O Galo de Barcelos. do Mito, do Símbolo do Ícone

July 21, 2017 | Autor: Elisabete Muga | Categoria: Design, Barcelos, Portugalidade, Figurado
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UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

O Galo de Barcelos Do Mito, do Símbolo, do Ícone VOLUME I

Elisabete Muga Rodrigues Dissertação para obtenção do Grau de Mestre

Lisboa, Setembro de 2008

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UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

O Galo de Barcelos Do Mito, do Símbolo, do Ícone VOLUME I

Elisabete Muga Rodrigues Orientador de Mestrado: Mestre Designer Carlos Bártolo

Lisboa, Setembro de 2008

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AGRADECIMENTOS

Ao Senhor Meu Mestre: Carlos Bártolo. Meu caríssimo orientador desorientado, obrigada por me ter feito pensar, obrigada pela inspiração, pela paciência, pelo tempo, pela ajuda... e pelos lanches! Obrigada por ser a minha maior referência. Obrigada por continuar a ser sempre o meu Professor . Ao Professor Alcino Ferreira: porque depois de tantos anos me fez ver que afinal a verdade é a arte, a vida é a arte, e que sobretudo, o design é a arte. Obrigada por nunca desistir de nós, e continuar a lutar sempre pela nossa verdade. Às pessoas de Barcelos, que foram fantásticas e me receberam e ajudaram sempre com um sorriso na cara. À Dr. Carina que se tornou numa “amiga de infância”, e às dedicadas guardiãs do espólio do Museu de Olaria: D. Fátima Pateiro e D. Sameiro Coelho, à Dra. Cláudia Milhazes pela presteza e dedicação, ao Dr. Victor Pinho pela ajuda imensa que me deu, ao Dr. Nuno Rodrigues pelo trabalho fantástico que tem feito pelo turismo de Barcelos, e um especial obrigada a Carlos Basto, por ter sido testemunha de um tempo a que eu nunca teria acesso. Aos barristas que me contaram as suas histórias: D. Júlia Côta, D. Emília Côta, Sr. Domingos Baraça, D. Rosa Ramalha e Sr. João Ferreira, que eu tanto admiro. Obrigada por serem simples, francos e genuínos. E um muito obrigada ao Sr. Moreira, taxista de profissão, que me guiou de aldeia em aldeia, de história em história, e se entusiasmou tanto como eu, quando percebeu que afinal ninguém tinha ainda contado a história do Galo de Barcelos. À Dra. Isabel Fernandes, que em Guimarães me recebeu com todo o respeito de alguém que ama tanto estes temas como ela, e à Dra. Alexandra Pedro que apesar do imenso trabalho em que estava envolvida, conseguiu tempo para me ajudar a pesquisar. Ao Dr. Couto Viana, pela simpatia e disponibilidade. Aos meus colegas e amigos, que já não me podem ouvir mais falar do Galo de Barcelos. Obrigada pela paciência e pelo apoio. Obrigada à Adriana Afonso, porque conseguiu ler este trabalho e construir um belíssimo puzzle com as vírgulas que eu adoro colocar no lugar errado!

Obrigada Família! Obrigada mãe e pai por lutarem diariamente para serem os escolhidos na leitura das citações! Obrigada avô por constantemente me perguntar quando é que começo o doutoramento. Obrigada sobretudo por serem a minha família: as pessoas que eu mais amo, e que me ensinaram a ser o que sou e a respeitar-me pelo que quero ser. Obrigada por serem quem são e desculpem o tempo que deixei de passar convosco. E obrigada ao “meu respectivo”, pelo sorriso de orgulho máximo que só tu consegues ter. Obrigada pela capacidade única de estares sempre presente.

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ABSTRACT

RESUMO O Galo de Barcelos , considerado como uma referência visual do conceito de portugalidade; ícone de um Portugal de defeitos e virtudes; tem sido usado ao extremo como imagem residual de um Portugal solarengo e tradicionalista, ruralista e pequenino. Banalizado, seriado, transfigurado, ele é a imagem - memória - que mais depressa associamos à identidade nacional portuguesa; ele é o símbolo dessa mesma identidade; ele é a nossa imagem de marca. Pretendemos com este trabalho, acima de tudo, contar a verdadeira história deste ícone, que é o Galo de Barcelos, mas que antes de o ser, foi símbolo político produzido pelo Estado Novo. Dividimos, por isso, este trabalho em três partes: .1 do Mito: onde desmistificamos a errada associação entre o Galo de Barcelos e a Lenda do Senhor do Galo, e desenvolvemos a paternidade do primeiro Galo de roda, atendendo à evolução produtiva do Galito para Galo. .2 do Símbolo: o Galo de Barcelos enquanto símbolo da identidade nacional. O poder do Estado Novo enquanto criador de símbolos e de tradições inventadas. A evolução do Galo para Galo de Barcelos . .3 do Ícone: O Galo de Barcelos enquanto superação do símbolo; enquanto para-símbolo: enquanto ícone da portugalidade. A utilização e transfiguração por parte dos designers da imagem do Galo de Barcelos. O Galo (de Barcelos) enquanto referência.

The Galo de Barcelos, considered as an illustrated reference of the concept of portugality; icon of a Portugal with defects and virtues; has been used to the extreme as a residual image of a sunny, traditional, rural and tiny Portugal. Banalized, mass produced, transfigured, he is the image - memory - that more fast we associate to the portuguese national identity; he is the symbol of that same identity; he also is our brand image. We Intend with this work, above all, to tell the true history of this icon that is the Galo de Barcelos, that was also a political symbol produced by the New State.

Porque o Galo de Barcelos somos todos nós, porque ele faz parte da nossa herança cultural, vale a pena contar a sua história.

Because we all are the Galo de Barcelos, because it is part of our cultural inheritance, it’s worth it to tell his history.

So, we divide this work in three parts: .1 of the Myth: where we demystify to wrong association between the Galo de Barcelos and the Legend of the Lord of the Rooster , and we develop the paternity of the first Galo made in wheel, attending to the productive evolution of the Galito to Galo. .2 of the Symbol: the Galo de Barcelos while symbol of the national identity. The power of the New State while creator of symbols and invented traditions. The evolution of the Galo to Galo de Barcelos. .3 of the Icon: The Galo de Barcelos while the overcoming of the symbol; while for-symbol: while icon of the portugality. The use of transfiguration by the designers on the image of the Galo de Barcelos. Galo (de Barcelos) while reference.

PALAVRAS-CHAVE Mito :: Símbolo :: Ícone :: Verdade :: Herança Cultural :: Memória :: Identidade Nacional Portugalidade :: Transfiguração :: Banalização

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ÍNDICE

VOLUME I Agradecimentos .............................................................................................. V Resumo / Abstract .......................................................................................... VI Palavras-chave .............................................................................................. VI Epígrafe ........................................................................................................... 2 Introdução ........................................................................................................ 3 1. Do Mito ....................................................................................................... 7 1.1 A Lenda do Galo ........................................................................... 10 1.2.1 A tradição do barro em Portugal ................................................ 15 1.2.2 O barro em Barcelos .................................................................. 17 1.2.3 Figurado de Barcelos ................................................................. 21 1.3 A representação tradicional do galo .............................................. 25 2. Do Símbolo .............................................................................................. 32 2.1 Identidade Nacional, História e Etnologia ..................................... 35 2.2.1 O Estado Novo ........................................................................... 40 2.2.2 As criações do Estado Novo ...................................................... 48 2.2.3 Como se forja a Identidade Nacional ......................................... 55 2.3.1 O Artesanato e os Símbolos ...................................................... 60 2.3.2 O Galo de Barcelos .................................................................. 65 2.3.3 O Galo Em Barcelos ................................................................. 74 3. Do Ícone ................................................................................................... 79 3.1 O design e a contemporaneidade ................................................. 85 3.2 O Galo (de Barcelos) e a pós-modernidade ................................ 88 3.3 O design e o Galo (de Barcelos) ................................................. 92 Conclusão ...................................................................................................... 99 Bibliografia ................................................................................................... 106

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VOL II – ANEXOS Glossário ............................................................................................... 1 Índice de Imagens ................................................................................. 4 Anexo A1 ............................................................................................. 12 Anexo A2 ............................................................................................. 13 Anexo A3 ............................................................................................. 14 Anexo A4 ............................................................................................. 15

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O GALO DE BARCELOS DO MITO, DO SÍMBOLO, DO ÍCONE

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«Lisboa, 15 de Setembro de 1931. Meu caro Manel: estamos à brocha com o Congresso e precisamos absolutamente da tua colaboração. O Leitão de Barros, que está encarregado duma festa no Estoril, lembrou-se de distribuir aos congressistas, nessa altura, bonecos de louça, aí do Norte - Famalicão, Barcelos?... Deixou-me a carta que mando junto. Põe-te portanto a caminho, que a massa segue amanhã. Calculo que percebes bem o que é. Trata-se daqueles bonecos decorativos que só vendem nas feiras, bois, galos vermelhos e primitivos... Compra os que houver de mais gosto. Há uns grandes, mº curiosos, que o L. Barros comprou uma vez no Sor. Matosinhos. Dá conta das tuas demarches, telegraficamente, sendo melhor dirigir em meu nome, aqui, para o Teatro Nacional onde estamos em sessão permanente. O vale que amanhã segue dá margem a que tu te desloques de automóvel se for preciso, mas de forma a estar tudo aqui até domingo. Tem paciência. Ob.º. Um abraço. Artur Maciel. É bom acusares esta carta por telegrama para nossa tranquilidade» (VIANA, 1988:123-124)

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INTRODUÇÃO

Tem este trabalho como objectivo, a descrição do desenvolvimento do Galo de Barcelos desde a sua génese, como elemento mítico, até à sua evolução enquanto ícone da identidade nacional portuguesa e decorrente apropriação formal das características visuais do mesmo pelos designers. Considerando que este poderá ser um caso de estudo fundamental para a melhor compreensão da origem e progressão de um elemento originalmente artesanal e ingénuo até uma materialização para-simbólica de um elemento intimamente ligado à nossa herança cultural, pretendemos por isso demonstrar como o símbolo da portugalidade provém de uma tradição inventada por um regime e posteriormente sagrado como ícone cultural. Deste modo, o enquadramento cronológico deste estudo, será compreendido entre meados do século XIX e a actualidade. Isto porque, ainda que a sua materialização enquanto elemento ingénuo seja imemorial, foi em meados do século XIX que os primeiros estudos relativos a este “exemplar” começaram a ser difundidos. Igualmente, o seu estudo será feito até à actualidade, uma vez que este se tornou num objecto de design, contemporaneamente metamorfoseado e transfigurado como produto emotivo. Este trabalho, que se encontra dividido em três capítulos, paralelamente considerados como um passado (mito), presente (símbolo) e futuro (ícone) do Galo de Barcelos, pretende também fazer uma ligação com os princípios da fenomenologia como metodologia de estudo: a verdade através da descrição (mito-passado), a racionalização e a formalização de um pensamento (símbolo-presente) e um retorno à descrição mítica e à verdade através de uma vivência artística das formulações culturais (futuro-fenomenologia). Assim, pretendemos com este trabalho descrever o que é o pensamento mítico e fundamentar uma ideologia em que a verdade se manifestava através de verbalizações ingénuas como as fábulas, os mitos ou as lendas, e numa materialização emocional,

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como única forma de corporalizar a verdade: uma verdade que o design traduz hoje em dia. No primeiro capítulo – do Mito - evocaremos conceitos como a memória, a verdade, a arte e a liberdade, como produtos do homem ingénuo e supersticioso, para quem os animais se revestiam de um carácter superior. Desta importância atribuída pelo homem mítico aos animais, desenvolveremos a temática do galo, como animal próximo do homem e investido de significados múltiplos. Aprofundaremos, igualmente, o estudo de uma Lenda associada ao galo e o modo como as tradições orais – fábulas, mitos e lendas – serão um produto da nossa memória e herança cultural. Relativamente a esta Lenda – A Lenda do Senhor do Galo – manifestamente difundida por vários lugares e origens, e que terá igualmente encontrado “poiso” em Barcelos, terra de oleiros e barristas, numa representação que é o Cruzeiro do Senhor do Galo. Procuraremos ainda, identificar as suas origens conceptuais. Ambicionamos ainda definir uma origem paternal para o primeiro Galo de roda e desmistificar a associação existente entre o Galo de Barcelos e a Lenda do Senhor do Galo. No segundo capítulo – do Símbolo - tentaremos descrever o que é um símbolo, e como a racionalização dos fenómenos e decorrente simbologia a eles associada poderá ser considerada como uma representação do real. Pretendemos ainda identificar os criadores de símbolos, como os regimes totalitários, de que terá feito parte o Estado Novo, e fundamentar a Geração de 70 como instituidora do pensamento antropológico e etnográfico que terá fixado o “reaportuguesamento” de Portugal. Decorrente do estudo do Estado Novo, procuraremos descrever os organismos que, como o SPN/SNI, através do pensamento de António Ferro terão instituído a marca “Portugal”: tomaremos como exemplo disso a “Política do Espírito” e a “Campanha do Bom Gosto” e decorrentes exposições

nacionais

e

internacionais,

museus

e

tradições

inventadas

que

fundamentariam a identidade nacional. De entre as iniciativas do Estado Novo, tomaremos o incentivo dado ao Turismo como uma referência para a divulgação do Galo de Barcelos. Neste segundo capítulo procuraremos ainda descrever o que se passa Em Barcelos e a postura dos artesãos.

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No terceiro, e último capítulo – do Ícone – consideraremos a origem do termo como definitiva para a significação do seu conceito e avaliaremos profundamente o conceito de “para-símbolo”, como uma materialização da abstracção dos conceitos através de exemplos de ícones modernos. Descreveremos as diferenças entre símbolo e ícone, e a ligação entre o design e os ícones, e o modo como estes são referências para os designers contemporâneos – o tempo e o passado: os objectos culturais. Analisaremos as diferenças e semelhanças entre os campos da arte e do design, e dentro do design, daquele que é considerado “frio” em oposição ao “quente”. Dentro do design “quente”, analisaremos a crescente necessidade de individualização e emoção produtiva, e princípios da pós-modernidade a ela associada através da transfiguração imagética. Por último identificaremos o Galo (de Barcelos), como referência conceptual e visual para o designer, enquanto conceito de portugalidade e ícone de Portugal. Considerando que este trabalho deverá ser profundamente fundamentado através de imagens, será apresentado um segundo volume com todas as ilustrações a que nos referimos no texto. Unicamente por razões gráficas, as imagens mais importantes serão apresentadas ao longo do texto, como referências imediatas, e auxiliares visuais. Não serão por isso identificadas com numeração. Como afirmado anteriormente, a metodologia utilizada neste trabalho será a fenomenologia: porque não existe forma de explicar as sensações, e porque o que é determinante na nossa vida não é possível de explicar, só de descrever para compreender, não podemos explicar o que sentimos quando somos confrontados com algo profundamente importante para nós, no entanto, tendemos a acreditar que se pode racionalizar e justificar esse sentimento, mas este não é passível de explicação, apenas de descrição. Por isso, a descrição fenomenológica, por ser o pensamento que melhor traduz a compreensão dos fenómenos; parte de uma atitude de abertura perante o mundo e a vida, sem juízos pré-concebidos, e através da descrição da nossa vivência1 - da

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Consideramos por vivência a totalidade da nossa existência. É graças à vivência, e para lhe dar sentido, que surgem o tempo e o espaço. De igual modo, a forma de expressão mais verdadeira é a obra de arte e o mito a linguagem que melhor traduz essa mesma vivência.

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realidade que nos atinge. Ao conjunto de fenómenos2 que nos atingem chamamos mundo. As fontes utilizadas para auxiliar na descrição deste trabalho serão os barristas de Barcelos, os especialistas na área das cerâmicas, os materiais relativos ao Estado Novo e à “Política do Espírito”, e as Bibliotecas especializadas nestas áreas como a de Barcelos, a da Fundação Alberto Sampaio, e os registos periódicos da Biblioteca Nacional e arquivos artísticos da Fundação Caloust Gulbenkian.

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O que sentimos; tudo o que acontece em mim; tudo o que afecta a minha estrutura; tudo aquilo que, a partir da realidade exterior, a minha estrutura me permite receber

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1. DO MITO

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Considerando que toda a herança cultural terá sido construída através da nossa vivência, de tudo o que nos apropriamos do mundo através da nossa existência, e que a história existe porque nós existimos, é interessante compreender a força do pensamento mítico dentro da vivência humana. O homem mítico não criou explicações; ele inventou histórias com base na sua vivência. Deste modo, os mitos serão sempre um produto natural da existência do homem uma vez que eles não justificam as coisas, mas existem para descrever fenómenos que não podem ser racionalizados. O homem sempre foi crédulo, e essas superstições seráo fundamentais para o estudo das civilizações, sobretudo para a história das mesmas. Não poderemos avaliar um povo sem ter em conta as suas crendices populares, as suas fábulas, os seus ritos de iniciação ou os seus mitos e lendas. Desta forma, existe uma linha ténue que distingue estas narrativas: os mitos serão histórias com carácter sagrado para aqueles que as contam. Podem contar a origem, as regras e proibições sagradas de um povo. As pessoas que fazem parte dessa cultura não reconhecem os mitos como narrativas, mas como a verdade. Um bom exemplo: “Orfeu e Eurídice”, “Os trabalhos de Hércules” ou “Narciso”. O pensamento mítico não explica, limita-se a descrever; a narração da sua origem permite de imediato uma explicação para o seu sentido e finalidade. Foi este o pensamento que terá precedido a filosofia e corresponderá à primeira forma de pensar a realidade. As lendas serão narrativas reconhecidas como mentira; são histórias do povo, inventadas pelas pessoas mais simples e muitas vezes relacionadas com temáticas religiosas e associadas à vivência do bem e do mal.

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As fábulas existem como textos curtos com uma moral. Recorrendo-se em geral ao uso de animais para ilustrar as narrativas; são exemplos disso as fábulas de Esopo, Fedro ou La Fontaine. Tanto as lendas como os mitos pertencem à classe das narrativas folclóricas; pertencem à tradição de um povo e não lhes é reconhecido um autor. Os mitos e as fábulas têm em comum a incerteza e a “mentira”: «Quando não é possível ter uma certeza absoluta, por sorte ou desventura podemos criar fábulas, ou mitos, isto é, segundo alguns estudiosos, mentiras ou verdades, em torno desse algo que nos escapa, mas se pensarmos bem, há casos em que pouco importa saber a origem, basta indicar a que origem nos referimos e tecer laços!» (PALMA, 2006:2)

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1.1 A LENDA DO GALO

Os laços que o nosso povo cria, entre superstição e mundo religioso, geram uma dualidade gritante; ainda que profundamente religioso, ele é-o também profundamente supersticioso; «Mistura religião com crendices, práticas religiosas com bruxedos, e acaba por não saber diferenciar uma coisa da outra.” (CORREIA, 1969:10). Acredita em símbolos para espantar o mau olhado, na sorte ou azar que um gato preto possa dar, reza a um Deus único, mas acredita em bruxas e espíritos. E assim, o cantar de um galo acaba por ter o mesmo efeito que pronunciar o nome de Jesus. (PEDROSO, 1988:104). Quando falamos do cantar do galo, é interessante considerar que este é um dos animais com maior representação e carácter simbólico. Referência temporal, porque canta o novo dia, é considerado um símbolo solar e a representação da vigilância e da actividade porque desperta os humanos da noite, do sonho e do prazer. Tem também uma relação com o mundo religioso e aparece por várias vezes na Bíblia. Está relacionado com vigilância, ressurreição e iluminação aparecendo muitas vezes representado no cimo das igrejas (CIRLOT, 1990:51-52). Provavelmente por ser uma espécie de “antídoto” contra os poderes do mal, foi colocado como pára-raios (GUIMARÃES, 2002:81) e cata-ventos3 (A1:1). «De igual modo, o GALO pode personificar a luxúria na arte ocidental, mas o seu simbolismo no cristianismo é, em geral, positivo. Os cata-ventos das igrejas com forma de galo são emblemas de vigilância contra o mal. Os galos estão ligados à alvorada, ao Sol e à iluminação praticamente em todo o lado, excepto nas tradições Celta e Nórdica. Na China o Galo exemplificava as cinco virtudes de mérito civil e militar, a coragem, a confiança e a generosidade (pela sua prática de oferecer alimento às suas galinhas). Era também um emblema funerário, afastando o mal. Os galos eram animais 3

“Este aparelho, a um tempo orientador e ornamental, procede da alta Idade-Média tendo sido a princípio um sinal de nobreza e portanto um privilégio senhorial.” (PEIXOTO, 1990:251)

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sagrados no Japão, daí andarem à solta pelos templos xintoístas. Na tradição islâmica, um galo foi a ave gigante vista por Maomé no Primeiro Céu, cacarejando «Não existe Deus, mas Alá». Muitas tradições africanas associam o galo ao conhecimento secreto e, por consequência, à bruxaria.” (TRESSIDER, 2000:61)

Assim, ele estará também conotado com as trevas; no caso do galo negro, era oferenda usual aos deuses da noite e das trevas. «A tradição popular ocidental passou a identificar o galo preto com o demónio e com todas as forças maléficas capazes de provocar adversidades para a humanidade. Não é por acaso que aparece associado a rituais de bruxaria e de magia negra e que no simbolismo cristão o negro, juntamente com o vermelho, sejam as cores que identificam Satanás.” (ALMEIDA, 2000-2002:151)

Ainda foi, também, companheiro de Hermes, na mitologia grega, e associado a Esculápio, deus da medicina. Esteve também ao serviço do deus da eloquência: Apolo. Para os romanos era o símbolo de Marte pela coragem e pelo seu ar belicoso (ALMEIDA, 2000-2002:151). Além dos Gregos e Romanos, terá sido também venerado entre os Babilónios e os Sírios. No antigo Egipto era frequentemente oferecido a Anúbis um galo branco. Quando falamos do galo, esquecemo-nos da galinha. O galo é poupado pelo seu cantar, a galinha pelos ovos. Mas galinhas há muitas... e o galo só é consumido quando já não resta mais nada. O galo e a galinha, no judaísmo eram símbolo de fertilidade. O galo é considerado o fecundador por excelência, e talvez por isso a palavra que o nomeia na língua inglesa, cock, seja o termo que em calão designa o órgão sexual masculino. Segundo Ana Paula Guimarães «... os galos tanto são o antídoto para os poderes maléficos como machos prolíficos que prognosticam e são lentes. Cruzam-se os códigos e as figuras: o galo e o falo, o silêncio e a fala, a predacção e a liberdade, a novidade e a tradição.” (GUIMARÃES, 2002) As lendas relacionadas com este animal são inúmeras e, a par da natural necessidade do homem de ilustrar o mundo à maneira da sua vivência, é interessante focar, neste trabalho, uma antiga lenda portuguesa: A Lenda do Senhor do Galo.

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São várias as versões encontradas relativas a esta lenda4, e como podemos constatar, a moral da história é sempre a mesma. Ainda que o enredo mude, temos sempre um peregrino injustamente acusado, que é salvo da forca porque um galo - que o juiz que o condenara tem na mesa para comer - ressuscita depois de assado. Quando o juiz chega à forca, o peregrino está já dependurado da corda, mas o santo ampara-o e não o deixa morrer enforcado. Temos assim vários elementos distintos: um peregrino, uma forca, um galo e um milagre. Todos estes elementos encontram-se representados no Cruzeiro do Senhor do Galo. O burgo medieval de Barcelos era uma das rotas de peregrinação para quem se dirigia a Santiago de Compostela, este era o caminho mais antigo que ligava ao Porto. Passagem de mercadores - devido à feira de Barcelos - e peregrinos, era também ali que estava erguida uma forca desde 1712. Foi junto a esta forca que o Cruzeiro foi colocado. A Lenda do Senhor do Galo é indissociável do Cruzeiro do Senhor do Galo (A1:2a e 2b). Se uma é a passagem de testemunho oral de geração para geração, a outra é a representação física do milagre ali ocorrido. O Cruzeiro, agora exposto no Museu Arqueológico de Barcelos, ilustra o milagre de S. Tiago e remonta ao séc. XVIII, ainda que devido à posição das figuras e ao estilo utilizado se possa datar do séc. XVII.

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Apresentamos algumas versões e variações desta lenda em anexo (A1:Lenda I, A1:Lenda II, A1:Lenda III, A1:Lenda IV).

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«Este cruzeiro, estilisticamente popular e arcaizante, pela posição frontal dos figurantes que mostram vestes tubulares, poder-se-ia datar de século XVII, mas porque a forca que motivou a sua instalação foi construída em 1712, deverá ser antes considerado dos inícios do século XVIII. E nunca do século XIV como às vezes se escreve.” (ALMEIDA, 1990:97)

A par do enforcado e de São Tiago, o galo é uma das figuras centrais da iconografia do Cruzeiro (A1:3). O milagre da prodigiosa suspensão foi um fenómeno que se reproduziu ao longo da Idade-Média em vários lugares na Europa. Foi atribuído a santos diferentes ainda que São Tiago seja o mais divulgado. O mais antigo foi incluído no Codex Calixtinus5 (Barcelos Revista, 2000-2002). O mais recente terá sido o que aconteceu em Barcelos e originou a construção do Cruzeiro. A versão que mais se aproxima da de Barcelos deu-se em Santo Domingo de La Calzada, e foi aí, provavelmente, que foram buscar “inspiração” para o milagre de Barcelos. Os chamados milagres jacobeus – milagres atribuídos a S. Tiago (Jacob em inglês) - têm proveniência antiga, e a sua fama perdurou mesmo depois das peregrinações até Santiago terem perdido o impacto que tinham na época medieval. O milagre do galo assado transferiu-se entretanto de Rioja para Barcelos e foi solenizado com alguns séculos de separação: «Pode afirmar-se, com uma certa margem de segurança, que a transposição do milagre do enforcado, da lenda escrita para o cruzeiro, um autêntico livro de pedra, é a ultima das grandes manifestações jacobeias e de espírito eminentemente medieval. Foi feito fora do tempo, talvez com um atraso de 3 séculos, mas também não sabemos quando, por estas terras do Minho, realmente foi divulgado o milagre do Santo Domingo da Calzada.” (ALMEIDA, 2000-2002)

Ainda que separada do seu âmbito original, a lenda do galo subsistiu aos anos que passaram e ao enfraquecer das viagens a Compostela. Podemos então completar que A Lenda do Senhor do Galo é fruto do pensamento mítico; este tipo de pensamento, por ser aquele que melhor demonstra as nossas vivências e por estar intrinsecamente ligado ao conhecimento inicial que o homem tem 5

Documento do século XII cuja autoria se atribuí ao Papa Calixto II

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de si mesmo e do seu ambiente, mais do que isso, por ser a estrutura do próprio conhecimento, reflecte aquilo que Carlos Almeida sintetiza em: «A iconografia dá muitas vezes origem a lendas, porque o povo, bem ou mal, nada deixa por explicar.” (ALMEIDA, 1990:95) Deste modo, não é difícil entender o quanto da Lenda reportará verdadeiramente ao Cruzeiro, mas também, de que forma, já longe da Lenda, esta sobreviveu e é recriada, tendo como partida o que nele está representado. Um bom exemplo é a tradição oral que justifica a ausência de patas no galo representado na forca, porque os galos assados não têm patas. Ora, a ausência deste elemento na representação pode muito simplesmente dever-se à erosão do tempo.

