O futuro passado do livro

June 24, 2017 | Autor: Felipe Barchi | Categoria: History of concepts, History of Books, Printing, and Publishing
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II Semana do Livro – Fatec Bauru

Mesa-Redonda de Encerramento: Leituras e leitores na contemporaneidade



Felipe Yera Barchi

Mestrando em História pela Unifesp

[email protected]







O futuro-passado do livro



Prólogo

O título deste trabalho parafraseia a obra do historiador alemão
Reinhardt Koselleck "Futuro-passado: uma contribuição à semântica dos
tempos históricos" na qual o expoente mais destacado da História dos
Conceitos [Brieffgeschichte] observa a mudança na percepção do tempo
histórico durante período que Eric Hobsbawm denominou "Era das Revoluções
(1789-1849). A mudança mais notável é a passagem de uma noção de histórias
[Historie] para História [Geschchite] como um coletivo singular. Outros
conceitos seguiram o mesmo caminho, das revoluções se fez a Revolução
[Francesa], Justiça, Liberdade, todos esses conceitos tornaram-se coletivos
singulares no esteio da emergência do cosmopolitismo universal descrito
pelo filósofo Immanuel Kant (Königsberg, 1724- 1804 ).

Mais do que mero jogo de palavras, exploraremos as já proferidas
sentenças de morte de outros suportes, como o códice, fazendo uso de duas
noções tomadas de Koselleck: O espaço de experiência e o Horizonte de
expectativas em relação a história do livro.



I



Comecemos por uma constatação: Nunca se leu tanto na história da
humanidade. Mesmo assim, os profetas do apocalipse não param de advertir a
morte do livro – o principal suporte de leitura. Tamanho disparate foi
capaz de fazer com que Umberto Eco, semiólogo e romancista italiano e um
dos mais importantes escritores mundiais ainda vivo, escrevesse um livro
junto a Jean-Claude Carrière intitulado "Não contem com o fim do livro".

É bem verdade que o aumento quantitativo da leitura e dos
leitores não é acompanhado de um crescimento equiparável dos livros, ainda
que estes últimos também estejam alcançando seus melhores números de
publicação e vendas nas últimas décadas, os leitores e suas respectivas
leituras aumentam a um ritmo frenético devido a novas tecnologias
cotidianas.

Enquanto a televisão e o rádio convidavam os tele e
radioespectadores a pararem verem e ouvirem (Pierre Nora), a internet não
só oferece uma interatividade como a exige. O internauta não é apenas
espectador, deve ler, reconhecer, selecionar o que deseja do mundo virtual
oferecido nas telas dos computadores, tablets e celulares.

Até mesmo a já gigantesca e ainda crescente indústria dos jogos
eletrônicos de entretenimento tem oferecido, segundo os vários nichos de
mercado, jogos que exigem ou oferecem situações práticas de leitura.

Tudo isso nos leva à banal, mas cada vez mais verdadeira
advertência: Ler é imprescindível. Privilégio de uma classe pequeníssima em
quantidade, porém grandiosa em poder, a leitura e a escritura tiveram papel
determinante na organização das sociedades egípcia e mesopotâmica antigas.
Os escribas junto aos sacerdotes eram os principais responsáveis pela
manutenção do status quo, bem como os únicos capazes de ler e escrever.

O Direito e administração romana, pilares do mais importante
império da antiguidade assentavam-se no bom domínio da leitura e escrita.
Ainda com relação ao Direito não é demais lembrar que o Código de Hamurábi,
primeiro conjunto leis "escritas e publicadas"- entenda-se "talhada na
estela" – representou não só a modernização do sistema jurídico babilônico,
mas um novo instrumento do aparato de poder do estado.

Já mais recentemente, no século XIX, ler no Brasil e em boa
parte do mundo era privilégio das elites. Ainda no esteio da desmontagem do
Ancien Regime e da ascensão da burguesia na era moderna ocidental, a
leitura – atividade nobre par excellence – foi conquistada pela burguesia,
mas não pelas camadas populares.

A proclamação da república no Brasil em fins do XIX teve o fito
de impor uma nova organização ao país. Ordem e progresso, bandeiras do
positivismo científico dezenovista, eram a expressão do projeto republicano
brasileiro. O direito ao voto dependia de três condições: ser homem
(adulto), alfabetizado e ter renda suficiente para se destacar como membro
da elite econômica.

Como nos lembra o pensador francês Michel Foucault, saber é
poder, ler e escrever sempre foram poderes vigiados, autorizados,
delegados. Assim a universalização da escola básica, ainda em curso,
proporcionou nos últimos cinquenta anos um aumento substancial de leitores
em todo mundo e junto a esse aumento do número de leitores emerge uma
literatura destinada a esse público. Não por acaso, as obras mais editadas
em volume são as didáticas. As compras do governo federal a fim de
contemplar o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD – são responsáveis
por mais de metade das cifras do mercado editorial brasileiro. Não seria
exagero dizer que o segmento didático sustenta o parque editorial nacional.





