O Fim da Morte: um ensaio sobre o confronto com o maior mal humano

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O FIM DA MORTE Alysson Augusto dos Santos Souza *

RESUMO O Fim da Morte Com a possibilidade do humano enquanto um organismo complexo que domina e é influenciado por seu meio, questões cruciais sobre sua existência se colocam. A morte, por vezes tida como fato insuperável, por vezes vista como acidente de percurso curável, é tomada como inimiga principal das aspirações humanas pela eternidade. Nas páginas que se seguem, refletirei sobre a origem e o desenvolver da vida em termos biológicos e culturais, mostrando que o fim da morte é não apenas pretendido, como é atualmente buscado.

Palavras-chave:​ Morte - Cultura - Religião - Transumanismo

ABSTRACT The End Of Death With the possibility of the human as a complex body that dominates and is influenced by its environment, crucial questions about his existence are placed. Death, sometimes regarded as insurmountable fact, sometimes seen as a curable route accident, is taken as the main enemy of human aspirations for eternity. On the following pages, I will reflect about the origin and developing life in biological and cultural terms, showing that the end of death is not only intended, as it’s currently sought.

Palavras-chave:​ Death - Culture - Religion - Transhumanism

Breve odisseia da vida Em algum momento muito distante da atualidade, estruturas físicas tão microscópicas e unicelulares, que por muito tempo desconsideramos ou consideramos como ficção, estavam a ser formadas¹. Moléculas orgânicas simples, provavelmente sintetizadas na atmosfera de um planeta Terra primitivo, caindo posteriormente em forma de chuva nos oceanos, passaram a moldar, tal como tijolos, aquilo o que hoje chamamos vida.

Épocas e eras glaciais foram deixadas para trás num constante processo de transmutação, onde, a cada milésimo de segundo, mais e mais tijolos de vida iam sendo replicados, tornando organismos simples e unicelulares em organismos cada vez mais complexos e multicelulares, executando funções metabólicas próprias e definidoras de um constante progresso pela complexidade. Muros e mais muros feitos de tijolos orgânicos foram construídos, fazendo emergir, então, os alicerces, bases e fundamentos da vida.

E nessa longa odisseia na qual a vida tenta superar a morte, buscando maneiras cada vez mais rebuscadas de adaptar-se às condições de um meio hostil para sua sobrevivência, eis que uma nova classe de seres vivos surge: os seres humanos.

Chegando há pouco menos de dois minutos de um total de vinte e quatro horas de história da vida na Terra², os seres humanos conseguiram feitos extraordinários. Superando seus ancestrais não-humanos, classificados num reino chamado animal, e mesmo superando-se entre si, entre aqueles com alto grau de parentesco genético, foram capazes de contribuir em prol de si mesmos em expansão territorial, num constante progresso de adaptação, onde mais primitivamente adaptava-se ao meio de sua subsistência para, posteriormente, adaptar tal meio ao seu bel-prazer. Em pouco menos de dois minutos, a busca pela sobrevivência e, consequentemente, superação da morte, foi completamente aprimorada.

A cultura como sim à vida

Parte considerável da concretização de um ser humano aprimorado, resistente às adversidades e guardião de uma herança genética que visa sua disseminação, está presente na construção complexa de um núcleo de valores, práticas e comportamentos fortalecido socialmente: a cultura.

Cultura é tudo aquilo que compõe um quadro geral de um conjunto complexo de conhecimentos, artes, crenças, símbolos, leis, moralidade, costumes, hábitos e aptidões adquiridas pelos seres humanos. Cultura é, em suma, uma forma socialmente estabelecida de manter e fazer valer toda a tradição anteriormente construída por antepassados que, receosos da própria morte, lutaram para consolidar e prolongar a própria vida.

No documentário “As Estátuas Também Morrem”³, dirigido pelos franceses Chris Marker, escritor e fotógrafo, e Alain Resnais, diretor de cinema, temos contundentes demonstrações de um passado recente no qual a afirmação da vida era a própria cultura. Com o roteiro sagaz de Marker e fotografia do cineasta Ghislain Cloquet, bastante decisiva para a apresentação da obra, temos a fusão de uma narrativa poética com uma perspectiva audiovisual bastante intrigante, em que a cada momento de concentração somos levados a uma apreciação profunda de uma experiência passada e, agora, morta.