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1.2.1 A TRADIÇÃO DO BARRO EM PORTUGAL

Da mesma maneira que as lendas nascem no imaginário popular, também a matéria informe, que é o barro, precisa de mão criadora que lhe dê forma. O homem primitivo, que de modo verdadeiro atribuía ao desconhecido uma história e uma vivência singular, também à matéria deu um conteúdo único: a forma. A imaginação “em bruto” do homem primitivo concedeu à “matéria bruta” uma forma própria. Como podemos ler em Lévi-Strauss: «A sua aparência grosseira, a sua falta total de organização confrontam a vista, o tacto, o próprio entendimento, com a presença compacta do informe e com a sua primazia. «Informe e nua», diz a Bíblia, era a terra no início da criação; e não é sem razão que outras mitologias comparam a obra do criador à do oleiro.” ( LÉVI-STRAUSS, 1987:175)

O barro, como primeiro material primitivo a que o homem deu forma a partir do nada, trouxe-nos até hoje memórias de uma matéria ancestral e de uma prática original – primitiva, primeira, única e autêntica. Assim, cântaros, potes e infusas; alguidares e púcaros: são nomes antigos, nomes com história, nomes com função original. Nomes diluídos na sua funcionalidade. As peças de barro nasceram a par das necessidades do homem. Como encontramos no texto de Rocha Peixoto: «A arte do oleiro nasceu provavelmente logo que o homem surgiu provido contra o inimigo e o clima, isto é, armado e vestido. Fabricados os sílexs e tecido grosseiramente o vestuário, uma outra necessidade fundamental o levou a submeter a matéria plástica que porventura observara nos limos depostos pelas águas, fácil de modelar, soldando-se naturalmente, endurecendo pela dessecação e podendo encerrar, em reserva, água e provisões.” (PEIXOTO, 1990:90)

Assim eram as peças primitivas: toscas, simples, úteis. Os processos rudimentares não eram diferentes, e por todo o lado onde são encontrados vestígios é fácil compreender que o génio criador é único e reporta a uma ideia singular.

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Os barros «primitivos» eram mal cozidos6; cozidos ao sol ou sujeitos a pouco calor na cozedura, e assim encontravam o seu fim de vida depressa. Os vestígios encontrados remetem-nos sempre para uma indústria rudimentar, original, igual em todo o lado: «Este é o aspecto genérico da cerâmica rústica Portuguesa, o que confirma a afirmação proclamada das estreitas ligações entre o passado e o presente numa arte cujos produtos, sendo os mais populares, os mais baratos, os que todos os dias se vendem, se servem e se quebram, ininterruptamente ressuscitam.” (PEIXOTO, 1990:95)

Encontramos em Portugal vários centros barristas, de Norte a Sul do país: Barcelos, Guimarães, Caldas da Rainha, Estremoz, etc. Estes são alguns exemplos de centros que sempre associaremos ao barro e que fizeram desta matéria modo de subsistência e crescimento social. É importante concluir que estes centros nasceram por a actividade do oleiro ser muitas vezes exercida em grupo, e não por um único indivíduo (LÉVI-STRAUSS, 1987:19). Os centros de produção artesanal nascem igualmente pela aproximação às matérias-primas e, por isso, as “barreiras”7 destas zonas foram determinantes para a produção que lá se faz. Assim, temos em Portugal centros específicos apostos ao barro, devido à existência da matéria-prima nos locais. As criações do povo apenas são o resultado da inteligente utilização dos recursos dessas zonas.

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“Todos os barros primitivos são mal cozidos; nuns o calor brando não penetra na espessura do vaso; em outros apenas se denuncia fracamente, por vezes em uma só das superfícies.” Até que surgiu “a roda do oleiro. De origem antiquíssima e inaveriguável, o singelo prato de madeira que precedeu certamente o torno aparece figurado pela primeira vez numa pintura de Beni-Hassan trazido plasticamente ao Egipto do extremo-oriente e passando sucessivamente para as colónias fenícias, para a Ásia menor e para a Grécia.” (PEIXOTO, 1990:92-93) 7 Local onde se extrai o barro.

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1.2.2 O BARRO EM BARCELOS

Barcelos que é hoje, foi em tempos parte do chamado Julgado de Prado8 de que faziam parte os concelhos de Barcelos, Braga e Vila Verde. As origens da produção oleira em Barcelos remontam à época Castreja e a influência estética dos modelos romanos e a cópia/imitação grosseira dessas mesmas peças traduzem-se no que hoje consideramos a “arte bárbara” actual. As referências aos barros desta zona são muitas, e a importância do Julgado de Prado nesta produção remonta à Idade Média (1258) onde os registos dos oleiros são de tal forma importantes que eram já alvo de impostos. Existia pois, uma preocupação do poder legislativo com a produção oleira já na Idade Média e as feiras da época foram determinantes para a disseminação e difusão geográfica da fama das louças (RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:20-21). Nos séculos XVI-XVIII com a regulamentação dos ofícios, cria-se o regime corporativo e a chamada “pirâmide” de mestres e aprendizes (RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:20-21). Também podemos encontrar estas referências, como sublinha Lapa Carneiro, na Corografia Portugueza de 1706 do Padre Carvalho da Costa em que se refere «o bom barro da vila do Prado de que se fazem a telha e a louça ordinária que se vendem por toda a província”; em 1876, Pinho Leal afirmou que «em Prado se fabrica muita telha e louça ordinária de barro que se exporta em grande quantidade»; em 1882, na Exposição de Cerâmica Nacional promovida pela Sociedade de Instrução do Porto o relatório de Joaquim de Vasconcelos refere os expositores de Vila Verde e Barcelos; e em 1886 José Augusto Vieira diz que «a telha do Prado cobriu todas as casa do Minho e que a sua louça ordinária, a louça dos pobres, invadiu todos os mercados da província» (CARNEIRO, 1970). No entanto, em 1899, Rocha Peixoto afirmaria a decadência das olarias barcelenses (PEIXOTO, 1990). Com a revolução industrial – ainda que tardia em Portugal – e a introdução de

8

Nas inquirições afonsinas de 1220, o Julgado de Prado englobava um conjunto de 16 freguesias.

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novos materiais e formas de produzir, o declínio da olaria deu-se ao mesmo tempo que surgiu o desejo de afirmação social. O ferro, o cobre, o latão, o estanho, o vidro, a prata e o ouro foram sempre considerados materiais nobres e, por isso, alvo de desejo; mais do que o barro, lama dos caminhos. O seguinte texto de Lapa Carneiro é explícito nesse sentido: «Sem poder no momento delinear uma tábua cronológica do aparecimento e da vulgarização dos materiais que sucessivamente vieram competir com a olaria, imagino que, na lenta difusão de cada um deles, o apego ao herdado, o geral baixo nível de vida, os condicionalismos geográficos e também a inadequação desses materiais a certos fins que o barro satisfazia, acabariam sempre por estabelecer um equilíbrio na concorrência.” (CARNEIRO, 1970:2)

A par da decadência da olaria tradicional, surgiram também a indústria, as fábricas e os moldes, e a consequente redução de peças produzidas na roda e decorrente descaracterização dos utensílios e das suas funções. Há também todo um paralelismo entre mundo urbano e mundo real de que nos fala Isabel Maria Fernandes: «Quando na segunda metade de Oitocentos os investigadores sentem necessidade de estudar estas produções, tal facto é já um sintoma da sua decadência...» (RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:30). Assim, além de competir em desvantagem com outras matérias, o barro tenta aproximar-se através do processo de fabrico às peças de carácter industrial e não artesanal. Este gesto, que levou à descaracterização das louças de Barcelos, vai continuar até «1950 e tantos, sob o signo da cópia de louças mais vistosas e da fantasia sem regra, que abrirão a madre por onde se escoa o maior caudal da actual cerâmica barcelense.» (RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:33). É interessante considerar, relacionado com esta temática, o seguinte apontamento de Rocha Peixoto sobre a cerâmica e a deturpação das formas originais: «Ora sendo a olaria a nossa arte mais popular e de maior acesso por virtude do seu emprego doméstico imprescritível e comparticipando implicitamente de grande número de funções caseiras, outro poderia ter sido o aproveitamento das disposições tradicionais dos ceramistas rústicos, desdobrando com os mínimos recursos exigidos, as formas ou inamovivelmente mantidas ou visivelmente deturpadas.” (PEIXOTO, 1990:130)

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Perderam-se as feiras para se ganharem as grandes superfícies. Perderam-se os pregões para ganhar a “caixa central”. Perderam-se os barros para ganharem os plásticos. Mas, nos dias que correm, recorrer a uma peça de barro deixou de ser uma necessidade para passar a ser um luxo, uma moda, um gesto de quem deseja passar uma imagem de cariz popular e tradicional. O barro perdeu o seu carácter puro e ingénuo de material necessário, para ganhar um estilo próprio. Uma marca única. Um carácter de peça artística, antropológica, museológica. A tradição que ligava os núcleos familiares ao barro promoveu a continuidade de fabrico das louças desde os tempos mais remotos até hoje. Mas as pessoas ligadas ao barro carregavam fardo pesado; «os louceiros, patrões e operários eram considerados de humilde condição e indignos de uma filha de um lavrador. A sua indústria, a indústria dos cacos, não merecia a consideração de ninguém.» (CORREIA, 1969:3-4). Os barristas desta zona (Barcelos) estavam entregues a si mesmos; sem instrução escolar, sem apoios, motivadores únicos da sua própria publicidade, iam de feira em feira pelo país, vender nas feiras do Verão o que produziam no Inverno. Criaram uma linguagem própria, autodidacta, onde o conhecimento e a aprendizagem se fazia dentro do núcleo familiar. Por isso a fama que a louça de Barcelos adquiriu deveu-se unicamente ao trabalho e aos sacrifícios dos próprios barristas. Como já referimos, por todo o país encontramos vários centros barristas; fabricavam-se nestas zonas dois tipos distintos de olaria: a de uso doméstico e utilitário (necessária às tarefas diárias, em geral produzida pelos homens na roda) e outra de carácter menos prático (sobretudo brinquedos e decoração, fabricados pelas mulheres nos tempos mortos) 9. 9

É interessante analisar as diferenças entre as louças de cada um dos centros barristas mais conhecidos: em Barcelos (antigo Julgado de Prado), “as tradições são simplesmente populares, nunca tendo sido centro de arte”; com o seu figurado sortido, os seus barros toscos e rústicos. Guimarães e as suas Cantarinhas dos Namorados. Nas Caldas da Rainha: “a tradição (...) é mais recente e por isso mais artística e perfeita a obra”, com toda uma herança bordaliana, de um mundo fantástico e onírico e ao mesmo tempo a loiça vulgar, mordaz na critica social e tão característica com a loiça fálica. O Alentejo com os pratos decorativos, pintados com mil cores, tão representativos da doçura sublime da vida diária. E Estremoz onde “é bem mais longínqua do que nas Caldas [a tradição], mais rica de ensino artístico do que em o Prado, até mesmo que nas Caldas, a tradição artística” com as suas bonecas melífluas e

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Estes barros “inúteis” (FERNANDES, 2005) - Figurado - seguiram o homem em todas as culturas desde que o homem começou a imitar o que o rodeava e a imaginar coisas novas. Os bonecos de barro cozidos surgiram entre 8000 e 5000 a.C. como por exemplo no Egipto «onde essas figuras representavam figuras humanas, animais ou divindades, muitas vezes postas nos túmulos como pertença dos mortos» (CALVET; PERDIGÃO, 2003). Segundo Graça Ramos, a produção do Figurado, tanto em Barcelos como em outros pontos do país, começou como uma actividade suplementar da olaria. Usavam-se pequenos pedaços de barro a que se dava forma e que serviam para preencher os espaços livres, entre as peças grandes, aquando da cozedura. Estas pequenas peças, representações do quotidiano e do fantástico, tinham unicamente função lúdica: maioritariamente brinquedos e instrumentos musicais. Encontramos num texto de Luís Chaves a seguinte nota de Joaquim de Vasconcelos: «Os bonecos são na arte popular (...), a arte mais popular do país, que mais se multiplica, com mais facilidade, mais se insinua na casa, mais se liga à vida.» (CHAVES, 1925:61).

ingénuas, e as representações do quotidiano poético, da outrora vida de campo. O texto entre aspas é da autoria de Luís Chaves (CHAVES, 1925:62).

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1.2.3 FIGURADO DE BARCELOS

O Figurado referido no capítulo anterior poderá ser considerado como fruto de uma criação afectiva e mental onde «A expressão do imaginário tem um carácter compensatório e uma função catártica de libertação pela materialização, como se o oleiro ou a oleira no processo criativo pudessem substituir certas tensões internas por um certo prazer, um certo repouso.» (texto de Eric Many e Milice Santos in SEIXAS; PROVIDÊNCIA, 2002:12-20). Deste modo, o Figurado pode dividir-se em figurado e figurado sortido. O figurado (A1:4) reporta à estatuária estudada por Rocha Peixoto10; grosseira, modelada à mão, herança de uma arte tradicional e longínqua ou simplesmente, se relativamente recente, “primitiva e bárbara” na sua expressão. O oleiro representava o que conhecei, sobretudo os animais que o rodeavam. Peças pequenas, caracterizadas por dois acessórios que lhe conferiam alguma utilidade: o assobio e os orifícios para palitos. Estas duas características permitiam assim aos adultos a pertença, sem culpa, de um brinquedo. O figurado sortido (A1:5a e 5b) refere-se às «pequenas peças feitas em grandes quantidades e em moldes, que caracterizavam a produção no período que medeia entre os registos de Rocha Peixoto e o ressurgimento operado por Rosa Ramalho» (BARRETO, 1990:3-4).

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“A estatuária, cujo centro principal de fabricação é em Galegos, no concelho de Barcelos, modela-se à mão, só raro ajudada com estiletes grosseiros de madeira; e uma outra vez, quando nas peças se vêem ornatos geométricos em relevo, empregam-se formas de gesso e as conteiras de ferro que imprimem as cercaduras regulares.” (PEIXOTO, 1990, p.102)

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Temos, então, uma clara distinção temporal, produtiva e ideológica que divide o primeiro Figurado do segundo. O figurado entende-se como sendo feito até ao princípio do século XX, realizado sem moldes e como subproduto da produção oleira. O figurado sortido tem início no princípio do século XX, recorre a técnicas mistas molde, manual e roda – e tem um significado mais comercial (maior rapidez de produção, mais peças feitas, mais peças para vender, logo, mais rendimento). É esta ideologia mercantil que marca claramente a distinção entre os dois tipos de Figurado. Independentemente de ser figurado ou figurado sortido, estas peças de carácter popular mostram-nos uma realidade copiada mas também uma realidade imaginada (RIOS, 2006:42) - o “desfigurado”. Assim, a par do Figurado, o “desfigurado” (A1:6) é o resultado dos devaneios do artesão, projectados através da atitude regressiva

e

culpabilizante

onde

a

sexualidade

é

representada como pecado e onde as vivências interiores são simbolizadas através do defeito e do humor. Criam-se tipos sociais e representações culturais. Por o artesão representar tudo o que vê e sente, esta é a produção mais variada e mais intimamente ligada à vivência do oleiro: «O criador tem por detrás da sua criação desejos e ansiedades. No barro, molda, talvez, o mundo na forma da sua vida.» (RIOS, 2006:42). O diálogo existente entre a produção e a matéria; entre o oleiro e o barro, manifestam-se num jogo entre o fazer e o sentir11. O oleiro imagina a figura, cria uma história à volta dela, uma narrativa própria, um espelho da realidade que o rodeia. Assim, os animais assumem um carácter de personagem iconográfica e as figuras uma projecção da vivência do artesão. «As figuras criadas numa dinâmica complexa são fruto de processos pulsionais, inconscientes regressivos e transferências, devaneios, medos, 11

Graças ao trabalho desenvolvido pelo pintor António Quadros nos anos 50 e pela Escola de Belas Artes do Porto, chegamos a uma terceira fase com Rosa Ramalho e consequente elevação do estatuto do barrista. Esta fase e posteriores serão desenvolvidas noutros capítulos.

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angústias, produções imaginárias que atravessam a actividade mental e emocional. O figurado nunca se resume a uma cópia da realidade mas é marcado pelas projecções do mundo interno da oleira e do oleiro.” (texto de Eric Many e Milice Santos in SEIXAS; PROVIDÊNCIA, 2002:12-20)

Esta projecção do mundo interior que o Figurado nos dá permite conhecer a verdade do artesão que se esconde atrás das obras ao mesmo tempo que permite ao artesão uma regressão sem censura e autoriza a fantasia. O artesão faz-se criador; aproxima-se do plano divino. Projecta os vícios e as virtudes nos animais, e estes tornam-se espelhos dos valores. Rocha Peixoto é exemplar nesta análise que faz ao Figurado de Barcelos: «Todos estes produtos de modelação rústica, no seu naturalismo ingénuo, nas suas formas humanas reduzidas às indicações essenciais, no apertado âmbito de atitudes e gestos, na concepção dos seres fictícios e das monstruosidades, confirma a penúria anteriormente anunciada e estabelece uma indubitável coerência estética com as faculdades decorativas e a oprimida variedade formal. O oleiro realizou quase todas as composições que o escultor cerâmico empreende sob a inspiração das festividades e dos tipos populares, dos costumes, das tradições, da fauna local, exceptuando, todavia, as imagens de devoção, facto para registro entre a população de uma província onde «a religião constitui o fundo de toda a sua vida moral». Procedendo, contudo, semelhantemente aos oleiros modeladores que, para os mesmos elementos, usos e sucessos, buscam a tradução em barro, ficaram no estádio inicial, como impedidos de evolver, como sequestrados do exame e convivência com os produtos similares que o país fabricou.”(PEIXOTO, 1990)

Considerando o papel das mulheres na sociedade rural do Minho, esta necessidade de expressão inconsciente revela-se ainda mais forte se atentarmos que eram elas que desempenhavam «um papel determinante no funcionamento das relações da comunidade e da família, através de funções económicas, religiosas, sociais e simbólicas.» (FERNANDES, 2005:42) Tradicionalmente, as mulheres não se sentam à roda; elas aparelham as peças tiradas na roda e pintam, mas o torno é única e exclusivamente reservado ao homem: o oleiro. Eles produziam os objectos úteis; as mulheres, as figuras de restos: restos de tempo e de barro, para preencher restos de espaço no forno. São estes restos, estas inutilidades, os brinquedos que se vendiam em romarias e feiras12. Assim, o Figurado de Barcelos, de um modo geral, refere-se aos pequenos 12

As feiras foram, entre os dos anos 70 do século XIX aos anos 70 do século XX, os mercados abastecedores de figurado do país e asseguravam o quase total escoamento da produção destes artesãos.

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bonecos de barro produzidos no concelho de Barcelos, de expressão popular, resultantes do aproveitamento dos “restos” de barro, tempo e espaço decorrentes da actividade do oleiro. Pequenas peças de barro, integralmente modeladas à mão – figurado – ou resultantes de uma técnica mista (molde/torno e aparelhamento à mão) – figurado sortido. O figurado sortido tem muitas vezes uma forte marca da família; é puxado no torno pelo oleiro familiar – marido, pai ou filho – e terminado à mão pelos elementos femininos da mesma família, quer na modelação, na pintura ou no vidrado (RIOS, 2006:15). O Figurado de Barcelos, não perdendo o seu carácter lúdico de brinquedo para gaiatos e adultos, veio a conquistar as elites e difundiu-se por todo o país. «E assim nasceu uma produção que, pretendendo ser brinquedo, se revelou símbolo identitário de uma região, fruto da capacidade única dos seus artistas de recriar o real, criando um imaginário.” (RIOS, 2006:16)

É fácil encontrar nas feiras, bandas e coretos, flautas e assobios, cucos e rouxinóis, cabras e galos, parelhas de bois com o seu jugo, ouriços com maçãs vermelhas nos picos, feras imaginárias e um sem fim de representações originais e incríveis do mundo do artesão.

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1.3 A REPRESENTAÇÃO TRADICIONAL DO GALO

Tal como já foi dito, o homem sempre representou o que o rodeava, por isso, os animais foram sempre um reprodução constante na arte figurativa. Desde pequenas gravuras a grandes representações, os animais foram sempre representados pela sua importância no desenvolvimento humano. Talvez por isso, «as figurinhas de olaria são principalmente zoomórficas (...) trechos de impressões simplistas recebidas e repetidas na sua [do homem simples] ocupação contemplativa.» (PEIXOTO, 1990:113) De todas as representações figurativas e de todos os brinquedos representados, foi o Galo aquele que maior notoriedade atingiu. Saiu do anonimato e cresceu para o mundo. Citando Costa Barreto em artigo de Carlos Basto: «O oleiro de Barcelos está em toda a parte: em casa, no campo, na estrada ou na rua. Vê tudo, e tudo transpõe para o barro, não raro lhe transmitindo um sentido aguçado de crítica. Por isso observar as suas peças é ter à mão e entender o próprio Minho. Em casa, há primeiro, os animais com quem convive e que lhe são úteis: o galo, o boi, o porco, o carneiro, o cão, o gato. Os dois primeiros são, porém, o seu «Ai Jesus». O galo é o seu despertador, o pai das ninhadas de pintos que rendem boas moedas, uma das aves celebradas pelo historial religioso. E, além disso, ainda é altivo, vigilante, majestoso.” (BASTO in Jornal de Barcelos, 1991)

Já Rocha Peixoto, na sua Etnografia Portuguesa, concluíra que de entre a grande variedade de fauna representada no Figurado de Barcelos «O galo, porém, excede em número e em variedade todas as espécies da fauna. É a melhor tratada em nobreza de porte, a insistência de detalhes, em apuro final de modelado. Na impressão que as aves exercem destaca-se a que produz esta, visivelmente pelos costumes dominadores e másculos. Altivo e majestoso, vigilante e cúpido, todo o povo o celebra, em contos, em superstições, em cantares.” (PEIXOTO, 1990:114)

Altaneiro, de crista encarnada, uma cacofonia cromática em fundo negro, o Galo de Barcelos é produto do trabalho impressionante que os barristas de Barcelos desenvolveram.

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Há no entanto uma questão que se impõe: quem fez o primeiro Galo como o conhecemos hoje? Há duas formas distintas de considerar a questão: uma relativa ao modo de fabrico: o Galo de roda e outra relativa ao Galo de Barcelos, como símbolo. Se considerarmos que as representações de galos sempre existiram, como afirmou e exemplificou Rocha Peixoto, estamos então confrontados com três momentos: o Galito (A1:7), o Galo feito Em Barcelos (A1:8) e o Galo de Barcelos (A1:9).

Ainda que a diferença representativa se prenda única e exclusivamente com tamanhos e significados, as primeiras representações documentadas de Galos – com Rocha Peixoto – mostram galinhos pequenos, com não mais de dez centímetros, feitos integralmente à mão, com um assobio na base e, em alguns casos, buracos para palitos. Assim se lhes atribuía uma função que lhes permitia não serem meramente decorativos e supérfluos. São estes pequenos “galitos”13 os Galitos. A diferença de que já se falou entre figurado e figurado sortido faz recuar às técnicas de produção dos ditos barros. No tempo de Rocha Peixoto, estes eram modelados à mão; peças pequenas, toscas e rudes assim classificadas como figurado. O figurado sortido nasceu com o alargamento das técnicas utilizadas; a criação das peças através da mistura de modelação, moldagem e torno. O Galo, fazendo parte do figurado sortido, é produto desta diversidade de técnicas. 13

A definição de Galitos não surge em nenhuma das fontes documentadas. Utilizamos a expressão para ajudar na descrição desta estatuária figurativa.

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«Há cerca de meio século, alguns artífices de bonecos de barro da área de Barcelos inovaram bastante as técnicas de fazer, de melhorar e de decorar as suas figuras de cerâmica, utilizando a roda para a feitura de muitas das suas partes, tornando-as ocas, mais resistentes e de maior tamanho.” (ALMEIDA, 1990:99-100)

Uma das peças mais características a que se pode associar a utilização desta técnica mista é o Galo, que, para ser maior e não estoirar no forno, tem o corpo e o cabaço - estrutura principal da peça - tirados na roda (daí ser oco), e as asas, crista e bico aparelhados e decorados depois à mão (A1:10).

A muitos se atribuí a propriedade do primeiro Galo de roda, no entanto, e de acordo com a informação recolhida e os depoimentos ouvidos, apresentamos as duas versões mais comuns e possíveis a que correspondem também duas datas e dois autores. Apresentamos aqui esses dois barristas (o segundo barrista na realidade terá sido produto de um trabalho de grupo) a quem foi atribuída essa mestria: Domingos Côto e Emídio do Parral / Francisco do Monte. João Domingos da Rocha – Domingos Côto – nasceu em 1877 em Galegos Santa Maria e fez do barro a sua vida. Fundou um clã de barristas cuja referência é o nome Côto. Manuela de Azevedo, em artigo referente aos “Bonecos de Barcelos” no Diário de Lisboa de 10 de Julho de 1958 (A1:11a e 11b), conta, em entrevista a Domingos Côto, como nasceu o Galo de roda:

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«Ora há-de haver uns vinte e cinco anos, estava eu aqui sentado, a jantar e reparei num galo, de asas abertas, pimpão, a arrastar a asa à galinha, e, vai daí, disse ao meu irmão: «vou fazer um galo a namorar a galinha» [A1:12]. Pus-me ao trabalho e a gente virou p’ra isto que aí se vê, saíram esses feitos e imitados em todas as fabriquetas, que aqui ninguém tira patente e a vida custa a todos.” (AZEVEDO in Diário de Lisboa, 1958:7)

Fazendo as contas, e tendo em atenção a diferença entre a data de nascimento de Domingos Côto apresentada por nós (1877) e aquela apresentada por Manuela de Azevedo (79 anos em 1958 dá 1879), o “galo a namorar a galinha” teria sido feito por volta de 1933. Querendo acreditar que a memória do Sr. João o poderá ter enganado, não fundamentaremos esta data como possível. De acordo com o que pesquisámos, não existe nenhuma história de carácter sublime na criação de Domingos Côto. Domingos Baraça14 (barrista), quando inquirido relativamente a esta questão, afirmou ser de Domingos Côto o primeiro Galo tirado à roda. Comentou ainda, que por a sua segunda mulher (o segundo casamento foi realizado em 1922) não saber pintar galos, é que estes foram vendidos a uma senhora de São Vicente de Areias que os vidrou. Esta mesma senhora é que os terá levado à feira numa quinta-feira. Segundo Domingos Baraça, estes teriam sido um sucesso imediato. Esta senhora, de que se desconhece o nome, terá emigrado e falecido no Brasil. Por outro lado, apresentamos a defesa feita por João Macedo Correia (M.15) de 1960, no Boletim do Grémio do Comércio do Conselho de Barcelos) e no Jornal de Barcelos (A:13a e 13b) de que o primeiro modelador do Galo terão sido Emídio do Parral / Francisco do Monte. Emídio Gonçalves Braga (Emídio do Parral) nasceu em Areias de S. Vicente provavelmente em 1882 (de acordo com o texto de Macedo Correia escrito em 1960, Emídio, há muito falecido, teria, provavelmente, nessa data 78 anos). Era irmão do conhecido Mudo do Parral (Alberto Gonçalves Braga, conhecido pelas suas “Canecas de Segredo”) e filho do Ti João do Parral – João Gonçalves. Não era rodista, mas sim

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Em testemunho dado em Abril de 2007 Não conseguimos perceber quem era M. até ao testemunho dado por Carlos Basto em 2 de Março de 2008. O nome aparece sempre referenciado desta forma e da parte do Jornal de Barcelos não foram capazes de nos responder a esta questão. Segundo Carlos Basto, “M.” será a assinatura de Macedo Correia. 15

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modelador, por isso, desejando oferecer um galo como presente a uma moça, pediu a um amigo que lho fizesse na roda, para depois ele modelar. Esse amigo seria Francisco de Sousa – Francisco do Monte. Francisco de Sousa - “um mestre em olarias” (A:14) - , nascido a 4 de Fevereiro de 1885 e filho de João Baptista de Sousa (João do Monte), segundo a entrevista concedida por João Macedo Correia ao Grémio do Comércio de Barcelos terá afirmado: «O Galo que o snr. Francisco de Sousa apresentou 16 como sendo idêntico ao primeiro de pedestal e corpo fabricado à roda pode na realidade não representar fielmente aquele primeiro; devemos considerar que já se passaram muitos anos e que se trata de um artista a reproduzir o trabalho de outro. O primeiro Galo foi modelado pelo Emídio do Parral, irmão do Mudo do Parral, para o qual Francisco de Sousa, ainda muito novo, apenas abriu na roda o pedestal e o corpo. Francisco de Sousa, portanto, apenas fez a parte de rodista, que não é o galo nem nada que o pareça. Nesta peça de roda é que depois o modelador faz a modelação, que não é nada fácil. É muito mais difícil modelar sobre o barro oco porque não oferece resistência aos dedos e deforma-se com muita facilidade. Francisco de Sousa, que viu modelar esses galos, para os quais contribuiu, melhor que ninguém podia reproduzi-los. No entanto não tenho elementos para defender a sua fidelidade nem para a refutar. Mas de qualquer maneira, aceito sem escrúpulos que o primeiro galo devia ser assim qualquer coisa bastante incaracterística, seria desejar muito que lhe saísse das mãos obra com proporções e distinção.”(Boletim do Grémio do Comércio de Barcelos, 1960)

Considerando a possível data de nascimento de Emídio do Parral em 1882 e a de Francisco do Monte em 1885 e, tendo em conta que Francisco era ainda muito novo quando fazia já os trabalhos de roda, poderemos conjecturar o aparecimento do primeiro Galo de roda, de autoria destes dois ceramistas, por volta de 1898-1905. Independentemente da real atribuição do primeiro Galo de roda, este surge como 16

Este galo (A:15), apresentado em 1960 numa exposição denominada: Arte do Trabalho e a Indústria Regional, realizada pelo Grémio do Comercio de Barcelos, por ocasião das Festas das Cruzes, terá sido, a par de outras loiças de Barcelos, colocado em causa como sendo cópia da louça de Estremoz. Esta polémica, relacionada com a originalidade das mesmas, foi longamente discutida em diversos artigos de 1960 no Jornal de Barcelos.

