O gênero da tatuagem: continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro (Tese de Doutorado)

July 25, 2017 | Autor: Andrea Osorio | Categoria: Anthropology, Anthropology of the Body
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O GÊNERO DA TATUAGEM

Continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro

Andréa Barbosa Osório

IFCS Doutorado em Antropologia PPGSA Mirian Goldenberg orientadora

Rio de Janeiro março de 2006

ii O GÊNERO DA TATUAGEM Continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro Andréa Barbosa Osório Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pó-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Antropologia.

Aprovado por: ___________________________________________________ Profa. Dra. Mirian Goldenberg Orientadora ___________________________________________________ Profa. Dra. Yvonne Maggie ___________________________________________________ Prof. Dr. Michel Misse ___________________________________________________ Profa. Dra. Marta Perez ___________________________________________________ Prof. Dr. César Sabino ___________________________________________________ Prof. Dr. Everardo Rocha Suplente ___________________________________________________ Profa. Dra. Rosilene Alvim Suplente

Rio de Janeiro 2006

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Osório, Andréa Barbosa. O Gênero da Tatuagem: continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro / Andréa Barbosa Osório. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2006. xiv, 253pp. Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS. 1.

Tatuagem.

2.

Gênero.

UFRJ/IFCS/PPGSA). I. Título.

3.

Tese

(Dout.



iv RESUMO

OSÓRIO, Andréa Barbosa. O Gênero da Tatuagem: continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro. Orientadora: Profa. Dra. Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2006. Tese.

A partir da observação de campo em dois estúdios de tatuagem na cidade do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2005, foi possível perceber alguns dos usos associados pelos tatuados a este tipo de marcação corporal. Entre estes usos estão, principalmente, o embelezamento corporal, a proteção mística, a mudança de status, a expressão dos sentimentos. Mas estão associados à prática, também, outros fatores, como a percepção de uma maior ou menor autonomia pessoal frente à família, ao Estado e ao mercado de trabalho. Formado por um público majoritariamente feminino, o universo estudado apontou para construções de gênero análogas às que se encontra na sociedade carioca mais ampla, que determinam ao corpo locais apropriados para se dispor a tatuagem, bem como os desenhos apropriados a este corpo feminino ou masculino. Observou-se, assim, uma continuidade dos usos apontados por outros autores com relação ao passado da prática, salvo pela noção de embelezamento, ao mesmo tempo em que se mostra que esta continuidade diz respeito também ao status (posição) social do tatuado estruturalmente observado, antes de obter sua tatuagem.

v ABSTRACT

OSÓRIO, Andréa Barbosa. O Gênero da Tatuagem: continuidades e novos usos relativos à prática na cidade do Rio de Janeiro. Orientadora: Profa. Dra. Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2006. Tese.

From field work in two studios in the city of Rio de Janeiro, between 2003 and 2005, I could observe some uses concernig tattoos.

Between these uses are, specially, body

embelishment, mistic protection, expression of feelings. But also other factors, as the perception of a higher or lower personal autonomy related to family, State and work market. The studied universe, permed by a majority of feminine clients, has pointed to gder eelations analogous to those seen in carioca society, which determine apropriated body areas to de draws, as mucha as apropriated feminine and masculine draws. Thus, I observed a continuity os uses pointed by authors about the past of the practice in Wertern world, seve embelishment practices. At the same tme, this continuity is associated with the structural status (position) of the tattooed before the tatto mark.

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“Um dos vieses através dos quais se exercem as censuras sociais é precisamente esta hierarquia de objetos considerados como dignos ou indignos de serem estudados.” Pierre Bourdieu

vii

Dedico este trabalho aos meus pais. Também a Sieg, Dalila, Otto e Tristan, criancinhas levadas que fizeram tudo ser diferente.

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AGRADECIMENTOS À Professora Mirian Goldenberg, orientadora atenciosa e incansável, com quem aprendi o ofício do antropólogo. Ao CNPq pela dotação de bolsa de pesquisa, sem a qual o presente trabalho não seria possível. Ao PPGSA, na forma de seu corpo de docentes e funcionários, cujo apoio foi fundamental no bom desenvolvimento desta pesquisa. Às Professoras Elsje Lagrou, do PPGSA/IFCS/UFRJ, e Cláudia Rezende, do PPGCIS/UERJ, cujas críticas e sugestões foram importantes para o delineamento do presente trabalho. Agradeço, também, a atenção dos Professores Marco Antônio Gonçalves e Yvonne Maggie, do PPGSA/IFCS/UFRJ. A todos os estúdios visitados, em especial aos estúdios onde a observação de campo foi realizada, ao seu apoio, à sua atenção e ao seu interesse. A todos os profissionais que me abriram as portas, que dedicaram seu tempo a me prestar informações e que se interessaram por este trabalho. A Lúcio, Rai, Lia, Alex, Marcus, Magathi, Marquinho, Leco, Dani, Nilson, Wagner, Alda, Gi, Mariana, Emerson. A Laura e Jane, que com suas presenças mágicas fizeram as portas dos estúdios se abrirem para mim. A Dax e Ângelo que lembravam carinhosamente de mim toda vez que conheciam uma pessoa tatuada ou um tatuador, fornecendo indicações ou me colocando em contato com os mesmos. A todos os amigos que puderam contribuir, de alguma forma, com o presente trabalho, com seu apoio, atenção e carinho, em discussões antropológicas ou em caras palavras de incentivo, que foram cruciais. Neste sentido, preciso agradecer especialmente a Márcia

ix Anute e Christian Lynch, Rodrigo Rosistolato e César Sabino. A César agradeço também pela constante troca de idéias, que se fez terreno fértil para que as análises florescessem. A Dax agradeço, ainda, a dedicação das leituras e correções, das discussões intermináveis, de toda a inspiração que seu próprio trabalho me ofereceu e de sua mera presença física, que foi fundamental. À minha família que acreditou em minha capacidade para viver de Ciências Sociais no Brasil.

x SUMÁRIO Introdução

01

Capítulo I – Renascimento da tatuagem no Ocidente 1. Do Pacífico Sul à Europa 2. O corpo exposto no circo 3. Marinheiros, prostitutas e prisioneiros 4. Nobreza européia 5. Os jovens e a contracultura

