O fracasso como metodologia: uma breve incursão no prefácio e na introdução da Fenomenologia do Espírito

May 26, 2017 | Autor: Gustavo Capela | Categoria: Philosophy, Hegel, Fracasso, Vladimir Safatle
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"O que Hegel procura é, ao contrário, uma gramática filosófica capaz de reconciliar esta cisão, tão própria ao signo, entre sentido e referência. Para Hegel, é claro que o conhecimento por signos afirma mais do que admite. No fundo, o signo esconde uma perspectiva externalista na compreensão da relação entre linguagem e referência. Pois é a partir de uma perspectiva externalista fundada na noção de verdade como adequação que posso afirmar que o signo será sempre arbitrário se comparado à intuição sensível. Precisamos aqui de uma gramática que anule a necessidade de um vocabulário do arbitrário sem que isto signifique entrar nas vias de uma linguagem fundada no caráter motivado e expressivo do símbolo." SAFATLE, Vladmir. "Linguagem e negação: sobre as relações entre pragmática e ontologia em Hegel". Dois Pontos. São Carlos: vol. 3, n 1, abril, 2006.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses - 9a Edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, par 27.
HEGEL, G.W.F. Op, cit. par 36-37.
HEGEL, G.W.F. Op, cit. par 30.
HEGEL, G.W.F. Op, cit. par 36.
HEGEL, G.W.F. Op, cit. par. 73
HEGEL, G.W.F. Op, cit. par 78.
HEGEL, G. W. F. Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência do estado em compêndio: primeira parte : o direito abstrato / G. W. F. Hegel; tradução, introdução e notas : Marcos Lutz Müller. Imprenta: Campinas, SP, Unicamp, 2003, p. 17.
HEGEL, Fenomenologia, pars. 106-107
HEGEL, Fenomenologia, par. 79
O fracasso como metodologia: uma breve incursão no prefácio e na introdução da Fenomenologia do Espírito

Aluno: Gustavo Moreira Capela

I. Introdução
O desenvolvimento do pensamento hegeliano nem sempre é fácil. Na verdade, na maioria das vezes é bastante complicado. Ele desenvolve teorias e conceitos de modo que, não raro, paramos em cada palavra para tentar compreender o que está sendo dito. Essa "obscuridade", em muitas ocasiões, é criticada por tudo aquilo que a exposição deixa de ser, mas, em especial, pela falta de clareza. Acontece que, ao que tudo indica, essa falta de clareza absoluta está em total consonância com o que Hegel está tentando explicar. A relação dialética e conturbada entre o concreto e o abstrato, entre o conceito e a essência (ou em-si), entre sujeito e objeto, é uma tarefa necessariamente complexa. Sobretudo quando a tentativa é genuína no sentido de demonstrar a todos, com compromisso científico, o processo que está em desenvolvimento.
A tentativa de Hegel de nos explicar o modo como a consciência "é experimentada" ou a experiência da consciência é obscura, portanto, porque tenta articular a complexidade do pensamento em seu desenvolvimento pleno, sem simplificar ou bloquear o que deve ser escancarado. Na verdade, o paradoxo desta constatação é, em suma, que o texto de Hegel chega a parecer obscuro na tentativa de revelar em absoluto sua tarefa, seu caminho, sua proposta, enquanto a simplificação, por mais que aparente mais clareza, embaraça a produção real de um conhecimento comprometido com a vida vivida por todos nós. Esse nós que é constitutivo e – ao mesmo tempo – que nega os conteúdos em que estamos inserimos quando procuramos conhecer algo.
