O ganso e o monstro

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“O ganso e o monstro” O artista é um voltímetro. Deteta em cada situação específica a “carga” – o poder histórico, social, afetivo, sexual, etc. - das imagens e palavras. A tarefa do artista: usar essas cargas para que nasça uma outra potência da arte e da vida. No caso desta instalação o seu movimento crítico liberta. Um pouco, como outrora faziam os rituais purificadores. Arte impura. O nosso mundo, passado e presente, e o mundo da arte, aparece como uma reserva disponível dessas cargas. Neste trabalho, não se trata propriamente da carga da obsessão privada (Burroughs) ou da carga patética expressiva (Warburg), mas das cargas, mais sociológicas, que atraem e educam formas de escopofilia, de idolatria, ou, o não menos atual, olho bulímico, seja na arte, seja na vida. Instalar cargas. Tal, como o martelo de Heidegger só se dá a ver quando quebrado, também aqui as cargas sobem à superfície sensível quando a sua visibilidade correspondente é quebrada. O invisível é, nesse caso, experimentado como uma falta e uma rutura. Nomear e jogar. O nome da exposição “Paisagens com Retrato e Natureza Morta” orienta-nos para géneros de pintura solidamente instituídos, seja na Academia, seja na História de Arte. O nome é, neste caso, um operador de sentido e da visibilidade. É ao homem educado nessa cultura que o gesto de nomear também se dirige. De algum modo, o último elemento da instalação - para além das suas ações, humor, imagens e ideias – é um determinado público. Esse público que, na sua contingência situada, não universal, carrega uma cultura da imagem. Dizemos gesto de nomear, porque afinal – depois da crença destroçada – ficamos a saber que se tratava de uma ação que manipula condições singulares de sentido. Mas, recuando um pouco, não é isso também um “género”? Exposição invisível. A exposição de paisagens é uma não-exposição. Novo gesto de paródia. As tabelas evocam, através de citações, obras conhecidas, muitas de autores reconhecidos embora não nomeados, ou mesmo, momentos e lugares das Caldas. Dizemos evocação porque a operação de referência da citação mergulha o seu sentido e memória em muitos estratos – históricos, sociológicos, de poder, ou mesmo de familiaridade. E nesses estratos geram-se múltiplas formas de iconofilia e de idolatria. Mas, visível é a sua invisibilidade irónica: são lugares-vazios na parede, evocados por tabelas e emoldurados por selos. Coleção arbitrária. Os selos, de uma coleção arbitrária, alimentam outras philias da imagem. Os selos são essas pequenas representações vorazes de imagem: representações de todo o mundo, de todos os momentos e personagens, de todas as paisagens, obras de arte, etc.. Imagens reproduzidas em série, com valor de troca – troca entre pessoas e troca monetária. São imagens quotidianas, que no espaço da instalação só um olho bulímico pode pretender ver e compreender na sua totalidade e acaso na disposição. A sua função é a de saturar de imagens, delimitar um lugar e operar – mais uma – deslocação da imagem para a ideia. Quase literal. Por entre as “paisagens” encontramos um único retrato e uma única natureza morta. A sua ostensiva visibilidade dispensa as tabelas. Mas, também aqui, o gesto de paródia age. A natureza morta é um alvo. O espectador perguntará: “o” alvo da exposição? O alvo, no seu centro, miniaturiza e concentra a “visibilidade” desta exposição: selos e um “retrato”, a

que se justapõe uma frase de aparente non-sense, que se consumaria em si. Uma seta riscada aponta o número três: paisagem, retrato e natureza morta? Ideias. A ideia de arte é também um “lugar vazio”. Um lugar que é o alvo de cada obra singular, i.e., que se arrisca na liberdade de sentir, pensar e agir. A abertura desse lugar é o resultado “positivo” - ainda que por vezes apenas sob a forma de uma interrogação - da negação efetuada pela crítica prática ou dos sucessivos gestos de libertação ativa. (Enigma. Na alegoria “Artista da Fome”, Kafka mostra-nos que uma fome só tem manifestação no emagrecimento do corpo do artista. Não vemos, imediata e diretamente, a fome. Mas ela devora-o. Alguns gordos filisteus até podem suspeitar que o artista se alimenta às escondidas. É preciso acreditar na Fome.) Confissões do crítico. Não uso a expressão “arte conceptual”. Esta pretendeu, em muitas situações, legitimar uma lamentável “interpreteose”, doença degenerativa da interpretação. Doença praticada por alguns artistas, e, claro, também pelos críticos. A arte opera com “manifestações”, nos seus múltiplos graus, invenções e construções. O rigor desta instalação de Albuquerque Mendes testemunha-o. E a ideia manifesta-se; por vezes, apenas na emulação do Deus da “visibilidade”. Por isso, a Arte nunca foi retiniana. Esperamos que este texto seja lido como um convite para a viagem, que cada um terá de fazer por si, e que é esta extraordinária (…) de Albuquerque Mendes. Paradoxo do artista. O humor afirma os paradoxos, na arte e na vida, e liberta-o das exigências da não contradição. Fernando Poeiras

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