II




Podemos notar que há uma relação triangular entre autor-livro-
leitor que pode se desdobrar, mas basicamente não se altera
estruturalmente. O autor escreve o texto, ele não faz livros (Roger
Chartier), o responsável pela produção do livro é o editor, chefe de
técnicos e artesãos que atuam num processo que comporta várias etapas
(revisão ortográfica, revisão técnica, diagramação e ilustração entre
outras); daí por diante, o caminho que leva o livro ao leitor é múltiplo
passando por distribuidores autorizados ou contrabandistas, custeado por
instituições públicas ou privadas, indicado por professores e outros
intelectuais até ser eventualmente comprado ou emprestado por possíveis
leitores. Porém, este caminho não é de mão única, afinal todo autor é
também um leitor (Robert Darnton).

Portanto, as três partes do triângulo autor-livro-leitor
passaram por muitas transformações ao longo dos últimos cinco séculos. A
noção de autor que já mereceu trabalhos de Foucault e Chartier, transformou-
se principalmente a partir do XIX, tanto que chegaram a anunciar a "morte
do autor". O livro, que ao contrário do que muito se divulga não nasce com
a imprensa de Gutenberg em meados do século XV, também passou por grandes
modificações, desde o códex[1] – surgido nos primórdios da era cristã
(possivelmente até um pouco antes)-, passando pelos tipos móveis e agora
pelos processos informatizados de edição, porém não tem sua estrutura
alterada. Os leitores também mudaram drasticamente ao longo dos séculos e
também os modos, intenções e lugares onde praticam a leitura.

O que deve ficar claro é que, o livro, para além de todo fetiche
que o circunda, é um meio de comunicação que, justamente por esta função
social, atua dentro de um circuito (Robert Darnton) que se configura,
basicamente, por esta relação triangular autor-livro-leitor.

Dito isto, o suporte "livro" no século XXI continua a ser um
formato organizador de textos, continua a ter sua importância cultural como
veiculador de ideias e que continua a ser produzido em versões impressas ao
lado das versões eletrônicas. Como aponta Umberto Eco, a invenção do códex
não solapou de imediato o volumem[2], nem a imprensa em tipos móveis de
Gutenberg condenou abruptamente o códex manuscrito.

Para Chartier a leitura é uma prática encarnada em gestos,
praticadas em lugares específicos com finalidades também específicas. Se no
XVIII a leitura era praticada em voz alta para várias pessoas ouvirem ao
mesmo tempo, a leitura silenciosa individual foi a tônica do século XX.
Portanto, é evidente que ler no monitor e ler um livro impresso são
práticas que comportam diferenças substanciais no modo de ler, de apreender
e reconstruir significados. Certo é que, com as novas tecnologias e
suportes de leitura, esta última que jamais fora unívoca, torna-se
exponencialmente, cada vez mais, múltipla.

***







Apesar de a leitura e a escrita estarem plenamente relacionadas,
a leitura é, na verdade, a antítese da escrita. Na realidade, cada um ativa
do cérebro. A escrita é uma habilidade, a leitura, um aptidão natural. A
escrita originou-se de uma elaboração; a leitura desenvolveu-se com a
compreensão mais profunda pela humanidade dos recursos latentes da palavra
escrita. A história da escrita foi marcada por uma série de influências e
refinamentos, ao passo que a história da leitura envolveu estágios
sucessivos de amadurecimento social. Escrita é expressão, leitura é
impressão. A escrita é pública; a leitura, privada. A escrita é limitada; a
leitura, infinita. A escrita congela o momento. A leitura é para sempre.
(FISCHER, 2006, p.8)

Referências Bibliográficas



CHARTIER, Roger. A ordem dos livros.

_____________________. Do códice a tela: a trajetória do escrito

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette.

ECO, Umberto & CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro.

FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. Ed. Unesp, São Paulo, 2006.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?

NORA, Pierre. O retorno do fato. LE GOFF & NORA História: Novos Problemas

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[1] O codex é considerado por Chartier o ancestral direto do livro, pois
impingia ao leitor o mesmo modus operandi para executar a leitura, pois as
páginas eram encadernadas de maneira que era preciso folheá-las tal como no
caso dos livros impressos. Esse novo formato surgido no tempo de Cristo
impôs uma mudanças na perspectiva do leitor, enquanto a invenção dos tipos
móveis de Gutenberg possibilitou a aceleração e multiplicação da produção
gráfica , mas não alterou o modo de se fazer a leitura.

[2] O volumem é o formato predominante na Antiguidade, nada mais é que os
rolos de pergaminho e papiro. A Biblioteca de Alexandria guardava um enorme
acervo no formato volumem.
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