De certa forma, Hegel acaba por nos remeter a uma perspectiva de "fracasso" no qual a perda e a derrota são a constância precisa e necessária ao caminhar rumo ao absoluto. Tanto os universais, quanto a essência revelam momentos fracassados de interrupção que geram um conhecimento precário e exigente de uma suprassunção. Isto é, Hegel encara a negatividade e o desconforto com tudo que reifica e busca congelar o incontornável movimento da dialética produtiva. O esforço de Hegel é pela crítica e consequente criação de uma gramática filosófica mais adequada, como aponta Vladmir Safatle.
Parece-me que tal perspectiva está em total consonância com a caracterização que Hegel faz da Modernidade. Afinal, as mudanças que 'deram razão a' ou 'advieram de' as revoluções burguesas (política), protestantes (cultural) e as que se impuseram à vida material (produtiva-econômica), implodiram todo um sistema de pensamento que mais se ancorava na reificação e essencialização dos objetos do pensar. A atitude de negar e de encontrar no 'fracasso' o meio universal comum para a realização do absoluto condiz com essa apreensão que Hegel procura fazer da era 'moderna' e suas 'promessas'.
Não é atoa que autores como Habermas, quando narram as transições de um passado pré-moderno a uma modernidade assentada referem-se à uma revolução da consciência, onde a busca por fundamentação angustia e estimula os sujeitos, os poderes e até o místico a se reinventar a luz de novas bases. Bases questionadoras e que perpassam uma noção de razão e racionalidade cética com tudo que preenche esse espaço vazio que outrora se encontrava completamente apaziguado pela inquestionabilidade do "positivo".
Dentro dessa perspectiva está, nitidamente, o desenvolvimento do "sujeito" enquanto princípio ativo e condutor da modernidade. É o advento do "sujeito" enquanto negatividade, enquanto promotor das cisões existentes entre um "em si" e um "para-alguém" que traz problemáticas relevantes a um pensamento reflexivo próprio da modernidade. Entender o desenvolvimento deste "sujeito", pois, é indispensável. O que tentaremos abordar neste pequeno artigo é a maneira como Hegel apresenta seu projeto após termina-lo, ao escrever o prefácio. Hegel tinha um projeto para sua obra que foi se reconfigurando enquanto estava sendo produzida. Ao fim, expôs, como prefácio, o projeto amplo que buscava atingir com esse que seria seu primeiro passo na tentativa de discutir o desenvolvimento da filosofia e da ciência. É claro que muito do que será dito aqui possui limites claros. Nem sempre conseguiremos abordar com a devida profundidade os temas trazidos a tona por ele, mas acreditamos que existem aspectos de especial relevância nesse início da fenomenologia – tanto no prefácio quanto na introdução (que fora escrita uando Hegel ainda acreditava estar escrevendo uma outra obra) para que possamos entender minimamente o projeto geral hegeliano.
Para responder (ou tentar responder) as questões que nos parecem relevantes, faremos um esforço exegético sobre o texto, nos amparando, em especial, nos trechos do prefácio e da introdução, mas também em outros trechos que nos auxiliem no entendimento geral do autor.