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uma resposta a uma necessidade dos barristas; um meio de sobrevivência: fazer bonecos maiores que não “estoirassem” no forno, e que por serem maiores e mais vistosos teriam com certeza mais saída que os comuns Galitos de assobio. Foram, sem dúvida, estas as razões que levaram ao aparecimento do primeiro Galo de roda. Assim como qualquer outro dos elementos pertencentes ao figurado sortido, deveu-se a uma necessidade económica e à evolução tecnológica este desenvolvimento de fabrico. Antes de falarmos do Galo de Barcelos é importante desmistificar um ponto: é interessante constatar que, em parte alguma, até este momento, se associou a Lenda do Senhor do Galo ao Galo figurativo. Rocha Peixoto fala da profusão representativa do Galo, da forma como o povo o celebra em cantigas e histórias, mas não fala da Lenda que hoje em dia associamos à representação do Galo. Macedo Correia faz também menção a esta temática em As Louças de Barcelos: «Pelo seu estudo [Rocha Peixoto], feito em 1899, vemos que nem a popularidade do galo é dos nossos dias. Já naquela época ele cantava a grande altura e merecia dos modeladores a maior atenção e os maiores desvelos. Rocha Peixoto fala-nos do galo com grande entusiasmo. O galo é, pois, muito antigo também. Porém, não se refere à lenda do Senhor do Galo, certamente porque não viu qualquer relação entre aquele galo depenado, e o nosso exuberante empenachado e ricamente colorido. Creio que é um erro relacionar a lenda, que nem era conhecida dos nossos barristas, com este fabrico cerâmico.” (CORREIA, 1965:25)

Esta relação (Galo-Lenda) terá sido apresentada pela primeira vez por Simplício de Sousa17 e terá sido aceite por Pires de Lima que, em 1963, com a edição do livro A Lenda do Senhor do Galo de Barcelos e o Milagre do Enforcado, nos terá dado um “talvez”; uma possível base teórica para justificar a disseminação do Galo de Barcelos, 17

Esta afirmação é feita por Carlos Basto no Jornal de Barcelos a 20 de Junho de 1991 (A:16). Simplício de Sousa, funcionário do Grémio do Comércio de Barcelos, segundo o que encontrámos num dos boletins do mesmo grémio, num ofício enviado para Portugal pelo cônsul em Pernambuco António Pinto Machado: “Conforme tive a honra de oportunamente acentuar ao Exmo. Senhor Simplício, distinto funcionário superior da Secretaria desse Grémio, é meu intento servir-me deste tão garrido cartaz de propaganda da nossa terra [o galo] para fazer aqui a máxima divulgação da nossa riquíssima arte popular.” (Boletim do Grémio do Concelho de Barcelos, nº16 1960)

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sem contudo argumentar a ideia de Simplício de Sousa. Por se tratar de um etnógrafo muito conhecido, a sua opinião acabou por ser seguida por outros autores como Maurits de Meyer e Paulo Pina (Carlos Basto in Jornal de Barcelos, 1991). Esta possibilidade, aceite e defendida pelo povo em geral, por ter uma base religiosa como justificação, encontrou todavia historiadores e antropólogos apostos a esta concepção. Esta perspectiva está bem explícita no texto de Carlos Almeida: «A lenda que o cruzeiro do «Senhor do Galo», entretanto também chamado de «Barcelos», nos ilustra não parou na sua capacidade de originar fenómenos culturais. A lenda do cruzeiro do Senhor do Galo era de há muito conhecida. Objectivamente e até 1963, ela não teve nada a ver, nem geográfica, nem cronológica, nem mentalmente, com a figura do galo cerâmico que o turismo lançara e tanto desenvolveu. Naquele ano, F. Pires de Lima publica um livro sobre A Lenda do Galo de Barcelos e o Milagre do Enforcado (Lisboa, 1963) a que se seguiu uma conferência local, onde o autor ensaiou o estudo comparativo dessa narrativa e afirmou a possibilidade de ter havido uma relação entre o galo da lenda e o da cerâmica. Poderá parecer, mas, até esse momento, não havia qualquer ligação. Mas tanto bastou para que pessoas locais o passassem a acreditar e os agentes e guias de turismo o divulguem mais. E o galo que era já um númen da cidade de Barcelos e tinha uma ascendência muito curta e até envergonhada por ser um simples fenómeno de quadro da feira de Barcelos e do turismo ficou com uma apetecida origem religiosa. E assim nasceu um mito.” (ALMEIDA, 1990:99-100)

Em testemunho dado por Carlos Basto18 ficámos a saber que esta união entre Lenda e Galo terá acontecido no meio de uma conversa entre este e Simplício de Sousa à qual Pires de Lima também assistia. Carlos Basto terá achado a ideia ridícula e assegurado que a Lenda e o Galo não tinham qualquer relação ou fundamento histórico, mas Simplício de Sousa (forte impulsionador das primeiras feiras de artesanato realizadas em Barcelos) terá afirmado que, independentemente de não ter fundamento histórico, havia muito interesse turístico. Desmistificada a origem, pouco verosímil, da associação entre a Lenda e o Galo, iniciaremos agora o estudo da última tipologia tradicional19: o Galo de Barcelos como símbolo.

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Testemunho recolhido a 2 de Março de 2008. No último capítulo falaremos do Galo enquanto superação simbólica; enquanto ícone.

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2. DO SÍMBOLO

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É graças ao nascimento da racionalidade científica na Grécia que o discurso lógico e a narrativa mítica se começam a opor. Procurar razões para fundamentar, exclui, por completo, a narração. Assim, se por um lado, a razão condena o mito e pretende exorcizá-lo, por outro, a verdade não é passível de ser totalmente racionalizada. O mito, que não é um método para procurar a verdade, mas antes para expor o crível, é decorrente de um tipo de discurso não argumentativo, mas antes sugestivo. Apela à imaginação e à sensibilidade estética e religiosa e não à razão. Ele não apresenta uma verdade em si mesmo, mas antes um sentido escondido; é portador de uma mensagem. Deste modo, se não permitirmos ao homem utilizar a sua imaginação, podemos mantê-lo cativo eternamente. O Estado Novo português, como qualquer estado totalitário, graças a uma racionalização dos princípios sensíveis, terá feito chegar até ao povo, um Deus, uma Verdade e um Sentimento, manipulados e inquestionáveis. Essa verdade20 traduz-se na criação de símbolos: e o Estado Novo terá sido um criador de símbolos. Símbolos cujo significado seria reconhecido através da simples identificação das formas visíveis e da sua alteração relativamente a certas acções. 20

Durante o período do regime a que se chamou Estado Novo, pretendia atingir-se uma unidade que permitisse redescobrir a autêntica natureza do povo de modo a orientar a nação para um caminho que se considerava a “verdade”. Esta “verdade” que convém à nação, incontestável para o estado, deveria assumir-se aos olhos do povo como algo natural e não imposto. Dos materiais usados para construir a “verdade” – “a história - representação de um passado exemplar - a alma do povo - efabulação de traços de carácter tomados por imperecíveis - e a vocação imperial - expressão de um génio civilizador e fautor de mundos” – existe um que se apresenta como factor fundamental para legitimar essa “verdade”: a memória. A memória permitia a legitimação das práticas sociais e decorrentemente, a natural absorção das práticas e discursos que se consideravam reais. Deste modo, a memória assume “na legitimação da

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Símbolo designa um elemento representativo (visível) que se apresenta em lugar de algo (invisível). Os símbolos podem ser reconhecidos por todos, ou somente identificados dentro de uma comunidade restrita. A representação simbólica pode ser resultante de um processo natural ou convencionada de modo a que a sua conotação implícita possa ser reconhecida e interpretada. Durante o período do Estado Novo ter-se-ão desenvolvido muitas “obras-coisa” que funcionariam unicamente como símbolos exteriores, aos quais corresponderiam – considerando uma consciência colectiva – uma significação determinada.

ordem social que o Estado Novo” um resultado de entendimento da memória “como «coisa construída», feita de silêncios e enfatizações, espaço de evocação daqueles heróis e feitos exemplares em torno dos quais se criam narrativas em que a nação se deve rever.” (CUNHA, 1994:22-23). A manipulação das memórias foi a chave utilizada pelo regime para construir uma identidade nacional que se projectasse como “verdadeira”; esta “verdade” criada, dividida entre o real e a recriação provocou na nação uma força interpretativa: cada um olharia a nação e descobriria nela as respostas para as suas necessidades (CUNHA, 1994:33).

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2.1 IDENTIDADE NACIONAL, HISTÓRIA E ETNOLOGIA

«Na era da globalização (...) a nação continua ainda a ser uma forma preeminente de identificação. E, como ocorre em todas as formas de identificação, pertencer-se a uma nação implica partilhar referências a um passado comum - uma memória - e acreditar que esse colectivo possuí características próprias: uma identidade.” (SOBRAL, 2006:2)

O princípio da nacionalidade, que triunfou no século XX com o fim da Primeira Guerra Mundial, teve o seu princípio na 2ª metade do século XIX. No final do século XIX, assistia-se a um claro interesse das potências europeias pelo continente africano. Portugal, por forma a definir uma nova política de colonização africana, e como tentativa de se proteger da presença das super-potências como a Inglaterra, França ou Alemanha no continente, e com base no direito histórico21, reclamava para si uma vasta faixa do continente africano, ainda que só tivesse colonizado algum território costeiro. Conscientes que o direito histórico já não era suficiente, ter-se-ão iniciado então explorações ao interior do continente por forma a reforçar uma estratégia de ocupação baseada na exploração e ocupação efectiva do território, em vez de uma ocupação baseada no simples direito histórico. A predominante visão colonial portuguesa terá originado então uma crescente reclamação por Portugal de áreas cada vez maiores do continente africano, o que terá levado a uma colisão com as restantes potências europeias: Inglaterra, que pretendia reclamar para si uma faixa de terreno do Sudão até ao Cabo, pelo interior do território, e Portugal, uma faixa de costa a costa a ligar Angola e Moçambique. Nascia, com este projecto de Portugal, o ainda não denominado “Mapa Cor-de-Rosa”. Resultante destes conflitos entre as potências europeias, é convocado um encontro internacional: a Conferência de Berlim. Realizada entre Novembro de 1884 e Fevereiro de 1885, teve como objectivo a organizarão e divisão do continente africano entre os vários poderes. O projecto apresentado por Portugal – “Mapa Cor-de-Rosa” – terá sido então 21

O país que descobria tinha direito ao território.

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aceite por todos os países participantes excepto pela Inglaterra. O grande aliado dos portugueses terá surpreendido pela negação do mapa e pelo posterior Ultimato Britânico de 1890. Decidido a “ignorar” Inglaterra, Portugal procedeu com o seu plano e conseguiu acordo com as restantes potências, tentando ganhar tempo, até ser confrontado com a necessidade de aprovação destas. Este caminho seguido pelos portugueses terá levado à ameaça de guerra, por parte da Inglaterra, se não se acabasse com o projecto do “Mapa Cor-de-Rosa” e se retirasse as forças militares existentes no território. Portugal, temendo a guerra, protestou mas cedeu, e recuou nas suas pretensões. O triste desfecho do “Mapa Cor-de-Rosa” deixou um rasto de humilhação e frustração que teria marcado Portugal durante décadas. Os portugueses, sofrendo então de um arreigado sentimento de vergonha, ter-se-ão manifestado de várias formas contra os ingleses e contra a monarquia, por permitir esse tipo de enxovalho. A título de exemplo, as estátuas dos heróis nacionais terão sido vendadas e cobertas de negro. É interessante constatar que, na sequência deste acontecimento, em 1890, Alfredo Keil terá composto “A Portuguesa”22, com versos de Henriques Lopes Mendonça: uma canção de cariz patriótico e em resposta ao Ultimato Britânico. Paralelamente a estes desenvolvimentos políticos, assistia-se, no fim do século, a uma revolução cultural que se fazia sentir graças ao desenvolvimento dos meios de transporte ferroviários que traziam da Europa as novidades e influenciavam esta geração com novas ideologias. Para introduzir aquela que poderemos considerar como a identidade nacional portuguesa, devemos começar por referir a chamada Geração de 70, ou Geração de Coimbra. Um grupo de homens (Alexandre Herculano, Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, entre outros), que «em vários momentos diversamente reunidos, para contestarem e discutirem valores culturais mais ou menos assentes (teses históricas, correntes literárias, estados de mentalidade, padrões de educação), mas foi também uma problemática, uma atitude mental, uma interrogação sobre a identidade nacional; falar desta geração é também abstrair dos homens e das obras e 22

“A Portuguesa”, que fora proibida pelo regime monárquico, tinha originalmente uma letra diferente, e o “contra os canhões” era então “contra os bretões”. Após a instauração da República a 5 de Outubro de 1910, a Assembleia Nacional Constituinte consagrou “A Portuguesa” como símbolo nacional a 19 de Junho de 1911, na mesma data em que foi adoptada a nova bandeira nacional.

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encarar uma temática comum, uma enunciação de problemas, uma definição do pensamento nacional.” (PIRES, 1980:53)

A ambição destes homens seria constituir uma reflexão sobre a identidade nacional portuguesa, com base na cultura e na história do povo, ou seja, com base nos estudos antropológicos e etnográficos. A antropologia portuguesa pode dividir-se então em quatro momentos distintos; a primeira grande fase de desenvolvimento da antropologia em Portugal ter-se-á dado entre 1870 e 1880, com figuras como Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Leite de Vasconcelos. Podemos afirmar que é graças à Geração de 70 que tivemos em Portugal uma antropologia de construção da nação. Esta antropologia não estaria somente direccionada para o estudo da cultura popular e da ruralidade, como vinculada à problemática da identidade nacional. Esta ruralidade seria olhada sob um ponto de vista descontemporaneizador. Mesmo quando olhada no presente seria vista como testemunho do passado. Um passado que teria obrigatoriamente de ser preservado antes que desaparecesse. Um passado passível de «purificar». A antropologia portuguesa destas décadas é um mundo avaliado pelo observador, um mundo que não permite indiferença: «Assim, nos anos de 1870 e 1880, a cultura popular é vista como um universo formado quase exclusivamente pela literatura e pelas tradições populares.” (LEAL, 2000:40-41). A consequência do investimento num estudo e conhecimentos teóricos obriga a uma descontextualização do concreto povo e cultura popular: a perspectiva historicista. A ideologia nacionalista, estipularia os atributos que uma nação deveria possuir, deste modo «a cultura popular era vista como um conjunto de testemunhos, conservados entre os camponeses, dos antecedentes étnicos mais remotos da nação” (LEAL, 2000:18). Portugal seria construído como um «indivíduo colectivo». «...os etnógrafos e antropólogos portugueses (...) foram também essenciais no processo de «objectificação» (Handler 1988) da cultura popular portuguesa, isto é, da sua transformação num conjunto de aspectos, traços e objectos que, retirados do seu contexto inicial de produção - o localismo da vida camponesa -, puderam funcionar como emblemas da identidade nacional. Esses «objectos que só nós temos e os outros não» (...) foram assim constituídos em símbolos sobre os quais repousaria a possibilidade mesma de se falar da identidade nacional portuguesa.” (LEAL, 2000:18)

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Mas esta perspectiva historicista perde para uma forma menos textual e mais complexa de analisar a antropologia portuguesa. Esta nova abordagem ter-nos-á levado até ao segundo período, que corresponde à viragem do século, e às décadas de 1890 e 1900 onde os objectos começam também a fazer parte desta análise. Assiste-se a uma erudição da visão menos poética e mais concreta do passado. O camponês, que passara a ser visto como um «primitivo moderno», é considerado uma representação negativa do homem moderno: rude, grosseiro, bárbaro «... uma entidade de que se lamentam os defeitos” (LEAL, 2000:43). É possível encontrar este tipo de abordagem nos textos de Rocha Peixoto e na continuação do trabalho de Adolfo Coelho. O terceiro período estende-se ao longo das décadas de 1910 e 1920, coincidindo, de uma forma geral, com a Primeira República. Virgílio Correia, Sebastião Pessanha, Luís Chaves e Augusto Pires de Lima são algumas das principais figuras. A cultura popular, sacrificando a perspectiva mais alargada da viragem de século, passa a ser vista como sinónimo de arte popular. E o fascínio pela arte popular levou a um levantamento dos núcleos mais importantes desta produção. Este levantamento permitiu uma elevação das peças a uma quase arte; uma etnografia artística. Assim, os objectos deviam ser vistos e apreciados. É o triunfo da imagem visual na cultura popular. Ainda que esta perspectiva aparente um recuo perante as portas abertas pelo pensamento mais analítico de Rocha Peixoto, leva a uma aproximação às colecções particulares e às feiras regionais como focos principais de etnografia. O contexto em que eram produzidas deixou de ser importante. «Mostrar e celebrar a cultura popular enquanto conjunto de objectos de arte popular, mais do que explicá-la, parece ser a opção dominante” (LEAL, 2000:44-47). Ao contrário do tom negativista de Rocha Peixoto, os novos textos celebravam as peças: «beleza», «simplicidade», «humildade», «tradicionalismo», «modéstia» e «singeleza». «A cultura popular tende nessa medida a ser vista como uma tradição remota e imemorial, tão remota e imemorial que seria redundante precisar o seu grau de antiguidade: por definição ela está lá desde o princípio do tempo. Por outro lado, e na medida em que o discurso etnográfico então dominante se articula frequentemente com um trabalho de activa reinvenção de tradições em crise ou já caídas em desuso, o passado de que falam os etnógrafos dos

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anos 1910 e 1920 é frequentemente visto como algo que se procura preservar e reactivar no presente, de forma a projectar neste as qualidades estéticas e morais que lhe estariam associadas.” (LEAL, 2000:44-47)

Se na primeira fase, de 1870 a 1880, existia uma visão onde a tradição era distribuída de forma homogénea por todo o país, e o local era irrelevante, com a viragem do século triunfa uma visão mais complexa de Portugal, como somatório de diversidades. Esta mesma visão, como referido anteriormente, centrava-se em torno do tema da decadência nacional, uma antropologia de problematização e interrogação da nação, sob um ponto de vista decadente. Ainda que o discurso optimista tenha vindo a ganhar posteriormente o conflito, será com a implementação da Primeira República que se passa a olhar para a nação portuguesa com um olhar de renascimento. É um período de forte patriotismo (1910-1920). Pretendia-se a criação de uma arte nacional. Cada característica individual de cada região seria fortalecida e louvada: aquilo que era verdadeiramente português; a base da nacionalização. Finalmente, um quarto período do desenvolvimento antropológico português que se desenvolve paralelamente e coincidente de forma política com o Estado Novo, a partir de 1930, e que dá continuidade ao período anterior, tomando como linhas de força a diversidade da cultura portuguesa. Este longo período tem auge nas décadas de 1940 e 1950. Dentro deste longo período, passível de ser dividido em 3 momentos de estudo23, podemos facilmente ligar um grupo de etnógrafos à política do regime, que reservou um lugar muito importante à etnografia e ao folclore. Assim, ainda que definida de diferentes formas, «a cultura popular é sempre o fundamento da identidade nacional” (LEAL, 2000:60). Entre 1870 e 1970, as etnografias portuguesas terão fundamentado a construção de um Portugal como uma comunidade imaginada; um estudo nacionalizador. «A antropologia portuguesa... [está] comprometida [...] com um discurso etnogenealógico de identidade nacional. [...] Enfatizando a nação como uma comunidade de descendência e destacando o papel da cultura vernácula, a língua e os costumes populares desempenhariam na sua definição, o modelo etnogenealógico teve entre os antropólogos, os etnógrafos e os folcloristas os seus «intelectuais orgânicos» por excelência.” (LEAL, 2000:16-17) 23

1930-1940: etnógrafos ligados ao Estado Novo e que estudavam o folclore; 1940-1950: apogeu do Estado Novo; 1950-1970: declínio do Estado Novo (LEAL, 2000:35-36).

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2.2.1 O ESTADO NOVO

Considerando, então, que a identidade e a memória nacionais são algo continuamente apreendido e reproduzido no quotidiano através de processos que permitem ao indivíduo uma constante identificação com “o que é nacional” – como contemplar a bandeira, repetir estereótipos e estabelecer uma proximidade quotidiana com o que o rodeia (SOBRAL, 2006:13) falta encontrar o produtor (além do homem ingénuo) destas práticas: o Estado. «O estado, produtor ideológico de memória e identidade nacionais, de legislação condicionadora de habitus fundamentais persistiu. Os símbolos identificadores - bandeira, hino, língua... - também. Apesar de os portugueses estarem cada vez mais em contacto com os outros e de serem por eles influenciados - no interior do território nacional, como no seu exterior - não houve qualquer hiato na sua percepção genérica de serem parte de uma cadeia contínua que os une às gerações anteriores, como não se alterou o seu entendimento de serem um colectivo com características próprias.” (SOBRAL, 2006:24-25)

Oficialmente, todos os Estados são hoje nações e considera-se a identificação nacional como algo «de algum modo tão natural, primordial e permanente que pode preceder a história...» (HOBSBAWN, 2004:19). Mas esta afirmação não é integralmente verdadeira; se por um lado temos a memória social24, por outro temos um conjunto de “tradições inventadas” de que falaremos mais tarde. A memória, que possuí um carácter colectivo, e a identidade nacional, «Não são redutíveis a uma configuração que apresentam em determinado momento. Passam por transformações do que era tido por mais essencial, sem que a maioria dos que se reclamam em ambas sintam que se operou uma ruptura irreversível.” (SOBRAL, 2006:22)

Ainda que desde o final do século XIX o conceito de identidade nacional se começasse a impor, foi após 1925 que 24

“Consiste no conjunto de praticas e conhecimentos adquiridos no seio do grupo em que se nasce e depositados no exterior do corpo humano, nomeadamente através da linguagem.” (SOBRAL, 2006:4)

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«ouvimos o tom emotivo do patriotismo moderno, que define pátria como «a nossa própria nação, com a soma total de coisas materiais e imateriais, passado, presente e futuro, que goza da lealdade total dos patriotas.»” (HOBSBAWN, 2004:20)

Esta exaltação do patriotismo tem originado, ao longo do tempo, excessos como as ditaduras e os extremismos, mas a verdadeira identidade nacional, aquela que une os povos, é um legado cujo sentido só é reconhecido por aqueles que dela (a nação) fazem parte. Deste modo, falar em identidade nacional implica uma não vinculação a atributos fixos, mas a métodos identificativos que só podem ser compreendidos no tempo. Esta compreensão prevê uma clara diferenciação e compreensão dos termos “Nós” versus “Outros” (SOBRAL, 2006:10). O pensamento que vigorou durante a Primeira República, como analisámos anteriormente, terá sido solo fértil para o que veio a suceder nos anos seguintes. Toda a mística e romantismo que envolviam o pensamento da Geração de 70 e que determinavam uma demanda pelo popular e original poderão ter sido os vectores para aquele que foi chamado o “reaportuguesamento de Portugal”25, ou a “institucionalização da portugalidade”. Esta campanha pretendia o reencontro da nação consigo mesma, um retorno às origens, ao originalmente português recorrendo não só às tradições inventadas mas também ao folclore26. O folclore que se terá desenvolvido como o instrumento da cultura e do «patriotismo cívico», uma forma de espírito colectivo. Este espírito colectivo e de pertença à comunidade traduzia-se no termo «patriotismo». Por forma a interiorizar e fortalecer o sentimento de patriotismo e para que o povo se sentisse parte da comunidade era necessário não permitir o isolamento dos cidadãos, mas antes juntá-los de forma a incutir o sentimento de comunidade. Além disso, impunha-se o cultivo 25

“Afonso Lopes Vieira [por volta de 1910] lançou a campanha do «reaportuguesamento de Portugal». O seu objecto principal foi a «reintegração» na vida intelectual portuguesa da arte dos «primitivos»...”(CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:30). 26 “Em 1900, a Enciclopédia Portuguesa Ilustrada traduzia folclore como a «ciência do povo» (folk significaria povo e lore, ciência). O folclore constituiria o «ramo da arqueologia que recolhe a literatura, as tradições e os usos populares»”. “Os folcloristas recolhiam as «antiguidades populares», termo pelo qual aliás, o folclore era conhecido em Inglaterra no princípio do século XIX”. “A folclorização foi uma das dimensões da emergência da legitimidade democrática na Europa. O «povo» não era qualquer aglomerado de indivíduos, mas uma comunidade unida por uma vontade colectiva. No entanto, a identidade do povo foi procurada no modo de vida, na língua, nos usos e costumes da população.” (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:25)

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exacerbado de um amor à nação como o amor dos habitantes pela sua aldeia. Para isso era necessário cultivar nos indivíduos uma sede de história, costumes e paisagens. Mostrar aos indivíduos que faziam parte de um todo, com a mesma origem: a nação, a pátria. De acordo com os estudos etnográficos realizados no fim do século XIX, era nas aldeias que a tradição se encontrava menos corrompida. Era à ingenuidade do homem do campo e à fonte inesgotável de práticas tradicionais que se devia ir buscar inspiração. “A boa arte era a que provinha do povo” (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:2631). Para os etnógrafos desta época27 – como Afonso Lopes Vieira ou Joaquim de Vasconcelos -, provavelmente inspirados pelos movimentos reformistas ingleses, nomeadamente no que se designaria por Arts and Crafts, o futuro da arte portuguesa estaria nas indústrias caseiras; na indústria popular. Proclamava-se uma necessidade de devolver a arte ao artesão; de voltar a ser feita e usada pelo povo. Proclamava-se um regresso ao primitivismo, à terra, ao folclore. «O folclore, a história, o sagrado, a harmonia com a natureza, a originalidade da fisionomia, são a prova material dessa integralidade e união coerente de todos os elementos do território.” (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:224)

Poderemos considerar que foi com base numa reflexão de elevação do original e do tradicional que o Estado Novo28 construiu todo um pensamento e uma dinâmica política. 27

É importante referir que este pensamento decorria da necessidade que a revolução republicana abrira. Mais uma vez encontramos a origem deste pensamento na Geração de 70. A República procurara instituir um culto da nação e dos símbolos nacionais – o hino, a bandeira, os mortos ilustres. Era necessário «excluir todo e qualquer vestígio do estrangeiro» no ensino primário.” Assim, “Foi com este espírito que dezenas de intelectuais republicanos fundaram a Renascença Portuguesa (1912), uma organização que se propunha preencher o vazio deixado pela proscrição oficial dos padres e da igreja católica. Teixeira de Pascoaes anunciou que vinham para «ressuscitar a Pátria Portuguesa», através da «criação, na alma do povo, dum ideal religioso, que lhe provoque os sentimentos de heroísmo e sacrifício, sem os quais nenhuma nação poderá viver”. Como complemento a esta ideia idolatrava-se o saudosismo - movimento nacionalista português, poético e filosófico, de carácter simbolista, que nos primeiros anos do século XX teve como representante o grupo da Renascença Portuguesa e a sua revista «A Águia» - e a eterna busca pela perfeição humana. Entre 1880 e 1920, por toda a Europa vivia-se numa busca ininterrupta pelas tradições poéticas e folclóricas que fundamentassem a nacionalidade. A Grande Guerra – 1914-1918 – acabou por dividir e isolar este pensamento originando diferentes efeitos por toda a Europa. (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:32-33). 28 O regime totalitário vigorou durante 48 anos em Portugal. Desde o golpe militar de 28 de Maio de 1926 (de 1926 a 1933 vigorou a Ditadura Militar, regime provisório dirigido por militares) que acabou com os

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Procurar as origens para sustentar e fundamentar um pensamento, vedar os espíritos à evolução e à modernidade, poderiam ser consideradas as regras-base que sustentariam a ditadura. Considerando que o período do Estado Novo foi uma ditadura, importa salientar que o regime de Salazar não foi no entanto um regime de poder absolutista: limitavam-no o direito e a moral. Foi, aliás, recorrendo à exploração da moral que se pretendeu validar socialmente esta doutrina de construção política divergente do liberalismo e do socialismo (SERRÃO; MARQUES, 1992:392). No sistema corporativista29, cada pessoa fazia parte de um pequeno núcleo, que pertencia a um grupo maior, que determinava uma comunidade que era um fragmento da nação: «... o que se fazia era deslocar o indivíduo da perigosíssima área da cidadania para o encerrar em esferas qualificadas e sobretudo restritas da opinião, em fragmentadas unidades sem qualquer possibilidade de influenciar o sentido e a produção mesma da realidade política. Tomado em si e na sua livre iniciativa, ao cidadão não se lhe reconheceria qualquer legitimidade. Da igualdade se disse pois ser a maior e mais perigosa utopia.” (SERRÃO; MARQUES, 1992:393)

O Estado Novo terá procurado sempre produzir e efectivar uma divulgação a que se atribuía uma imagética própria, atingir a nacionalização recorrendo ao tradicionalismo do mundo português. Como se todo o país fosse um museu onde a defesa da identidade nacional justificaria a atitude do conservadorismo. «Em constante ambiente de activa celebração com as massas das urbes, foi capaz de exibir total apropriação do património espiritual da Nação, procurando ainda, ele mesmo, equivaler-se aos grandes empreendimentos colectivos de outras idades históricas através da sua capacidade concretizadora, que de resto nunca se esqueceu de propagandear. Aqui com efeito a primeira grande ideia: conceber e festejar a identidade nacional.” (SERRÃO; MARQUES, 1992:427)

Esta necessidade de «conceber e festejar a identidade nacional» encontramos 16 anos da Primeira República até ao 25 de Abril de 1974. Corporizou um regime político que se autoproclamou como Estado Novo, depois chamado de Ditadura Nacional. Este regime político, instituído sob a direcção de Salazar, vigorou sem interrupção em Portugal, embora com algumas alterações de forma e conteúdo. 29 Com o intuito de combater a divisão promovida pela luta de classes marxista, o Estado Novo, tal como o fascismo italiano, propõe o corporativismo como modelo de organização económica, social e política. As corporações – organismos onde os indivíduos se agrupavam através das funções que exerciam – dividiam-se em morais, culturais e económicas.

