O fundo do nosso poço

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Cinema, Ética, Fight Club, Pós Modernismo
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O FUNDO DO NOSSO POÇO por Waldísio Araújo

Em Clube da Luta (1999), um filme talvez intimamente nietzscheano de David Fincher, o perigo é ser um eu para os outros e a LUTA do ser é para manter-se autônomo. Aqui, a regra de não fazer perguntas fala por si, o que torna prescindível a própria onipresença de Tyler Durden: todos se tornam essencialmente solitários, o projeto fala por si e o próprio "indivíduo" que questiona passa a ser Tyler, É Tyler – ao contrário do nosso mundo moderno, em que a linguagem fala por si e exerce o domínio sobre indivíduos finalmente reduzidos e pacificados, assimilados entre si na mentalidade de rebanho. Tyler não é o astro de rock, nem o político salvador da pátria nem o pastor milagreiro. Tyler é um outro nome para o caos violento interior que nos amedronta, o verdadeiro autor dos nossos pesadelos, mas sem o qual não nos libertamos. O resultado: explosivos espalham-se pela cidade, paira algo como uma "revolução", e fazer pairar um sentimento talvez seja mesmo a forma mais perfeita de revolucionarmos a vida no planeta. Se o nosso mundo é um admirável mundo novo em que o sofrimento é desprezado e ignorado, procurase o sofrimento para se ter algo "natural", e a liberdade é encontrada na perda da esperança. Quer tentar? Apenas entre na sua caverna e diga para si mesmo: "Escorregue! (...) Peça demissão. Inicie uma luta. Prove que está vivo. Se você não conquistar sua humanidade, vira mera estatística." Todos são obrigados no mundo a ter seu lugar demarcado: "Você tem câncer testicular, e não outra coisa". Isso nos dá segurança, mas é uma ilusão de segurança enquanto a dor e própria morte estão implicita, como ao ouvirmos as instruções, antes do voo, sobre como colocarmos a máscara de oxigênio. Tudo é perigoso, mas a gente não vê nem quer ver. Um edredon é um cobertor, mas para a sociedade seria relevante pensar que seria algo mais importante que este conceito. Por que queremos tanto saber, ter e conhecer tudo? E para que ler tanto? Até porque "as coisas que você possui acabam possuindo você". Então, se nunca briguei antes, eu preciso conhecer. Na luta sentirei a dor, e se esta for a regra talvez valerá a pena, e a dor pode então ser a revolução social... E as regras não são muitas, embora a segunda não seja necessariamente igual à primeira: 1. 2. 3. 4.

Você não fala a respeito do Clube da Luta Você não fala a respeito do Clube da Luta. Se alguém grita "pára!" ou sinaliza, a luta acaba. Apenas dois caras em cada luta.

5. 6. 7. 8.

Uma luta de cada vez. Sem camisa e sem sapatos. As lutas duram o tempo necessário. Se for a sua primeira luta no clube, tem que lutar.

Então todos começam a ver o mundo de modo diferente, a partir do corpo, reatualizando nossa para sempre esquecida antropogênese: não importa ganhar nem perder, o importante é que não há intermediação da palavra, não há tática nem estratégia, não é uma guerra (essa coisa demasiadamente coletiva, cheia de regras contra o verdadeiramente individual). E tem que parar de ter medo. E assumir que um dia vai morrer, pois "apenas depois de perdermos tudo é que estaremos livres". Ao contrário de Platão, é necessário chegarmos ao fundo do poço, digo, da caverna, e a luz do sol apenas nos ofusca. É lançar-se ao abismo. E não entender bem o filme é também isso.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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