Temos na referida obra a exposição de um paradoxo: a cultura não é apenas a afirmação da vida. Ela é a própria morte. Isto porque a cultura, enquanto um conjunto de fatores complexos, não é digna de práticas e costumes específicos; é, antes de tudo, a possibilidade de ascensão da pluralidade. Pluralidade esta que pode fazer surgir a afirmação de um determinado tipo de vida enquanto negação de outro tipo, considerado pelo primeiro como não pertencente ao que deva ser considerado ideal, cabendo repúdio.

É o que vemos ocorrer quando o choque cultural toma conta: diferentes realidades de diferentes continentes entram em conflito, onde tese e antítese criam uma síntese do mais forte. A cultura negra já não mais é fértil para a sobrevivência mesma do povo negro; sua fertilidade se dá no suicídio, quando para dizer sim à vida precisa-se permitir a morte de suas origens, de sua tradição.

A tradição africana, demonstrada como fortemente artística, jaz perante uma nova tradição que agora se apresenta, com sua forma outra de ver o mundo, com seu olhar explicativo onde a vida é feita de tijolos microscópicos divisíveis e calculáveis, onde o progresso soa linear, mensurável e auto-evidente; onde a morte é um erro de percurso, uma doença a ser superada.

“Quando os homens morrem, eles entram na história. Quando as estátuas morrem, elas entram na arte.”

A cultura que se faz arte é a cultura que mais tarde é lembrada em museus. A sua vida consiste em ser uma prolongação de sua memória, e uma lembrança de sua morte. Não há valor intrínseco ou independente, que lhe dê autonomia para ser a si mesma. Seu valor depende agora de um choque cultural, da observação daqueles que não a viveram, que não a expressaram, que realmente não a entendem. Suas definições são aquelas de uma nova sociedade, que aplica novos termos para sua sustentação e justificação. O olhar daquele povo que viu nela sentido não basta, seja porque tal povo já morreu ou porque seus costumes já foram renovados, de forma a caberem nas tendências que agora se apresentam e vigoram.

“Um objeto está morto quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu.” e a forma de ressuscitá-lo, afirmando sua eternidade, é pô-lo num museu.

Todos os rituais, todas as crenças e todas as convicções sobre a realidade e sobre como fazer valer cada pingo de gene herdado de uma tradição, confluem agora para uma ressignificação de seus conceitos, uma reformulação de seu sentido originário que é sua própria morte.

Mas a morte não pode ser encarada como um todo ruim, malévolo. Sua superação é almejada, todavia a adequação à realidade mortífera é um consolo, uma espécie de aceitação. Saber que se vai morrer é saber que sua cultura e sua linguagem e programação social morrerão — uma visão facilmente tida como fato, independente de cultura. Mas, se a morte é inevitável, por mais sins que possamos dizer à vida, suas formas de sepultamento são um verdadeiro reflexo de cada cultura.

“Nós colocamos pedras sobre nossos mortos para impedi-los de sair. O negro os conserva perto de si para honrá-los e se beneficiar de seu poder, num cesto cheio com suas ossadas. São os mortos que possuem todo saber e toda segurança. Eles são as raízes dos vivos.”

A forma como tratamos nossos mortos, e mesmo esta consequência natural da vida, é típica de uma idade da razão: já não mais crianças, sem espaço para a ludicidade do desapego à sobrevivência e não mais indiferentes aos riscos típicos de se estar respirando, faz-se necessário construir formas de lidar com o assombro, o pânico de encarar a própria mortalidade. Tais formas, naturalmente, convergem para constantes tentativas de conforto dos que aqui ficaram, criando e mantendo rituais que visam explicar os porquês de as coisas serem como são, e os motivos pelos quais somos tão impotentes ao lidar com a realidade.

Ocorre que despedidas e sepultamentos não são para os mortos. São, antes de tudo, para os vivos. Nossos hábitos ritualísticos são culturais, e por isso mesmo são pela afirmação da vida enquanto um norte possível, belo e querido. Estes rituais não são esporádicos, porém. Eles são constantes e, de tão culturais, são impregnados de forma que possamos tê-los com naturalidade.