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também explícita no excerto citado por Daniel Melo (MELO, 2001) do estudo de Santos Silva - Tempos Cruzados: Um estudo Interpretativo da Cultura Popular - onde este «reitera que a política estatal prosseguia uma “lógica de adequação a uma estrutura social tradicional”, procurando assim preservar a ordem socio-económica estabelecida: O Estado Novo é a reorganização político-administrativa que toma por critério [...] a estrutura social tradicionalmente prevalecente, tal como a “lia” no país rural e a tentava impor ao padrão urbano e de classes médias proposto na Primeira República.» (MELO, 2001:24) Glorificar a ideologia tradicional – os usos e costumes populares – e tudo o que de original remetia para o passado levaram à chamada folclorização. O regime pretendia estabelecer uma ideia de cultura popular coincidente com o ideal de cultura nacional. Igualmente, esta necessidade de preservar a identidade nacional sobrelevou-se ao progresso e à modernidade originando uma terrível contradição: “vontade criadora” versus “tradição consolidada”. «... Salazar [como homem proveniente do povo] considera a cultura portuguesa como a sua primeira e original fonte de conhecimento, nomeando a história, a tradição e a psicologia colectiva do povo como seus elementos constitutivos. A tradição é aqui encarada como lição da história, ou seja, uma forma peculiar de história «popular» que legitima uma leitura ideológica.” “A ordem, esse entendimento historicizado de uma paz social popular secular, é o caminho para a felicidade.” “O ideal é fugir ao materialismo do tempo.” (MELO, 2001:47)

A linha política definida pelo Estado Novo, procurava uma identificação com todos aqueles que, de forma consciente ou inconsciente, conservavam e defendiam os valores nacionais. Este era o «bom povo» português; aquele com que o Estado Novo se identificava. A mensagem que o Estado pretendia passar fundamentava-se em três pilares distintos: a religião, o nacionalismo e o ruralismo tradicional (que assim se opunham ao progresso cosmopolita). Destes três núcleos seleccionavam-se os valores mais convenientes e que permitiriam estabelecer um maior consenso passivo do conformismo social: «Família autoritária e patriarcal, trabalho camponês (vs. progresso técnico), naturalidade da pobreza, mediocridade ideal da subsistência (vs. inovação e risco), resignação à posição social de cada um, em articulação com a caridade

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«compensadora» dos favorecidos, obediência à autoridade...” (MELO, 2001:25)

Foi deste modo que nasceu a denominada “trilogia da educação nacional”, sob a divisa «Deus, Pátria, Família». O profundo sentimento que todos os portugueses deveriam sentir pela Nação Portuguesa era inerente à totalidade orgânica do indivíduo, que deixara de existir como pessoa, para passar a fazer parte de um todo. Um quadro de valores simbólicos que se reflectiam no nacionalismo30. O povo era a própria nação; mas uma nação simplificada para que o povo simples conseguisse sentir-se parte desse todo: pretendia-e despertar em todos os portugueses uma paixão pelo nacionalismo, pelo exacerbamento da grandeza da pátria e de fé na nação. «Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever” (SALAZAR, 1937:130)

Em suma, o Estado Novo procurou promover na sociedade portuguesa um modelo “nacionalista-ruralista-tradicionalista de cultura popular”. Serviu este para legitimar politicamente o regime e estabelecer uma unanimidade social em torno de um conjunto de imagens, práticas e valores, como a cultura popular, as tradições religiosas e a identidade do povo português. A nacionalização culminou numa ilusão provocada pelo Estado em que o povo rural era o apogeu da própria nação. «O entendimento da cultura popular enquanto articulação de uma cultura tradicional do povo e a transformação da mentalidade deste através da acção estatal legitimou toda a política oficial. Por via da recriação que fez da cultura popular, num sentido nacionalista, ruralista e tradicionalista, o Estado Novo operou uma identificação profunda com a comunidade que representava e condicionou fortemente a determinação do universo de valores integrantes da identidade nacional.” (MELO, 2001:378)

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“O nacionalismo, ao querer mostrar-se como arte ou ciência positiva das crenças socialmente comerciáveis, parecia desde logo, e através da voz que o encabeçava, decidido a atacar a questão da eficácia do que disse ser a sua ideologia – inviabilizar a possibilidade de ela vir a ser referenciada como fruto de uma imposição decidida superiormente, arbitrária. Por isso, o Estado Novo via na coesão moral o seu imperativo categórico.” (SERRÃO, MARQUES, 1992:395)

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O Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) - mais tarde transformado em Secretariado Nacional da Informação Cultural Popular e Turismo (SNI) - foi o organismo centralizador que operou a instituição destes pilares através da propaganda31. Ainda que recusando a modernidade, foi através dela que o Estado Novo concedeu reconhecimento simbólico e ideológico à cultura tradicional. Ainda que as artes gráficas fossem vistas como uma “arte menor”, é importante lembrar a importância do cartaz político para a Primeira Guerra. O conflito tê-lo-á dotado de uma nova elegância, não só política, mas também estética. As imagens e os slogans ganharam uma força própria. A necessidade que os estados tinham da propaganda concedera-lhe um lugar de ferramenta valiosa junto aos governos. No caso português, para Salazar, a propaganda era considerada de maior importância pela forma como possibilitava a formação da consciência pública e para a criação de um certo ambiente necessário, decorrente da falta de espírito crítico e vontade individual. Além disso, e instituída a Constituição de 1933 (A2:1), o mais importante para o Estado Novo residiria na limpeza de todas as práticas políticas consagradas pelo sistema liberal, daí a importância do Secretariado: cabia a este organismo a promoção e divulgação dos valores do novo regime. Valorizando a cultura tradicional, as novas manifestações assumiam-se como produto das de cunho antigo. Assim, a política de Salazar encontrou meio de comunicação na propaganda na maneira em que «Valorizou a cultura tradicional, coordenando uma estratégia de recuperação e de revitalização de manifestações tradicionais (a maioria ligada a motivos da religiosidade católica), e em muitas das suas iniciativas tentou cruzá-la com a cultura erudita, definindo assim um estilo de cultura oficial de sugestão folclórica.” (MELO, 2001:376)

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“A propaganda surgia aqui como um vector fundamental de entendimento da sociedade em relação a si mesma, apresentando-se como uma espécie de revelador da sua «essência», da sua «verdade», em suma, do seu «Espírito».” (MELO, 2001:54)

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Aproveitando toda esta amálgama cultural, o Estado Novo construiu toda uma filosofia histórica em que se considerava o período medieval como a “«idade de ouro» do mundo ocidental, os «Descobrimentos portugueses» a missão espiritual de difusão dos valores daquela época e Salazar o herói redentor capaz de estabelecer a relação com esse passado histórico.” (MELO, 2001:30)

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2.2.2 AS CRIAÇÕES DO ESTADO NOVO

Decorrente da filosofia histórica que o Estado Novo terá imposto, é importante referenciar os meios utilizados para criar essa “nova história”. Se por um lado existiu toda uma “política do espírito”, a materializá-la existiu o SPN/SNI. Quando em 1932 - entre 19 e 23 de Dezembro - António Ferro fez a Salazar uma série de entrevistas publicadas depois no Diário de Notícias, compreende-se como a identificação de uma política não seria suficiente para o regime. Seria necessário desenvolver todo um conceito imanente a essa política e que transmitisse simultaneamente a ideia simbólica da identidade cultural e também a sua aplicação prática: o «reaportuguesamento». Seria pois necessário construir todo um ideal da pátria e da moral a que se deveria obedecer (MELO, 2001:49). Segundo Salazar, seria graças à consagração da família, tradição, pátria e religião que se atingiria o «reaportuguesamento» da nação. Estes seriam os elementos identitários do povo português, e era dever do estado preservá-los e fortalecê-los. Esta concepção carregava de forma inequívoca uma matriz rural evidente. A “urbe” era a negação evidente do cidadão, só através do cultivo de uma ordem antiga e historicista é que se atingiria o nacionalismo (MELO, 2001:44-46 ). «O nacionalismo (português) adquire no pensamento salazarista a importância de uma verdade revelada, ideologicamente estruturada da acção política. É nele e por ele que se enquadram as linhas de força de uma identidade portuguesa, e, concomitantemente, da praxis política do Estado Novo. O nacionalismo, motor da história de Portugal e do seu contributo para o mundo, surge, assim, como uma herança fatalmente a prosseguir: «Sem receio colocámos o nacionalismo português na base indestrutível do Estado Novo; primeiro, porque é o mais claro imperativo da nossa História; segundo, porque é inestimável factor de progresso e elevação social, terceiro, porque somos exemplo vivo de como o sentimento pátrio, pela acção exercida em todos os continentes, serviu de interesse à Humanidade [discurso de Salazar Discursos Políticos, vol. II].» (MELO, 2001:46 )

Decorrente da visão etnológica32, e do apelo ao regionalismo, o elo de ligação 32

“Uma vez que esta disciplina tem como objectivo o estudo do povo, neste caso o português, é natural que se revista de interesse nacional.” (MELO, 2001:83)

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entre a tradição e o popular seria a “partilha simbólica da memória”. Depreende-se, pois, que não seria suficiente descobrir o povo, mas antes educá-lo. «A fonte de inspiração reside na leitura fornecida pela ciência etnográfica oitocentista. Tratava-se de recuperar aquele povo «concebido pelos etnógrafos do século anterior» e ajustá-lo à criação do «ideal salazarista de uma Nação rural, rica em folclore, cultura popular e tipicidade.” (Heloísa Paulo citada por MELO, 2001:38- 40)

A rejeição da inovação, a desvalorização da modernidade e respectivos valores, a recusa e simplificação do conhecimento técnico e respectiva “cristalização” da importância do conhecimento intelectual seriam as chaves para a promoção do «reaportuguesamento»; recorrendo ao regresso à tradição; nacionalismo, historicismo e tradicionalismo unidos numa peculiar associação: o reencontro, a permanência e a descoberta das origens num passado remoto. Deste modo, e com a finalidade de gerar e festejar a identidade nacional, centrando a mística histórica nos “Descobrimentos Portugueses” e no Império Colonial, foi conferido ao SPN/SNI e decorrente deste, aos artistas modernos – que eram contemporâneos de António Ferro -, a tarefa de construir uma nova memória colectiva (MELO, 2001:36-37). Este organismo que trabalhou, criou e vinculou a imagem de Portugal e dos portugueses ao novo regime, criou toda uma cartilha imagética que permitiu uma construção/criação da “nova” identidade nacional. Estes princípios geraram uma perspectiva “inventada” da realidade, a realidade salazarista (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:209). Deste modo, o SPN/SNI depressa se transformou no interface mais importante entre o estado e o povo, uma vez que era ele quem criava/filtrava a informação passada. «Panorama em tudo distinto do universo da «alta cultura» é o que agora se nos apresentará. A acumulação de capital privilegiaria quem melhor e mais depressa compreendeu as virtualidades imediatamente políticas da linguagem de raiz cultural. Para dirigir o SPN foi nomeado, em 1933, - funções que exerceria sem nenhuma interrupção durante década e meia – António Ferro, escritor e publicista.” (SERRÃO; MARQUES, 1992:402)

Assim, o SPN/SNI, através da mão de António Ferro, tentará criar uma imagem de marca de Portugal através da definição de uma estética tradicionalmente portuguesa

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que fizesse a ponte correcta ao passado histórico. Esta ponte, de inspiração nacional, seria a única forma de aliar o modernismo (de Ferro) ao nacionalismo (de Salazar): «A etnografia directamente ligada à «política de espírito» do Estado Novo, pelo seu lado, privilegiará uma concepção de cultura popular que se situa no seguimento da prevalecente nas décadas da Primeira República.” “Quer isto dizer que a cultura popular continua a ser vista durante o Estado Novo como sinónimo de arte popular, e a etnografia frequentemente classificada como etnografia artística.” (LEAL, 2000:44-47)

Decorrente de um artigo intitulado “Política do Espírito”, publicado no Diário de Notícias a 21 de Novembro de 1932, António Ferro explicitará as bases daquela que seria, para si, a melhor forma de prestigiar a nação aos olhos do mundo e também a si própria: «Um povo que não vê, que não lê, que não ouve, que não vibra, que não sai da sua vida material, do Dever e do Haver, torna-se um povo inútil e mal-humorado.” Em 1933, o governo criara o Secretariado da Propaganda Nacional, com António Ferro a chefiá-lo. Mas com o tempo, a “Política do Espírito” de António Ferro viria a transformar-se em “Polícia do Espírito”. A política cultural do Secretariado seria não só um veículo de propaganda, mas um eficaz instrumento de controlo. Era objectivo do Secretariado, através da cultura, da informação e da ocupação dos tempos livres, modelar um novo homem português à semelhança dos novos valores defendidos pelo Estado Novo: Deus, Pátria, Autoridade, Família e Trabalho. A clara compreensão que Ferro tinha da cultura como forma de domínio permitialhe transformá-la num instrumento de poder ao serviço do estado, através da contínua produção de informação – propaganda – e num alargado apoio às manifestações culturais, o estímulo dado às artes plásticas e à arte popular foi de tal forma que é claramente decorrente deste incentivo a “Campanha do Bom Gosto”: «O que nos prende, é porque nos encanta. Por isso o bom gosto dos povos é, turisticamente, o melhor colaborador do pitoresco das paisagens. (...) Não o faremos por serem de arte moderna, pois o bom gosto não é moderno nem antigo. (...) Por bom gosto entende-se, portanto, aqui, determinado estilo, determinada graça, determinado toque de originalidade que faz com que a fachada ou a simples janela de uma casa, a montra de uma loja, um cartaz, o recanto de uma sala de espera, a mesa de um restaurante, etc., nos atraiam discretamente os sentidos e, carinhosamente, os afaguem. A nota justa do conforto e da simpatia é-nos dada, assim pela conjugação harmónica dos

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elementos plásticos (volumes e cores), em lógica e estrita obediência aos fins a que se destinam. (...) O bom gosto é o contrário do artificial, do pretensioso, do feito em série e... do pires.” (CASANOVA in PANORAMA nº1, 1941)

Incentivando esta procura pela harmonia, é fácil compreender como crescem novos conceitos no âmbito das artes. A apresentação em Genebra, em 1935, e nas Exposições Internacionais de Paris, em 1937, e Nova Iorque e S. Francisco, em 1939, foram formas de aplicação da “política do espírito” em manifestações internacionais do “Bom Gosto” português. De certa forma, Salazar terá compreendido que lhe seria vantajoso, através da modernização da imagem nacional, adquirir a simpatia dos jovens artistas. A “política do espírito” de António Ferro dará ao SPN/SNI as bases para fundamentar conceitos propagandísticos, permitindo uma associação entre os interesses do estado e a criatividade dos modernistas. Desta forma, a “Campanha do Bom Gosto” poderia ser considerada como uma imposição do estilo nacionalista português, de alguma forma, culturalmente moderno e subjacente a uma estilização folclórica e regionalista. A nível nacional, assistiu-se a um crescimento das exposições de pintura, salões e certames (na urbe) e no resto do país à instituição de museus regionais onde se colocava o povo em representação de si próprio, através de marcas do seu quotidiano material, segundo o exemplo tradicional. Esta representação que recorria a jogos de escala33: «O país representado pela aldeia, esta representada na casa do povo, por sua vez representada no museu” era exacerbada na medida em que se incentivava a produção e reprodução de artefactos culturais em miniatura (MELO, 2001:78).

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As iniciativas do SPN/SNI em torno da arte popular dirigiam-se às classes média e alta da sociedade portuguesa, optando sempre para as mostrar em ambientes urbanos e cosmopolitas e não nos limites dos meios rural e periférico. Apresentados como revelação da alma nacional, pretendiam suscitar um sentimento de ternura pelos objectos representativos e característicos do país, transformando por isso a arte popular em instrumento de ligação amorosa à nação: “as miniaturas e os artefactos rurais com forte carga decorativa – facilmente transformados em souvenirs e em objectos de adorno e decoração – formavam um veículo ideal de amor pela pátria no espaço privado da casa e no dia-a-dia dos grupos sociais que se dedicavam à decoração do “lar”, frequentavam as pousadas e outros espaços públicos que a política do gosto do SNI contemplou. Ou seja, através de tais objectos, o país constituía-se, também, em objecto de afeição quotidiana.” (PAÇOS, 2008a)

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Decorrente de uma ideia de 1929, a grande exposição nacionalista de 1940 ganhou novos contornos em 1934. Pretendendo-se celebrar, não só o Portugal do passado – a fundação de 1140 e a Restauração de 1640 – mas também o Portugal de “hoje” – o Portugal de Salazar. A propaganda estava por isso garantida e, sob o mote “celebrações dos Centenários”, construiu-se aquele que viria a ser o expoente máximo da representação nacionalista portuguesa. É particularmente importante referir uma parte específica da exposição: o pavilhão da «Vida Popular». Projectado por Veloso Reis, este pavilhão, que continha todo um mostruário decorrente das exposições internacionais até à época realizados, e cuja decoração interior era principalmente baseada em motivos folclóricos, teria o resultado em pinturas alegres onde facilmente se reconheciam os particularismos de cada zona. Botelho, Bernardo e Tom terão sido alguns dos artistas envolvidos. Cingidos por essas delicadas decorações de carácter regional estavam objectos recolhidos por todo o Portugal, resultante das orientações estéticas que cabiam à Política do Espírito do SPN/SNI e que encantavam a sensibilidade de António Ferro. Este pavilhão efémero terá sido posteriormente reformulado para se transformar no representante máximo dessa forma de pensamento político, a materialização dessa concepção do “Bom Gosto”: o Museu de Arte Popular (MAP). O universo popular é posto

aqui

em

exposição,

assumindo

um

carácter

puramente

decorativo.

Consequentemente, toda a herança da Primeira República demonstra-se como sendo puramente “coreográfica”. A cultura popular adquire contornos de base, sobre a qual repousa a particular versão de nacionalidade através da qual o Estado Novo enredou. «Os objectos representativos do viver popular põem-se em movimento, num processo que é favorecido também pelo emprego de novas convenções visuais de estilização erudita da cultura popular assentes no desenho de inspiração moderadamente modernista e sem preocupações de reprodução exacta da realidade que era apanágio das iniciativas do SPN/SNI ou do grafismo adoptado pelo Mensário das Casas do Povo.” (LEAL, 2000:48-49)

Poderemos considerar o MAP como um museu de obras encomendadas, uma casa do povo “ao nível da nação”. Para Ferro, a fundação deste museu era o culminar de todo um processo de imagética visual, estética e simbólica da cultura popular e que servia

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para sintetizar todos os particularismos estereotipados da nação. Fundado em 1948, ele encerrava a materialização da cultura popular oficial e respectiva vertente folclórica numa galeria de tipos étnicos e artefactos regionais emoldurada por murais de artistas modernos. Associando a estilização moderna à inspiração tradicional da política cultural, havia-se conseguido criar uma legitimação figurativa para a imagem que o Estado Novo pretendia passar de Portugal. O MAP tornar-se-ia então no espaço irrepreensível de inspiração artística; o espaço onde o erudito e o popular se cruzariam de forma a potenciar inspiração e criação para o então chamado “Bom Gosto”: «O Museu de Arte Popular ficará sendo uma escola de bom gosto onde poderão vir buscar ideias, sugestões, para o arranjo das suas casas, os ricos que saibam vir aqui inspirar-se para os seus mobiliários e interiores portugueses e os pobres que, limitando-se a copiar o que virem, não precisarão de ser ricos para viverem com beleza.” (FERRO, 1948:22)

Este projecto, tão caro a António Ferro, serviria para a correcta difusão do “Bom Gosto”, definição por este entendida como algo verdadeiro, original, e em certa medida o único estilo português, construído na tipicidade da etnia portuguesa. A meta estaria assim atingida; com o SPN/SNI, António Ferro conseguiria, através do cultivo do regional pelo modernismo, atingir o que lhe fora proposto: o «reaportuguesamento» da nação. Esta meta atingida por Ferro seria o reflexo do que todos os estados totalitários procuram elaborar: instituir um universo profusamente simbólico. No caso do Estado Novo, os conceitos simbólicos seriam o popular, o povo e a tradição. Deste modo, o popular, que seria evidentemente a essência deste regime político, fora produzido (neste caso pelo SPN/SNI) para legitimar a imagem nacional e definir uma cultura cultivada ilustrada pelo povo (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:210-211). “No limite, todo o período que coincide com o Estado Novo pode ser visto a essa luz: como um período organizado em torno de uma guerra cultural acerca da natureza do vínculo entre cultura popular e identidade nacional, que põe face a face a chamada «etnografia de regime»...” (LEAL, 2000:19)

A matéria-prima, que era a cultura popular fabricada a partir da diversidade

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regional, gerara um legado único de tradição (inventada). O povo, com a sua simplicidade e espontaneidade, a sua sobriedade e devaneio, tornara-se no artista original. A nostalgia da arte popular permitira ao regime converter o homem simples no criador original: «Amar o povo é isto: consagrá-lo como o maior artista português, como o grande mestre da sensibilidade nacional. Amar o povo não é desvirtuá-lo, desenraizá-lo, não é transmitir-lhe ideias ou sentimentos de outros povos ou de outras civilizações. Amar o povo é amar a Pátria, é amar Portugal.” (FERRO, 1948:25)34

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Mas Ferro e o SPN/SNI não resistiram ao advento do pós-guerra e, entre críticas ao regime e pedidos de democracia, o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional) transformou-se em SNI (Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo em 1944) adquirindo igualmente novas funções: a fiscalização dos assuntos culturais. Aquela que fora a divisa da política cultural do regime (a “política do espírito”), passados 20 anos, estava praticamente arruinada. As novas gerações não se sentiam mobilizadas e a motivação primeira que fizera crescer esta ideologia estava fracassada. Em 1949, Ferro sai do SNI, “no momento em que a sua direcção já era muito criticada”. Independente desta saída, o sentimento incutido por Ferro permanecerá – possivelmente até hoje – enraizado no espírito nacional (CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003:227-228).