II. O saber repensado em Hegel
Para começar a discutir tais temas com algum tipo de profundidade, acredito ser importante pensar a partir do que Hegel elucida no parágrafo 27 da Fenomenologia do Espírito – em seu prefácio. Ele diz:

"O que esta Fenomenologia do Espírito apresenta é o devir da ciência em geral ou do saber. O saber como é inicialmente – ou o espírito imediato - é algo desprovido de espírito a consciência sensível [o primeiro estágio das figuras da consciência]. Para tornar-se saber autêntico, ou para produzir o elemento da ciência, que é para a ciência o seu conceito puro, o saber tem de percorrer um longo e árduo caminho. Esse devir, como será apresentado em seu conteúdo e nas figuras que nele se mostram, não será o que obviamente se espera de uma introdução da consciência não-científica à ciência, e também será algo diverso do estabelecimento dos fundamentos da ciência. Além disso, não terá nada a ver com o entusiasmo que irrompe imediatamente com o saber absoluto – como num tiro de pistola – e descarta os outros pontos de vistas, declarando que não quer saber nada deles."

O ponto de especial relevância neste trecho se encontra nessa relação entre "ser" e "pensar", de modo que é importante pensar o "pensar" hegeliano enquanto um agir-sobre-o-mundo, enquanto um "debruçar" que se imiscui nos objetos de análise para melhor entende-los. Da mesma maneira, o "ser" hegeliano nos lembra, nao por acaso, a hipótese marxista, segundo a qual – conforme Marx aponta n'A Ideologia Alemã – todo agir é, também, um pensar sobre o mundo. Toda pessoa que age, de maneira consciente ou inconsciente, concebe o mundo, o teoriza a luz de sua prática, e se insere nele para altera-lo. A filosofia hegeliana lida com esse processo interminável entre conceber, refletir, analisar, reanalisar e introduzir-se no mundo por meio da ruptura concreta do "agir". O sujeito nega e des-essencializa o "mundo-da-vida" ao se inserir nele. Ou seja, é constitutivo do agir dos sujeitos, daqueles que se inserem num contexto histórico e social enquanto sujeitos, um reflexão destruidora. Um dos projetos da teoria hegeliana é trazer à tona, de modo a conscientizar à coletividade, os passos reflexivos que nos movem. E os possíveis rumos para os quais tais reflexões podem nos levar.
O sujeito representa este "estar-consigo-mesmo" que na verdade é um "estar-com-um-vazio" em razão da ausência de significação substancial capaz de conceder respostas ou trajetórias prontas. E ao perceber essa convivência com o nada, com a ausência de fundamentação, com o desespero da falta, que o sueito se vê impelido a agir. Nada lhe é dado, nada lhe é conferido a priori, devendo fazer e constituir o objeto a luz do que lhe é apresentado enquanto possibilidade. Para entendermos isso bem e resistir à tendência individualista e solipsista de um conhecimento para-si, sobre-si e somente a-partir-de-si, deve-se compreender o caráter compartilhado e social dessas reflexões e da própria desconstituição dos fundamentos. Para Hegel, o conceito conecta, ao mesmo tempo que produz a relação, entre subjetividade e universalidade. Entre o que é para-mim e o que é em-si. De certa forma, Hegel está nos remetendo à ideia do "aqui" enquanto um "já-passado", de modo que toda visão, interpretação e absorção imediata, do momento, presentificada, tem nela embutida vários "aquis" passados, vividos e agora rememorados naquele instante que parece ser individual, desligado da coletividade, mas que é, em verdade, necessita dessa história passada e dessa construção coletiva para que possa ser entendido, apreendido e reproduzido enquanto conceito:

A tarefa de conduzir o indivíduo, deste seu estado inculto até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de considerar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si na sua formação cultural. No que toca à relação entre os dois indivíduos, cada momento do indivíduo universal se mostra conforme o modo como [o espírito do mundo] obtém sua forma concreta e sua figuração própria. O indivíduo particular é o espírito incompleto, uma figura concreta: uma só determinidade predomina em todo seu ser-aí, enquanto outras determinidades ali só ocorrem como traços rasurados. (...) O indivíduo cuja substância é o espírito situado no mais alto, percorre esse passado da mesma maneira como quem se apresta a adquirir uma ciência superior, percorre os conhecimentos preparatórios que há muito tem dentro de si, para fazer seu conteúdo presente; evoca de novo sua rememoração sem no entanto ter aí seu interesse ou demorar-se neles. O singular deve também percorrer os degraus de formação cultural do espírito universal, conforme seu conteúdo; porém, como figuras já depositadas pelo espírito, como plataformas de um caminho já preparado e aplainado. (...) Esse ser-aí passado é propriedade já adquirida do espírito universal (...) Conforme esse ponto de vista, a formação cultural considerada a partir do indivíduo consiste em adquirir o que lhe é apresentado, consumindo em si mesmo sua natureza inorgânica e apropriando-se dela."

Essa rememoração, no sentido Hegeliano, não pode ser entendida de forma passiva, sob pena de entendermos Hegel como se fosse Platão, isto é, como se estivéssemos enxergando nas coisas suas formas absolutas e inatas ao nosso entendimento. Como é característico do pensamento hegeliano, toda e qualquer esfera do conhecer envolve um agir-sobre, uma construção-ativa, uma suprassunção-vivida na experiência realizada. Isto significa que a relação entre o sujeito-individualizado e o espírito nada revela uma tensão construtiva e em constante movimento:
"O que nesse movimento é poupado ao indivíduo é o suprassumir do ser-aí; mas o que ainda falta é a representação e o modo-de-conhecer com as formas. O ser-aí, recuperado na substância, é, através dessa primeira negação, apenas transferido imediatamente ao elemento do Si; assim, tem ainda o mesmo caráter de imediatez não conceitual, ou da indiferença imóvel que o ser-aí mesmo: ou seja, ele apenas passou para a representação."

E aqui talvez esteja um dos aspectos em que a "dificuldade" de se ler e entender Hegel perpassa justamente a dificuldade imbricada em nosso modo de nos manifestarmos sobre a experiência que é o conhecer. Veja que esse parágrafo 30 (acima) pode ser melhor compreendido a luz do que diz o parágrafo 36 da fenomenologia. Hegel tenta nos explicar como essa vivencia da consciência está embasada numa experiência que revela a negatividade enquanto ponto fulcral do nosso saber. Ele diz: "A consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experiência, pois o que está na experiência é só a substância espiritual, e, em verdade, como objeto de seu próprio si."