A cultura negra retratada em “As Estátuas Também Morrem” se utiliza de uma ampla variedade de símbolos e ídolos anônimos, inespecíficos, que retratam como espelho sua própria identidade. Identidade esta que ultrapassa nossas concepções ocidentais de realidade, sendo muito estranha e divergente de qualquer coisa que, com nossos padrões, poderíamos imaginar para apreender. Não se vê em uma estátua negra o trágico, o cômico ou o tragicômico típicos de uma civilização fundada em bases greco-romanas. Vê-se ali uma outra abordagem da realidade, que já não fala a nós da forma que gostaríamos ou que possamos entender. É uma identidade que nos desafia enquanto seres de outra cultura, e que nos faz dissertar teses em busca de uma aproximação fidedigna à sua realidade — mesmo que tal realidade seja tão simples, mas tão simples, que todas as nossas pretensões acadêmicas não passem de tentativas frustradas baseadas numa perspectiva de compreensão da realidade infundada para aqueles que queremos conhecer.

“Nós queremos ver ali sofrimento, serenidade, humor, quando não sabemos nada a respeito. Colonizadores do mundo, queremos que tudo nos fale: os animais, os mortos, as estátuas. E essas estátuas são mudas. Elas têm boca e não nos falam. Elas têm olhos e não nos vêem. E não são tanto ídolos quanto brinquedos, brinquedos sérios, mas que não valem a não ser pelo que representam. Há neles menos idolatria do que em nossas estátuas de santos. Ninguém adora esses bonecos severos. A estátua negra não é o deus, ela é a prece.”

A pretensão de apreender a morte e de domar a compreensão última das culturas mortas é o que nos leva à ousadia do além-vida: a busca por uma eternidade que justifique e dê sustento às principais e mais filosóficas questões deste humano, que há quase dois segundos de existência na Terra busca compreender a si mesmo. Ele quer, acima de tudo, ter o máximo de controle sobre si e sobre sua realidade.

Encarando a morte com o além-vida A morte de uma cultura, de um povo, de seus símbolos e mesmo de sua memória não é suficiente para anular seu legado, ideias e aspirações, porém. Fazer ecoar a existência desde uma tribo a uma nação não depende tão somente destas; depende também do engajamento natural a todo humano e a toda cultura de afirmação à vida. Paul Koudounaris, um autor e historiador da arte, em seu livro ​Heavenly Bodies: Cult Treasures and Spectacular Saints from the Catacombs, mostra u​ma intrigante história de veneração visual, em igrejas européias e mosteiros, de esqueletos adornados por joias coloridas e vestimentas nobres. O esplendor elucidado​4​, que desconforta pelo aspecto macabro e instiga pela tragicidade, é envolvido por um ar de mistério: não se sabe quem foram tais esqueletos, mas a sua coroação no além-vida lhes dá um aspecto sacrossanto.

Os esqueletos eram tidos como os "Santos da Catacumba," que foram reverenciados entre os séculos XVI e XVII por religiosos católicos da época, que tomavam tais esqueletos como

personificações da glória da vida após a morte. Quem eram antes de morrer, é impossível saber.

"Isso foi parte do apelo deste projeto para mim", diz Koudounaris. "O enigma estranho de que estes esqueletos poderiam ter sido qualquer um, mas foram tirados da terra e colocados nas alturas da glória."

O culto à personalidade santa se impõe como necessidade, na medida em que a explicação para o fenômeno de nosso fim jaz inexplicado. Não tem importância, afinal, que a identidade daquele que tomamos como ídolo seja uma farsa; o sentido que possamos dar à nossa vida, numa tentativa em prol de nosso conforto, depende do sentido que atribuímos às imagens que cultuamos. São elas nossas referências porque são as nossas referências, como as queremos, que são atribuídas a elas.

Assim o passo seguinte nesta aculturação do ser humano, de forma a prolongar seu bem-estar em vida e reconfortar, tornando mais leve, sua busca à superação da morte, é a aplicação de máscaras sobre a realidade. O usufruto de filtros e rótulos santificados, apoiados no sobrenatural, auxiliam na apreensão da realidade que se apresenta, e tornam o ser humano cada vez mais capaz de resistir às intempéries da sua realidade e de sua condição.