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2.2.3 COMO SE FORJA A IDENTIDADE NACIONAL

«Pode observar-se uma diferença notável entre práticas antigas e inventadas. As primeiras eram específicas e fortemente ligadas a aspectos sociais, as segundas tinham tendência para serem totalmente gerais e vagas no que respeita à natureza dos valores, os direitos e as obrigações da filiação num grupo: patriotismo, lealdade, dever, participação, espírito de escola e outros. (...) As práticas que o simbolizavam eram, virtualmente, obrigatórias - pôr-se de pé para cantar o hino nacional em Inglaterra, o ritual da bandeira nas escolas americanas. O elemento crucial parece ter sido a invenção de sinais emocionais, e simbolicamente marcados, de filiação num clube, mais de que os estatutos e os objectivos do próprio clube. (...) A Bandeira Nacional, o Hino Nacional e o emblema Nacional são os três símbolos através dos quais um país independente proclama a sua identidade e soberania e, como tal, eles exigem um respeito e uma lealdade incondicionais. Reflectem em si mesmos todos os antecedentes, pensamento e cultura de uma nação.” (HOBSBAWM, 1988:14)

Como explicita Hobsbawm, a maior parte dos símbolos e instrumentos simbólicos surgiu como parte integrante dos movimentos nacionais. Ora estes símbolos, a par das novas tradições, utilizam sempre que possível a história como meio legitimador e factor de coesão de grupo. As tradições que muitas vezes são consideradas - ou pretendem ser – antigas são, com muita frequência, relativamente recentes e muitas vezes inventadas. O termo “tradição inventada” engloba as tradições construídas e formalizadas de modo institucional e aquelas que surgem de um modo menos reconhecível mas que num breve período se fixam. Assim, as “tradições inventadas” serão um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica que procuram incutir valores e regras comportamentais através da repetição de símbolos do passado. “De facto, e sempre que possível, eles tentam estabelecer uma ligação com um passado histórico adaptável.” (HOBSBAWM, 1988:3-4) Podendo então ser caracterizadas por processos de formalização e ritualização, as “tradições inventadas” constituem uma referência ao passado, ainda que imposto pela repetição. Fazia parte do campo de acção do SPN/SNI investir na interiorização de novas tradições de cunho moderno. Estas novas tradições faziam parte do programa político

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do regime e deveriam facultar uma explicação aos portugueses da sua identidade. Um bom exemplo da aplicação dos conceitos do regime, aplicados pelo SPN/SNI na propaganda é visível no cartaz do “Decálogo do Estado Novo”. Além de ter sido afixado nas paredes, circulou de mão em mão em forma de folheto e foi reproduzido até à exaustão em páginas dos jornais. O “Decálogo” seria a “bíblia” conceptual desse pensamento (A2:2). Independentemente de serem consideradas novas tradições, não poderemos com isso afirmar que os costumes antigos deixaram de existir, consideramos antes que existiu uma apropriação dos velhos aos novos costumes ou então um deliberado esquecimento e recalcamento destas velhas práticas. Como consequência do nacionalismo do Estado Novo, incrementar-se-á a realização de certas produções nacionais. Este acto procurava recuperar símbolos da identidade portuguesa por forma a realçar o carácter singular da produção nacional (RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:34-35). Foi a função do SPN/SNI fabricar estas “tradições inventadas”. Essa construção fazia-se em duas partes: uma primeira fase de adesão do povo urbano a práticas culturais relacionadas com a matriz oficial geral, ruralista, tradicionalista e nacionalista; e uma segunda fase onde se procurava a adesão do público urbano ou estrangeiro a expressões culturais baseadas na estetização35 da cultura popular. Ambas as vertentes pretendiam seduzir e provocar uma reacção de reconhecimento com a matriz nacionalista que o regime tecia (MELO, 2001:207-208). Do amplo quadro de manifestações induzidas pelo regime através do SPN/SNI, é de frisar aquele que foi o grande campo de aplicação e intervenção do regime: o turismo36. Decorrente deste, as pousadas, o concurso da “Aldeia mais Portuguesa de Portugal” e a utilização do artesanato. 35

A «estetização da cultura popular» deveria incorporar manifestações materiais – como exposições – e reactivar as manifestações espirituais – como o teatro e o bailado. 36 É também importante referenciar um caso excepcional e que ilustra a segunda vertente do SPN/SNI: as “Marchas Populares” – que resultam da adesão da urbe aos costumes tradicionais-ruralistas decorrentes de um princípio erudito-popular. Considerando que as “Marchas Populares” compreendem um campo

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O turismo, que fazia parte das competências do SPN/SNI recebeu um notável desenvolvimento: compreendia-se que seria através do turismo que os portugueses interiorizariam mais a nacionalidade, e ao mesmo tempo seria um produto apelativo para os estrangeiros. O turismo seria o modo de “vender” Portugal; de lançar a imagem nacional no exterior. Para isso, Ferro, através do SPN/SNI, vai fomentar toda uma valoração e exacerbação do país: “«Dando unidade a todos estes países diferentes dentro do mesmo país, uma vida puramente nacional, de um alto pitoresco, em cores fortes e sólidas, e, acima de tudo, um povo admirável, aristocrata por instinto, que pode às vezes não saber ler mas que sente e entende como poucos»” (FERRO citado por MELO, 2001:252).

Recorrendo à construção de Pousadas por todo o país, de cunho profundamente nacionalista: projectadas e decoradas com estilizações regionais, o tutor do “Bom Gosto” acreditava numa correspondência regionalista e tradicionalista aplicada à decoração das mesmas. Era demonstrativa do estilo do Secretariado (SPN/SNI) esta necessidade de aplicar às composições pormenores de carácter nacionalista. “Segundo Ferro, vivia-se uma «época em que temos de nos refugiar na tradição», o que deveria ter correspondência no figurino das pousadas estatais: tradicionalismo de sugestão regionalista na arquitectura e na decoração interior, enquadramento pitoresco, gastronomia tradicional regional, baptismo das pousadas com nomes de santos populares, etc. (...) Na última pousada do primeiro ciclo, a de S. Lourenço (na Serra da Estrela), Ferro, reivindicava a «ideia da pequena casa acolhedora» como demonstrativa do estilo Secretariado. Nesta «pousada-bandeira», o estilo do Secretariado podia rever-se em pormenores como a decoração com objectos de arte popular («galos», pratos «ingénuos», tecidos rústicos), em contraposição às flores artificiais, almofadas de pirogravura e calendários de publicidade barata.” (MELO, 2001:254)

Mais uma vez encontrávamos associado o nacionalismo à arte numa amálgama ideológica de cariz tradicionalista. específico de estudo faremos uma pequena referência a esta, que foi e continua a ser, uma tradição inventada dentro da recriação da tradição, com carácter genuíno e popular, produto do encontro da urbe com as suas raízes. “De acordo com a teorização de Eric Hobsbawm, as marchas populares de Lisboa podem considerar-se uma tradição inventada. O conceito de tradição inventada implica a ideia de que nem tudo o que é considerado tradicional se perde na lonjura dos tempos. As marchas populares ainda vigentes foram de facto inventadas, construídas e formalmente instituídas num período curto e datável, o que corresponde à combinação de elementos dos dois tipos de tradições inventadas, definidas por Hobsbawm.” (MELO, 2001:278)

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A par desta proliferação de Pousadas, o SPN/SNI lançou, em 1938, o concurso da “Aldeia mais Portuguesa de Portugal”. Este concurso, que se pretendia bienal, deveria ser ponte entre o turismo e a etnografia ao potenciar o primitivismo das aldeias e exacerbar a dimensão artística e poética das mesmas. A apropriação simbólica a que Ferro terá recorrido para fomentar esta iniciativa pretendia desenvolver nos portugueses o culto da tradição; aquela tradição regionalnacionalista tão característica do regime. Este concurso, antes de mais, seria a resultado da fabricação e veiculação de uma metáfora; a materialização simbólica do nacionalismo instituído. Este terá sido um dos momentos mais significantes e de afirmação da “Política do Espírito”. À aldeia vencedora seria atribuído, pelo SPN, um prémio simbólico: o “Galo de Prata” (A2:3a, 3b e 3c). Este prémio, alusivo ao trabalho, ficaria exposto durante dois anos no campanário da igreja da freguesia. Ainda que simbólico, a este prémio corresponderia ainda um melhoramento a nível público do local.

O “Galo de Prata” marcava o sítio onde a nação, através das tradições conservadas e da ausência de influências da urbe, conservava todo um quadro de valores a preservar e difundir. No geral, a aldeia a que fora atribuído o título de “mais portuguesa” representava uma cristalização miniaturizada do que a nação deveria ser. Ainda que pouco desejo houvesse de imitar a rudeza da aldeia, este concurso permitiu suscitar todo um desejo e curiosidades relativas à alma pura que se conservava neste

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espaço. A rudeza das aldeias, a originalidade por elas sugerida eram marcas profundas de autenticidade que não deviam, nem podiam ser perdidas (CUNHA, 1994:30-32). “As sociedades camponesas (...) constituem pois um repositório de valores capazes de regenerar a nação.” “Mas no entanto o que se busca é tão só uma inspiração e não a recriação da «cultura popular» em todo o tecido da nação. Na verdade essa recriação é impossível: a história e a ideia de progresso negam de forma peremptória a possibilidade de uma reconciliação completa da nação com o que se entende sem as suas raízes.” (CUNHA, 1994:44)

Acima de tudo, o que se pretendia era projectar a imagem idealizada do mundo rural naquilo que ele tinha de mais profundo: a originalidade. Assim, o concurso do SPN/SNI não serviu apenas para encontrar a aldeia mais típica de Portugal, mas antes para legitimar o modelo de sociedade defendido pelo regime. Nos discursos dos Prémios Literários de 1939, António Ferro afirmaria que “O necessário, o verdadeiramente belo seria transformar Portugal rústico numa constante exposição viva de arte popular.”37 Este desejo expresso pelo progenitor do Secretariado acabaria por se reflectir nos bailados “Verde Gaio”38, nos “Ranchos Folclóricos”, nas “Marchas Populares”39, e num sem-fim de manifestações de cu/nho tradicional.

37

SNI, Prémios Literários, Discursos 4/2/39, p. 91 Os “Bailados Verde Gaio”, criados por iniciativa de Ferro em 1940, pretendiam ligar as tradições populares e as artes eruditas (A2:4) 39 Um dos realizadores preferidos do regime (e homem de confiança de António Ferro), José Leitão de Barros, terá dado como resposta a um desafio de Campos Figueiredo – na altura, 1932, Director do Parque Mayer – a realização das primeiras Marchas Populares de Lisboa. Um concurso de ranchos folclóricos disputado entre os bairros antigos de Lisboa, reforçaria a ideia de nação ancestral, rica em tradições e que aprofundava a sua política cultural carregada de simbolismos. Terão por isso sido a imagem do cruzamento entre referências rurais e urbanas, tradicionais e modernas (A2:5). É interessante constatar que estes novos festejos, integrados nas festas da cidade, terão sido apresentados como fazendo parte de uma antiga tradição. Não é por isso de estranhar que, volvidos trinta anos, esta seja uma “tradição” profundamente enraizada e festejada pela cidade de Lisboa, e não seja vista como parte de uma das muitas encenações promovidas, programadas e pensadas pelo Estado Novo. 38

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2.3.1 O ARTESANATO E OS SÍMBOLOS

Considerando que o artesanato é tão antigo como o homem, não é de estranhar que, até ao século XIX, a grandeza de uma civilização fosse medida pelo desenvolvimento que o artesanato e as artes haviam atingido (SOUSA; CAMPOS, 1989:9). Como afirmou Nietzsche “Quando um povo cultiva a arte há progresso, quando a abandona há decadência.” A partir do século XVIII, e como resultado da revolução industrial, o artesanato é relegado para segundo plano em detrimento das manifestações industriais. Cada vez mais ciente de que seria na máquina que o futuro residia, todas as tarefas manuais são rejeitadas em favor de uma industrialização forçada. Seria em Inglaterra que este processo se tornaria mais acentuado, originando, em 1851, a promoção da Great Exhibition de Londres pelo príncipe Alberto de Inglaterra. Esta exposição terá sido de maior importância, na medida em que permitiu mostrar o que se produzia a nível industrial em todo o mundo civilizado. No entanto, uma degradação estética imperava e a Great Exhibition serviu para o apresentar de forma consciente. Como resposta à exacerbação da máquina em detrimento do trabalho manual, assistiu-se à elevação de um movimento contestatário deste princípio: o movimento “Arts and Crafts”: “Na sociedade vitoriana tratava-se então a polémica duma moderna estética industrial lançada pelo incansável artista William Morris que, ao defender o modo de produção artesanal medieval, contraditoriamente fertiliza esse novo conceito no próprio ambiente exclusivo da sociedade “Arts & Crafts” que fundara (1860), estruturado pelas ideias do filósofo John Ruskin.” (MALDONADO, 1999:77)

O pensamento reformista Inglês terá tido a sua aplicação neste movimento que defendia a verdade da matéria e do trabalho humano contra a sobrevalorização da máquina e da indústria.

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A crise das artes e do artesanato é portanto remota, e de modo algum conseguira recuperar o espaço perdido. O conceito de artesanato não é unanimemente aceite e esse facto deu origem a uma proliferação de definições. Apresentamos aqui uma dessas definições: “O artesanato é uma actividade económica de transformação de matérias primas em objectos utilitários e/ou decorativos, mediante um processo de trabalho que dá todo o lugar à criatividade de um artesão altamente qualificado, que domina todas as fases desse processo. Trata-se de um processo onde não há, geralmente, divisão de tarefas, onde predomina o trabalho manual (embora se possa recorrer a máquinas que, de certo modo, se apresentam como uma extensão dos membros do próprio artesão), e que não comporta a produção em grande série, própria dos processos industrializados.” (SOUSA; CAMPOS, 1989:10)

Deste modo, e considerando que o artesanato terá como principal objectivo a criação de objectos úteis, alguns há, no entanto, que manifestam tal apropriação às funções a que se destinam que sugerem a verdade original do próprio objecto produzido. Como se, em vez de objecto, fossem extensão da função. Assim, muitas vezes, a «dimensão estética» destes objectos faz-nos esquecer a sua utilidade e é, nestes objectos, que a fronteira entre artesanato e arte se dilui e se opera a magnífica consumação original: a criação. “Mesmo no artesanato tradicional, ao reproduzir formas e padrões de carácter secular, o artesão não deixa de marcar, com a sua criatividade, a singularidade da obra que produz.” (SOUSA; CAMPOS, 1989:11). A actividade artesanal é então detentora de especificidades muito próprias; ela está intimamente ligada a aspectos económicos, sociais, culturais, patrimoniais e rústicos e conseguiu, ainda que perdendo para a indústria, afirmar-se como uma actividade significativa. Deste modo, o artesanato será uma actividade de produção manual, assistida por ferramentas comuns, que pretende satisfazer necessidades inseridas no dia-a-dia, tanto utilitárias como pessoais, assim como fornecer objectos decorativos para o lar. O artesanato poderá então caracterizar-se como tradicional, de uso corrente e com um cariz eminentemente artístico (MOURA in DIRIGIR 1994:21). Do mesmo modo, este terá sempre implícita a «verdade da matéria» - como afirmavam os percussionistas do movimento “Arts and Crafts”: o ferro, a madeira, o vime, a palha, o barro, o linho e a mão. Não esquecendo igualmente que a mão, que é

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gesto criador e que implica um «saber-fazer» praticamente perfeito, é transmitido de geração em geração de forma a marcar singularmente cada objecto. “Por trás da mão e do gesto, as pessoas e as suas histórias. Encontra-se a entrega generosa do artesão ao seu trabalho; o entusiasmo de quem gosta do que se faz, e a reserva de quem prefere o saber-fazer ao saber-falar.” (ALCÂNTARA, 1993:2-3)

De igual modo, o artesanato, dada a sua originalidade, é considerado variadas vezes como uma arte naïve: ingénua, natural, singela, simples, sincera. Podemos considerar que existem duas formas de percepcionar a arte naïve. Uma datável, dos primeiros anos do século XX, em que é assumida e aceite como uma forma artística. E uma que a considera como existente desde a pré-história da humanidade. Decorrente desta forma de compreender a arte naïve, o primeiro artista terá sido o caçador que representou na gruta a sua vivência. A palavra “naïve” implica uma noção de inocência e simplicidade, de inexperiência e candura em torno duma descrição emotiva do espírito do artista. Os artistas naïve não são artistas profissionais; regra geral vivem num mundo onde reinam os artesãos produtores de arte popular. Os produtores da arte «ingénua». Uma das especificidades distintivas da arte «ingénua» é o seu carácter a-histórico, não coincidente com o progresso40. O artista «ingénuo» tem sempre para com a sua produção um olhar único, um primeiro encontro com a realidade. Por isso a sua arte é original. A grande diferença entre o artista «ingénuo» e o «erudito» é a diferença de aprendizagem: o primeiro aprende comportamentos; o segundo, através dos comportamentos apreende formas que reproduzirá de forma crítica. É frequente a afirmação de que o artista «ingénuo» tende a imitar a produção do artista «erudito», esta afirmação não oferece fundo de verdade uma vez que o encontro deste artista com as formas cultivadas é sempre um «primeiro encontro». Não existe portanto evolução, apenas análise espontânea. Ainda que haja uma assimilação fragmentária da unidade culta/erudita, o verdadeiro artista «ingénuo» não imita, antes exagera, ridiculariza, torna jocoso. Na arte popular, essa duplicidade impõe-se desde o Romantismo: neste movimento cultural ter-se-á desenvolvido a tese do povo criador, 40

Aqui residiria o fundamento do Estado Novo ao sagrar o artesanato como a “Arte Tradicional”.

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esta ideia, na realidade, remontará ao século XVIII e a Gianbattista Vico41 e à sua Scienza Nuova: «O homem ignorante faz-se o centro do universo» e «de si próprio fez um mundo inteiro».” Poderemos então completar que o artista «erudito» é aquele que cria através da figuração do seu mundo, e que o artista «ingénuo» é aquele que reproduz o mundo. Esta imitação do mundo encerra em si todas as particularidades poéticas que a arte primeva manifesta. Por isso, a supremacia da expressão sobre a forma, que reconhecemos na arte «ingénua», é característica exemplar da diferença e marca clara para definir a origem desta a par da origem dos primeiros homens (SOUSA, 1970). A arte «ingénua» tornarse-á então na obra do povo, reflexo da originalidade do artesão – artista «ingénuo». Durante o Estado Novo, os produtos artesanais reuniriam as características essenciais daquilo que se procurara mostrar com a apoteose do nacionalismo; a verdadeira obra de arte era aquela feita pelo artesão, sem recurso a um pensamento: sentimento puro não racionalizado. Uns sentem, outros pensam: “O homem do povo, diante do que o emociona ou lhe prende a atenção, reage humanamente. O mesmo acontece ao espírito culto de maior elevação. Enquanto este, porém, possui um dom individual de apresentar em formas superiormente belas o resultado, aquele afirma sensibilidade também, homem sensível e emocionável que é, mas desprovido de capacidade livre de a exprimir, e atido ao conjunto determinado, tradicional, legado, complexo, de impressões, sugestões, associações, que lhe representam a categoria da cultura - a cultura popular. Artista é todo o que sente a beleza das coisas. (...) Só o grau de expressão exterior pode diferenciar qualidades artísticas, quer signifiquem alta cultura ou humilde submissão a regras paradas, quer tenham complicações psíquicas ou sejam de clareza meridiana. A arte começa onde a emoção principia. Um pensamento, que se traduz em forma, quer oral, quer plástica, exprime arte.” (CHAVES, 1959 a:10-11)

De todas as categorias do artesanato, terá sido na cerâmica que o regime encontrou maior forma identitária. Se o Estado Novo foi sobretudo uma época consagrada à escultura, a origem desta seria, sem dúvida, aquela representada pelo artesão na materialização cerâmica. Encontramos no catálogo da exposição de Arte 41

Gianbattista Vico, filosofo italiano nascido em 1744, Acreditava que a verdade só podia ser verificada através da invenção e não através da observação. A Scienza Nuova, defendia a sociedade em três fases humanas: Idade dos Deuses – formação dos valores sociais; Idade dos Heróis – as elites dominam as classes inferiores; e Idade dos Homens – momento de revolta das classes inferiores pelos direitos individuais.

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Popular Portuguesa as referências de Luís Chaves referentes à escultura e à olaria: “O barro tem nas mãos obedientes do oleiro a plasticidade, que Jesus reclamava para os discípulos - a obediência de criança. De qualquer pedaço de barro faz o barrista quanto quer. (...) Dentro da inspiração da natureza o artista dispõe valores, distribui planos, cria almas. Aqui, preso da mística celeste, enche de ternura e, como ânfora, trasbordante, espalha nas mãos lirismos encantadores. (...)... transforma tudo com traços de ironia, e prende nas figuras bocados de alma (...) olha para o mundo e pretende reconstituir dele, diante dos nossos olhos enternecidos de forma e de cor, quanto dele vive e sente: cenas de romaria, episódios da vida quotidiana, provas plásticas dos anseios. Quando o sonho desvaira, o barrista tem o Mundo inteiro nas mãos. Dispersa talento como espalha obra. (...) Insuficiência de técnica não destrói suficiências de espírito revelador. (...) A policromia a que chamamos bárbara, porque reservamos para nós outra que temos por civilizada, realçam a escultura.” (CHAVES in SPN, 1936:39) “As maiores invenções da humanidade (...) são as do homem primigénio, que nem falar sabia, e vivia num mundo para ele desconhecido: é o fogo, é a casa, o vestuário, a mobília, o barco, a arte de cozinhar os alimentos e de trabalhar os metais. A cerâmica foi das artes que nasceram com os nossos primeiros antepassados. O barro amontoado pelas chuvas ou o lodo depositado no fundo dos lagos e dos rios, oferecia-lhe uma matéria dúctil, plástica, de maneio fácil, que o sol ardente da Ásia, berço dos homens, depois enrijaria. O primeiro recipiente cerâmico decerto se inspirou nalgum dos objectos que rodeavam o nosso Avô pré-histórico: frutas, conchas, cavidades das rochas que a chuva enchia de água e até no côncavo da mão com que levava a água á boca sequiosa. (...) A cerâmica portuguesa é magnifica de forma e de cor. (...) Alguma vez mesmo vos acudirá à memória, em presença da decoração de uma ou de outra peça, a loiça das eras ante-históricas, amassada por ventura com o mesmo barro e por mãos tão rudes como as do oleiro antepassado. Em todas, porém, o povo deixou a floração, a graça, o imprevisto da sua nunca exausta fantasia.” (SPN, 1936:48)

O «oleiro antepassado», tal como o oleiro no Estado Novo, encerrava nas suas obras, e através das suas mãos, a alma e a vida do povo. Esta obra a que o oleiro dava vida apresentou-se como utensílio diferenciador e marcante para o regime. Se o Estado Novo ficou conhecido como produtor de símbolos, quem melhor do que o artesão, criador de mundos miniaturizados, para o materializar? A par destas manifestações, como afirmado anteriormente, o artesanato foi um campo produtivo muito explorado. Uma vez que a criação do povo se baseava numa herança tradicional, as peças de cunho tradicional eram a representação da matériaprima de origem arcaizante. O artesanato transformava-se assim num símbolo da criação cultural nacional. Ele era a realização material da cultura popular.

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2.3.2 O GALO DE BARCELOS

Um dos elementos de carácter arcaico, produzido artesanalmente, proveniente da cultura popular e que viria a transformar-se num dos símbolos mais difundidos e reconhecidos da cultura nacional seria, sem dúvida, o Galo de Barcelos. Estava-se em 1931, momento tranquilo consequente do abrandar da crise política. Iniciar-se-ia, em Lisboa, a 19 de Setembro o “V Congresso Internacional da Crítica Dramática, Musical e Literária”. Este acontecimento revestia-se da maior importância e o Comité Português aspirava organizar um programa vasto e variado em pesquisa cultural e em mostra nacionalista. Haveria sessões no salão de espectáculos do Casino do Estoril e constava do programa uma “Gala das 15 Nações” a realizar a 22 de Setembro. Caberia a Leitão de Barros a decoração do ambiente e respectiva orientação da sequência dos espectáculos de que faziam parte um «Musical Popular de Zés Pereiras» e «distribuição de brindes populares de Barcelos» (A3:1a). De modo a cumprir esta tarefa, recebia o Pintor Manuel Couto Viana a 16 de Setembro de 1931 a seguinte carta de Artur Maciel42: «Lisboa, 15 de Setembro de 1931. Meu caro Manel: estamos à brocha com o Congresso e precisamos absolutamente da tua colaboração. O Leitão de Barros, que está encarregado duma festa no Estoril, lembrou-se de distribuir aos congressistas, nessa altura, bonecos de louça, aí do Norte - Famalicão, Barcelos?... Deixou-me a carta que mando junto. Põe-te portanto a caminho, que a massa segue amanhã. Calculo que percebes bem o que é. Trata-se daqueles bonecos decorativos que só vendem nas feiras, bois, galos vermelhos e primitivos... Compra os que houver de mais gosto. Há uns grandes, mº curiosos, que o L. Barros comprou uma vez no Sor. Matosinhos. Dá conta das tuas demarches, telegráficamente, sendo melhor dirigir em meu nome, aqui, para o Teatro Nacional onde estamos em sessão permanente. O vale que amanhã segue dá margem a que tu te desloques de automóvel se for preciso, mas de forma a estar tudo aqui até domingo. tem paciência. Ob.º. Um abraço. Artur Maciel. É bom acusares esta carta por telegrama para nossa tranquilidade» (VIANA, 1988)

42

Jornalista e escritor.

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No mesmo papel timbrado que a anterior carta, mas sem data, escrevia Leitão de Barros: «Caro Maciel Convém modelos de maior tamanho, embora também bonecos pequenos. Dos maiores vi em tempos uns galos, grandes. Os modelos mais variados que poder ser, e de bom gosto (é escusado recomendar, sendo o P. Manuel Couto Viana). Com respeito a quantidade podem-se gastar até 400 escudos, e o seu amigo que os faça render... Os bonecos são para pôr nas mesas da ceia e para dar aos congressistas. As cores mais vivas e variegadas. É urgentíssimo comprá-los e enviá-los despachados, bem acondicionados e em grande velocidade de forma a estarem aqui domingo. O dinheiro - vale telegráfico de 500 paus - segue amanhã 4.ª feira. Seu Leitão de Barros». (VIANA, 1988:123-124)

Como podemos ver, os barros de Barcelos eram nesta altura ainda muito ignorados e desconhecidos fora do seu mundo próprio, segundo relato de António Couto Viana, “aproveitando a feira semanal das quintas feiras em Barcelos, que metamorfoseava a pacata e recente cidadezinha (ascendera a tal categoria apenas três anos antes) num extenso mercado (o maior do país), fervilhante de vida. [O Pintor] volta e meia parava frente aos vendedores de bonecos de barro que só atraiam a criançada aldeã, contente, ela, de lhes experimentar o agudo assobio, pondo assim uma nota mais de alegria no vozear alto que enchia Barcelos de ponta a ponta, feito de pregões, marralhos, cantigas, mugidos, grunhidos e relinchos. [A invulgar compra reflectiu-se nos vendedores que vendo que] os cestos adquiridos para transportar toda a imensa mercadoria iam-se enchendo a abarrotar, perante o pasmo e o riso dos feirantes, que não atinavam o porque de um tal «fidaurgo» adquirir às dúzias, aquela «bonecrada» própria para brinquedo de rapazio labrego, sem outro préstimo à vista. (...) Em troca dos bonecos toscos e mal sarapintados. Creio que todos os assobios de barro, de formas e cores originais e de bom gosto, se esgotaram nessa feira, sem esgotar o dinheiro destinado a adquiri-los.” (VIANA, 1988)

Este congresso, que se realizou antes da existência do SPN/SNI, terá sido, no entanto, referência para António Ferro que, cultivador do “Bom Gosto” e senhor de uma inteligência fulgente, aprendeu a lição de Leitão de Barros e levou consigo o Galo de Barcelos para o SPN/SNI transformando-o em símbolo nacional: utilizou-o enquanto digno galardão turístico, presença entusiástica da propaganda nacional e decoração exemplar da casa portuguesa (VIANA, 1988:122-126).

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Ainda que a estreia internacional do Galo de Barcelos, enquanto símbolo, se possa datar de 1935 com a Exposição de Arte Popular levada a Genebra43 e que o aparecimento do Galo de Barcelos no contexto socio-cultural se possa datar de 1931, com a “Gala das 15 Nações”, o Galo fora já alvo de cuidada atenção muito antes. A primeira geração de artistas modernistas em Portugal terá existido entre 1910 e 1920, prolongando-se a sua acção até 1940. O seguinte grupo de artistas terá partilhado, durante um tempo limitado, ideais imagéticos que podemos ver reflectidos num conjunto alargado de obras. Falamos de Sónia e Robert Delaunay, Eduardo Viana e Amadeo de Sousa Cardoso. No Verão de 1915, entre confusões estéticas e conflitos mundiais, surgia em Portugal o orfismo. Este vinha na bagagem de Sonia e Robert Delaunay (que procuravam refugiar-se da Guerra no campo neutro que era Portugal). Considerando que à época, por toda a Europa, se valorizava o brinquedo popular como fuga à disciplina académica, os bonecos de barro seriam então utilizados como exercícios de cor e forma, e também de revolução das memórias imagéticas através do contacto com estas poéticas

populares.