16 18 20 22 26 27

Capítulo II - A metáfora da tatuagem 1. Tatuagem no Brasil 2. Punição, resistência, controle e autonomia 3. Dentro e fora 4. Reflexões preliminares

31 33 36 44 50

Capítulo III – Os estúdios pesquisados 53 1. Profilaxias e técnicas 54 2. Variações sazonais 58 3. Localização: Tijuca 59 4. Localização: Copacabana 60 5. O espaço físico 61 5.1. Tijuca 61 5.2. Copacabana 65 6. Concorrência e proliferação de estúdios na cidade: a ética do tatuador 66 7. Fazendo a propaganda de um estúdio 69 8. Ser proprietário de um estúdio, ser tatuador, ser recepcionista 72 8.1. Tijuca 73 8.2. Copacabana 77 9. Tatuagem como arte: diferenciação entre profissionais e amadores 81 10. A Resolução SMG “N” nº 690 de 30 de julho de 2004 85 11. Conseqüências do novo cenário: expansão e retração dos negócios em um ambiente de concorrência 89 Capítulo IV – Perfil do público 1. Área de residência 2. A predominância feminina 3. Pele: classificações de tatuadores e perfil do público 4. Perfil etário 5. Adolescência e a sedução da tatuagem 6. Mudança de status 7. Conflitos geracionais 8. Quem são os tatuados?

92 93 97 99 100 105 107 109 112

xi

Capítulo V – Desenhos, Estilos, Regiões do Corpo: representações de gênero no universo da tatuagem 115 1. Estilos de tatuagem 116 2. Os “desenhos femininos” 118 3. O ethos guerreiro 122 4. Os mais tatuados 127 4.1. Corpos celestes em outros corpos 130 4.2. Religiosas, indianas, egípcias e celtas 132 4.3. Oriente-se 134 4.4. Ameríndios de norte a sul 135 4.5. A febre tribal 136 4.6. Lendas, feitiços e mitologia 137 4.7. Símbolos e signos 138 4.8. Registrar, escrever, tatuar 139 4.9. Outros bichos 140 4.10. O jardim encantado 141 4.11. Som e fúria 142 4.12. Desenhos de criança 142 4.13. Os outros 143 4.14. Comparando desenhos em homens e mulheres 144 5. Desenhos e subjetividade 146 6. Originalidade e modismos: formas de distinção e pertencimento 151 7. Mapeando o corpo tatuado 154 7.1. O melhor lugar para um desenho 162 8. Revelar e esconder 163 9. O gênero da tatuagem 167 Capítulo VI – Experiências, Dilemas, Dor: tatuados nos estúdios 1. A experiência das mulheres 2. Esse corpo que não te pertence 3. Restrições no mercado de trabalho 4. Beleza e sedução 5. Lidando com a dor: o frouxo e o carniceiro 5.1. A pomada anestésica 5.2. Coragem 5.3. Dor e masculinidade 6. Pensando as diferenças de gênero nos estúdios

170 170 174 178 184 185 191 194 195 199

Capítulo VII - Sentimentos, Lembranças e Esquecimentos: a tatuagem como expressão de um momento na história de vida 201 1. As tatuagens de amor: sentimento à flor da pele 202 2. Relações de gênero como relações de poder 205 3. Expressando sentimentos 210 4. No mundo das celebridades 211

xii 5. O que os tatuadores pensam sobre as tatuagens de amor 6. Prova de amor e compromisso 7. Só será eterno enquanto dure? 8. Obras de amor e de arte 9. Lembrar/esquecer/silenciar: formas de uma dermo-biografia

213 215 223 229 231

Considerações Finais

236

Referências Bibliográficas

245

Anexo 1 – Iconografia das tatuagens contemporâneas

251

xiii

LISTA DE TABELAS, GRÁFICOS E QUADROS

TABELAS: Tabela n. 1 – Mulheres e homens na clientela do estúdio pesquisado na Tijuca

97

Tabela n. 2 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Tijuca

101

Tabela n. 3 – Desenhos tatuados, segundo o gênero

128

Tabela n. 4 – Regiões do corpo tatuadas, segundo o gênero

155

GRÁFICOS: Gráfico n. 1 – Faixas de preço de gastos, em números absolutos, referentes ao mês de setembro de 2003 no estúdio pesquisado na Tijuca 75 Gráfico n. 2 – Percentual dos bairros da Zona Norte onde mais freqüentemente residem os clientes do estúdio pesquisado 94 Gráfico n. 3 - Percentual dos bairros da Zona Sul onde mais freqüentemente residem os clientes do estúdio pesquisado 95 Gráfico n. 4 – Maiores percentuais de clientes encontrados no estúdio pesquisado, segundo região de origem 96 Gráfico n. 5 – Homens e mulheres, em números absolutos, no estúdio pesquisado na Tijuca 98 Gráfico n. 6 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Tijuca, em números absolutos, nos meses pesquisados 102 Gráfico n. 7 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Tijuca, nos meses citados, agrupados em duas faixas etárias, com corte aos 25 anos 102 Gráfico n. 8 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Tijuca, nos meses citados, agrupados em duas faixas etárias, com corte aos 29 anos 103

xiv Gráfico n. 9 – Maiores percentuais de desenhos entre homens e mulheres

130

Gráfico n. 10 – Os desenhos masculinos em percentuais

134

Gráfico n. 11 – Tatuagens mais populares entre os homens, em percentuais

145

Gráfico n. 12 – Desenhos mais populares sem distinção por gênero, em percentuais

146

Gráfico n. 13 – Estilos/motivos de tatuagens mais populares, sem distinção de gênero, em percentuais 146 Gráfico n. 14 – Regiões do corpo mais freqüentemente tatuadas por homens e mulheres, em percentuais 155

QUADROS: Quadro n. 1 - Mudança no perfil sócio-econômico do tatuado, durante o século XX, no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa 29 Quadro n. 2 – Oposição modismo/originalidade