III. A experiência do fracasso e a negação determinada.
É difícil entender isso sem nos atentarmos precisamente à idéia de "conceito" e ao próprio "conceito" de experiência com o qual Hegel trabalha. Em verdade, ele está se referindo tanto ao momento empírico em que nos debruçamos efetivamente sobre a coisa, o mundo, as práticas, os objetos e à realidade histórica com toda sua carga significativa embutida nos presentes que vivemos e concebemos o conhecimento. Sua proposta é de romper com as cisões que pressupõem uma relação clivada entre objeto e sujeito, mas também entre realidade histórica e o presente. Tanto o aqui, o ser-do-agora, quanto o seres passados e futuros convivem nos atos da experiência. O modo de pensar hegeliano e – portanto – a noção de conhecimento que ele tenta desenvolver não é entendível num plano linear e "puro", como acontece com os dedutivismos que costumam se amparar na busca por ausência de contradições. A contradição tem vida na perspectiva hegeliana. Enquanto realidade inescapável de uma consciência que se insere efetivamente no ato de conhecer. Se "suja", por conseguinte, nos fracassos constantes e vividos pelo pensamento verdadeiramente científico. É nesse movimento que o "espírito", segundo Hegel, acaba se tornando objeto e, nesse movimento, torna-se "um Outro – isto é, objeto de seu SI – e de suprassumir esse ser-outro":

"Experiência é justamente o nome desse movimento em que o imediato, o nao experimentado, ou seja, o abstrato – quer do ser sensível, quer do Simples apenas pensado – se aliena e depois retorna a si dessa alienação; e por isso – como é também propriedade da consciência – somente então é exposto em sua efetividade e verdade."

Na introdução à fenomenologia já percebemos que há uma preocupação de Hegel em se distanciar do tipo de compreensão sobre o conhecimento que se ampara num absoluto intocável, inatingível e originário:

Segundo uma representação natural, a filosofia, antes de abordar a Coisa mesma – ou seja, o conhecimento efetivo do que é, em verdade – necessita primeiro pôr-se de acordo sobre o conhecer, o qual se considera ou um instrumento com que se domina o absoluto ou um meio através do qual o absoluto é contemplado. Parece correta essa preocupação, pois há, possivelmente, diversos tipos de conhecimentos. Alguns poderiam ser mais hábeis que outros para a obtenção deste fim último, e por isso seria possível uma falsa escolha entre eles. Há também outro motivo: sendo o conhecer uma faculdade de espécie e de âmbito determinados, sem uma determinação mais exata de sua natureza e de seus limites, há o risco de alcançar as nuvens do erro em lugar do céu da verdade. Ora essa preocupação chega até a transformar-se na convicção de que constitui um contra-senso no próprio conceito, todo empreendimento visando, mediante o conhecer, conquistar para a consciência o que é em si; e que entre o conhecer e o absoluto passa uma nítida linha divisória .

Sem dúvida, parece possível remediar esse inconveniente pelo conhecimento do modo-de-atuação do instrumento, o que permitiria descontar no resultado a contribuição o instrumento para a representação do absoluto que por meio dele fazemos, obtendo o verdadeiro em sua pureza. Só que essa correção nos traria de volta para onde antes estávamos. Ao retirar novamente, de uma coisa formada o que o instrumento operou nela, então essa coisa – no caso o absoluto – fica para nós exatamente como era antes desse esforço, que, portanto, foi inútil.