Eduardo

Viana

(A3:2), que comprava destes bonecos periodicamente nas feiras, terá levado até aos Delaunay o artesanato Português. Sonia, mais do que Robert, viria a ter alguma influência sobre o trabalho de Viana e Amadeo44. Estes novos dados picturais alimentavam as teorias orficas de Robert e animavam a objectualização penetrante da prática russa de Sonia. 43

Decorrente da Exposição de Genebra, a mesma mostra, em 1937, é apresentada na Feira Internacional de Paris, no Pavilhão Português, onde ganha um “Grand Prix”. O Galo de Barcelos conquista os franceses quer pela sua presença na sala do artesanato (A3:1b), onde estavam expostos dois exemplares similares aos Galos originais de roda produzidos em Barcelos pelos ingénuos oleiros, emprestados por Jorge Barradas, artista/ceramista/decorador colaborador do SNI (QUEIROZ, 1937)); quer através da venda de pequenos bonecos de barro e mesmo oferta aos ilustres visitantes das festas e eventos (REIS, 1937). O êxito repete-se nas feiras Mundial de Nova Iorque e Internacional de S. Francisco em 1939. 44 “Da prática francesa, Amadeo guardara apenas, nestas pinturas, os “discos” dos seus amigos Delaunays que ainda recentemente pudera contactar no Norte do país (…). Mas os seus «discos» (…) estão mais

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Viana, seguindo o exemplo de Sonia (A3:3a, 3b e 3c), pintará alguns quadros de inspiração folclórica (A3:4), de entre eles “O Homem das Louças” (A3:5) em 1919. Considerando esta abordagem original do Galo feita pelos orfistas e modernistas no início do século, não é portanto de estranhar a abordagem feita anos mais tarde pelos artistas da década de 40 e posteriores. Um bom exemplo disso é a capa da revista Panorama nº 4, de 1941 (A3:6), e consequente utilização do Galo de Barcelos em outras ilustrações e a sua aplicação decorativa (A3:7 e A3:8).

Desde o Galo pintado pelos orfistas, até ao Galo de Barcelos que em 1940, aquando das celebrações dos Centenários, se terá imposto no Pavilhão do Centro Regional e na reconstituição das Aldeias Portuguesas, o Galo (e o artesanato de um modo geral), terão tido real importância na forma como a imagem do Portugal “moderno”, mas baseado na tradição, se apresentava aos olhos do mundo nas feiras e exposições internacionais. Assim, em 1947, na inauguração do Museu de Arte Popular, em Belém, este seria de novo entronizado, como teria acontecido anteriormente. Ter-seá assistido assim à transição do Galo, enquanto objecto anónimo e ingénuo, até ao Galo de Barcelos como símbolo nacional associado ao turismo. Grande parte desta divulgação deve-se a António Ferro, mas muitos há que contribuíram para o fazer crescer e evoluir.

próximos dos de Sonia do que dos de Robert, por uma afinidade de entendimento de cor mais pura que terá que ver com extremos de sensibilidade de uma pintora. E veremos como outro pintor nacional deste círculo, Eduardo Viana, pela mesma altura e com as mesmas referências, confirma a observação.” (FRANÇA, 2004:34)

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Como explicámos anteriormente, muito do culto nacionalista induzido pelo SPN/SNI devia-se à forma como se impunha ao povo a nação em tamanho miniaturizado. A seriação do Galo de Barcelos não terá sido por isso uma hipótese desconsiderada. Graças à explosão do mercado turístico na Europa – decorrente do pósguerra – o Galo de Barcelos seria transformado em “emblema do Portugal arranjadinho, obediente e solarengo que o Estado Novo quis apresentar aos visitantes, fixando-se como emblema nacional.”(ALEXANDRA,2007) Assistia-se, portanto, a uma corrida desenfreada pela posse destes objectos identitários, tão ao gosto do Portugal dessa época, de tal forma que todas as casas “bem Portuguesas” deveriam possuir um exemplar do elegante Galo de Barcelos. Não é por isso de espantar que a marca “Galo de Barcelos” tenha sido alvo de uma tentativa de patente (A3:9a, 9b, 9c, 9d) e fosse alvo de discussão acesa a defesa da sua paternidade, pelos eruditos de Barcelos45. Admitindo que a paternidade do Galo de Barcelos não estará na pessoa ou oleiro que pela primeira vez fez um Galo de proporções maiores que as habituais, mas antes naquele que lhe deu porte, colorido e perfil, ou seja, naquele que o estilizou, essa mestria deve ser atribuída – para além de António Ferro (que o instituiu como símbolo e que, de forma engenhosa, viu as potencialidades ilimitadas do primitivos e ingénuos Galitos que desde sempre se fabricara em Barcelos) e dos pintores modernistas Sonia Delaunay e Eduardo Viana (que nos seus estudos órficos terão estudado o Galo como elemento pictórico) – a Gonçalves Torres46 – um dos mais conceituados artistas plásticos barcelenses, paisagista, caricaturista e retratista, nascido em 1908 e falecido a 4 de Fevereiro de 1987 e que se terá ainda distinguido como cenógrafo e ilustrador. Terá sido Simplício de Sousa, um apaixonado pelo artesanato local, membro do Grémio de Barcelos, e forte impulsionador de mostras e feiras de artesanato barcelense 45

Encontrámos uma série de artigos da década de 60, no Jornal de Barcelos, onde se discutia, não só a origem das louças de Barcelos, como se enfatizava uma série de artigos sobre a produção e o reconhecimento do Galo de Barcelos. 46 No crer dos cultos de Barcelos, o Galo de Barcelos, tal como hoje o conhecemos, terá sido idealizado por Gonçalves Torres, que lhe imprimiu os primeiros apuros e delicadeza. Como é possível ler em As Louças de Barcelos de João Macedo Correia: “Foi o Gonçalves Torres quem imprimiu ao galo de Barcelos os primeiros retoques a dar-lhe donaire e elegância”.

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(como vimos no capítulo “A representação tradicional do Galo”, terá sido ele a lançar o mote para a teoria de Pires de Lima daligação entre o Galo e a “Lenda do Senhor do Galo”) o elo de ligação entre Gonçalves Torres e António Ferro, através da amizade que o unia ao Director do Palácio de Cristal, António Pinto Machado47. Um cartaz de 1955, de Gonçalves Torres para a Festa das Cruzes (A3:10a e 10b), mostra já o galo desenhado por ele e, segundo Carlos Basto (A1:16), em 1957, no Jornal de Barcelos, Macedo Correia escrevia:

«Há tempos, o Gonçalves Torres meteu-se a aperaltar este nosso galo, e saiulhe então das mãos, o «moderno galo de Barcelos» (...) Claro que deixou de ser o ingénuo, para ser o «donairoso», mas continua a ser caracteristicamente regional: Por mim, julgo bem que entre as obras de Gonçalves Torres, será o «Galo de Barcelos», não só melhor conseguida, como a mais universal e aquela que melhor poderia e deveria projectar aquele pintor barcelense.»

Relativo às Festas das Cruzes, desse mesmo ano, encontrámos no Boletim do Grémio – nº4 – uma pequena referência sobre o Galo de Barcelos: “E no meio daquele mar de louça, vê-se o «Galo» o galo de Barcelos, com as suas cores garridas, altaneiro e como chefe daquela urbe de bonecada.” Em 1961, o Galo de Barcelos é pintado a branco, e vem até Lisboa, para ser oferecido aos “Noivos de Santo António”:

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Escritor e Poeta

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“O galo Branco de Barcelos foi idealizado pelo distinto escritor Senhor António Pinto Machado, ilustre director do Palácio de Cristal do Porto, aquando da realização dos casamentos de Santo António, em 1961, patrocinados pelo jornal Diário Popular. No almoço realizado nos jardins do Palácio, foi oferecido a cada casal de noivos, um galo pintado a branco e dourado e, a ornamentar as mesas, galos pintados a branco e dourado com corações vermelhos. A firma encarregada da execução dos galos foi a Cerâmica Magrou, de Barcelos. Portanto, os Galos Brancos de Barcelos, devem-se à idealização daquele ilustre escritor.”(Boletim do Grémio, nº29)

Mas a imagem do Galo de Barcelos não deixou de ser utilizada, e é fácil encontrá-la de forma estilizada e policroma em diversos cartazes propagandísticos (A3:11, A3:12, A3:13, A3:14 e A3:15).

O Galo de Barcelos passou a ser a referência do novo Portugal do Estado Novo; do povo, do tradicional, do artesanato miniaturizado que levava até à urbe a parte pura do povo ingénuo, o estandarte político do turismo Português, que perdera já a sua conotação original e ingénua, e se transformava em símbolo passível de ser aplicado e reproduzido em outros contextos e materiais (A3: 16).

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Mas o apogeu do Galo de Barcelos viria a ter um triste fim: e com a queda do regime, o símbolo turístico de Portugal, também sofreu consequências. O povo revolucionário, os artistas, os eruditos passaram a rejeitar tudo o que manifestasse nacionalismo e saudosismo associado ao Estado Novo. Portugal, graças à Revolução, ficava livre para a modernidade, para crescer livre de grilhetas, e sobretudo, para se afastar da memória da Ditadura e do passado. No entanto, se tudo o que estava associado ao Estado Novo era para ser esquecido, imagens havia que era difícil apagar da memória. É o caso do Galo de Barcelos. Deste modo, “quando, consequência do 25 de Abril, os irreverentes anarquistas o candidataram «ao poder», em esgrafites de slogans (A3:17), pelas paredes urbanas; e outros, desprezivelmente, o nomeiam símbolo do folclore «fascista»” (VIANA, 1988:121), outros há que ainda hoje o não consideram como imagem de marca identitária:

“... não se enquadra nem numa emblematização essencial do nosso ethos nem revela qualidades de aceitação, respeito ou contributo em relação à tal procura do melhor de nós mesmos. (...) Falamos do Galo de Barcelos, cuja lenda, aliás pouco interessante, está essencialmente, virada para a celebração do miraculoso em detrimento da justiça humana. (...) A lenda deste galo policromo, cujos bonecos de barro cozido são vendidos aos turistas como “souvenirs” portugueses [...e cuja] lenda peca pois descrente nos princípios da justiça e papel dos juízes, trocado em proveito do miraculoso. Nada justificaria, assim, que esta pobre lendazinha nortenha e o garrido galo depois celebrado em Barcelos, por fim vendido em profusão aos visitantes, sobretudo estrangeiros, tivesse estatuto identitário. O que de facto não tem, a

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não ser como lenda despicienda, por absurda, ridícula e descrente nos códigos e na justiça aplicada aos tribunais. Por isso propomos, (...), que este galo e a sua pedagogicamente errada estória sejam solenemente banidos do nosso objecto de estudos identitários. O problema do kitsh, (...), é que ele exprime sempre um produto fácil, banal, sem real conteúdo cultural, a não ser o seu mero sentido comercial que lhe confere algum valor, mas não livra da mediocridade vazia, ainda que a “felicidade” a ele associada o torne popular ou mercantil.” (MEDINA, 2006:97-98)

A banalização do Galo de Barcelos terá originado, desde o Estado Novo até aos dias de hoje, uma recorrente vulgarização e estereotipação do símbolo (A3:18), associada a uma profusão industrial de representações secundárias e inferiores do mesmo. Progressivamente, este ter-se-á transformado num objecto descaracterizado, inferior e banal. Uma insuportável recordação turística (A3:19a, 19b, 19c e 19d), aplicada de forma incauta e desencantada em todos os objectos comerciáveis. O Galo de Barcelos transformou-se num objecto superficial e contrafeito, finalmente atingindo o seu estatuto de “objecto do mundo” quando passou a ser MADE IN CHINA (A3:20).

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2.3.3 O GALO EM BARCELOS

Decorrente de uma profusão de retalhos nacionalistas e de uma errada concepção da nacionalidade, não devemos, no entanto, esquecer que o Galo de Barcelos, como nos é dado a conhecer na urbe, não é a mesma coisa que o Galo Em Barcelos, onde, apesar de este ser visto como uma forma de subsistência, e ter perdido, de alguma forma o carácter ingénuo, a sua verdade é mais profunda e mais sensível que o grotesco mamarracho industrializado, estandardizado, descaracterizado e profusamente vendido nas lojas de recordações. Em Barcelos existem diversos tipos de produção artesanal, ainda que, as principais, se dividam entre aqueles que, Em Barcelos, fazem o Galo de Barcelos, e os que fazem figurado sortido: a) os fabricantes de Galos de Barcelos em molde; b) os fabricantes e pintores de Galos de Barcelos; c) os pintores de Galos de Barcelos; d) e os artífices/artesãos, modeladores e pintores de Figurado. Na primeira categoria - a) - enquadram-se aqueles que apenas fazem Galos de Barcelos em molde. Têm uma pequena oficina e fabricam para vender. É exemplo disso a oficina visitada em Barcelos pertencente a António Freitas (A3:21): os moldes são realizados em gesso, através de uma matriz e são depois cheios com barbotina. Ficam a escorrer nas mesas que podemos ver na imagem e são depois deixados a secar no molde. Após atingirem alguma consistência, são retirados do molde e ficam a secar até serem colocados no forno onde são cozidos. Os Galos de Barcelos são depois vendidos aos pintores de Galos de Barcelos (c). António Freitas, que já pintou Galos de Barcelos, terá admitido – em depoimento dado em 2007 - que esta é uma actividade mais lucrativa do que a sua pintura.

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Os fabricantes pintores - b) - fazem Galos de Barcelos também em molde, num processo caseiro e artesanal – igual ao de António Freitas - e pintam os Galos de Barcelos “em família”. A família da D. Maria Luísa (A3:22) é exemplo disso. O marido, António Lopes Coelho, que dantes fazia e pintava os Galos de Barcelos, passou o trabalho à filha e genro que agora lhe dão continuidade. Orgulham-se dos seus Galos de Barcelos, garridos e originais, e defendem as suas decorações como sendo as mais perfeitas e detalhadas. As tropas de Galos de Barcelos alinham-se sobre a mesa, à espera que a mão hábil lhes dê cor e vida.

Existem também aqueles que só pintam Galos de Barcelos - c) -, como Mário Coutinho (A3: 23), cujo pai trabalhou numa das fábricas de barro do concelho e com ele ganhou gosto pela pintura. Ou como Isabel Costa (A3:24) - da família dos Côta -, a família de D. Emília (A3:25) - também da família dos Côta - e Emília Côta, neta de Domingos Côto (A3:26). Pintam para as feiras, pintam para quem lhes faz encomendas. Muitas vezes não sabem por onde param as suas produções, são centenas de Galos de Barcelos por mês, numa profusão de cor e parca originalidade. É a produção em série; decorrente de um trabalho familiar realizado em pequenos barracões contíguos às casas. Estas pequenas indústrias caseiras são o sustento de toda a família que se dedica maioritariamente à decoração dos Galos de Barcelos que serão depois vendidos por todo o país como recordação turística. O negócio é passado de pais para filhos, de filhos para netos, como outrora se procedia com a olaria. Por isso, quando Fernando Reis afirma que o “artesanato é saber e memória colectiva” (in RIOS; RAMOS; RÊGO, 2006:7), explicita de uma forma simples aquele que é o sentimento mais puro associado ao artesanato: o artesanato como herança cultural. Mas os artesãos não o sentem desta forma e por isso continuam a pintar; uns porque gostam, outros porque viram os seus pais fazer o mesmo, outros porque “os galarós” sempre lhes vão dando mais uns tostões.

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E há depois aqueles que modelam e pintam os galos tal como outro Figurado: d). Fazem-no como se fazia antigamente (depois do Galo de Barcelos, regressam ao Galo liberto de formalizações simbólicas estandardizadas), com as sobras das peças grandes, ou então, dedicam-se exclusivamente à «bonecragem». Existe, no entanto, uma importante distinção a fazer entre os artesãos reconhecidos por António Quadros48 e os seus actuais herdeiros. Os primeiros eram, verdadeiros artistas «ingénuos», em cujo trabalho se projectava um olhar de “rusticidade ingénua ou [...] a beleza da modernidade escultórica das peças...” (SEIXAS; PROVIDÊNCIA, 2002:9) e que, enlevados por serem a ligação com o «outro mundo», um mundo onde a imaginação não tem regras, desenvolviam um trabalho onde o cómico, o ridículo, o caricato, o feio, o «mafarrico» e a tentação eram predominantes (RIOS, 2006:33). “Reconhecem os notáveis urbanos que a imaginação do barrista voa do sonho para o barro e comanda nas suas mãos, num encontro consigo mesmo, pois todas as formas são desenhadas simbolicamente, comandadas por um equilíbrio pessoal ligado à terra a que pertence, à fecundidade, às colheitas, valorizando, por representação, o trabalho.” (RIOS, 2006:46).

Esta geração, agraciada pelo reconhecimento das suas obras, deve-o sobretudo a António Quadros que, no início dos anos 50, descobriu as obras de Rosa Ramalha. Foi graças ao trabalho da Escola de Belas Artes do Porto que de novo se ouviu falar de Barcelos sem o estigma que já se associava ao Galo. O incentivo dado pelos eruditos urbanos, com formação artística, originou um regresso às técnicas e temas originais. Mais uma vez, e à semelhança do que acontecera na época do Estado Novo, os “organismos oficiais apostaram num turismo apoiado na recuperação de valores tradicionais.” (BARRETO, 1990:132) 48

António Augusto de Melo Lucena Quadros (1933-1994), pintor e escultor português nascido em Viseu, levou até à crítica erudita a divulgação da prodigiosa imaginação e expressiva modelação de Rosa Ramalha. "Foi no seu magistério como monitor e assistente na ESBAP que tomou a iniciativa de, no âmbito do ensino da Escola do Porto, promover a aprendizagem dos ofícios tradicionais portugueses, através do contacto com alguns dos seus mais inventivos praticantes, com o aval do director da ESBAP, o Arquitecto Carlos Ramos, [como ele] sensível à etnologia artística e ao cruzamento da fronteira entre artes eruditas e artes populares (já patente nas obras dos primeiros modernistas, Amadeo, Viana, ou o casal Delaunay)." (GONÇALVES, 1995)

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Estes barristas, que projectavam nas suas obras a sua vida, a sua alma, e o seu coração, produziam peças vivas a cada olhar. Com maior ou menor «ingenuidade», estes artistas souberam adaptar, modificar e personalizar esta “arte” mediante a sua sabedoria e o que de mais puro existia em si mesmos: a sua alma (FERREIRA, 2002:9). Estes artesãos, que ao barro terão dado forma, terão também moldado as suas vidas. E, usando as mãos do mesmo modo que usavam as palavras, conseguiram expressar aquilo que eram e no que os transformara o tempo. São barristas que conquistaram nome, mas antes de nome ganharam alcunhas, alcunhas que não são mais do que nomes feitos de histórias; histórias feitas de estórias; pensamento mítico... verdade fenomenológica. Se por um lado, os velhos barristas ganharam fama graças à sua ingenuidade – e a esta primeira geração de barristas pode-se, verdadeiramente, chamar artistas «ingénuos» como: Ana Baraça, Rosa Ramalha, Maria Sineta, Domingos Mistério ou Rosa Côta – os, que hoje em dia produzem, são já filhos e netos que continuam o trabalho dos pais porque este foi reconhecido. É toda uma nova geração que reconhece que a mais-valia do seu trabalho não está nas peças que produz, mas no nome que assina. Mais na cópia do que foi criado pelos seus antepassados, do que uma criação própria. Mais no marketing e na aposta comercial que na venda em feiras. São uma geração de artífices. Não queremos com isto afirmar que estes não são considerados artesãos, mas podemos atestar que são artistas que «perderam a ingenuidade». Tal como Salazar temera um dia, os artesãos modernizaram-se, cultivaram-se e deixaram de ser puros e ingénuos. São famílias reconhecidas pelos especialistas, vão a mostras nacionais, ganham prémios, orgulham-se da importância dos seus antepassados e dão continuidade ao trabalho destes. Têm praticamente estatuto de artista, assinam as suas peças e estas conquistam reconhecimento a nível nacional e internacional (BARRETO, 1990:136). O figurado deixou de ser uma futilidade, quem o compra reconhece-lhe a criatividade e o espírito arraigado que o torna diferente (RIOS, 2006:38). São alguns desses nomes Baraça (A3:27), Côta (A3:28), Mistério (A3:29) e Ramalha (A3:30). Em anexo apresentamos alguns dos exemplos figurativos das representações e reinterpretações que cada um deles faz sobre o Galo de Barcelos.

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É interessante perceber que em Barcelos estes nomes não estão associados a artistas («ingénuos»). As peças não são valorizadas, nem apreciadas, excepto em situações específicas em que se compra um ou outro «bonecro» para oferecer aos “Doutores do Porto” (BARRETO, 1990:137). Malgrado esta postura, a Câmara de Barcelos e o Centro de Turismo multiplicamse em esforços para apresentarem e dignificarem o trabalho destes artistas, para promover a recuperação dos ofícios tradicionais, e para mostrarem ao mundo como é o verdadeiro Galo “feito” Em Barcelos. Não é de estranhar que isto aconteça, uma vez que, grande parte dos artesãos com que chegámos à fala se queixa de uma falta de continuidade e de aprendizes, razão que os entristece e desmotiva. Mas aquilo que a vida do artesão tem para oferecer não é todavia o sonho de muitos. É um trabalho moroso, que implica um esforço muito grande e dedicação. Trabalhar com muito amor ao que se faz e menos com amor ao que se pode ganhar com isso. E se, por um lado os velhos artesãos já ganharam fama, difícil será para os novos imporem-se sem um forte impulso. Se por um lado existiu o artista «ingénuo», por outro assiste-se cada vez mais ao aparecimento destes novos “artesãos” modernos – artífices. Este novo tipo de artesanato, com que nos deparamos regularmente, respeita perspectivas muito concretas e sobretudo muito comerciais. E por isso, assiste-se cada vez mais, a um esforço de criação artística mas sem um desejo de criar arte.

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3. DO ÍCONE

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«ícone s.m. (1914 cf. CF3) 1 nas igrejas orientais, representação de uma personagem ou cena sagrada em pintura sobre madeira, não raro recoberta de um metal precioso e pedrarias, ela própria considerada sagrada e objecto de culto [Há tb. Ícones em mosaico e baixo-relevo.] 2 p.ext. representação artística de divindade ou de assuntos de carácter religioso 3 fig. Pessoa ou coisa emblemática do seu tempo, do seu grupo, de um modo de agir ou pensar etc. < Jackson Pollock é um í. Do expressionismo abstracto> 4 INF elemento gráfico que, em sistemas operacionais ou em programas com interfaces gráficas, representa determinado objecto, operação ou hiperligação, sendo ger. accionável por um clique de rato 5 SEMIO signo que apresenta uma relação de semelhança ou analogia com o objecto que representa (como uma fotografia, uma estátua ou um desenho figurativo); p.ex., o desenho de uma faca e um garfo cruzados que indicam a proximidade de um restaurante -> cf. indício e símbolo. ETIM fr. icône (1858) ‘imagem sacra das igrejas do Oriente’, do rus. ikona ‘imagem’ e este do gr.biz. eikóna ‘imagem sacra’, der. Do gr. eikón,ónos ‘imagem, retrato, imagem reflectida em espelho, simulacro, fantasma, imagem de espírito, semelhança’; JM e Nascentes tiram directamente do gr. eikón,ónos, pelo lat. icon,onis ‘imagem, representação mental, retrato’; na acp. SEMIO, pelo ing. icon ‘signo cuja forma sugere o significado’, mesma origem; ver icon(i/o)-; f. hist. 1914 ícone, 1922 ícono» (HOUAISSE; VILAR, 2003:2026)

A origem do termo ícone, comum desde o império Bizantino (330-1493), apresenta-se como a materialização de uma concepção ideal. Os ícones, que terão emergido enquanto formas de comunicação, pretendiam ser veículos de fé e de devoção. Estas representações sacras seriam manifestações visuais do ideal e do religioso: do mundo sagrado. Quem venerasse a imagem, veneraria o seu significado imanente. Desta forma, as características do ícone antigo aplicam-se em dois níveis distintos de significação: o material e o ideal. Ainda que ambos detenham o mesmo crédito, não deixam, no entanto, de ser representações do sagrado e do poder. Igualmente, os ícones

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religiosos, implicavam uma leitura simbólica profunda. Eles eram feitos para serem devotados e respeitados. Actualmente, falar de ícones, e analisando o texto de Reyer Kras – Icons of Design - sobre esta temática, significa falar de algo que não se prende simplesmente com uma representação simbólica, mas antes com uma mensagem para-simbólica. Os ícones existem enquanto representantes de um conceito de sagrado ou de poder, deste modo, é o “sagrado” que confere estatuto ao símbolo e o converte em parasímbolo/ícone. Hoje em dia, deveremos considerar que, contrariamente ao que acontecia no passado, os ícones já não podem ser criados, uma vez que a sociedade não aceita facilmente a imposição de ideias e figuras de carácter superior, mas antes confere ela mesma esse estatuto, se assim o entender. Um símbolo, que adquiriu o estatuto de elemento sagrado atingiu um nível de tal forma elevado que conseguiu ir muito além do seu conceito original. Por isso, cada ícone é em si, mais do que uma referência material; mais do que um retrato de si próprio; ele representa sobretudo a imagem da ideia que lhe deu origem: ele é a materialização da abstracção. Graças ao desenvolvimento industrial e às consequências de uma cultura popular que se viveu – e vive – contemporaneamente, os símbolos emblemáticos de uma época, graças ao seu modo de agir, pensar ou simplesmente por serem a materialização de uma conceptualização atingiram o nível de para-símbolo. Actualmente, se formos confrontados com uma Betty Boop de vestido branco esvoaçante, associaremos de imediato um carácter sensual à imagem. Esta associação, que se deve sobretudo ao resultado da elevação de um símbolo a ícone, remeter-nos-á, de imediato, para a imagem simbólica original de Marilyn Monroe, actriz. Marilyn, que em determinado momento se terá transformado no símbolo da sensualidade e sexualidade, não só graças aos seus comportamentos, mas particularmente ao momento do filme Seven Year Itch quando, numa saída de ar do metropolitano, acidentalmente a sua saia era elevada pelo ar, remeter-nos-á de imediato, para uma imagem de voluptuosidade e prazer. Apesar da figura ter sido alterada (o boneco Betty Boop em vez da humana Marilyn Monroe) a conotação sexual implícita estará sempre presente (A4:1).

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De igual modo, quando em 2003 Madonna lança o disco American Life, e na capa surge uma fotografia da cantora com uma boina, numa composição a preto e branco, de imediato somos acometidos por uma sensação de orgulho, dureza e rebeldia. Os sentimentos que esta imagem nos transmite, a par do que acontecia com a imagem de Betty Boop, são resultantes da apropriação de um conceito intrinsecamente associado ao símbolo que terá sido Che Guevara, líder comunista. Progressivamente, esta imagem de Che terá sido sagrada como a imagem da rebeldia contemporânea e usada como ícone representante dos jovens desobedientes e indisciplinados (A4:2). Igualmente, quando Homer Simpson se caracteriza alegremente com umas calças “à boca de sino”, numa profusão de dourados e com uma “poupa” sobredimensionada, somos rapidamente levados até à imagem do fanatismo, de um modo de estar muito próprio relacionado com a decadência da música rock e até mesmo de personalidade. A estrela que terá sido Elvis Presley terá consequentemente deixado de estar associada à música de uma época para se transformar em modo de estar e representação da decadência do rock (A4:3).

Deste modo, deveremos depreender que, quando se dá a apropriação de um símbolo em para-símbolo, a imagem a ele associada deixa de lhe pertencer e pode ser alterada, reconstruída e metamorfoseada, mas o seu conceito imanente, aquele que lhe confere estatuto de ícone, é inalterável. Um vestido branco esvoaçante será sempre sensualidade, um perfil sério com boina basca será sempre rebeldia e uma “poupa” e lantejoulas será sempre a decadência do rock. Os ícones, que só existem enquanto apropriação dos símbolos, revestem-se da importância que os seus símbolos manifestaram podendo sugerir uma caracterização ou ridicularização dos mesmos.

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Enquanto um símbolo existe como referência de uma linguagem, o ícone é a manifestação dessa referência. Igualmente, ao nível dos objectos, podemos referir alguns que atingiram o nível de para-símbolo: a Union Jack, que deixou de ser unicamente uma bandeira e um símbolo nacional para ser transformada num para-símbolo da Inglaterra da cultura Pop graças à “banalização” decorrente dos anos 60 (A4:4); o mapa da rede de metropolitano de Londres – Underground – que deixou de ser uma representação bidimensional da cidade e do seu sistema de transportes, para ser elevado à representação da cidade de Londres (A4:5); o canivete Suíço que deixou de ser uma ferramenta para se transformar numa metáfora de plurifuncionalidade e precisão Suíça (A4:6); ou a lata de sopa Campbell, pintada por Andy Warhol que já deixou de ser sopa – ainda que continue a ser produzida – para ser elevada a representação da sublimação da cultura popular do ponto de vista da arte (A4:7).