153

Quadro n. 3 – Correlações na dinâmica revelar/esconder

163

Quadro n. 4 –Tatuagem como processo doloroso ou não-doloroso

188

1

INTRODUÇÃO

A presente tese está estruturada a partir de dois problemas centrais: o primeiro, a mudança no público da tatuagem (de essencialmente masculino e jovem para majoritariamente feminino e jovem, mas incorporando indivíduos adultos); o segundo, a relação entre este público e a idéia de autonomia pessoal, através da marcação corporal com tatuagens. O atual público da tatuagem, majoritariamente feminino, foi uma constatação empírica verificada nesta tese e em duas dissertações brasileiras recentes (LEITÃO, 2002; FONSECA, 2003). Se há algumas décadas esta prática estava quase que circunscrita aos homens, hoje a realidade é outra. De fato, o primeiro problema formulado, ainda no início da presente pesquisa, não se relacionava ao gênero, mas à idéia de que a tatuagem constituía uma prática característica da juventude. A observação de campo permitiu enxergar um público mais adulto, que está além do que é considerado como juventude. Até recentemente, como será mostrado no decorrer do estudo, a tatuagem era uma prática masculina e da juventude; hoje, é uma prática feminina que, embora majoritariamente jovem, atinge faixas etárias superiores. O problema, então, se tornou o de compreender a mudança, suas possíveis causas e suas conseqüências. Entre estas causas, aponto como hipótese o papel da busca de autonomia pessoal a partir de marcas corporais, com ênfase para as tatuagens. Compreender este processo se tornou um segundo problema nesta tese. Adotar esta linha explicativa sem recair na subjetividade dos tatuados, mas baseá-la em processos sociais, portanto coletivos, foi o caminho encontrado para traçar um panorama social que levasse a uma explicação acerca da mudança de público. As mulheres, neste sentido, e seu progressivo ganho de autonomia nas sociedades ocidentais, se tornaram o público majoritário da prática porque esta é uma prática relacionada à busca e ao exercício de autonomia pessoal. Observou-se, ao longo da pesquisa, que esta autonomia é paralela a processos de construção de individualidade, em que as tatuagens são relacionadas a um exercício da

2 autenticidade. O campo indicou que os tatuadores valorizam esta autenticidade, construindo uma visão da prática como individual, vivida subjetivamente. Esta subjetividade não é, de meu ponto de vista, o cerne da explicação do uso de tatuagens. As marcas não são fruto da expressão de uma individualidade, simplesmente, mas de uma busca por se viver plenamente esta individualidade frente a um contexto social que é experimentado pelo sujeito como restritivo a sua autonomia pessoal. A problemática da autonomia, que aqui é a hipótese para o crescimento do uso de tatuagens entre mulheres, surgiu de estudos sobre o uso de tatuagens em meio prisional (SCHRADER, 2000). Esta idéia foi utilizada para explicar a atual popularidade da tatuagem em todo o Ocidente, por meio do conceito de posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002). A posse de si é a marca de uma individualidade, uma autonomia pessoal, na forma de marca pessoal de propriedade sobre o próprio corpo. É o exercício, a tentativa de exercício ou o enunciado/comunicado de que o sujeito, dentro do corpo marcado, é soberano sobre si. Corpo e subjetividade fundem-se e foram separados aqui, segundo a tradição ocidental (corpo versus mente), apenas por questões analíticas. A posse de si não é a posse do corpo, mas a posse do indivíduo como um todo, corpo e mente. Imbricados em uma sociedade que ainda não permite o mesmo grau de autonomia para homens e mulheres, jovens e adultos, mulheres e jovens foram percebidos neste trabalho como em busca justamente da posse de si. Mesmo os adultos aqui estudados vivem mudanças na vida que parecem retirar deles o controle que talvez sentissem exercer sobre si mesmos. Devo mencionar, ainda, a forte influência da obra de Gell (1993) sobre a tatuagem polinésia como fonte rica de inspiração para a abordagem da popularização da tatuagem e sua mudança de público, não como assentada sobre uma subjetividade individual de cada tatuado, mas em processos sociais mais amplos. A obra do autor, formulada a partir de elementos constitutivos das sociedades polinésias e de sua comparação, permitiu uma análise que tenta percorrer o mesmo objetivo: verificar o que há na sociedade atual que permitiu a explosão (o autor diria “epidemia”) do uso de tatuagens.

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3 O ponto de partida foi uma lembrança de adolescência, das tardes em que fui levada a um dos estúdios pesquisados por uma amiga interessada em tatuagens, surfistas, rock na Rádio Fluminense FM e namorados. 14 anos de idade e nenhuma idéia do que era ser tatuada. Não adquiriu a marca, que eu saiba. Uma vida acadêmica depois, encontrei-me discutindo com a então orientadora do mestrado, o que gostaria de estudar. Surgiu, então, a idéia: “todo mundo se tatua hoje em dia. Eu gostaria de saber o por que”. Eu também queria. Já havia pensado sobre o assunto sobre o viés das teorias da identidade do sujeito moderno, abordagem que foi abandonada muito cedo em prol de uma mais antropológica. Eu havia feito uma tatuagem anos antes, um processo extremamente doloroso, sangrento, caro e cujo resultado final foi de gosto duvidoso. Saí da casa do tatuador com um pedaço de papel de pão fixado na pele com fita crepe e sangrando tanto que não podia tocar no encosto da poltrona do ônibus que tomei de volta para casa. Se a camiseta que usei no dia não fosse negra, talvez tivesse uma dimensão mais justa do quanto sangrei. Minha mãe, ao ser testemunha da marca da aventura, repetiu o que descobri mais tarde que tantas mães repetem nestas horas: “ah, tá bom... mas é a última, né?”. Esperara anos para ser tatuada e só tive o ímpeto às custas do exemplo de uma amiga e do desconto de 50% que o tatuador me concedeu (um aprendiz). E ainda assim amava profundamente aquele rabisco borrado na pele. Orgulhava-me dele e de mim. Por quê? Fazia sentido a pergunta. Retornei ao estúdio das lembranças de adolescência, adquiri três novas tatuagens ao longo destes outros tantos anos, acho que sei um pouco mais sobre como funciona esse universo e talvez possa responder por que as pessoas se tatuam. Só não sei dizer porque me tatuei, mas mantenho um firme amor pelo primeiro borrão na pele. Mantendo minhas lembranças sobre o universo das tatuagens, parecia-me que se tratava de um mundo essencialmente masculino. Minha segunda marca foi adquirida muitos anos depois da primeira, mas antes de sequer pensar em doutorado. Fora, então, à casa de um tatuador recomendado no boca-a-boca. Ele mantinha um cômodo da casa, próximo à porta da rua, como estúdio. Havia sofá, mesa, espelho, muitos desenhos pelas paredes e uma estufa para esterilizar o material. Os desenhos em questão representavam caubóis, índios, mulheres seminuas, animais selvagens, surfistas. Nada ali presente retratava algo que eu julgasse parte do universo feminino. Não obstante, eu não era a única cliente mulher. Apenas o local não estava voltado para as mulheres como público.