“Essas máscaras lutam contra a morte. Elas desvelam o que a morte quer esconder. Pois a familiaridade dos mortos leva a domesticar a morte, a governá-la por meio de feitiços, a transmiti-la, a encantá-la pela magia das conchas. E o feiticeiro captura em seu espelho as imagens desse país da morte, onde se vai perdendo a memória.”

O próprio Vaticano não recusou o desejo de manter as ficções úteis como verdades santas. No processo de determinar qual dos milhares de esqueletos pertencia a um mártir, a mera existência de um "M." gravado ao lado de um cadáver levava tal instituição religiosa a definir tal cadáver como "mártir", ignorando o fato de que a inicial também poderia significar "Marcus", um dos nomes mais populares na Roma antiga. Se qualquer frasco de sedimentos desidratado estivesse disposto com a ossada do cadáver, não economizariam em assumir que deveria ser o sangue mesmo de um mártir, mesmo que a possibilidade de ser perfume fosse

maior, dado que romanos comumente os deixavam para os mortos da mesma forma que deixamos flores para os nossos, hoje em dia.

A igreja também acreditava que os ossos dos mártires reluziam um brilho dourado e um cheiro levemente doce, dispondo equipes de médiuns que fariam viagens através de túneis corpóreos, deslizando em transe e apontando para os esqueletos nos quais percebessem uma aura reveladora. Depois de identificar um esqueleto como sagrado, o Vaticano decidia então quem era quem e emitia um título de mártir.

A necessidade de imputar a simples esqueletos a titulação de mártires decorria da necessidade de fazer valer a noção de que haveria algum esplendor que aguardava os fiéis na vida após a morte. A valorização deste tipo de conceito, que buscava amenizar o encontro com a finitude da vida, dependia de um amplo investimento em mão de obra, em que antes da aparição destes esqueletos mártires em congregações religiosas, trabalhava-se minuciosamente no equipamento de ornamentos condizentes com o status santificado atribuído aos novos heróis de outras épocas. Freiras qualificadas, ou ocasionalmente monges, preparavam o esqueleto para aparição pública. Poderia levar até três anos, dependendo do tamanho da equipe no trabalho.

Mas até para a santificação e eternização do esplendor da vida sobre a morte era necessário algum conhecimento técnico, não-religioso. Frequentemente, faltava às freiras que trabalhavam com as ossadas tornadas santas um treinamento formal em anatomia. Isso porque, era normal, Koudounaris encontrava ossos conectados incorretamente, sendo comum notar que a mão ou pé de um esqueleto estava grosseiramente mal colocado. Rostos repletos de cera também eram comuns, com sorrisos escancarados manualmente moldados e exibindo olhares compenetrantes.

"Isso foi feito, ironicamente, para fazê-los parecer menos assustadores e mais alegres e atraentes," diz Koudounaris. "Mas hoje o efeito é bem o oposto. Agora, aqueles com os rostos vistos de longe parecem ser os mais assustadores de todos."

Percebe-se aqui que lidar com a morte não é uma necessidade que basta em um aspecto tão somente existencial. Tentando afastar este mal que consideramos horrendo, amenizamos nossa própria percepção da crueza desta realidade, impondo à força a percepção de que há algo de positivo na vida desfeita; adornamos não apenas com joias e trajes nobres, precisamos ir além na tentativa de nos fazermos reconhecer naqueles que já se foram, e lhes imputamos sorrisos e lhes ressaltamos uma beleza artificial — tal como fazemos em vida, em sociedade e nas relações cotidianas com os outros de nós.

A criação de ficções úteis é a saída mais atraente quando, já na idade da razão, somos tomados por uma grande confusão da racionalidade — somos desde o começo condicionados a tentar apreender a realidade para podermos sobreviver, seja pela arte ou pela técnica, e quando toda tentativa por vias racionais é frustrada, as origens e as explicações últimas do que a nós se apresenta como fato irremediável está sujeita à artificialidade, cabendo interpretações convenientes, tidas como verdade.