Assim, se o símbolo é, na sua essência, a representação de um conceito original, então o ícone será o simulacro dessa mesma origem. Da mesma forma que os ícones bizantinos prevaleceram no tempo como uma imagem inalterada da sua memória, quase como se ficassem presos no tempo, também os ícones actuais funcionam como veículos que mantêm as memórias vivas. São imagens-espelho dos símbolos criados pelas diversas culturas e diversas vivências num determinado momento da história. Se não nos focarmos no ícone em si mesmo, mas antes no conceito que ele representa, maior será a sua conceptualização transcendental do real. A sua vitória está em não se ter perdido na história, mas antes em ter atingido um lugar na história graças à memória colectiva a ele associada. Os ícones transformam-se assim em marcos

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históricos cuja significação supera o seu significado original. Eles representam o que representam, não por serem os melhores, os mais bonitos ou mais perfeitos, mas antes pela ideia abstracta que interpretam. A partir do momento em que um símbolo se transforma em ícone, as suas características formais estão postas em causa. Ele passa a ser alterado a bom proveito de quem o quer fazer, ao contrario do ícone bizantino, que permaneceu inalterado de acordo com as regras religiosas que o criaram. O símbolo deverá ser sempre, obrigatoriamente, portador das características originais que o elevaram, enquanto o ícone pode destruir e reconstruir as especificidades que o originaram não sendo afectado em nada o seu significado. Assim, a Union Jack, que até aos anos 60 terá sido unicamente um símbolo nacional, graças ao movimento Pop, ter-se-á progressivamente metamorfoseado num objecto de carácter popular e, consequentemente, banalizada em souvenirs que se pretendem registar como manufacturados e provenientes de Inglaterra. A bandeira nacional, de carácter político e soberano, ter-se-á transformado num ícone que só existe enquanto apropriação do símbolo que lhe deu origem, e deste modo, graças à apropriação do ícone, o conceito de “amor à bandeira” e de “nacionalismo” são expressos num sem fim de representações de carácter diverso, como o micro vestido de “Ginger”, das cuecas, e até das bandeiras rosa da England Pride (A4:8).

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3.1 O DESIGN E A CONTEMPORANEIDADE

“To me design... is a way of discussing life. It is a way of discussing society, politics, eroticism, food and even design. At the end, it is a way of building up a possible figurative utopia or metaphor about life. Certainly to me design is not restricted to the necessity of giving form to a more or less stupid product for more or less sophisticated industry.” Ettore Sottsass (in DORMER, 2000)

Apesar de muitos estudiosos e teorizadores terem ao longo do século XX subvalorizado a parte artística do design industrial, e a considerarem como secundária, este tipo de conceptualização deve-se também à própria indefinição do conceito de “arte”. Este conceito, que se tem vindo a alterar desde o início do século XX, sujeitouse a alargar o seu campo de aplicação às mais diversas manifestações. Da mesma forma, os designers, que pretendem ser pensadores criativos, com capacidade de identificar e dar resposta às reais necessidades e preocupações da sociedade, através de tomadas de decisão profundamente influentes relativamente a novos produtos, tendências de mercado e estratégias de fabrico, estão, no entanto limitados pela necessidade de satisfazer um prazer pela qualidade estética que as formas puramente funcionais nem sempre conseguem evocar. Deste modo, o “frio design industrial”, que se ocupa e identifica, quase exclusivamente com o design de produto, confronta-se com o “design quente”49 na medida em que este se apresenta como uma tendência oposta por ser uma actividade projectista diversa. Deste modo, a preocupação do designer deveria ser dar resposta às necessidades efectivas decorrentes dos aspectos económicos, práticos, estéticos e afectivos da produção. Desde os anos 60, em Itália, o design terá surgido como um movimento que teria alimentado e aproximado, com muito sucesso, a visão do designer enquanto “artista”. O 49

Destinado à fruição artística e cultural, é feito por poucos, com poucos meios e para alguns poucos sujeitos sociais. Todo a produção pré-industrial pode ser considerado uma forma de “design quente”: feito artesanalmente por poucos e destinado a poucos. É o regresso nostálgico ao processo introduzido pelo movimento Arts and Crafts. A definição de “design quente”/ “design frio” deve-se a Tomás Maldonado.

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espírito do design como arte terá sido parcialmente incentivado pelo movimento vanguardista que terá levado os arquitectos italianos a tornarem-se “designers”. Este movimento, Radical Design50, fundamentaria o seu trabalho na filosofia, na arte, na produção e na oposição aos fundamentos do design racional e modernista, dos quais, o exemplo mais recente teria sido o Good-Design51. Esta corrente do design italiano - Radical Design -, que poderá ser considerada como a maior “escola” de “design quente”, terá operado sobretudo, ao nível dos valores, sentimentos e emoções. Do mesmo modo, e paralelamente ao que acontecia em Itália, no campo da arte já teria emergido um movimento semelhante duas décadas antes: a arte Pop. Nos anos 50 (em Inglaterra e na América), uma estabilização política e principalmente económica resultante do pós-guerra, teria por sua vez provocado uma valorização da cultura popular, graças ao enriquecimento dos hábitos de consumo e à ascensão extraordinária dos meios de comunicação que conferiam a tudo uma concepção trivial e vulgar. Esta vulgarização/popularização que os meios de comunicação fomentaram levou a que tudo o que fosse popular se tornasse em assunto de conversa. Assistia-se assim a uma transformação do conteúdo imanente das coisas e dos seus significados (OSTERWOLD, 1999:7). Considerando então uma analogia entre o que aconteceu com o movimento Pop (em que se assistiu a uma exacerbação das imagens e coisas e da sua consequente mobilização para outros conceitos), no Radical Design, também os designers italianos recriaram o mundo numa equivalência notória entre objectos e conceitos. A Pós-Modernidade, como termo criado para descrever fenómenos diversificados e que parecem constituir um reflexo da vida contemporânea, deverá assim englobar o movimento Pop e o Radical Design, podendo por isso ser considerado como uma reacção ao modernismo embora outros o considerem como um prolongamento deste.

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Movimento que surgiria em Itália, pelas mãos de alguns estúdios como Archizoom e Superstudio, como reacção ao Good Design. Teórico, politizado e experimental, através de projectos utópicos tentava alterar o conceito geral do Modernismo. O radicalismo, espontaneidade, carácter e emoção caracterizavam o Radical Design. 51 Conceito de design baseado nos princípios formais, estéticos e técnicos do Movimento Moderno. Uma abordagem racional e funcionalista aplicada ao design.

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Hoje em dia, graças à indefinição dos conceitos de design, arte e artesanato, as barreiras diluíram-se e o design transformou-se igualmente em fazedor de objectos emocionais. Deixou de existir o funcionalismo exacerbado e a radicalização emocional e tentam-se equilibrar os factores projectuais e económicos com os emotivos. Deste modo, tornou-se tão importante satisfazer o desejo do consumidor com produtos para amar como com produtos para viver. Assim, apostar no conteúdo emocional de cada objecto é determinante para o sucesso. Esta aposta no individualismo pode ser considerada como uma reacção à produção industrial e decorrente homogeneização produtiva. Um design cada vez mais estético, embora emotivo, cujos antigos princípios de forma-função-funcionalidade são postos em causa. Cheio de necessidades, que, tal como a tradição no Estado Novo, não serão mais do que necessidades “inventadas”. Deste modo, a actual tendência para a individualização funcionará assim, ao mesmo tempo, como uma forma de promover a expressão criativa individual e para satisfazer os desejos de um público cada vez mais exigente e elitista. Estas individualizações criativas levarão a um elevado custo produtivo e a uma criação de soluções que possam responder a essa procura/exigência individual, como solução para a melhoria da humanidade. Assistimos assim, actualmente, a uma passagem da produção em massa para a personalização em massa. “Os produtos precisam de estabelecer ligações emocionais agradáveis com os seus utilizadores através do prazer de manipulação e/ou beleza da sua forma. A emotividade é considerada por muitos designers (...) não só uma forma poderosa e essencial de facilitar ligações melhores e mais significativas entre os produtos e os seus utilizadores, como também um meio eficaz de diferenciar as suas soluções das dos seus competidores.” (FIELL, 2001)

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3.2 O GALO (DE BARCELOS) E A PÓS-MODERNIDADE

Nas décadas que se seguiram à Segunda Grande Guerra, os artistas rejeitaram tudo o que deixasse transparecer nacionalismo e nostalgia, associáveis aos regimes fascistas derrotados na guerra. Portugal, com o atraso resultante da manutenção do regime ditatorial até aos anos 70, não terá sido excepção. No entanto, durante a década de 1980, uma nova geração, sem qualquer envolvimento com o pensamento nacionalista, e seguindo um argumento fundamentado na busca por uma perdida e esquecida identidade nacional – que não é o mesmo que nacionalismo – começou a explorar o campo dos valores históricos até aí considerado proibido. “É nestas condições que o pós-modernismo vem instaurar, (...) aquilo a que podemos chamar a modernidade da tradição, o mesmo é dizer, a sua permanência no hoje, ainda que sob formas outras do que foram as do passado ou serão as do futuro. Por outras palavras, as formas artísticas evoluem, assim, como todo o ser evoluiu em seu movimento incessante, como evoluem a cultura e o pensamento, mas é tempo de as restituir, não ao passado, porque o passado não volta, mas a sua relação com o permanente (sob a fluidez do que devem), com o essencial (sobre a múltipla existencialidade), com o verdadeiro (para além dos erros, dos desvios e dos fracassos das referidas correntes de pensamento), com o absoluto (para além da relatividade que é o nosso lote palpável nesta vida), é, enfim, com o belo (face unívoca, coerente e orgânica de todos esses valores, síntese axiológica do espírito da verdade, segredada ao artista em sua intuição e meditação).” (QUADROS, 1987:201)

Igualmente, existe um equiparação entre o “frio” e o “quente” que se pode concretizar de forma paralela com o que aconteceu graças ao pós-modernismo. O século XIX, que se pode considerar “quente” - profusamente decorado e enaltecido - vai ser posto em causa pelo pensamento modernista (frio) em finais do século XIX. O Modernismo ao recusar a memória historicista numa formalização racional e “progressista”, vai ser posteriormente “gozado” pelos movimentos radicais que, reutilizando os símbolos e os ícones clássicos, nos anos 60 e 70, voltariam a dar expressão às manifestações emotivas.

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De igual modo, em Portugal o fascismo, que se pode encarar como “quente” por ser repleto de valores sentimentais e de exaltação das memórias nacionalistas, vai ser posto em causa, pela fria mentalidade política num imediato pós-Abril de 1974. Esta higiénica recusa de qualquer ligação ao passado nacionalista, e de modo geral a tudo o que tivesse um carácter de “memória”, vai ser posteriormente posto em causa pela geração “quente” que, reutilizando os ícones e símbolos da identidade nacional, nos anos 80 e 90, voltará a dar expressão às representações culturais e artísticas: à memória. Tomás Taveira será ainda hoje considerado como a imagem mais mediatizada de um pós-modernismo da cultura portuguesa. Este recorria ao uso de uma linguagem fundamentada no internacionalismo das novas expressões, formais e artísticas, que lhe concederiam uma capacidade de transfigurar o conceito de “portugalidade”. Imbuído então, de uma visão humorística e espectacular da projecção, envolveu no seu conceito pós-modernista todas as peças de fascínio, metáfora, transfiguração e simbolismo. Materializações simultaneamente efémeras e de feira, assumindo um carácter perturbante e animado. Num conjunto de exposições em meados dos anos 80, Taveira terá sido dos primeiros a elaborar uma reinterpretação erudita (não ingénua) do Galo (de Barcelos) ao lado de potes e panelas, cadeiras e outros objectos que, profusamente corrompidos, assumiriam novas metamorfoses resultantes de um divisionismo cromático e da justaposição de elementos geométricos. As formas originais seriam interceptadas por outras realidades, criando uma amálgama figurativa e largamente imagética, produto do método transfigurativo que o caracterizava. Igualmente, a transfiguração do Galo (de Barcelos) (A4:9) terá acontecido graças a um processo em que o aparecimento de uma nova realidade seria decorrente da reconfiguração das realidades conhecidas, e através de múltiplas figuras, para criar uma nova figura. (BROADBANT, 1990)

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Considerando então o paralelismo entre o que se passa nos dias de hoje e o que aconteceu durante o movimento Pop, é interessante ponderar como isso se reflectiu em termos produtivos: assim, resultado desta forma de percepcionar o Galo de Barcelos, poderemos considerar que existiram formas conceptuais distintas, no entanto convergentes, de materialização deste enquanto objecto de design, sempre como parasímbolo. Assim, após estas iniciais experiências de Tomás Taveira (embora sem ser por influência deste), ter-se-á dado como que um renascimento do símbolo Galo de Barcelos em para-símbolo: em ícone Galo (de Barcelos). A esta transfiguração, ou sagração, do Galo de Barcelos poderá associar-se uma libertação do espartilho formal da imagem “clássica” relacionada com a sua representação; assim, este deixa de ser o galo altivo e nacionalista; uma representação política hierática, para se manifestar como produto da cultura popular. Temos, claramente, que distinguir duas formas de “popular”: uma em que o popular é o puro, o vernacular, “do povo”; e outra em que o popular é o banalizado, o «pires», e o sublimar do Kitsch52; e referir o quanto esta evolução se concretiza com base no segundo conceito de popular53 – numa nova formalização e adaptação a grupos alvo específicos.

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A verdadeira antítese do Good Design. Expressão inicialmente utilizada como termo para designar recordações turísticas, bugigangas e todo o tipo de objectos não funcionais. Com o emergir do PósModernismo nos anos 80, foi louvado pela sua honestidade cultural e tendências populistas. 53 Decorrente da apropriação imagética por parte do Kitsch, deveremos considerar como fundamental o estudo do segundo conceito de popular, pois a metamorfose que existe associada ao Galo de Barcelos prende-se com esta representação e não com as manifestações originais do mesmo enquanto Galo ou Galito. Seria fundamental o estudo do popular “do povo”, se a cópia e transfiguração a que se assiste partisse desses originais e não do Galo de Barcelos (decorrente da mutação política). Aliás, assiste-se,

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Ele é estilizado, desconstruído, ridicularizado, caricaturizado e transformado em elemento gráfico de comunicação. Apropria-se formalmente a sua representação icónica para lhe conferir uma nova vida. Deste modo, cada um de forma singular, dá vida ao ícone e transforma a sua imagem sem no entanto descurar no simbolismo implícito – aquele que é conhecido que lhe é inerente.

actualmente a um revisitar do ícone enquanto Galo (de Barcelos) até pelos próprios produtores de figurado sortido, já numa leitura “a posteriori” do símbolo.

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3.3 O DESIGN E O GALO (DE BARCELOS)

À semelhança do que os artistas Pop terão feito, assiste-se cada vez mais, em Portugal, a uma elevação do símbolo Galo de Barcelos a ícone Galo (de Barcelos), e consequentemente à sua adequação a novos produtos e formalizações. O Galo (de Barcelos) que os criativos contemporâneos têm revisitado é matériaprima para um sem fim de representações, transformações e adaptações onde o seu carácter de ícone é valência única. Apesar da sua função ser unicamente a «simbólica de fruição», será sempre um «objecto cultural», aliando a essa característica a sublimação para-simbólica de que terá sido alvo. Serão exemplos disso o Galo (de Barcelos) em acrílico de Francisco Peres – Beware of the rooster! -, depurado e absolutamente elegante, produzido industrialmente e resultante de um pensamento e metodologia de “designer” e formalizado num elemento de design emocional (A4:10); as apropriações imagéticas da Coisas com História, onde o Galo (de Barcelos) surge como elemento gráfico “esquizofrénico”, de olhos arregalados e ar “punk”(A4:11); a caneca da Gift 4U inexoravelmente identificável com o Galo de Barcelos, sem no entanto deixar de ser uma simplificação formal elevada a abstracção quase pura (A4:12); o rótulo da Sagres Mini projectado pela Dasein, onde num padrão jovem o Galo de Barcelos aparece simbolizado num perfil tão seu característico (A4:13); as propostas conceptuais de moda de Nuno Gama, onde há muitos anos este se revê como um novo materializador do “tradicional português” (A4:14); o relógio da Terra Lusa, profundamente comercial e simbólico (A4:15); os objectos e t-shirts da almAmor, resultantes de uma geometrização e estilização formal do perfil do Galo de Barcelos (A4:16); ou as t-shirts da Art Lusa (A4:17), da Lup (A4:18) e da Manga Curta (A4:19), todas resultantes da apropriação e adequação da simplificação da representação imagética do Galo de Barcelos enquanto ícone ainda que todos eles façam referência a um símbolo figurativo do mesmo.

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O Galo de Barcelos, que com o passar do tempo terá já perdido o seu carácter de símbolo nacionalista político e de representante do “sol” do Portugal turístico, ter-se-á transformado no conceito simbólico de Portugal, per si. Nele se revêem as virtudes, mas igualmente os defeitos do povo português; nele materializamos um sem-fim de recordações turísticas profundamente populares e kitsch; e terá sido nele que nos teremos materializado enquanto povo. Assim, o Galo de Barcelos, que enquanto símbolo do nacionalismo político representaria as virtudes associadas à tradição e à vernaculidade rural, terá perdido esse carácter e terá sido elevado ao mais alto nível de para-símbolo contemporâneo e possivelmente urbano. Do mesmo modo que a Union Jack se terá transformado no ícone da Inglaterra Pop, o Galo de Barcelos terá assumido o mesmo papel de manifestação pelo orgulho de “ser português”: ele será a representação da portugalidade. Existem ainda outras formas de abordar as representações contemporâneas do ícone em que se transformou o Galo de Barcelos. Uma delas de cariz mais artístico e outra de carácter mais artesanal, sem no entanto deixarem de ser materializações do campo do design.

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Estas representações de cunho mais pessoal podem ser analisadas como projectos de valência fruítiva sem no entanto deixarem de ser materializadas na base industrial que é o galo em molde. As representações apresentadas são um bom exemplo disso: em 2006, o presente de Natal que a Brand&Advise, agência criativa do mercado português, terá enviado para todos os seus clientes, seriam pequenos Galos (de Barcelos), integralmente pintados de verde (o verde da marca) onde este surgia numa pequena etiqueta fotografado numa varanda de Lisboa. O Galo (de Barcelos) que vestia a “camisola” da empresa pretendia representar, de forma criativa, o simbolismo da “marca” lusa, que trabalha para o público português (A4:20); já o projecto “Grande Galo” de António Azevedo, onde os galos “vestem” diversas identidades é profundamente representativo daquilo que pode acontecer quando se juntam dois parasímbolos: um Galo (de Barcelos) pintado com a Union Jack será uma representação do que é português caracterizado de inglês; uma apropriação inglesa do ícone português; ou simplesmente o Portugal cosmopolita, urbano e pop que foi a Londres e ouve Sex Pistols? (A4:21); até mesmo o projecto “Porto-Galo” de Carlos Soares, onde, através de uma técnica mista de assemblage, os Galos (de Barcelos) são revestidos com decorações comerciais e identificativas de uma época, também aqui poderemos colocar a mesma questão: estaremos perante uma apropriação dos ícones e estampas características dos anos 50 ao símbolo da portugalidade, ou será que a portugalidade se pretende transformar e materializar numa imagem da “pin up” americana? (A4:22). Estas perguntas não serão alvo de uma resposta concreta; todos compreendemos o seu significado intrínseco quando confrontados com elas, e todos conseguimos esboçar um sorriso ao percepcionar como cada objecto transfigurado poderá dar origem a outro diferente, quando vários mundos se cruzam. De igual modo, outros projectos há que, à semelhança do que é feito por António Azevedo ou Carlos Soares, conferem ao Galos (de Barcelos) o estatuto de objecto artístico. O projecto “Águas Furtadas” de Rute Arnóbio, que terá recentemente realizado até um “Leilão de Galos” assinados por criativos (A4:23), tem sido exemplar nessa transposição. Estimulando a criatividade dos designers e artistas na base material que é o Galo de Barcelos, e transformando-o em suporte onde a criatividade se manifesta sem barreiras, tomaremos igualmente por exemplos dessa forma particular de reinvenção, também o Selos de Família de Helena Almeida (A4:24), os Zai-zai de

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Helena Zália (A4:25) ou o Galo de Dina Piçarra, que caricaturiza a própria expressão do Galo de Barcelos – através de uma “roupinha” de Galo (de Barcelos) kitsch – numa formalização figurativa (A4:26).

Estas manifestações, que não poderemos afirmar como arte nem como design, existem enquanto produtos híbridos das mentalidades criativas. Usando como tela o objecto industrial, são no entanto representações fruítivas de valência decorativa sem perderem o seu carácter de produção em massa. Poderemos por isso considerá-los como sendo o supra-sumo da individualização produtiva. Actualmente, e a partir do momento em que as coisas que haviam caído em desuso terão sido redescobertas como objectos de fruição contemporânea, ter-se-á assistido a uma proliferação dos artefactos não utilizáveis. “Acho divertido que um produto utilitário, concebido e sobretudo “assinado” por um designer, se destina apenas a decoração. Como já vimos, um objecto tem sempre uma função simbólica de fruição. (Nenhum objecto é uma espécie de representação gráfica duma função). É sempre um objecto cultural. E até uma singela e funcionalíssima vassoura, poderá ser um belo objecto decorativo.” (COSTA, 1998:51)

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Isto porque, a partir do momento em que estes passaram a ser adquiridos pela sua aparência e não pela sua utilidade, terá surgido uma tendência para a venda de produtos cujo valor residia apenas na sua estética: como por exemplo o artesanato como elemento para o turismo. Quando estes objectos passam a ser comprados para fins de fruição e contemplação, tornar-se-iam em objectos “artísticos”, resultantes de uma exaltação “pura”. “Por esta razão, o artesanato está destinado, nos nossos dias, a tornar-se cada vez mais uma obra de «excepção», precisamente pela necessidade de presença contínua do artista que torna impossível a sua produção em «massa» só tornando possível, pelo contrário, uma produção de elite. Deste modo, o artesanato será em breve reduzido a um tipo de produção inteiramente análogo ao da pintura e escultura, tendente à criação de objectos únicos e irrepetíveis e que, precisamente por isso, serão em si mesmos particularmente considerados e altamente cotados.” (DORFLES, 2002:35)

Assim, tem-se registado nos últimos tempos uma crescente adaptação do designer aos processos e às influências artesanais e consequentemente a uma produção marcada pelo que de mais tradicional e original se possuí, como resultado da tentativa de fuga à racionalização e industrialização, através de uma cada vez mais abrangente individualização. A marcada evolução imagética de que o ícone Galo (de Barcelos) tem sido alvo revela-se igualmente numa perda de ingenuidade pela parte dos artesãos, que de forma instruída olham para o Galo de Barcelos como um meio de vendas. Conscientes que esta perda de «ingenuidade» se manifesta sobretudo, e cada vez mais, no aparecimento de novos artífices, é interessante abordar o ponto de vista do artesanato moderno. O artífice, produtor original de artesanato moderno, distingue-se do artesão por ter perdido a ingenuidade; por ser culto e erudito; e por, de algum modo, através dessa perda de inocência se aproximar cada vez mais do designer. Deste modo, a ligação que existe entre o design e o artesanato mostra-nos como, por um lado, se o designer não é artista e o artesão também não, o artífice pode valer-se das duas “disciplinas” para criar algo muito próximo do campo do artesanato e da “personalização em massa”.

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“Mas uma das diferenças que distingue o objecto nascido do design e destinado a ser fabricado em série do objecto artesanal é o facto de um tentar disfarçar a realidade do trabalho que lhe deu origem, enquanto o outro o pretende exaltar.” (DORMER, 1995:29)

Deste modo, os artefactos, legado precioso deixado pelo artesão, não podem ser considerados como objectos de design (por serem um património genético do passado), mas podem, contudo, ser considerados como uma forma de “proto-design”. Do mesmo modo que o artesanato moderno, que resulta da aproximação da produção de objectos às suas origens, tal como o movimento Arts and Crafts enunciava, e que volta a impor-se neste momento. Acreditando que para o artífice não possa existir design por um lado e artesão por outro - podendo a sua actividade ser desacreditada54 - o artesanato moderno conjuga o que de melhor as duas disciplinas possuem. De igual modo, podemos facilmente compreender o porquê desta união entre disciplinas: se a produção se limitasse à seriação - à produção em massa - abandonando então a criação individual, as peças perderiam o seu significado mais profundo (c.f. CORREIA, 1972:11-12). O artesanato de atelier, que será desenvolvido pelo artífice, pretende, através da criatividade e da expressão pessoal do artífice, materializar a sua própria ideia e não aquela que respeita as funções e o critério industrial. Deste modo, no século XX ter-se-á assistido à recriação do “mito” do artesão reinventando o seu papel. Assim, o artesanato contemporâneo é uma criação do século XX, cujos primeiros percursores terão sido aqueles associados com o movimento Arts and Crafts: “É que em termos gerais, o mundo do artesanato contemporâneo divide-se entre as pessoas que fazem objectos que podem ser utilizados, ou que parecem poder ser utilizados, e as que produzem objectos que são manifestamente não utilizáveis e que têm ambições de serem levados a sério como peças de arte.” (DORMER :144)

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A credibilidade do trabalho do artífice resume-se a uma elevação do artesão ao nível do designer. Enquanto artesão, nunca o trabalho do artífice poderia ser considerado como uma abordagem racional e empírica das necessidades fruítivas do público. Igualmente, nunca o seu trabalho atingiria um público alvo tão específico como aquele que é o das elites sedentas de personalização. O artífice precisa de ser considerado como um designer unicamente por uma questão de estatuto e valorização do seu trabalho.

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O artesanato erudito, de que resulta o artefacto, será produto do artífice, que não é mais do que um designer espontâneo (enquanto criador que perdeu a ingenuidade e concebe através de uma racionalização produtiva). Serão exemplos disso as produções de Conceição Sapateiro (A4:27) e António Ferreira (A4:28), e até mesmo os objectos apresentados nas feiras urbanas, onde designers e artífices coabitam e produzem toda uma galeria visual e material de artefactos.

Importa no entanto mencionar, relativamente ao uso do ícone Galo (de Barcelos), que a grande maioria dos novos designers, artistas e artífices desconhece a origem real do símbolo. Usam-no por este estar associado à imagem do turismo, por ser “símbolo” de Portugal, por ser uma imagem que lhes foi inculcada na memória, mas já não lhe reconhecem o renascimento político realizado pelo Estado Novo ou a sua anterior e original criação. Esta indiferença, ou simplesmente falta de associação, deve-se sobretudo ao esquecimento que o 25 de Abril acabou por conseguir operar nestas memórias. Depois de ter perdido a ligação à sua história; às suas origens; e à sua ingenuidade; apresenta-se actualmente como um para-símbolo cuja memória colectiva esqueceu a original paternidade política, preferindo associá-lo a uma lenda, sagrando um ícone; o ícone da portugalidade: o Galo (de Barcelos).