4 Duas tatuagens depois, eu ainda não tinha a menor idéia de como funcionava um estúdio nem de quem eram os tatuados. Faço esta observação porque “os tatuados” não formam um grupo social como “os funqueiros”, “os surfistas”, “os índios” e mesmo “as mulheres”. Se nem todos os funqueiros são iguais, se “as mulheres” é uma terminologia que encobre as diferenças de geração, cor, classe, orientação sexual, entre outros, mesmo essa generalização não faz sentido quando se trata dos tatuados. Não são um grupo social porque não apresentam uma cultura comum, relacionada à prática da tatuagem. Pode-se ter mais de uma marca e ainda assim não saber como esse universo funciona, quais são seus valores, suas crenças, suas hierarquias, etc. Os “donos” deste cosmo são os tatuadores, profissionais desta arte de embelezar a pele. Juntam-se a eles apenas alguns poucos interessados, normalmente extensamente marcados, com mais de 10 tatuagens pelo corpo. Estes freqüentaram os estúdios por tempo suficiente para aprender algo da prática. Foi freqüentando os estúdios, então, que aprendi muitas coisas também. A memória de um mundo masculino norteou uma de minhas primeiras hipóteses, a ser rejeitada pelo campo, em um primeiro aprendizado nos estúdios: o universo dos tatuadores é masculino, mas a maior parte de sua clientela hoje é formada por mulheres. Para elas, os estúdios passaram a oferecer maior privacidade. Para elas, foi desenhada toda uma gama de representações da feminilidade. Elas movimentam financeiramente os estúdios, mas são os desenhos maiores, habitualmente escolhidos pelos homens, aqueles mais valorizados e considerados artísticos. Segunda lição do campo: ser a maioria não faz de você um elemento valorizado. Uma segunda hipótese era a de que o uso de tatuagens estava relacionado a grupos jovens, as conhecidas tribos urbanas. Mais uma hipótese que o campo derrubou. Nada nos estúdios pesquisados indicava que o público por excelência das tatuagens fosse formado por roqueiros, surfistas, moderninhos, skatistas, ou quaisquer outras vertentes. Em um dos estúdios pesquisados, a presença de surfistas era forte, mas nunca a maioria do público local. As tribos urbanas utilizam tatuagens, é fato, mas não são elas que movimentam os estúdios. O campo demonstrou, ainda, que uma boa parcela do público da tatuagem carioca nem ao menos pode ser considerado “jovem”. Há uma faixa acima dos 30 anos que se tatua tanto quanto os “jovens”.

5 Rejeitadas as primeiras hipóteses, oriundas claramente de um senso comum sobre a tatuagem, coube a tarefa de compreender quem era o público dos estúdios pesquisados, o quanto a prática estava disseminada por diferentes classes sociais, gerações, gêneros. Perguntava-me, ainda, quais os significados que os tatuados davam às suas marcas, algumas vezes tão criteriosamente escolhidas, outras vezes oriundas de um ímpeto de momento. Observei, então, que o universo da tatuagem estava segmentado em função do gênero. “Desenhos femininos” se contrapõem a toda uma gama de estilos de tatuagem, normalmente pensados como “para os homens”, embora sejam minoria nos estúdios. Desenhos menores, típicos das mulheres, não são valorizados, pois levam o estúdio a ser escolhido pelo preço mais do que pela qualidade do profissional, uma vez que o tamanho diminuto inviabiliza os detalhes que dão qualidade mais ou menos artística à tatuagem. Os locais do corpo são criteriosamente escolhidos pelos clientes em função de sua associação com o feminino e o masculino, raramente operando-se inversões. Assim, foi construída uma visão de que braço é lugar de homem, por exemplo, enquanto lombar, pé e nuca são lugares de mulher. Tatuagem grande é coisa de homem e pequena “de mulherzinha”. Homem tatua dragão, tribal, pitbull. Mulher tatua flor, borboleta, estrela. Na visão masculina reinante, a “mulherzinha”, que não quer sentir dor, faz uma tatuagem pequena. Elas reclamam da dor nos estúdios, pedem pausas, fazem caretas. São vistas como fracas, “frescas”, sem coragem. Ignoram estes homens que elas tatuam locais dolorosos, como o pé. Ignoram ainda que a extensão dos desenhos tem uma correlação direta como esta visão de que a mulher é sempre menos do que o homem. Mas não ignoram que seu silêncio nos estúdios é parte de sua prova de virilidade, pois “homem de verdade” se submete à dor calado, demonstrando força e coragem. E assim foi que percebi que tudo em um estúdio de tatuagem se refere a uma estrita divisão entre os gêneros que reproduz, como em nossa sociedade, valores e hierarquias entre homens e mulheres sobre o masculino e o feminino. Esta hierarquia chega à própria atuação como tatuador, profissão masculina. As mulheres dominam apenas as recepções e aplicações de piercings, atividade que não é considerada artística, portanto de menor valor. A discussão de gênero se tornou, por força das evidências, o cerne do material de campo. Algumas considerações sobre tatuagens em meios carcerários, onde o sujeito está

6 sob rígido controle corporal, se aplicavam perfeitamente àquilo que eu observava. Muitas mulheres tinham que lutar contra maridos e família para realizarem o sonho de ter uma tatuagem. Frente à pressão da família, tinham de dizer abertamente que seus corpos eram seus corpos e de mais ninguém. Os jovens, de igual forma, ao se oporem às determinações familiares, operavam a mesma ruptura em busca de autonomia, chegando a consistir muitas vezes a tatuagem em marca de uma mudança de status para a maioridade. Assim, construí uma visão da prática da tatuagem apartada da estética. Beleza e moda não são pontos cruciais neste trabalho. Se a tatuagem é parte do escopo de práticas corporais contemporâneas, este é quase um dado tomado a priori. Para além desta afirmação, busquei uma visão que demonstrasse que a marca na pele leva o sujeito a (ou é fruto de) uma busca por autonomia, pelo exercício de uma liberdade que, se não é total, é a semente de um individualismo. Na contramão da autonomia, observei que alguns preferem marcar seus corpos como propriedade de outra pessoa, embalados por uma certa crença no amor eterno ou amor romântico. Não por acaso, não são tatuagens bem vistas pelos tatuadores, cientes que estão do quanto as relações amorosas são fugazes. Estão cientes, ainda, dos “modismos”, do fenômeno da imitação prestigiosa (MAUSS, 1994). Para eles, a tatuagem é uma arte e seu potencial artístico deve ser aproveitado, o que de fato é raro, dado que o procedimento é caro e o gosto pessoal do cliente nem sempre combina com as aspirações artísticas do profissional. A abordagem optada para o estudo da tatuagem no Rio de Janeiro provém, portanto, tanto de uma literatura sobre a prática – sobretudo a ocidental – da tatuagem ao longo do tempo, quanto dos dados observados em campo, que são correlacionados a dados de outros autores brasileiros que estudaram o tema recentemente. Minha análise opera com classificações que envolvem, sobretudo,