"Da minha perspectiva como alguém que estuda história da arte, a questão de quem foram na vida real os Santos da Catacumba é secundária em relação ao fato de eles terem sido criados," ele continua. "Isso é uma coisa que eu quero celebrar."

A influência do sobrenatural nas vidas pacatas dos cristãos da época dependia de uma forte associação com a materialidade da realidade. Não era o caso de só acreditar vendo, como gostaria São Tomé, mas de fazer pontes entre a realidade dada e a realidade pretendida.

Quando um esqueleto Santo foi finalmente introduzido na igreja, isto marcou um tempo de regozijo na comunidade religiosa. Os corpos decorados serviram como patronos da cidade e "tenderam a ser extremamente populares porque eles eram esta ponte muito tangível e muito atraente para o sobrenatural", conforme explica Koudounaris. As comunidades eram levadas a acreditar que seu esqueleto patrono as protegia do mal, inclusive sendo creditado por qualquer aparente milagre ou evento positivo que ocorresse depois de sua instalação e adoção. Com o mundo sendo cada vez mais modernizado, no entanto, os ​corpos celestiais começaram a perder a importância para aqueles que estavam no poder. Citando Voltaire, Koudounaris

escreve que os cadáveres foram vistos como reflexo de "nossas idades da barbárie," apelando apenas para "o vulgar: senhores feudais e seus vassalos brutos e suas esposas imbecis."

Mas os aspectos culturais envolvidos em cada indivíduo não são exatamente um consolo; a possibilidade de que a criação herdada pela tradição aprisione estes seres humanos culturais e religiosos está dada, e qualquer sinal de que a lente pela qual se enxerga o mundo esteja perdendo espaço é desolador.

Com o desgosto da nobreza sobre a tradição, as pessoas da comunidade local muitas vezes choravam e seguiam seus esqueletos patronos quando eram tirados de sua posição de reverência, e desmembrados pelos nobres. "A coisa mais triste é que sua fé não tinha desvanecido quando isso estava acontecendo", diz Koudounaris. "As pessoas ainda acreditavam nestes esqueletos."

Aqui é fácil lembrar de Ludwig Feuerbach, filósofo alemão que entendia que é o homem que cria Deus, não o contrário — neste caso, o homem cria mártires —, e que todo tipo de religião é uma forma de alienação na qual as pessoas projetam seu conceito de “ideal humano” em um ser superior, criando a falsa dependência de um espelho, afinal a consciência que se tem destes ídolos é a consciência mesma que se tem de si mesmo. Neste sentido, haveria um engano quanto à crença nos esqueletos, um engano originado na tradição, fazendo da cultura não mais uma afirmação da vida conforme ela se apresenta, para se tornar uma conveniência reconfortante, que numa perspectiva inversa ao dizer sim à vida traz o dizer não à morte.

A negação da morte No livro ​A Negação da Morte, o antropólogo cultural Ernest Becker demonstra que a força por trás de quase todas as neuroses humanas, assim como a força que molda os principais aspectos de qualquer cultura, religião e civilização é uma só: a tentativa humana de negar a realidade da morte.

Podemos ver a nossa própria história biológica para atestar este fato: como animais que evoluíram graças a mecanismos naturais como polegar opositor e neocórtex altamente desenvolvido, fomos capazes de disputar terreno com outros animais que, embora com diferentes formas de se defenderem para prosperar, colocaram à mesa diferentes vantagens competitivas. Mas nossa superioridade se deu principalmente por nossa capacidade de reconhecer padrões, o que nos permitiu a criação de hábitos, costumes, rituais e culturas complexas pela sobrevivência coletiva de nossa espécie, em iniciativas variadas e distintas ao redor do mundo.

O reconhecimento de padrões, embora uma tremenda vantagem competitiva, não é exatamente um conforto. Ele permite, na verdade, que reconheçamos desde os aspectos mais naturais e bem-vindos da realidade aos aspectos mais cruéis e indesejados — e a morte é um destes casos.

Tomadas por um reconhecimento unânime da infalibilidade da morte, as diferentes culturas aplicaram diferentes formas de lidar com o fato. Religiões variadas foram fundadas para lidar com o problema, de forma a amenizar a força do baque existencial que é ter de confrontar-se com a fatal possibilidade de que, de uma hora para outra, tudo o que existe para você pode simplesmente ruir, desaparecer.

