidado, essa inibição também é manifestada no momento em que ele vai até o banheiro das meninas, contempla o espaço de maneira apreensiva, observando os objetos íntimos delas, cheira o batom de Lux e se assusta quando é surpreendido pela moça, indo embora rapidamente. A obsessão dos garotos pelas irmãs através da observação constante era intensa ao ponto de eles enxergarem as personagens em diversos lugares, e à medida que se aumenta a opressão dos pais sobre elas, maior se torna o desejo dos voyeurs em espiar a vida das meninas. Diante do primeiro suicídio, os rapazes se sentem mais seduzidos a saber sobre a vida daquela família, e o isolamento total após o baile realça as adolescentes como alvo de vigilância deles, que passam a observá-las pelo telescópio, com a personagem de Dunst como principal objeto devido a suas escapadas no telhado da casa. É a observação contínua que leva as Lisbon a pedirem ajuda, tentando manter um contato com os seus espectadores, e é por saberem da postura voyeurista dos observadores que elas planejam uma escapatória à situação opressiva que vivem, contando com o auxílio dos seus vizinhos, que respondem ao pedido e se preparam para socorrê-las, e que por fim descobrem que a fuga se revela como algo inesperado: o suicídio das quatro moças. Após a tragédia, o narrador diz ao final da história que eles demoraram a esquecê-las e ainda se questionavam sobre o ocorrido, o que representa uma eternização do objeto de desejo dos ‘voyeurs’. Dentro do filme, o voyeurismo é retratado tanto na narrativa como atravésda linguagem estética que compõe a obra, utilizando técnicas e momentos do enredo que fazem referência ao clássico filme voyeurista e incorporando marcas de um cinema contemporâneo para representar a escopofilia nos quesitos técnicos e narrativos do longa-metragem. 5.1) MARCAS CLÁSSICAS MESCLADAS A MARCAS DE UM NOVO VOYEURISMO

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No enredo, a diretora realiza uma mistura entre características clássicas do cinema voyeuristae novas formas de mostrar o desejo de observar para criar um filme de voyeurismo referente ao antigo com uma carga de marcas próprias, que dão mais originalidade a tal gênero. A situação das irmãs Lisbon como pessoas que mesmo próximas são inalcançáveis já traz um aspecto presente nos alvos deespionagem das narrativas do período mais antigo do gênero, e segundo Carolina Andrea Diaz Contreras (2009), as garotas não possuem muitas falas, trazendo em si a força predominante da imagem, atributo de um observado clássico. O uso dos planos na primeira cena que retrata a visão dos garotos indica a subjetividade do olhar deles, referindo-se à técnica dos quadros subjetivos popularizada pelo filme voyeurista, e no momento em que um dos vizinhos observa Lux na escola há novamente o uso dessa alternância entre tomadas objetiva e subjetiva, o que se repete enquanto os meninos observam a mesma no telhado, momenta em que ocorre a inserção da máscara circular negra indicando uma aproximação causada pelo telescópio de um dos observadores, forma de visualização que também carrega um traço do cinema de escopofilia. Os primeiros planos da personagem de Dunst nos instantes de observação dos voyeurs e nas fantasias de Trip fazem uma referência clara à aplicação dos enquadramentos de detalhes que colocavam o público na mesma situação de vista dos que vigiavam seus objetos nos enredos clássicos, e essa sedução causada pelo plano detalhe é mostrada na visita de Trip aos Lisbon, quando sua pretendente roça o pé na mesinha para impressioná-lo e é usado um quadro aproximado dessa ação detalhada para intensificar o efeito dessa execução sobre o rapaz. Para acrescentar novas marcas ao voyeurismo presente no longa-metragem, Coppola utiliza como um dos principais meiosa representação do desejo dos observadores: na cena em que o convidado do jantar adentra no universo das garotas e cheira o batom de Lux, a personagem aparece em um ‘close’ iluminada e idealizada como algo precioso com o qual o rapaz sonha constantemente. Há a inserção de novas formas de vigilância e observação ao longo do filme, e uma delas está na leitura do diário de Cecilia pelos vizinhos, que, ao lerem o objeto pessoal, ficam sabendo detalhes de todas as irmãs e as imaginam nas situações descritas pela caçula de uma maneira idealizada, com planos iluminados das adolescentes felizes em campos floridos e imagens sobrepostas das mesmas em ambientes celestiais, o que expressa novamente o modo com que os seus espectadores as vêem. Após o isolamento total imposto pelos senhores Lisbon, os garotos passam a ver as vizinhas com menos frequência, o que os leva à criação de novas maneiras de espiar a vida delas: a

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primeira é colecionando fotos e utensílios diversos das meninas, passando pela compra de revistas iguais as compradas pelas irmãs quando estão trancafiadas, fantasiando viagens com elas por vários lugares de mundo. A comunicação que os meninos fazem com as adolescentes através de músicas mandadas por telefonema é a ultima forma voyeurista modificada utilizada na obra, e é fundamental para o pedido de socorro das observadas, já que elas aproveitam da percepção dos vizinhos sobre elas para planejar a suposta fuga de casa, e ao chegarem à casa da família protagonista para por em prática o plano, é mostrada a última fantasia dos ‘voyeurs’ com as moças por meio de planos abertos e iluminados deles fugindo juntos de carro numa estrada, representando o que eles desejavam. O fechamento do enredo, com os vizinhos indo ajudar as irmãs na escapatória e o suicídio das quatro, também mistura as marcas clássicas e as de Coppola da escopofilia no filme ao retratar a ajuda do observador ao observado que sofre perigo, aspecto do cinema voyeurista desde seu amadurecimento, e ao colocar uma nova visão à punição sofrida pelo objeto de desejo, traço da diretora para indicar que a atitude final é uma forma de escapar da condição a qual se vive. 6) CONSIDERAÇÕES FINAIS O filme de voyeurismo se desenvolveu na cinematografia passando pelos diversos períodos da história do cinema e caindo na era contemporânea, onde se tornou necessário abrigar outros temas que complementassem o ato de observar, e Sofia Coppola soube usar o antigo gênero como temática acrescentando à mesma um conceito presente desde muitos anos, a opressão, e colocando características estéticas e de enredo indicando a escopofilia na obra, juntando-as a técnicas e elementos narrativos clássicos desse estilo fílmico. O que trouxe coerência ao longa-metragem “As virgens suicidas” foi o fato de tal obra mostrar duas situações que sempre aconteceram na sociedade, a observação desejosa e a opressão controladora, em meio a uma realidade contemporânea que aparenta ser a de muitos espectadores. O encerramento do filme, com a exibição de planos do cotidiano do bairro onde se passa a história, sugere essa banalidade aos fatos acontecidos, insinuando que tais atitudes podem ocorrer em qualquer ambiente. 7) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CONTRETAS, Carolina Andrea Díaz. Personagens femininas na filmografia de Sofia Coppola: representações e identidade no cinema contemporâneo. Faculdade de

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Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. COPPOLA, Sofia. As virgens suicidas. 1999. Disponível em: . Acesso em 4 de out. 2014. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 229-276. MACHADO, Arlindo. O filme de voyeurismo. In: Pré-cinemas e pós-cinemas. Campinas: Papirus, 2011, p. 115-126. RIBEIRO, Leonardo Felipe Vieira. Uma solidão contemporânea: questões do cinema pós moderno na cinegrafia de Sofia Coppola. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014.

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