gênero e

geração. Em menor escala, abordo a idéia de cor da pele e as parcas distinções de classe observadas. De fato, embora os estúdios pesquisados estivessem localizados nas Zonas Sul e Norte carioca, de onde poder-se-ia aproveitar o material de campo para esta já clássica comparação, pareceu-me mais rico, dada a realidade observada, efetuar outras comparações, centradas mais fortemente na forma organizacional-administrativa dos

7 mesmos, pois refletem diferentes maneiras de sobreviver à concorrência ao mesmo tempo em que esta indica uma crescente popularização da prática em toda a cidade. A escolha dos estúdios não foi determinada pela divisão clássica da cidade em Zona Norte e Zona Sul – contrapontos de ethos e estilos de vida distintos, uma mais ligada a uma visão tradicional e outra mais modernizada – mas sim pelas oportunidades que se abriram. Uma primeira visita a alguns estúdios deixou claro que o ingresso no campo seria difícil. Observei que os estúdios dispunham a sala de tatuar no fundo dos estabelecimentos, sempre resguardadas dos olhares alheios e, muitas vezes, mesmo do ingresso de pessoas que não os clientes. Assim, fui acompanhar uma amiga que seria tatuada em um famoso estúdio na Zona Sul carioca, próximo ao Arpoador, região de surfistas localizada em uma ponta entre o fim das praias de Copacabana e Ipanema, duas das mais conhecidas da cidade e freqüentadas tanto por turistas quanto por nativos. O Arpoador é caracterizado, ainda, pela freqüência de banhistas vindos dos subúrbios, pois é ponto final de linhas de ônibus que fazem a ligação entre as duas regiões (Zona Sul e subúrbios). A amiga que eu acompanhava já havia sido tatuada neste estúdio e pelo mesmo tatuador que a marcaria novamente. Havia me alertado, contudo, que já tentara ser acompanhada por outra pessoa antes, mas não fora permitido. Uma vez no estúdio, pedi ao tatuador que me deixasse acompanhá-la durante o processo de tatuagem. Ele não permitiu, alegando que se tratava de uma norma do estabelecimento e que a única pessoa que poderia permitir meu ingresso na sala de tatuar – localizada no segundo andar da loja – era o proprietário, que não se encontrava naquele momento. Havia criado tal regra a partir da idéia de contágio e contaminação. Tentava, ao impedir o ingresso de pessoas não envolvidas no ato de tatuar/ser-tatuado, resguardar a higiene do ambiente Após esta experiência, decidi que seria mais prudente ser apresentada a tatuadores que trabalhassem em estúdios por pessoas amigas deles, que fizessem a intermediação. Em um ambiente relacional, ser amigo dos amigos é sempre uma indicação de bons antecedentes. Assim, optei por um estúdio na Tijuca ao qual eu poderia ser introduzida por uma amiga e comecei o trabalho de campo ali. Apenas meses mais tarde consegui um contato que me apresentou a um tatuador proprietário de um estúdio em Copacabana, curiosamente, distante apenas alguns quarteirões daquele que me fechara as portas.

8 O primeiro estúdio que visitei fica localizado na Tijuca, Zona Norte carioca. Minha amiga Fátima1, que será citada novamente neste trabalho, levou-me até lá e apresentou-me ao proprietário. É amiga da esposa dele e de um grupo de conhecidos comuns a ambos. A esposa do proprietário trabalha atualmente como piercer, em loja-filial localizada a poucos metros do estúdio. Tem várias tatuagens. Minha amiga, ao contrário, não possuía nenhuma tatuagem nesta época. O estúdio não foi, portanto, “escolhido”, mas sim uma possibilidade que se abriu à pesquisa. Minha amiga explicou ao proprietário que eu era uma pessoa conhecida, que estava estudando e pesquisando tatuagens e que gostaria de passar algum tempo no estúdio tentando compreender como funcionava. Expliquei a ele que se tratava de uma pesquisa acadêmica, que eu estava vinculada à UFRJ e que gostaria de passar algumas tardes no estúdio apenas observando. Ele não colocou obstáculos. Apresentou-me à equipe, que me recebeu muitíssimo bem, determinada a me explicar o que fosse necessário e jamais demonstrando desconforto com minha presença. É difícil para o não antropólogo, muitas vezes, compreender o que a “mera” observação pode esclarecer em situações vividas no cotidiano. Aquele ambiente tão familiar aos tatuadores do estúdio não era um sobre o qual eles refletissem, como é comum não se fazer sobre as rotinas vividas. Em determinados momentos, a minha presença causava alguma curiosidade, expressa em perguntas como: “mas você fica só olhando?”. O olhar treinado revela muito e esclarece, mas sem as conversas mantidas com os tatuadores e entre eles e seus clientes eu não teria recolhido as informações utilizadas aqui, tampouco teria tido acesso a dilemas pessoais que se expressavam nestas conversas. Devo, portanto, muito do sucesso desta pesquisa a eles e a sua generosidade. Não creio que algum tatuador tenha me considerado como uma amiga, mas torneime parte do cotidiano, algumas vezes atendendo os pedidos por água dos clientes ou mesmo auxiliando a abrir e fechar uma maca. Não se furtavam a pedir a cadeira em que eu me sentava para uso de algum cliente, da mesma forma que jamais me senti constrangida por qualquer pedido desta natureza. Respeitaram minha iniciativa de pesquisadora tanto quanto eu procurei respeitar seu espaço de trabalho, temerosa de perturbar a concentração de um profissional ou de constranger um cliente. Felizmente, nunca recebi críticas diretas 1

Todos os nomes são fictícios, exceto o de seu Nelson.

