O Fim da Aventura

May 31, 2017 | Autor: Tamy Macedo | Categoria: Poesia portuguesa contemporânea
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"O Fim da Aventura"? – uma reflexão acerca da poesia na obra de Rui Pires Cabral
Tamy de Macedo Pimenta (UFF/FAPERJ)


Em um tempo como o que vivemos de aceleração, explosão das mídias e indiferenciação, há espaço para a poesia? E se há, qual é o lugar dela? A que serve e como responde ao tempo em que é produzida?
Em Portugal uma antologia dos anos 2000 despertou a atenção por seu organizador – e também poeta – Manuel de Freitas chamar os escritores ali reunidos de Poetas sem qualidades. Diz ele na introdução dessa antologia:
A um tempo sem qualidades, como aquele em que vivemos, seria no mínimo legítimo exigir poetas sem qualidades. (...) estamos perante o reino do quantitativo, da mercadoria que se assume como tal. Ao homem reificado, cabe um tempo – e também, cada vez mais, um espaço – sem qualidades. (...) O que, de alguma maneira, aproxima estes nomes (e legitimará, porventura, reuni-los num mesmo livro) são, precisamente, as várias "qualidades" que notoriamente não possuem. Estes poetas não são muita coisa.
(FREITAS, 2000, p.9, 10, 14)
Apesar de serem considerados "sem qualidades", produtos de um tempo que não lhes permitem outras características, esses poetas são contemporâneos no sentido em que Agamben define, já que apesar de estarem inseridos em sua época, conseguem estabelecer um distanciamento crítico em relação a ela, percebendo em seu tempo "não as luzes, mas o escuro" (AGAMBEN, 2009, p.62), sendo fontes de questões características do século XXI, como solidão, angústia, mercado e velocidade. Um desses poetas é Rui Pires Cabral, cujo primeiro livro de poesia data de 1994. Diferentemente de Freitas, RPC raramente se pronuncia acerca de sua obra, porém, temos um pequeno registro pessoal dele no número 12 da Revista Relâmpago:
Sempre esperei que a poesia pudesse falar por mim, e nunca soube falar sobre ela sem sentir que estava a traí-la de algum modo. É uma incapacidade absolutamente assumida; acredito que tudo o que pudesse dizer aqui sobre os meus versos seria, quando muito, supérfluo. Quanto à poesia dos meus companheiros de geração, limitar-me-ei a referir aqueles de que mais gosto: José Miguel Silva, Manuel de Freitas, Carlos Luís Bessa, Jorge Gomes Miranda. É nos versos deles que encontro mais vezes o que sempre procuro na poesia: uma espécie de beleza arrepiante, desarmada, de efeito emocional e epidérmico semelhante ao da música. Não tenho outro critério para avaliar a poesia: aquele que me convém tem de ficar perto do coração e dos sentidos.
(Revista Relâmpago nº 12, 2003, p.181)
Por esse depoimento percebemos uma afeição à poesia por parte deste poeta. Não conseguir falar sobre ela e, ao mesmo tempo, sentir que tudo o que se pode falar é a partir dos versos demonstra um consciência da incapacidade da linguagem não-poética de dissertar sobre a poesia. Esta é aproximada da música por seu efeito emocional e rítmico, mexendo com o coração e com os sentidos. Rui Pires Cabral, portanto, nos fala de sinestesia em tempos anestésicos, de explosão de sensações e imagens quando vivemos cada vez mais imersos em imagens que nada nos dizem. Mas como isso aparece em seu discurso poético? Vamos agora examinar alguns metapoemas de sua obra.
CANTIGA
as palavras repousam fermentadas
na geometria do meu lagar

é uma guerra e está dentro de mim
como um bicho emboscado

agora já tenho quatro versos turvos
e uma dor longínqua no intervalo
dos ossos

com o que sobra
invento outra mitologia

(CABRAL, 1994, poema 3)

