O fotógrafo Alois Feichtenberger na construção de Goiânia (1936): imagens alegóricas da modernidade

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O fotógrafo Alois Feichtenberger na construção de Goiânia (1936): imagens
alegóricas da modernidade[1].

Guilherme Talarico

RESUMO

Este texto propõe um olhar benjaminiano sobre as primeiras imagens feitas
em Goiânia, especificamente sobre alguns registros do fotógrafo estrangeiro
Alois Feichtenberger, em 1936, que se tornaram representação de um processo
de ruptura entre passado e futuro para Goiás, não apenas pela contraposição
de elementos dicotômicos, mas pelo uso destas imagens ao longo dos anos.



Antes de chegarmos às percepções que as imagens feitas pelo fotógrafo
Alois Feichtenberger nos trazem a respeito da modernidade que se buscou
implementar com a construção de Goiânia, em meados da década de 1930,
convém traçar um resumo de sua formação e por que meios esse jovem
imigrante austríaco desembarcou no cenário de canteiro de obras, em pleno
cerrado.
Oriundo de uma família de imigrantes austríacos, Alois Feichtenberger
chegou ao Brasil em novembro de 1925, então com dezoito anos, e não
diferente da grande maioria dos imigrantes europeus pós primeira guerra,
estava em busca de melhores condições de trabalho e sobrevivência. Mas foi
em meio à desilusão com o futuro que lhe surgiram as novas possibilidades
de aventuras e outras experiências pelas terras brasileiras, que AF se
envolve com a fotografia. Após os primeiros anos de trabalho na capital
paulista, conhece o senhor Walter Baummel, um explorador alemão, que atuava
como 'exportador' de espécies nativas da fauna e flora, além de fotos, para
institutos de pesquisas, cientistas e universidades no velho continente. AF
é convidado para ser auxiliar em uma excursão pelo pantanal matogrossense:
"Que outra pessoa senão eu mesmo para este trabalho" – anotou em seu
diário, levando em conta ainda a crise do café e o desemprego que assolava
São Paulo, em 1929, afinal "cavalgar, caçar e fotografar, as coisas que
mais queria fazer". Talvez pela falta de um vínculo empregatício, se
manteve afastado das movimentações de trabalhadores na capital paulista, ou
então alguma má lembrança dos dias difíceis em sua cidade natal, o polo
industrial de Steyr. Mas o caso é que AF, avesso às revoluções, buscou um
percurso pelas regiões onde as fronteiras estavam sendo abertas e as
oportunidades afloravam, nem tanto para um fotógrafo, mas sim para um jovem
aventureiro.
Com Baummel, Alois aprendeu não só a fotografar, mas também as
potencialidades do ofício. Como negociar uma boa imagem para um jornal,
buscar as imagens que interessavam à mídia europeia, estreitou contatos com
jornais e revistas estrangeiros. Também estreitou laços com imigrantes
germânicos no Paraná, gente com quem conviveu entre 1929 e 1933, e pode
retratar suas dificuldades e conquistas. Sempre retornava a São Paulo para
renovar seus equipamentos e estoque de material fotográfico.
Partiu para os garimpos de diamante do Triângulo Mineiro, onde tomou
conhecimento da frente de trabalho para a nova capital de Goiás. Alois já
havia acumulado, portanto, alguma experiência como fotógrafo quando veio
parar em Goiânia, em meados de 1936. Foi prontamente contratado como
fotógrafo do Departamento de Propaganda e Expansão do Estado, órgão sob a
direção de Joaquim Câmara Filho, político, fundador e diretor do maior
jornal em circulação no Estado de Goiás, até hoje.
Este foi, efetivamente, seu primeiro contrato formal de trabalho como
fotógrafo. Sua função era registrar as obras de implantação da nova capital
e a chegada do desenvolvimento para todo o Estado. Fazer panorâmicas gerais
do surgimento de uma nova cidade e o impacto que isso trazia tanto no
imaginário quanto na mentalidade do povo goiano. Seu primeiro escritório
foi um cômodo do Palácio das Esmeraldas, em construção, que servia de dark
room, depósito e dormitório. Depois alugou um estúdio com outro fotógrafo
no bairro de Campinas, mas por pouco tempo.
O que proponho é um olhar diferenciado sobre algumas imagens feitas
por Alois Feichtenberger da Goiânia de 1937, por meio de conceitos e
proposições elaboradas, por exemplo, ao que Michel Foucault[2] chamaria de
uma "heterotopia temporal" onde elementos de tempos diferentes e não
homogênios se encontram associados com algum propósito. Ou, com outra
abordagem, pensar se houve a intenção de se criar uma "fotografia unária",
tipo idealizado por Roland Barthes[3], que pela unidade dos elementos
enquadrados transmite uma ideia elementar. Mas, sobretudo, é nas
proposições de Walter Benjamin que analisamos com mais liberdade a
"fantasmagoria de tempo" e de "modernidade" que as imagens transmitem.
Por meio de Benjamin, e pela decomposição das imagens selecionadas, se
pondera o "choque" que se instala no imaginário do povo goiano com a
chegada do avanço do "progresso" e da "modernidade" no interior do país.
Vamos buscar a autenticidade da fotografia eternizada por Alois. O carro de
bois, os carreiros (como tipos humanos), o edifício moderno e o espaço
vazio são os pontos que proponho minimamente investigar.