9 que me impedissem de retornar e creio que não cheguei, até onde isto é possível, a alterar significativamente a rotina do estúdio. Quando acreditei que havia já bastante informação recolhida na observação e nas conversas informais com profissionais e clientes, passei a tabular dados recolhidos de fichas de cadastro de clientes, sem jamais identificar nomes ou endereços. Passei muitas tardes copiando dados para o papel quadriculado, sentada em uma mesa no estúdio. Novamente, despertei curiosidade entre os profissionais. Apenas o recepcionista, que me fornecia as fichas, e o proprietário sabiam exatamente do que se tratava. O recepcionista me dizia, rindo, que os tatuadores questionavam o que eu copiava. Rindo, também, ele respondia aos colegas que o proprietário havia me contratado. Assim, furtava-se a dar maiores explicações, pois colocava sobre o chefe a responsabilidade de minha presença ali. As fichas de cadastro de clientes não são públicas, daí o constrangimento causado e a curiosidade decorrente por parte dos tatuadores. Mais do que fornecer nomes e endereços a princípio sigilosos, algumas fichas continham o valor do trabalho executado. Esse tipo de informação, quando pesquisada, contribui para gerar um estado de alerta. Mas como não havia um controle de minha parte, nem era intenção fazer nenhuma auditoria, tampouco senti qualquer ato antipático da parte dos profissionais. Minha amiga jamais retornou ao estúdio comigo, o que foi, para mim, a medida de minha aceitação no ambiente. Passei um ano visitando o local, entre 2003 e 2004. Não imprimi uma freqüência regular, nos mesmos dias e horários, pois buscava ver as alterações de público. Eu trocava os dias da semana em que comparecia e também os horários. Às vezes observava um tatuador de perto por semanas e depois escolhia outro. Queria, com isso, abrir o panorama de visão, pois o estúdio opera com até cinco profissionais tatuando concomitantemente. Tornei-me mais próxima, é verdade, da única mulher tatuadora do estúdio. De fato, foi a ela que o proprietário me encaminhou em primeiro lugar. Conquanto o gênero deva ter sido um critério nesta aproximação, percebi aos poucos que ela era o braço-direito do proprietário, trabalhando a seu lado há muitos anos, e que certas responsabilidades, no tocante ao estúdio, ficavam a seu cargo. Com um total de nove tatuadores atuando na loja, é compreensível que alguns tenham se tornado mais próximos e outro mais distantes. Próximo, aqui, significa a

10 possibilidade de iniciar uma conversa, de minha parte ou não, de fazer perguntas e de observar o ato de tatuar de perto. Distante significa apenas cumprimentar o profissional, nunca ter mantido conversação com ele e observar seu trabalho a uma distância física maior. Talvez o gênero tenha sido um fator determinante nesta distância, pois se descobri que a maioria dos clientes é mulher, a maioria dos tatuadores é homem, e neste universo masculino habitado por uma única mulher eu era uma estranha. Mas creio que, fundamentalmente, a distância foi causada por outros fatores, como a timidez. Os tatuadores deste estúdio são pessoas introspectivas, que evitam comentar suas vidas pessoais e que procuram sempre saber mais de seus clientes do que falar sobre si. Foi esta dinâmica que permitiu o recolhimento de uma série de informações sobre essa clientela, mas prejudicou o mesmo procedimento a respeito dos profissionais. Foi em contato com outro grupo de amizade que pude efetuar o trabalho de campo no estúdio de Copacabana. Freqüentando constantemente o restaurante de um amigo, ele passou a me indicar tatuadores que eram seus clientes. Infelizmente, nossas presenças não coincidiam. Foi uma de suas garçonetes que me apresentou a um tatuador sobre o qual ela falava muito. Estava combinando com ele uma nova tatuagem, que acabou não sendo realizada. Em uma noite em que ambos estávamos no restaurante, fui apresentada a ele. Muito simpático, dispôs-se a me receber em seu estúdio, mas com a condição de que estivesse presente. Disse que passava temporadas tatuando fora do país, no Caribe, mas que em alguns meses estaria retornando e que, então, eu poderia procurá-lo. Assim o fiz. Jamais me apresentei no estúdio sem a sua presença e limitei a pesquisa ao período em que se encontrava na cidade. Como conseqüência, o período de observação neste estúdio de Copacabana foi menor. Freqüentei o estúdio por poucos dias em janeiro de 2005, pois o tatuador estava às vésperas de uma de suas freqüentes viagens, e retornei posteriormente entre março e maio de 2005. Dada as longas e freqüentes ausências do proprietário e uma forma de organização distinta daquela encontrada no estúdio estudado na Tijuca, não pesquisei as fichas de cadastro de clientes. Em primeiro lugar, é necessário dizer que o acesso às fichas não foi negado, mas desestimulado em função de sua alegada “falta de organização”. Enquanto as fichas eram material para que o contador fechasse as contas mensais do estúdio da Tijuca, o mesmo não ocorria em Copacabana. Assim, as fichas se tornaram lá um procedimento