Nesse poema pode ser percebido como uma proposta de arte poética de Rui Pires Cabral. Ele demonstra o processo pelo qual o poeta passa ao escrever um poema: As palavras, como uvas, repousavam no lagar do poeta até se fermentarem e se tornarem vinho, poesia. Antes disso, porém, ocorre uma guerra interior durante a organização dessas palavras que, quando transformadas em poesia, geram certa dor em seu autor que, com o que sobra, inventa outra mitologia. Podemos entender que a organização das idéias, das palavras em versos seria a causa da dor do poeta? Seria fazer poesia um ato também doloroso? Para essa discussão trago o famoso poema de Fernando Pessoa "Autopsicografia":
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(PESSOA, 1980, p.104)

O vocábulo "dor" aparece quatro vezes nesses versos, sem contar em sua presença intrínseca à palavra "fingidor". Manuel Gusmão, durante um minicurso ministrado na UFF durante o mês de maio de 2012, ao falar deste poema, destacou quatro dores: A dor que o poeta deveras sente, a dor fingida, a dor sentida pelo leitor e a dor do fazer poético. Assim, podemos traçar um paralelo com Cabral, já que em "Cantiga" o escrever versos é causa de certa dor. Em "O fim da aventura", novamente nos deparamos com uma reflexão metapoética:
O FIM DA AVENTURA

À tarde sento-me no jardim do bairro
onde os lódãos acolhem melros
e enchem de sementes as inférteis
alamedas de alcatrão.

É o primeiro domingo sem ti,
em tudo igual aos outros domingos:
ruas despovoadas, grades nas montras
escuras, um pacato mundo de vizinhos
temporariamente ausentes.

Deixo-me ficar ao frio um bom bocado,
distraído pelo fútil desejo de ser
o próximo estranho que atravesse
a rua, de não ter sequer o abrigo
de um nome.

E, de súbito, ei-la que regressa,
após meses de remanso em parte
incerta: conjurei a sombra azeda
que me sussurra ao ouvido.

Cá está ela, sim, íngreme
e sedenta.

A poesia.
(CABRAL, 2006, p. 20)

Nesses versos a poesia é representada através de um efeito de personificação, já que nas primeiras estrofes o "ti" parece referir-se a uma pessoa. Porém, ao final, percebemos que "de súbito" é a poesia que volta para o poeta. Esta, então, não é fruto de grande reflexão, mas sim uma "sombra azeda" que sussurra ao ouvido do poeta. As estrofes (alternação de dois quartetos com dois quintetos seguidos de um dístico e um verso deslocado e único "A poesia") ajudam a construir a atmosfera de suspense até a revelação final do inesperado interlocutor que regressa diante de "alamedas inférteis", "ruas despovoadas" e "vizinhos ausentes". Nesse contexto de solidão em que o eu – lírico encontra-se, a poesia é o único interlocutor com quem ele pode contar. Mas como esse Eu se enxerga como poeta? Como ele próprio vê a sua condição e o lugar do produto de seu trabalho? Podemos ter uma visão disso através do último poema de Capitais da Solidão, "[Passagem de peões]":
À vinda do supermercado
diz-me o pequeno monstro
que às vezes me faz companhia:


Na rua, a tarde rola devagar
entre prédios murchos – e ele
acrescenta:

E ri-se.
(CABRAL, 2006, p. 32)

Quem seria esse "pequeno monstro"? Em um poema enigmático como esse, impossível ter uma resposta exata, porém inclino-me a pensar esse monstro como uma voz interna do poeta que vê-se como uma figura sem valor e lugar no mundo. Em um tempo "sem qualidades" a poesia não é valorizada e esta é cada vez menos lida. O próprio sujeito tem essa consciência e, portanto, ri de si mesmo (é importante notarmos que "ri-se" inclui a partícula reflexiva "se") por viver para fazer versos.
Assim, percebo que no discurso poético de Rui Pires Cabral a poesia – como todos os outros temas abordados nessa obra – é vista de maneira negativa ("versos turvos", "sombra azeda"), já que o escrever versos é caracterizado como um ato doloroso, desassossegado e solitário (produzida entre "ruas despovoadas", "vizinhos ausentes" e "prédios murchos"). O poeta "sem qualidades" continua a escrever, porém em sua obra transborda a angustiante condição da poesia nos tempos contemporâneos.



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