A crítica que Hegel está fazendo à perspectiva Kantiana, neste caso, se ampara numa pressuposição bastante lógica, como pudemos ver: a pressuposição de que poderemos saber a diferença entre o que nós temos acesso e o que não temos acesso já denota uma relação intrínseca entre o que é "conhecido" e o "objeto". Ao dizer que nao temos acesso ao absoluto, reconhecemos não só sua existência, mas nosso conhecimento de sua existência. Mas, sobretudo, que a perspectiva de Kant é insuficiente para lidarmos com uma tarefa essencial à modernidade, segundo Hegel: a de questionar todos os fundamentos aparentes. Como ele aponta no parágrafo x, é necessário questionar os fundamentos do próprio pensar, da própria forma que concebemos o mundo, para que possamos efetivamente andar rumo ao absoluto. Contrariamente ao que o senso comum tende a enunciar sobre a teoria hegeliana, a presença do absoluto e do conhecimento objetivo não está preso à uma positivação determinista. Ao contrário, está embasado na negativização dos preceitos mais básicos da ciência moderna para que eles possam ser trabalhados, retrabalhados, revistos e recriados a luz da necessidade concreta de avaliar a realidade.
Não é por outra razão que Hegel, no paragrafo 78 da introdução, aponta o desespero como chave interpretativa para uma consciência efetivamente preocupada com a verdade. O desespero enquanto situação de completa falta de bases ou pressupostos sólidos, onde é necessário criar, construir e produzir no incerto:
"(...) O cepticismo que incide sobre todo o âmbito da consciência fenomenal torna o espírito capaz de examinar o que é verdade, enquanto leva a um desespero, a respeito de representações, pensamentos e opiniões pretensamente naturais."

O incerto e a consciência das incertezas presentes nos métodos filosóficos é o que move e traz a tona o poder de uma dialética viva. Tanto a rememoração quanto a preocupação em entender o espirito, para Hegel, perpassa essa construção de uma nova gramática filosófica baseada num ceticismo radical, onde o desespero exige da consciência um trabalho dialético.
Podemos pensar essa perspectiva tal como ela é elaborada na obra "Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito", já que, nela, Hegel consegue elaborar seu pensamento sobre um "saber" concreto e aplicável da modernidade. Na obra, Hegel, tenta nos demonstrar a relação entre os limites impostos pela coletividade e o postulado da liberdade individual. Veja como esta perspectiva nos lembra o ceticismo em discussão. O Estado de Direito é uma das criações – ou inovações – da modernidade e, nele, está inserida a lógica reflexiva que "nega" os fundamentos. Ao contrário do direito pré-moderno, onde as leis se baseavam numa ordem social pré-ordenada e fundamentada pela positivação dos costumes ou religiões da época.
Assim, o estabelecimento dos limites, das restrições e, também, das liberdades ampara-se numa lógica racional, cujo eixo não pode ser o do direito enquanto um "instrumento", ou do direito como um meio "passivo" onde se consolidam as normas já existentes na natureza. A discussão sobre critérios de validade na fenomenologia são os mesmos critérios de validade que precisam estar presentes no Direito. Isto é, Hegel está revelando a imposição de um ceticismo real e vivido pela experiência da consciência que embasa, inclusive, nosso sistema de regras jurídicas. Afinal, o Direito está completamente vinculado à noção de "saber", "conhecimento" e "ciência" presente na modernidade. Neste conhecimento específico está presente o aspecto que denota a base de toda a modernidade: o sujeito. O sujeito é e, ao mesmo tempo, exprime a negatividade. Porque existe enquanto um conceito sem representação fideidigna, essencializada, positiva. O "é" do sujeito é seu nada. Porque o sujeito se define mais por um "não é" do que propriamente um "é" parado, que se determina estaticamente. O sujeito é o movimento das possibilidades, da ausência de relação direta e estanque entre conceito e objeto, revelando, necessariamente, a liberdade do "ser". Sendo assim, é a base do direito enquanto um sistema de liberdades, de possibilidades, de abertura aos diferentes destinos:
"O eu é igualmente o passar da indeterminidade indiferenciada à diferenciação, ao determinar e ao pôr uma determinidade enquanto conteúdo e objeto. Esse conteúdo pode ser, então, ou dado pela natureza, ou gerado a partir do conceito do espírito. Por esse pôr-se a si mesmo enquanto eu determinado, o eu entra, em princípio, no ser-aí; - [é] o momento absoluto da finitude ou da particularização do eu. "