11 meramente formal, sem utilidade para o estúdio. Em segundo lugar, observei que não era hábito fazer com que clientes antigos, que eram a maioria enquanto efetuei a observação de campo, preenchessem tais fichas. Concluí que a consulta a este cadastro não forneceria material que possibilitasse formular um perfil fiel à clientela do estúdio. Abandonando, portanto, a idéia de comparálos por meio das fichas, esta comparação restou limitada aos procedimentos observáveis em campo, ou seja, à forma de se organizar o estúdio como negócio, o grau de amizade entre tatuador e cliente, o custo dos trabalhos efetuados, entre outros pontos. O estúdio contava com dois tatuadores e um piercer. Observei que a freqüência de clientes era menor do que aquela no estúdio da Tijuca. O grau de amizade entre proprietário e clientes também era distinto. A relação entre tatuador e proprietário também era significativamente outra. Em Copacabana, o proprietário tatuava mais clientes do que o segundo tatuador (COSTA, 2004), situação que não foi vista na Tijuca. O segundo tatuador usufruía de um tempo livre maior. Assim, a quase totalidade das conversas entre tatuador e cliente observadas no estúdio de Copacabana foram travadas entre o proprietário e clientes antigos da loja. Com o segundo tatuador, conversei várias vezes, conversas de natureza mais informal sobre a profissão, os sonhos do profissional, o início da carreira. Tornei-me próxima dos profissionais deste estúdio de uma forma que não ocorreu na Tijuca. Observei, portanto, que reproduziam comigo a relação que mantinham com os clientes, menos introspectiva, mais falante e mais próxima a uma amizade. Mesmo a esterilizadora do estúdio passava as tardes conversando comigo, tocando inclusive em assuntos de sua vida pessoal, de conhecimento de todos no estúdio. O piercer, atendendo também a poucos clientes, tirava minhas dúvidas sobre o funcionamento do estúdio e me mostrava na Internet, empolgado, as novas possibilidades da técnica. Conheci toda uma rede de amizades lá, que incluía relações de compadrio. Em um universo menor, habitado por uma quantidade menor de clientes, muitos eram amigos entre si e quase todos amigos do proprietário. Fui tratada igualmente como uma amiga. Aproveitando-me da relação, pude questionar mais os clientes, intrometendo-me nas conversas que mantinham com o tatuador e efetuando minhas próprias perguntas. Se as fichas de clientes não puderam ser utilizadas, as conversas foram conduzidas de forma mais

12 pessoal. Não tinha receio de estar constrangendo ou sendo inconveniente, pois sentia os clientes mais abertos a falarem de suas vidas pessoais, suas expectativas, suas idéias. Todas estas diferenças entre os estúdios me pareceram menos assentadas na divisão Zona Norte e Sul do que em formas distintas de organização de um negócio, que se aproximariam do que Weber (1971) chamou de familiar e burocrático. Assim, este foi o ponto privilegiado da comparação: um estúdio com filiais, fichas de clientes organizadas, contador, advogados, clientes amigos e não amigos e nove profissionais atuando, de um lado, e um estúdio com dois profissionais, sem filial, sem fichas de clientes sistematizadas, sem contador, sem advogado e repleto de turistas e amigos do proprietário como clientela majoritária, de outro. Em Copacabana, o proprietário contava que viajava para trabalhar no Caribe a fim de lucrar mais, pois no Brasil mal conseguia sanar as contas da loja. Na Tijuca, o proprietário anexava a loja contígua e comprava mobília nova para o estúdio. O crescimento do negócio, a tatuagem como empreendimento, era vivido na Tijuca, enquanto em Copacabana o negócio era quase familiar, artesanal, sem grandes investimentos. Este pareceu o lado mais rico da comparação, lado que se refere, na verdade, a distintas estratégias de sobrevivência em um mercado em expansão, que tem gerado uma concorrência que não existia. Como os casos relatados são oriundos da observação de campo, e não de entrevistas em profundidade ou mesmo de questionários aplicados, não há informações completas sobre os sujeitos mencionados. Desta forma, forneço as informações que me foram possíveis obter em campo. No estúdio pesquisado de Copacabana, eventualmente eu podia complementar algumas delas fazendo perguntas ao tatuador, amigo de muitos de seus clientes e, portanto, a par de suas vidas pessoais. Mas nem sempre este método se mostrou eficiente, uma vez que as perguntas eram interrompidas pela dinâmica do cotidiano do próprio estúdio e ficavam sem resposta. Ao longo do presente trabalho, inseri, ainda, uma série extensa de tabelas e gráficos oriundos das mesmas, de forma a dar visibilidade ao material quantitativo coletado. Embora relativamente pequeno, pois construído a partir de apenas três meses e de apenas um dos estúdios pesquisados, o da Tijuca, o material quantitativo permitiu indicar mais claramente

13 tendências que poderiam ser consideradas difusas quando apontadas com base apenas na observação participante. É um material que esclareceu e enriqueceu este trabalho. Há, também, quadros ilustrativos, que foram limitados à indicação de categorias e classificações nativas, de forma a permitir uma análise mais profunda sobre as associações entre determinadas crenças e valores dos sujeitos observados. Em anexo, incluí uma série de exemplos de estilos de tatuagens, pois a mera descrição textual não parece conveniente a um repertório imagético tão vasto quanto o da tatuagem ocidental contemporânea. No primeiro capítulo, apresento uma síntese sobre o desenvolvimento histórico da tatuagem ocidental a partir do contato entre ingleses e nativos do Pacífico Sul. Este contato incorporou a prática da tatuagem entre os marinheiros e deste grupo espalhou-se por outros grupos europeus, e além da fronteira européia dando início ao processo de popularização atual da prática. Neste sentido, minha visão da tatuagem contemporânea está permeada por este desenvolvimento histórico. Creio que a atual popularidade da prática, conquanto se inscreva em um determinado culto ao corpo belo, é um momento final de um processo histórico que se inicia séculos antes. Neste processo, a tatuagem é utilizada por diversos grupos, rompendo progressivamente as barreiras de classe, geração e gênero. No capítulo II, apresentarei uma reflexão teórica a partir dos principais conceitos utilizados ao longo da tese. Foram estes conceitos e idéias que possibilitaram o desenho da presente linha de análise. No capítulo III, começo a apresentar o material de campo, os próprios estúdios e seus profissionais, indicando a escolha dos estúdios a serem pesquisados e a metodologia adotada.. A forma como estão divididos espacialmente, a maneira como se organizam administrativamente, sua localização na cidade e nos bairros onde se encontram, as diferenças entre os profissionais e funcionários, a forma de remuneração e pagamento dos trabalhos executados, a forma como a organização do próprio campo profissional da tatuagem se apresentou a mim. Este capítulo visa, portanto, situar o leitor sobre os estúdios pesquisados, de onde provém a maior parte do material qualitativo e todo o material quantitativo analisados, mas também apresentar algumas regras deste universo, apontando para uma supremacia do tatuador no processo de tatuagem e sua capacidade de influenciar os clientes.