Duas formas comuns para lidar com o problema são comumente aplicadas nos mais variados contextos, quais sejam: 1) a crença no além-vida e 2) a indiferença e a auto-sabotagem.

A morte é inevitável, portanto vamos esquecê-la Atribuída ao escritor francês Honoré de Balzac​5​, a frase acima ilustra um conselho descuidado a despeito daquilo mesmo que fundamenta a perpetuação da cultura, como já posta, que é a afirmação nietzscheana pela vida​6​, sem a desconsideração da morte. Isto porque dar a morte como inevitável, se acomodando a este fato sem sequer tentar ao menos podá-lo, é acomodar-se por meio da criação de ficções úteis e de ilusões que fazem do ser humano um

refém de si mesmo, quando deveria, ao menos conforme o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, ir além, buscar o seu status como além-homem.

Aqui trata-se de uma auto-referida desonestidade, em que para aliviar o fardo da realidade da morte se recorre ou a uma força transcendente, como a fé numa religião ou o compromisso com uma ideologia, ou a uma acomodação auto-dirigida, amortizando a relevância do fato sobre a própria condição. O importante, neste caso, é aplicar o entendimento de que tudo o que for necessário para esquecer de que iremos morrer é válido.

Com a modernização das instituições, com a emergência do liberalismo e a ampla disposição das liberdades individuais, como as de credo e de expressão, a validade da religião enquanto instituição da verdade passou a ser relativizada, fazendo do pensamento dogmático um alvo fácil para a mira cética. Embora progressistas possam comemorar este fato, conservadores argumentarão que isto estimulou uma crise de moralidade, onde não apenas a cultura enquanto identidade do indivíduo passou a ser relativizada, como principalmente o indivíduo passou a se ver desconexo do mundo e de sua realidade, caindo em crises de propósitos e se indagando ainda mais pelo sentido de sua vida, não mais atribuído como algo dado, mas como algo líquido, como argumentaria o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, escoando para a completa suspensão de valores num mundo pós-moderno.

O conflito que se instaura para que aquela cultura primordial, que antes fazia da realidade uma grande prece, torne-se uma cultura nova, da indiferença para com sua própria condição, é o conflito entre as aspirações espirituais de nossa mente e a organicidade fática de nossos corpos.

Trata-se de um dilema fundamental que, para o filósofo ​Kierkegaard​, divide todo ser humano em dois: a mesma consciência capaz de conceber a eternidade é aquela capaz de projetar no futuro a sua morte. Temos uma mente capaz de sonhar com deuses e anjos, mas que depende do corpo de um animal para viver.

As preocupações espirituais e metafísicas que se insurgem sobre um corpo físico consciente de si o faz transcender o mero engano auto-dirigido. Para lidar com a concepção de uma realidade não mais dogmática, porém mais maleável quanto às possibilidades de interpretação do mundo, uma nova cultura de hábitos, costumes e responsabilidades deve ser imposta. O trabalho

assalariado,

o

entretenimento

cotidiano, os hobbies

desnecessários, os

relacionamentos desgastantes — tudo isso seriam defesas psíquicas para não pensarmos detidamente naquilo que nos aguarda no futuro.

Não podemos deixar que o tempo livre, de ócio criativo e despretensioso, se instaure nesta nova cultura. Afinal, não temos a certeza de um amanhã além-vida, o que nos faz duvidar do que virá, causando instabilidade existencial: se essas distrações que consomem nossa atenção acabarem, não teremos mais nada a pensar senão o óbvio — a finitude de nossas vidas.

A superação da morte Mas não nos enganemos: a maior pretensão humana está sempre presente a cada passo de sua vida, seja numa perspectiva dogmática ou cética. Todos queremos experimentar a nossa versão do além-homem nietzscheano, mas há aqueles que se engajam numa afirmação da vida mais enfática, onde a morte possa, finalmente, não ter vez.

