\"O fundamentalismo é uma forma de idolatria\" - Entrevista com Rusmir Mahmutcehajic, filósofo e estadista muçulmano da Bósnia.

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Ex-vice bósnio defende pluralismo e critica fundamentalismo islâmico

IARA BIDERMAN
MATEUS SOARES DE AZEVEDO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM SARAJEVO
30/12/2015
Rusmir Mahmutcehajic, 67, foi vice-presidente da Bósnia entre 1991 e 1993,
o período mais trágico da história do país. Foi o início da Guerra dos
Bálcãs (1991-95), em que mais de 200 mil pessoas foram mortas.
Eslavo de religião muçulmana, como as vítimas domassacre de
Srebrenica (reconhecido como genocídio por duas cortes da ONU),
Mahmutcehajic afirma que o modelo pluralista que constituiu a história de
seu país é a saída para os impasses políticos atuais –não só da Bósnia, mas
de toda a Europa envolvida com as questões dos refugiados e imigrantes.
" "Mateus Soares de Azevedo/Folhapress " "
" " " "
" "Rusmir Mahmutcehajic, 67, vice-presidente da Bósnia entre 1991 e 1993, " "
" "fala à Folha em Sarajevo " "


Nação única no contexto europeu, a Bósnia constitui a fronteira mais
oriental do catolicismo, a fronteira mais ocidental do cristianismo
oriental e é, simultaneamente, um posto avançado do islã não extremista no
velho continente.
O pequeno país nos Bálcãs constitui uma ponte natural entre o islã e o
Ocidente e é há séculos um espaço de convivência entre muçulmanos,
católicos, cristãos ortodoxos e judeus.
Presidente do Fórum Internacional Bósnia, Mahmutcehajic trabalha para que
seu país siga sendo um espaço plural e seus habitantes possam colher os
frutos desse intercâmbio.
Diferentemente do ocorrido nos países vizinhos, que adotaram políticas
nacionalistas e exclusivistas, ele defende uma Bósnia na qual muçulmanos
(metade da população), sérvios (30%), croatas (16%), judeus e outros (4%)
convivam.
Na sede do Fórum, no centro histórico de Sarajevo, reconstruído após o
maior cerco da história das guerras modernas, Mahmutcehajic falou sobre os
desafios para o futuro que almeja e criticou a "reificação"
("coisificação", "alienação") da religião e o papel desagregador do
fundamentalismo islâmico.
Autor de mais de 20 livros, entre os quais "Learning from Bosnia", ele
afirma que o caráter único de seu país pode constituir um modelo para a
convivência da Europa contemporânea com um islã tolerante e inclusivo.
Leia a seguir trechos da entrevista.
*
A guerra

"As cidades bósnias sempre exibiram uma invejável tolerância, baseada na
concepção de 'convergência na diferença'. A guerra minou esse ambiente, e
muitas delas se transformaram, contra a vontade da maioria de seus
habitantes, em espaços onde o outro e o diferente foram obrigados a
escolher entre a conversão, a fuga ou morte. Fatalidades que têm suas
raízes na ignorância do patrimônio do outro.
Na Guerra dos Bálcãs, quase 2 milhões de pessoas sofreram as consequências
da "limpeza étnica". A paz, provisória, só foi obtida a partir de 1996, com
o acordo de Dayton, intermediado pelos EUA."
A paz precária
"Meu país entrou no século 20 dividido entre a Sérvia e dois impérios, o
austro-húngaro e o otomano. Após a Primeira Guerra Mundial, surgiu o reino
dos sérvios e croatas, quando a Bósnia foi quase apagada do mapa e sua
identidade nacional foi excluída do horizonte político.
Após a Segunda Guerra, a Iugoslávia socialista foi estabelecida, e os
bósnios muçulmanos tornaram-se cidadãos de segunda classe. Segundo os
princípios marxistas-leninistas, as identidades confessionais e nacionais
não passavam de fases transitórias rumo à sociedade perfeita, sem classes e
sem religião.
Finalmente, na derradeira década do século 20, seus vizinhos mais poderosos
investiram com plena força contra ela.
Não obstante todas as ameaças e o trauma das perseguições, a Bósnia
conseguiu sobreviver ao século 20 e entrou no século 21 como uma nação
independente.
Não vejo outro futuro para meu país senão na diversidade; a Bósnia não é
exclusivamente muçulmana, é também cristã e judaica. É um laboratório vivo
para muitas nações."
A questão religiosa
"Para muitos muçulmanos hoje, a Escritura e a religião se tornaram ídolos.
Algo que substitui o próprio Deus.
Muitos têm hoje o islã como objeto de culto, em vez de Deus. É um islã
reificado. Segundo a teologia islâmica, só Deus possui a prerrogativa de
culto –a religião é um meio para um fim. O islã não tem a propriedade
exclusiva de Deus.
O islã se tornou vítima de uma visão reificada, alienada e
'fundamentalizada'; foi transformado num ídolo. Exatamente o oposto do que
ensina a tradição espiritual muçulmana.
Em face do desafio da reificação da religião, o mais importante é fazer
reviver a tradição intelectual islâmica –obra para a qual filósofos, sufis
e eruditos têm chamado a atenção desde o início do século 20, quando ficou
claro o mal-estar que aflige Dar el Islam [a casa do islã].
Afinal, de que adianta o fundamentalismo opor-se ao secularismo moderno
externamente se capitula a ele interiormente?"
*
RAIO-X
Rusmir Mahmutcehajic
Nascimento
29/6/1948, Stolac, Bósnia
Formação
Doutor em engenharia elétrica pela Universidade de Sarajevo
Trajetória
Foi professor e diretor da Faculdade de Engenharia Elétrica da Universidade
de Osijek (Croácia), professor da Faculdade de Teologia Islâmica da
Universidade de Sarajevo, vice-presidente da Bósnia e Herzegóvina e
ministro da Energia do país
Obras
É autor de "Learning from Bosnia" (Fordham University Press), "Bosnia the
Good: Tolerance and Tradition" (Central European University Press) e
"Sarajevo Essays" (State University of New York Press), entre outras
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