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CONCLUSÃO

Consciente da importância deste trabalho para descrever e apurar a verdadeira história do Galo de Barcelos, tentaremos aqui, de forma resumida evidenciar os principais pontos de interesse que descobrimos ao longo do tempo de estudo. Deste modo, e considerando a divisão deste trabalho em três capítulos distintos, enunciaremos as conclusões encontradas em cada um deles. DO MITO: Tentámos com este capítulo desmistificar a errónea associação feita entre o Galo de Barcelos e a Lenda do Senhor do Galo e que defende que a proliferação simbólica deste se deve a essa mesma união. Apesar de seguida pelo povo em geral, foinos confirmado por Carlos Basto, “ilustre” de Barcelos, que esta associação seria totalmente errada, uma vez que ele a vira nascer enquanto “mito urbano”, resultante de uma conversa entre ele e Simplício de Sousa – “distinto” de Barcelos que trabalhava para o Boletim do Grémio. Conversa a que Pires de Lima assistia e que teria resultado daí a famigerada associação entre o Galo de Barcelos e a Lenda, mais por motivos turísticos, do que por motivos fundamentalmente históricos. Ainda que neste capítulo tenhamos tentado apurar quem teria sido o original “pai” do Galo de roda, não é esse o nosso intuito, por isso limitamo-nos a apresentar aquilo que fomos descobrindo e que tanto a um (Domingos Côto) como a outro (Emídio do Parral / Francisco de Sousa) conferiam essa probidade. De igual modo, ainda que muitos defendam e questionem a origem do primeiro Galo de roda para fundamentar o aparecimento do Galo de Barcelos e cheguem até a confundir as duas categorias, a nossa defesa não se prende de todo com estes artesãos que apenas procuravam uma forma de aumentar os seus lucros, mas antes com o organismo que lhe conferiu estatuto de símbolo.

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DO SÍMBOLO: Não será fácil estabelecer quando o Galo se terá transformado em Galo de Barcelos, mas poderemos, no entanto, determinar quando a sua paternidade terá sido alvo de discussão, o que lhe conferiria já alguma importância. A defesa de Carlos Basto, para com o verdadeiro “pai” do Galo de Barcelos prende-se com a figura de Gonçalves Torres, pintor, que em 1955 teria feito um cartaz para “As Festas das Cruzes”, onde lhe imprimiria uma nova postura: menos ingénua e grave e mais altaneira e garrida. Neste mesmo ano, aquando das festas, num artigo do Boletim do Grémio, poderá ler-se: “E no meio daquele mar de louça, vê-se o «Galo» o galo de Barcelos, com as suas cores garridas, altaneiro e como chefe daquela urbe de bonecada (sic)”. É ainda de frisar, que as discussões sobre a paternidade do Galo, que se faziam no Jornal de Barcelos, no Boletim do Grémio e entre os “ilustres”, seriam também fundamentadas pela tentativa realizada em Lisboa de patentear o Galo como sendo de “Portugal”. No entanto, o “pai” do Galo de Barcelos, enquanto símbolo, terá sido António Ferro, e o seu “nascimento” deverá ser considerado como resultante da união entre a filosofia historicista e nacionalista, fundamentada pela ligação entre a tradição e o popular, numa partilha simbólica de memória. A imagem da nova marca “Portugal”, que ficara a cargo de António Ferro (através do SPN/SNI), sagrar-se-ia naquela que viria a ser considerada como a definição estética tradicionalmente portuguesa; a ponte de ligação entre o modernismo de Ferro e o nacionalismo de Salazar, e que resultaria no seu reaportuguesamento. A política cultural do Secretariado, que se fundamentaria na conceptualização de “Política do Espírito” de António Ferro, ganharia contornos no incentivo que terão sido as “Campanhas do Bom Gosto”. Estas seriam o culminar da imposição

do

estilo

nacionalista português,

conceptualmente moderno,

mas

fundamentado numa estilização do folclore e do regionalismo: fomentar-se-iam as exposições nacionais e internacionais, e com as celebrações dos Centenários em 1940, sagrar-se-ia toda uma política cultural de cariz nacionalista. Em todas estas apresentações, o Galo de Barcelos coexistiu e impôs-se, como símbolo desse reaportuguesamento. Ele seria tão somente mais um dos símbolos representativos da identidade nacional, criados pela necessidade de um estado totalitário. Lançado como símbolo, a sua representação e estilização não terá parado de ser aplicada graficamente, como se pode constatar nos cartazes turísticos que “vendiam”

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Portugal através do donairoso Galo de Barcelos. Transformado em imagem simbólica, a sua representação transformar-se-ia numa das mais banalizadas e reproduzidas industrialmente. Mas o apogeu do Galo de Barcelos terá tido um triste fim, e ainda que a sua imagem não pudesse ser completamente erradicada da memória, com a Revolução de 1974, tudo o que estava ligado ao regime e às manifestações de nacionalismo e saudosismo deveria ser rejeitado pelos artistas, pelos eruditos e pelo povo. Assim, o Galo de Barcelos, símbolo criado e instalado na memória como elemento da herança cultural e da identidade nacional (inventada), não seria totalmente eliminado e continuaria a ser banalizado e industrialmente produzido, sendo remetido para as pirosas lojas de turismo fundamentadas no materialismo, até atingir um nível de estereotipação descaracterizada e inferior, superficial e contrafeita, chegando até aos dias de hoje como uma caricatura desligada da sua originalidade e da ingenuidade que um dia lhe estivera associada. Não devemos no entanto esquecer que o Galo de Barcelos que chegou até nós não passa assim de um símbolo criado e instituído por um regime, e posteriormente banalizado e ridicularizado pela recusa do saudosismo desse mesmo regime. DO ÍCONE: No entanto, e para além da apropriação e transformação simbólica de que este tem sido alvo, devemos considerar um nível superior de conceptualização a que o Galo de Barcelos tem actualmente sido submetido. Presentemente, e considerando que ninguém tem poder para sagrar um ícone, e que estes existem enquanto superações da representação simbólica que lhes terá dado origem, será o elemento sagrado – algo superior em termos conceptuais – que conferirá ao símbolo um carácter de para-símbolo: de ícone. Um símbolo que se tenha convertido em ícone adquiriu um estatuto de tal modo elevado que conseguiu superar aquilo que lhe dava referência material. Transformou-se, portanto, em algo mais do que um retrato de si próprio; ele será a materialização da abstracção: do conceito. Assim, os símbolos emblemáticos, não só pelo seu modo de agir e de pensar, mas sobretudo por se terem transformado numa conceptualização de si próprios, serão sempre reconhecidos como para-símbolos na medida em que esta

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apropriação do símbolo em para-símbolo mantém inalterado o estatuto do ícone e permite decorrentes metamorfoses visuais de decomposição imagética. Deste modo, enquanto o símbolo existe como referência material de algo, o ícone é a manifestação transcendental dessa mesma referência. Os ícones mantêm as memórias dos conceitos vivos, mediante uma transfiguração dos símbolos. Assim, enquanto um símbolo será sempre portador das características que o elevaram, um ícone constrói e desconstrói as especificidades formais que o originaram, sem, no entanto, afectar o seu significado. Depois da Segunda Guerra Mundial, e ultrapassado o momento de recusa dos elementos nacionalistas de cada regime fascista, especialmente em Portugal nos anos 80, uma nova geração procurará a perdida e renegada identidade nacional através de campos até aí considerados proibidos. No final dos anos 80, a pós-modernidade portuguesa colocará em causa este sentimento de recusa, dando nova representação às expressões culturais e artísticas, com recurso à memória. Em Portugal, terá sido Tomás Taveira o primeiro a elaborar uma transformação do Galo de Barcelos. Justapondo ao símbolo nacionalista uma nova figuração: uma transfigura. Deste modo, o Galo de Barcelos, terá sido sagrado, uma vez que se livrara do espartilho formal da imagética clássica que o prendia. Depois desta transfiguração, e consequência da época, o Galo (de Barcelos), agora ícone, foi ridicularizado, reconstruído, caricaturado, e transformado em centenas de conceitos imagéticos diferentes, pelos artistas, artífices, criadores e designers. As recentes apropriações por parte destes, e resultantes transfigurações imagéticas de que este tem sido alvo, podem ser reconhecidas nos trabalhos de vários designers e ateliers contemporâneos. Igualmente, algumas das actuais representações do Galo (de Barcelos) revestem-se de um carácter mais artístico ou mais artesanal, sem no entanto deixarem de ser representações do campo criativo, de cunho mais pessoal. São apropriações – artísticas – aquelas que utilizam a base industrial que é o Galo de Barcelos produzido em molde, como tela em branco para as mais variadas sublimações. Estes produtos híbridos, fruto das mentes criativas, formalizam-se naquilo que é hoje em dia a máxima individualização produtiva: são representações fruítivas, de carácter semi-industrial, fundamentadas por um conceito para-simbólico, do ícone da portugalidade.

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O carácter mais artesanal destas produções prende-se com uma nova classe que, existindo como uma evolução do artesão, se vale do carácter do designer para fundamentar o seu trabalho. Os artífices, artesãos cultos que terão perdido a ingenuidade, são os produtores do chamado “artesanato moderno”. Produto do século XX, e através de uma expressão pessoal, adequam formalizações específicas ao ícone, de carácter singular, numa galeria imagética de artefactos fruítivos.

Mais uma vez, e conscientes de que o trabalho do designer se faz com base em referências, tentou-se com este trabalho demonstrar como um elemento ingénuo, produto do povo e de uma consciência mítica, foi transformado em símbolo de uma ideologia política, e posteriormente se metamorfoseou em referência para-simbólica para os designers que lhe conferiram um carácter único de fruição simbólica e de conceito da portugalidade: O Galo (de Barcelos), ícone de Portugal.

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CATÁLOGOS DE EXPOSIÇÕES

1936. Catálogo da Exposição de Arte Popular Portuguesa. Lisboa : Edições SPN. 1948. Musée D'Art Populaire. Guide. Lisboa : SNI. 1972. Robert e Sonia Delaunay em Portugal. e os seus amigos. Catálogo. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian. 1982. Robert e Sonia Delaunay. 1885-1941 / 1885-1979. Catálogo. 1ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian. 1992. Eduardo Viana. 1881-1967. Catálogo. Fundação de Serralves. 1996. Sellés Paes - Uma Doação. Exposição de Maio de 1996 a Dezembro de 1997. Museu Aberto. Barcelos : Câmara Municipal de Barcelos.

116

2006-2007. Galo de Barcelos. Símbolo do Artesanato Local e Ícone de Identidade Nacional. Exposição 1930-2006. Turismo de Barcelos. FREITAS, Helena; ALFARO, Catarina; ROSA, Manuel. 2006. Amadeo de Souza Cardoso. Diálogo de Vanguardas. Catálogo. 1ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian. NUNO, Carlos Simões [coord.]. 2002. Olaria Tradicional Portuguesa. Exposição Colecção. Almada : Câmara Municipal de Almada.

TESES

BARRETO, Maria Angélica A. L. C.. 1990. Figurado de Barcelos. Tese de Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesas. Lisboa : Universidade Nova de Lisboa Faculdade de ciências Sociais e Humanas. CRUZ, Maria Teresa. 1989. Designação dos Limites. O Trabalho do Nome na Constituição da Obra de Arte Moderna. Tese de Mestrado em Comunicação Social. Lisboa : Universidade Nova de Lisboa Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. CUNHA, Luis. 1994. A Nação nas Malhas da sua Identidade. O Estado Novo e a Construção da Identidade Nacional. Tese de Mestrado. Braga. GAMBOA, Maria Eugénia. 1999. Liberdade. Igualdade. Identidade Nacional. Uma leitura liberal do nacionalismo. Tese de Mestrado. Lisboa : Universidade Católica Portuguesa. ROSA, Pedro. 2000. O Cartaz de Propaganda do Estado Novo 1930 / 1940. Tese de Mestrado em Teorias da Arte. Lisboa : Universidade de Lisboa - Faculdade de Belas artes.

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UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

O Galo de Barcelos Do Mito, do Símbolo, do Ícone VOLUME II - ANEXOS

Elisabete Muga Rodrigues Dissertação para obtenção do Grau de Mestre

Lisboa, Setembro de 2008

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UNIVERSIDADE LUSÍADA DE LISBOA

O Galo de Barcelos Do Mito, do Símbolo, do Ícone VOLUME II - ANEXOS

Elisabete Muga Rodrigues Orientador de Mestrado: Mestre Designer Carlos Bártolo

Lisboa, Setembro de 2008

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ÍNDICE

VOLUME I Agradecimentos .............................................................................................. V Resumo / Abstract .......................................................................................... VI Palavras-chave .............................................................................................. VI Epígrafe ........................................................................................................... 2 Introdução ........................................................................................................ 3 1. Do Mito ....................................................................................................... 7 1.1 A Lenda do Galo ........................................................................... 10 1.2.1 A tradição do barro em Portugal ................................................ 15 1.2.2 O barro em Barcelos .................................................................. 17 1.2.3 Figurado de Barcelos ................................................................. 21 1.3 A representação tradicional do galo .............................................. 25 2. Do Símbolo .............................................................................................. 32 2.1 Identidade Nacional, História e Etnologia ..................................... 35 2.2.1 O Estado Novo ........................................................................... 40 2.2.2 As criações do Estado Novo ...................................................... 48 2.2.3 Como se forja a Identidade Nacional ......................................... 55 2.3.1 O Artesanato e os Símbolos ...................................................... 60 2.3.2 O Galo de Barcelos .................................................................. 65 2.3.3 O Galo Em Barcelos ................................................................. 74 3. Do Ícone ................................................................................................... 79 3.1 O design e a contemporaneidade ................................................. 85 3.2 O Galo (de Barcelos) e a pós-modernidade ................................ 88 3.3 O design e o Galo (de Barcelos) ................................................. 92 Conclusão ...................................................................................................... 99 Bibliografia ................................................................................................... 106

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VOL II – ANEXOS Glossário ............................................................................................... 1 Índice de Imagens ................................................................................. 4 Anexo A1 ............................................................................................. 12 Anexo A2 ............................................................................................. 13 Anexo A3 ............................................................................................. 14 Anexo A4 ............................................................................................. 15

1

GLOSSÁRIO

A grafia utilizada (Bold/Itálico) corresponde à grafia utilizada no texto e serve para distinguir mais facilmente as várias tipologias. » artesão – Produtor original de artesanato, ingénuo, não erudito, continuador de práticas e métodos ancestrais. » artífice - Produtor de artesanato moderno, culto e erudito, que já perdeu a ingenuidade. » “desfigurado” - Independentemente de ser figurado ou figurado sortido é o resultado dos devaneios do artesão, projectados através da atitude regressiva e culpabilizante onde muitas vezes a sexualidade é representada como pecado e onde as vivências interiores são simbolizadas através do defeito e do humor. » Figurado – barros considerados como “inúteis”, sem utilização doméstica, sobretudo peças decorativas, brinquedos e estatuária; (- de Barcelos) – peças realizadas em Barcelos, de um modo geral, pequenos bonecos de barro de expressão popular, resultantes do aproveitamento dos “restos” de barro, tempo e espaço decorrentes da actividade do oleiro. »

figurado – Reporta à estatuária estudada por Rocha Peixoto; grosseira,

modelada à mão, herança de uma arte tradicional e longínqua ou simplesmente, se relativamente recente, “primitiva e bárbara” na sua expressão. » figurado sortido – Tem início no princípio do século XX, recorre a técnicas mistas - molde, manual e roda – e tem um significado mais comercial (maior rapidez de produção, mais peças feitas, mais peças para vender, logo, mais rendimento). Tem muitas vezes uma forte marca da família; é puxado no torno pelo oleiro familiar – marido, pai ou filho – e terminado à mão pelos elementos femininos da mesma família, quer na modelação, na pintura ou no vidrado. »

Galito – Galinhos pequenos, com não mais de dez centímetros, feitos

integralmente à mão, com um assobio na base e, em alguns casos, buracos para palitos.

2

» Galo – Feito na roda, entre 15 e 30 centímetros, é resultado de uma amalgama de técnicas produtivas. Para ser maior e não estoirar no forno, tem o corpo e o cabaço estrutura principal da peça - tirados na roda (daí ser oco), e as asas, crista e bico aparelhados e decorados depois à mão. » Galo (de Barcelos) – Enquanto ícone, é resultante da apropriação, adequação e simplificação da representação imagética do Galo de Barcelos. » Galo de Barcelos – Enquanto símbolo. É imagem do nacionalismo político e pretende representar de forma metafórica as virtudes associadas à tradição e à genuinidade rural. » Ícone – Os ícones existem enquanto representantes de um conceito de sagrado ou de poder. Por isso, cada ícone é em si, mais do que uma referência material; mais do que um retrato de si próprio; ele representa sobretudo a imagem da ideia que lhe deu origem: ele é a materialização da abstracção. Os ícones, que só existem enquanto apropriação dos símbolos, revestem-se da importância que os seus símbolos manifestaram podendo sugerir uma caracterização ou ridicularização dos mesmos. Enquanto um símbolo existe como referência de uma linguagem, o ícone é a manifestação dessa referência. Assim, se o símbolo é, na sua essência, a representação de um conceito original, então o ícone será o simulacro dessa mesma origem. » Mito – O mito, que não é um método para procurar a verdade, mas antes para expor o crível, é decorrente de um tipo de discurso não argumentativo, mas antes sugestivo. Apela à imaginação e à sensibilidade estética e religiosa e não à razão. Ele não apresenta uma verdade em si mesmo, mas antes um sentido escondido; é portador de uma mensagem. » Original – primitiva, primeira, única e autêntica. » Para-símbolo – O mesmo que ícone. » Símbolo – Designa um elemento representativo (visível) que se apresenta em lugar de algo (invisível). Os símbolos podem ser reconhecidos por todos, ou somente identificados dentro de uma comunidade restrita. A representação simbólica pode ser resultante de um processo natural ou convencionada de modo a que a sua conotação implícita possa ser reconhecida e interpretada.

3

4

ÍNDICE DE IMAGENS

ANEXO 1 A1:1 :: PEIXOTO, 1990:256 A1:Lenda I :: ALMEIDA, 1990 A1:Lenda II :: Barcelos Turismo: Breve apontamento - Lendas do Concelho, 2001 A1:Lenda II :: Barcelos Turismo: Breve apontamento - Lendas do Concelho, 2001 A1:Lenda III :: Barcelos Turismo: Lendas do galo de Barcelos | in PEREIRA, Gomes. 1915. Tradições Populares, Linguagem e Toponymia de Barcellos. Livraria Espozendense A1:Lenda IV :: MESQUITA, 1988 A1:2a :: Arquivo próprio, 2007 | Cruzeiro do Senhor do Galo A1:2b :: Arquivo próprio, 2007 | Cruzeiro do Senhor do Galo A1:3 :: Arquivo próprio, 2007 | Cruzeiro do Senhor do Galo (pormenor) A1:4 :: PEIXOTO, 1990:IX-XIII A1:5a :: RIOS, 2006:54 A1:5b :: RIOS, 2006:39 | Ferrinho, Maria Sineta A1:6 :: RIOS, 2006:43 | Carocho, Rosa Ramalho A1:7 :: Turismo de Barcelos [imagem cedida], 2008 | Galitos, Rosalina Baraça. Finais do século XIX A1:8 :: RIOS, 2006:23 A1:9 :: Arquivo próprio, 2007

5

A1:10 :: Arquivo próprio, 2007 | Galo do Museu de Olaria de Barcelos: ref. 2657 A1:11a :: Diário de Lisboa, 10 de Julho de 1958 A1:11b :: Diário de Lisboa, 10 de Julho de 1958 A1:12 :: Arquivo próprio, 2007 | Galo do Museu de Olaria de Barcelos: ref. 173 A1:13a :: Jornal de Barcelos, 12 de Maio de 1960 A1:13a :: Jornal de Barcelos, 26 de Maio de 1960 A1:14 :: Programa da Excursão, 1939 | Publicidade A1:15 :: Boletim do Grémio do Comércio do Concelho de Barcelos nº18 A1:16 :: Jornal de Barcelos, 20 de Junho de 1991

ANEXO 2 A2:1 :: PAÇO, 2008b | Cartaz de Almada Negreiros A2:2 :: Arquivo Próprio, 2008 | Decálogo do Estado Novo A2:3a :: Panorama, nº2, 1941 | Galo de Prata A2:3b :: PAÇO, 2008a | 1939 - Festa da entrega do “Galo de Prata” aos representantes da Aldeia de Monsanto A2:3c :: CASTELO-BRANCO; BRANCO, 2003 | Foto de António Filino de Almeida, 1988, A2:4 :: PAÇO, 2008b A2:5 :: PAÇO, 2008b | Cartaz de Stuart de Carvalhais

ANEXO 3 A3:1a :: Jornal da Manhã, 22 de Setembro de 1931

6

A3:1b :: Arquivo do SNI; Arquivo Nacional Torre do Tombo. Album Fotográfico; Caixa 1640 | Fotografia de vitrine no interior da Sala das Artes Populares, Pavilhão de Portugal, Exposição Internacional de Paris de 1937. Paris, [1937]. A3:2 :: Catálogo de Exposição, 1992 - Eduardo Viana, 1881-1976 | Louças de Barcelos, Eduardo Viana, 1915 A3:3a :: Catálogo de Exposição, 1982 - Robert e Sonia Delaunay | Jouets de Barcelos, Sonia Delaunay, 1915 A3:3b :: Catálogo de Exposição, 1972 - Robert e Sonia Delaunay em Portugal | Jouets de Barcelos, Sonia Delaunay, 1916 A3:3c :: Catálogo de Exposição, 1992 - Eduardo Viana, 1881-1976 | Atelier dos Delaunay A3:4 :: Catálogo de Exposição, 1972 - Robert e Sonia Delaunay em Portugal | Bonecos Portugueses, Eduardo Viana A3:5 :: Catálogo de Exposição, 1992 - Eduardo Viana, 1881-1976 | O Homem das Louças, Eduardo Viana, 1919 A3:6 :: Panorama, nº4, 1941 | Ilustração de Alberto Cardoso A3:7 :: Panorama, nº1, 1941 | Campanha do Bom Gosto; Restaurante Tito na Rua dos Fanqueiros A3:8 :: Panorama, Número Especial do Norte, 1941 | Arte Popular do Norte A3:9a :: Boletim da Propriedade Industrial, nº3, 19 de Março de 1957 A3:9b :: Jornal de Barcelos, 9 de Junho de 1960 A3:9c :: Jornal de Barcelos, 9 de Junho de 1960 A3:9d :: Jornal de Barcelos, 4 de Agosto de 1960 A3:10a :: Arquivo próprio, 2008 | Festa das Cruzes, Gonçalves Torres, 1955 A3:10b :: Arquivo próprio, 2008 | Festa das Cruzes, Gonçalves Torres, 1955 – Pormenor

7

A3:11 :: Biblioteca Nacional CT. 1242 R | Good Morning Mr. Sun!, TOM, 1964, SNI A3:12 :: Biblioteca Nacional CT. 1740 R | Portugal, SNI, 1966. Lito. Costa e Valério A3:13 :: Biblioteca Nacional CT. 1351 A | Visite Portugal, SNI. 1969 (?) A3:14 :: Biblioteca Nacional CT. 829 R | Portugal, Direcção Geral do Turismo, 1967. Of. Artistas Reunidos A3:15 :: Biblioteca Nacional CT. 2157 R | Portugal, Luís Filipe (tec. Graf.), 1984. Direcção Geral do Turismo, Lello & Irmão. A3:16 :: Arquivo Próprio, 2008 | Galo de Madeira, Comprado no Luso no fim da década de 60 - Preço: 72.50$ A3:17 :: Cartaz do Movimento Anarca A3:18 :: Arquivo próprio, 2008 | Galo do Tempo A3:19a :: Arquivo próprio, 2008 | Pegas, Sacos do Pão, Toalha de Mesa e Avental A3:19b :: Arquivo próprio, 2008 | Pegas, Caneca, Avental decorativo para garrafa, Panos e Bola de neve. A3:19c :: Arquivo próprio, 2008 | Porta-chaves, Bases para copos, Porta guardanapos e Galos de Metal A3:19d :: Arquivo próprio, 2008 | Postais onde se faz a errada associação entre a Lenda e o Galo de Barcelos A3:20 :: Arquivo próprio, 2008 | Galo de Barcelos - Made in China. Comprado numa “Loja dos Chineses” A3:21 :: Arquivo próprio, 2007 | Oficina de António Freitas. Aspecto geral da oficina, dos moldes e dos galos produzidos A3:22 :: Arquivo próprio, 2007 | Oficina de António Lopes Coelho. Galos pintados, moldes e galos para pintar

8

A3:23 :: Arquivo próprio, 2007 | Oficina de Mário Coutinho. Galos para pintar e galos em secagem A3:24 :: Arquivo próprio, 2007 | Oficina de Isabel Costa. Galos pintados e galos a secar A3:25 :: Arquivo próprio, 2007 | Produção familiar na oficina de D. Emília. Processo de aplicação das cores A3:26 :: Arquivo próprio, 2007 | Oficina de Emília Côta A3:27 :: Arquivo próprio, 2007 | Galos da Famíla Baraça A3:28 :: Arquivo próprio, 2007 | Galos de Júlia Côta A3:29 :: Arquivo próprio, 2007 | Galos da Família Mistério A3:30 :: Arquivo próprio, 2007 | Galos de Júlia Ramalha

ANEXO 4 A4:1 :: Arquivo próprio, 2008 | Betty Boop - Marilyn Monroe A4:2 :: Arquivo próprio, 2008 | Madonna – Che A4:3 :: Arquivo próprio, 2008 | Homer Simpson – Elvis A4:4 :: Arquivo próprio, 2008 | T-shirts - Bandeira do Reino Unido A4:5 :: Arquivo próprio, 2008 | Caneca Mind the Gap - Mapa da rede do Metropolitano A4:6 :: Arquivo próprio, 2008 | Ilustrações Canivete - Canivete Suíço A4:7 :: Arquivo próprio, 2008 | Quadros de Andy Warholl - Site da Campbell A4:8 :: Arquivo próprio, 2008 | Union Jack A4:9 :: BROADBANT, 1990 | Galo de Barcelos transfigurado, Tomás Taveira A4:10 :: Arquivo próprio, 2007 | “Beware of the Rooster!”, Galo em Acrílico para a Wrong Shop, Francisco Peres - www.thewrongshop.com

9

A4:11 :: Arquivo próprio, 2007 |

Porta-Chaves, Bloco e T-shirt -

www.coisascomhistoria.com A4:12

::

Arquivo

próprio,

2007

|

Caneca

Galo

de

Barcelos

-

http://giftservice4u.com A4:13 :: Arquivo próprio, 2008 | Edição comemorativa dos 35 anos da Sagres Mini, Dasein para Sagres Mini Designer’s Edition - www.dasein.pt A4:14 :: I.R., 2008 | Moda Lisboa 2008 - "Da silhueta do galo recriei várias identidades", Nuno Gama. A4:15 :: Arquivo próprio | Relógio Galo de Barcelos, www.terra-lusa.com A4:16 :: Arquivo próprio | T-shirts e Porta-cartas, almAmor A4:17 :: Arquivo próprio, 2007 | Long sleeve GALO, Art Lusa. www.artlusa.com A4:18 :: www.lup.pt | T-Shirt Galo, LUP A4:19 :: www.mangacurta.com | Memória, Desenho vencedor do concurso Manga Curta, João Serpa A4:20 :: Arquivo próprio, 2008 | Presente de Natal 2006, Brand & Advise Agência Criativa A4:21 :: http://100maosamedir.blogspot.com | Projecto “Grande Galo”, António Azevedo A4:22 :: http://porto-galo.blogspot.com/ | Portogalo, António Soares. Técnica utilizada: assemblage. A4:23 :: www.aguasfurtadas.com | Rute Arnóbio A4:24 :: http://www.opontosemno.blogspot.com | Galo “Selos de Família”, Helena Almeida para Águas Furtadas A4:25 :: http://2zai.blogspot.com | Galos ilustrados, Helena Zália para Águas Furtadas A4:26 :: http://dinaladina.blogspot.com | “Galo das Águas Furtadas vira Galo de Barcelos”, Dina Piçarra

10

A4:27 :: Arquivo próprio, 2007 | Conceição Sapateiro A4:28 :: Arquivo próprio, 2008 | António Ferreira

11

12

ANEXO 1

13

ANEXO 2

14

ANEXO 3

15

ANEXO 4

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