Foto 1: Carro-de-bois na Praça Cívica. 1937. Acervo MIS"GO.


A presença do carro de bois causa um choque disposto à frente do
Palácio das Esmeraldas em construção? Avaliando-se o contexto histórico em
que o meio de transporte animal de carga era absolutamente corriqueiro à
época (o próprio Acervo de Alois possui uma série de vários carros de bois
que circulavam por Goiânia) e, ainda hoje, é facilmente encontrado no
interior de Goiás, a resposta à pergunta seria negativa. Mas então, porque
tanta produção para se realizar a foto? Porque não apenas registrar o
transporte de materiais de construção, com o carro carregado e os carreiros
e animais em movimento? Um carro de bois é, usualmente, composto por 4 ou 5
juntas, dependendo da carga. Um segundo cabeçalho foi alinhado à frente do
primeiro, o que se comprova também pela presença dos dois carreiros. Por
que razão? Seja para se ter uma ideia de grandiosidade dos trabalhos, para
uma melhor perspectiva do prédio, ou ainda, por alguma outra razão
estética, o que importa é avaliar de que maneira esta escolha reflete numa
melhor representação do progresso e modernidade.
Parece pertinente avaliar que se buscava uma "foto unária" para a
ideia de "modernidade possível" (termo que empresto de Alexandre Ribeiro
Gonçalves), em que o carro de bois é elemento de acomodação a uma
modernidade que não rompe com a tradição. Porque não estão presentes na
imagem os trabalhadores, os mestres de obras, nem mesmo os engenheiros? A
cena está limpa como os reclames das modernas revistas. O produto "Goiânia"
é apresentado para os seus referentes.
A escolha da sede de governo para a principal imagem de divulgação da
nova capital também é relevante para a análise. Talvez as casas tipo que
surgiam no entorno da Praça Cívica, não fossem referencias à altura da
eloquência que se tinha em mente, ou que se pretendia criar na mente dos
referentes. Nem o Grande Hotel, nem tão pouco o traçado urbanístico, ainda
este mais divulgado que as próprias casas particulares (mais em estilo
eclético, do que propriamente art déco). As casas tipo tinham custo
subsidiado e financiadas pelo Estado e destinadas ao funcionalismo público
de alto escalão, eram levantadas a partir de uma paleta de opções já
previamente estabelecidas pela Construtora Coimbra Bueno Ltda, pela
metragem do lote, quantidade de cômodos, quartos, fachada, etc. Foram
poucos os imóveis na região do centro da cidade que escaparam dessa
padronização. Como são ainda mais raras as que resistiram à "modernização"
do centro da cidade.



Foto 2: Primeira Assembleia Legislativa, Av. Tocantins, com Grande Hotel ao
fundo. 1937. Acervo Alois Feichtenberger. MIS-GO.