O ceticismo, pois, serve como mecanismo de questionamento que permite e expõe a contradição, exigindo um fazer-se amparado no que é negado. Um fazer-se ainda a ser feito, um fazer-se em andamento. E isso é importante entender. Porque em muitos aspectos, a teoria de Hegel às vezes pode parecer indicar um "nada" que retira todo conteúdo, todo fundamento e o joga fora, o descarta. A negação em Hegel deve ser entendida à luz da noção de suprassunção, onde o negado sempre preserva, ou mantém, na própria negação, resquícios do "ser" que antecedeu o ato de negar. É como um processo mesmo, onde a atividade de negar traz à tona o aprendizado do momento anterior. No capítulo sobre Certeza sensível Hegel parece dar um exemplo bastante ilustrativo sobre esse processo:
Vemos, pois, nesse indicar só um movimento e seu curso, que é o seguinte: 1) indico o agora, que é afirmado como o verdadeiro; mas o indico como o que-já-foi ou como um suprassumido. Suprassumo a primeira verdade, e: 2) agora afirmo como segunda verdade que ele foi, que está suprassumido, 3) mas o-que-foi não é. Suprassumo o ser-que-foi ou o ser-suprassumido – a segunda verdade, nego com isso a negação do agora e retorno à primeira afirmação de que o agora é.

É necessário entender a negação como uma potência, como uma exigência de se estabelecer ou se inserir num processo, numa "passagem":
"O ceticismo que termina com a abstração do nada ou do esvaziamento não pode ir além disso, mas tem de esperar que algo de novo se lhe apresente para joga-lo no abismo vazio. Porém quando o resultado é apreendido como é em verdade – como negação determinada – é que então já surgiu uma nova forma imediatamente e se abriu na negação a passagem pela qual, através da série completa das figuras o processo se produz por si mesmo."

Desta maneira, parece que a lógica desta negação enquanto uma negação determinada perpassa as oposições e as contradições como forças-motizes deste processe de "saber", que envolve tanto o "deparar-se" com o objeto, quanto a auto-reflexão gerada pelo reconhecimento de que o conceito não se encaixa por completo, nem em sua inteireza, no objeto. A dualidade contraditória entre este em-si e o para-o-outro é o porquê deste fracasso produtivo que se alastra na consciência como início de um processo que possibilita o conhecer do e no absoluto.
IV. Conclusão
A filosofia de Hegel parece incrivelmente atual no que diz respeito à atual realidade social acadêmica com seus pós-modernismos e suas incapacidades construtivas. Porque é interessante perceber que a história das idéias é a história do fracasso. Não do fracasso enquanto aquilo que é incapaz de dizer algo sobre o mundo – como querem os pós-modernos subjetivistas, mas um fracasso justamente por se dispor e entender a possibilidade de conhecer o absoluto. Vejamos que, como parece indicar a filosofia hegeliana, os pensadores mais marcantes e mais influentes vão sempre acabar a vida sentindo que nao conseguiram terminar suas obras de maneira satisfatória. De certa forma, isso parece marcar o que é "pensar o mundo". Tal atividade requer um agir engajado que se debruça constantemente sobre limites: seja o limite do sujeito, seja o limite do(s) objeto(s). É o eterno falhar.
Nao parece ser por acaso que num mundo onde cada vez mais somos levados a pensar no ganho, na vitória, no sucesso, estamos cada vez menos capazes de refletir, de produzir, de construir ousadamente. Quem teme falhar não falha porque nao tenta. Mas também não faz nada de relevante. E passa a vida toda feliz com a estabilidade típica do que é medíocre.
Por isso que é importante fazer uma distinção entre a falência que decorre da incapacidade de tentar daquela que decorre do efetivo engajamento produtivo em construir alternativas. As perspectivas que tentam simular o que já aconteceu ou que buscam reviver o passado apenas revelam a preguiça mental e material de se inserir no contexto e se arriscar nas contradições que denotam os avanços sociais.
Parece cada vez mais claro que o medo de fato ganhou uma batalha importantíssima na sociedade, já que todos vivem o êxtase de apontar dedos e crucificar erros enquanto poucos ainda se sentem capazes de se jogar no abismo do nada que requer os pequenos blocos de construção do novo. Novo porque inocente, novo porque destemido, novo porque contraditório também. O purismo é o pior inimigo dos acontecimentos relevantes.
Faltam categorias, faltam projetos, mas falta muita audácia também. A audácia, por incrível que pareça, de fracassar. Fracassar feio. Como fracassaram tantas outras pessoas que efetivamente mudaram o rumo e a história do mundo. Porque, no fundo, esse medo de fracassar revela um medo talvez nao tao imediato, mas deveras presente: o medo de, inevitavelmente, ao tentar, acabar acertando.





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