Carl Sagan, o mais famoso divulgador científico, falou sabiamente da condição humana numa perspectiva cosmológica, em uma conferência de 1996 sobre a foto de uma Terra distante feita pela sonda Voyager 1, chamada “Pálido Ponto Azul”​7​. Em seu texto, deixa claro o quão relevante o apego a coisas tão pequenas é para os humanos, numa perspectiva astronômica. Reinos, deuses e verdades absolutas criados em prol de um conforto quanto à própria condição, mal treinada para lidar com sua própria finitude.

Mas Sagan não superou a necessidade humana de explicações sobre si. Pelo contrário, o que o movia era justamente desvendar as razões do universo, tal como uma criança que senta e, sabiamente, observa os céus, aprendendo com os mais velhos, com as estrelas.

As aspirações por respostas nunca cessaram, fazendo com que a ciência simplesmente tomasse o lugar da religião enquanto uma perspectiva válida de explicação da realidade. Mas não significa agora que as crenças deixaram de habitar o terreno humano, pelo contrário. As iniciativas em inovação, que buscam trazer respostas e dar resultados às diferentes e atuais aspirações humanas, não dependem mais do terreno sobrenatural — é pelo controle da natureza que a crença de um mundo melhor, e além-do-humano, é agora mantida.

No Vale do Silício, na Flórida/EUA, região na qual há um acúmulo de empresas dedicadas à geração de amplas inovações científicas e tecnológicas para a humanidade, as tentativas mais ousadas giram em torno da criação de inteligências artificiais​8 conscientes e equiparáveis à consciência humana, à superação do envelhecimento e prolongamento da vida​9 e, como grande aposta, a superação da morte​10​.

A busca pela longevidade, criando drogas que combatam a idade, é apenas um passo inicial para a concretização científica de pretensões antigas da humanidade, que possibilitassem uma explicação totalizante sobre a vida, de forma a poder controlá-la e evitar sua derrocada.

Casos como o do inventor e futurista Raymond Kurzweil são grandes exemplos das aspirações de um mundo compatível com as pretensões espirituais de eternidade: com uma filosofia que visa transformar a condição humana do desenvolvimento e criação de tecnologias amplamente disponíveis para aumentar consideravelmente as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas humanas, o transumanismo quer buscar a singularidade​11​: o desenvolvimento ultra-rápido da inteligência sobre-humana.

A tese mais comum é que os seres humanos podem, eventualmente, ser capazes de se transformarem em diferentes seres com habilidades tão grandemente expandidas a partir da condição natural de modo a merecerem o rótulo de pós-humanos. E será nesta condição de pós-humano que a capacidade de superar a doença que sempre ceifou a humanidade de seu além-homem nietzscheano será concretizada, onde o apego às formas místicas de entender o mundo e o culto à morte não terão espaço para a principal meta humana, que é a superação de sua morte.

* Alysson Augusto é estudante de filosofia pela PUCRS. 1​

- ​Como a Vida se Originou. Em: .

Acesso em: 16 novembro 2016.

2​

- ​History of Earth in 24-hour clock. Em:

. Acesso em: 16 novembro 2016.

3​

- ​As Estátuas Também Morrem (1953) Chris Marker, Alain Resnais, Ghislain Cloquet (PT-BR)

Em: . Acesso em: 17 novembro 2016. 4​

- NUWER, Rachel. ​Meet the Fantastically Bejeweled Skeletons of Catholicism’s Forgotten Martyrs.

Em: . Acesso em: 17 novembro 2016. 5​

- LISBOA, Victor. ​Morte, o segredo desta vida. Em:

. Acesso em: 17 novembro 2016.) 6​

- SIQUEIRA, Vinícius. ​Nietzsche e a afirmação da vida. Em:

. Acesso em: 16 novembro 2016.) 7​

- ​O pálido ponto azul. Em: . Acesso em: 16 novembro

2016. 8​

- URBAN, Tim. ​A Revolução da Inteligência Artificial - Parte I. Em: .

Acesso em: 16 novembro 2016. 9​

- ​Vale do Silício Declara Guerra ao Envelhecimento. Em: .

Acesso em: 16 novembro 2016. 10​

- URBAN, Tim. ​A Revolução da Inteligência Artificial - Parte III. Em: .

Acesso em: 17 novembro 2016. 11​

- ​Transcendent Man. Em: . Acesso em: 17 novembro 2016.

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