A imagem dos novos edifícios brotando no descampado (Foto 2),
preenchendo aos poucos o espaço urbano, é outra marcante alegoria do
progresso "vendida" em Goiânia. Tão rapidamente e num processo tão
organizado devido ao traçado urbano planejado que o que chama mais a
atenção são os espaços vazios, eles nos remetem a um tipo de ausência.
Faltam as pessoas nas primeiras cenas urbanas de Goiânia. Um dos
formuladores da teoria estruturalista, Claude Levi-Strauss[4], de passagem
pela cidade neste período, deixou registrado em seu Tristes Trópicos que
não viu os prédios, viu apenas estacas brotando do chão.
A cidade de meados dos anos 1930 era dos funcionários públicos. Então
é bem provável que a rua estivesse deserta numa tarde ensolarada qualquer
de um dia útil. As poucas casas de comércio estavam concentradas no acesso
à Campinas, carroças de entregadores sulcavam as ruas que ainda eram apenas
tracejadas no núcleo central da cidade.
Os tipos humanos vão aparecer apenas em cenas posteriores a esse
período, representados pelos veículos, sobrepostos a uns poucos transeuntes
quase perdidos na fantasmagoria da urbanidade. O "indivíduo" não condiz com
a imagem que se pretende da nova cidade: higienizada, ordeira, quase
estática. Os poucos trabalhadores que aparecem são como elementos do
cenário, não deixam rastros, não há testemunhas do tempo. "A cidade foi
esvaziada"[5], assim também se esvazia a noção de tempo. O tempo é
evidenciado pela ruptura com a tradição, fator determinante para a adesão à
ideia de progresso.
Se "tudo era organizado para durar", como lembra Benjamin sobre as
primeiras fotografias, nestas primeiras imagens de Goiânia o que crescia
dentro da imagem não era a cidade em si. Quem aparece retratada para a
posteridade é esta ideia de modernidade. Este é o elemento principal, é "o
contraste mais definitivo do instantâneo"[6]. Alois busca o elemento mais
representativo para vender ao seu contratador, para isso é remunerado. É a
mais bela imagem que se pode apresentar sobre o tema que lhe foi dado a
eternizar. Esta é a memória que nos foi apresentada da cidade. Porém, a
associação entre o novo e o tradicional é um contraste desvantajoso tanto
para o avanço da modernidade, já que o crescimento urbano, o progresso, é
freado pelo tempo das tradições, como também é desvantajoso para a
manutenção dos elementos tradicionais, pois a urgência do desenvolvimento é
associada aos novos elementos da modernidade.
Goiânia é uma cidade sem memória, ou melhor, possui uma memória
oficiosa. Seu conjunto patrimonial urbano são seus edifícios públicos.
Predomina a ideia de modernidade associada ao progresso. A sua "aura" é
fluida como os espaços vazios. As casas tipo, que preenchiam os espaços,
deram lugar aos estacionamentos, drogarias, restaurantes, outlets,
necessidades da população flutuante, funcional, que passa pelo centro da
cidade, mas que não mais flana por entre suas esquinas.






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[1] Texto apresentado para a conclusão do curso Walter Benjamin e o Anjo da
História: a modernidade, a concepção de progresso e a cesura no (do) tempo,
ministrado pela Profª Drª Maria João Cantinho (IADE/Lisboa), entre julho e
agosto de 2013, no Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade
Federal de Goiás, e apresentado originalmente no Colóquio Walter Benjamin e
as imagens da História, em agosto do mesmo ano. Estas reflexões comporão a
tese de doutorado em História, também pela UFG, com título provisório de
"Alois Feichtenberger – fotógrafo: diferentes olhares e temporalidades
sobre Goiás e o interior do Brasil (1928-1986)", sob a orientação da Profª
Drª Fabiana de Souza Fredrigo.

[2] Foucault, M. (2001). Outros espaços. In: Motta, M. B. (Org.). Ditos e
escritos. São Paulo: Forense Universitária. Vol. III.

[3] Barthes, R. (2012). A câmara clara. Nota sobre a fotografia (edição
especial). Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

[4] Levi-Strauss, C. (1996). Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das
Letras.
[5] Benjamin, W. (2012). Pequena história da fotografia. In: Obras
escolhidas Vol. 1. São Paulo: Brasiliense. p. 109.
[6] Op. Cit. p. 102.
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