14 No capítulo IV, apresento o perfil do público dos estúdios pesquisados. Cor, faixa etária, sexo e local de residência são os dados principais. Como este perfil foi construído principalmente a partir de material quantitativo de um dos estúdios observados, tento apontar que estes dados correspondem, em comparação com dados de outros autores, a um perfil que parece ser, na verdade, brasileiro, e não apenas carioca ou do estúdio pesquisado. Neste sentido, foi possível perceber uma predominância feminina e a presença de uma clientela não jovem da prática. No capítulo V, descrevo os desenhos mais freqüentemente tatuados a partir do mesmo material quantitativo, identificando um corte de gênero tanto quanto aos desenhos como quanto aos locais do corpo a serem tatuados. Apresento, as relações entre os desenhos e significados expressos por alguns tatuados observados em campo e, ainda, a relação entre a marca, que pode envolver o desenho escolhido ou não, e o grupo com o qual o tatuado se identifica, consistindo, portanto, em espécie de marca de pertencimento ou de imitação prestigiosa (MAUSS, 1994). Neste aspecto, identifico como a imitação é mal vista pelos tatuadores, que pensam na tatuagem como expressão artística, portanto indigna de cópia, mas também a relacionam à expressão de uma individualidade que deve ser original ou autêntica. Aqui se percebe como noções de subjetividade, individualismo, expressão pessoal e, ao contrário, cópia, imitação e pertencimento constituem uma dicotomia presente na escolha pelos desenhos a serem tatuados, escolha esta que segue, ainda, uma diferenciação entre os gêneros. No capítulo VI, aprofundo esta diferenciação entre os gêneros, indicando situações observadas nos estúdios em que as atitudes de homens e mulheres são distintas e como se espera que seja esta distinção a partir do ponto de vista dos tatuadores e dos clientes. Discuto a liberdade de opção pela marca, influenciada pela família e pelo mercado de trabalho, o enfrentamento da dor causada pelo procedimento e a idéia de tatuagem relacionada ao embelezamento do corpo e seu conseqüente uso como arma de sedução. Neste capítulo, o material de campo permitiu que fosse mais claramente exemplificada a dinâmica entre revelar e esconder uma tatuagem, conforme apresentada no capítulo anterior, em função da localização dos desenhos no corpo. No capítulo VII, descrevo as tatuagens de amor, conforme observadas nos estúdios. Forma de expressão dos sentimentos, as tatuagens de amor estão amparadas na idéia de um

15 amor para sempre, o que é propício a se pensar a qualidade permanente da marca em relação aos seus usos contemporâneos, embora esta reflexão seja progressivamente indicada por todo o trabalho. De fato, embora cada capítulo esteja estruturado a partir de alguns aspectos privilegiados relativos ao universo da tatuagem, seguindo um desenho etnográfico mais do que teórico, esta etnografia é utilizada tanto para revelar os procedimentos atuais com relação à prática quanto para desvendar a mencionada continuidade da posição social do sujeito que se tatua em função de uma abordagem teórica que foi confirmada pelos dados do campo. Assim, espera-se que, ao final dos capítulos, não apenas parte do universo da tatuagem contemporânea ocidental esteja mais claro ao leitor, quanto a sua dinâmica, pensada a partir da abordagem teórica utilizada, privilegiando-se uma reflexão sobre a autonomia do sujeito que opta pela tatuagem, o controle exercido sobre os corpos (tatuados) e sobre os indivíduos, e o processo de tatuagem como uma metáfora desta luta entre indivíduo e sociedade, mesmo ao nível microssociológico.

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CAPÍTULO I - RENASCIMENTO DA TATUAGEM NO OCIDENTE

“Antigamente, tatuagem era tida como coisa de bandido, mas hoje nossos filhos fazem.” Rubem Vasconcelos, presidente da empresa de construção civil Patrimóvel.

Uma história completa da tatuagem seria, por si só, um empreendimento louvável, uma vez que as poucas obras que tomaram a si esta missão ficaram longe de alcançá-la. Não é minha intenção, contudo, refazer o trabalho dos poucos que se aventuraram neste sentido, embora seja necessário que algum pesquisador o faça de forma mais sistemática. Não seria possível, tampouco, no presente trabalho, tratar exaustivamente da história da tatuagem no mundo. Ao invés disto, gostaria de apresentar alguns dados sobre a história da tatuagem no Ocidente, por algumas razões: primeiro, o atual uso da tatuagem no Ocidente é fruto de um percurso histórico claro e bem definido que auxilia a compreensão sobre a tatuagem contemporânea; neste percurso, alguns usos e alguns grupos foram demarcados de forma tão forte, que a sua associação não se desfez até o presente momento; em segundo lugar, como estou preocupada com os usos da tatuagem, creio que uma pequena história da mesma redime a tradição antropológica, que muitas vezes trata seus objetos de estudo como sujeitos a-históricos (CLIFFORD, 1998). Esta apresentação está organizada da seguinte forma: primeiro, apresentarei os marcos da tatuagem ocidental; em seguida, apresentarei os subgrupos relacionados à tatuagem no Ocidente; por último, analisarei a relação entre estes grupos e o uso de tatuagens. O primeiro marco é o contato entre europeus e habitantes do Pacífico Sul. O segundo marco é a popularização da tatuagem a partir da contracultura, nas décadas de 1960 e 1970. Entre estes dois marcos, há caminhos diferentes para esta popularização em diferentes sociedades ocidentais. Como o interesse do presente trabalho repousa nos usos cariocas da tatuagem, utilizarei para efeito de comparação a trajetória americana da tatuagem, a européia e a brasileira. Neste tópico, a diferença poderá ser melhor visualizada. As fontes utilizadas para o levantamento destes dados são formadas pelos tatuadores-historiadores e por historiadores não tatuadores. Por que a distinção? Porque os tatuadores elaboram categorias nativas, enquanto os historiadores reificam ou não tais

17 categorias. Poucos pesquisadores acadêmicos se dedicaram ao estudo da tatuagem. Este estudo integrou, sobretudo, etnografias. Os historiadores não se interessaram a não ser recentemente pelo assunto (CAPLAN, 2000). Parece-me que este esquecimento do papel da tatuagem em certas esferas da vida social decorre da posição que o corpo ocupou na cultura ocidental a partir da modernidade. A separação entre corpo e mente tornou os assuntos da mente muito mais interessantes aos olhos dos acadêmicos do que os assuntos do corpo. Para Porter (1997), as tradições interpretativas têm dado maior prioridade para questões relativas a significados mentais e ideais do que às questões relativas ao puramente material e ao corporal. Segundo Revel e Peter (1995), o corpo está ausente da história e da historiografia, aparecendo apenas sob o discurso médico – principalmente nos episódios de epidemias – e as estatísticas demográficas. E assim a tatuagem caiu em um esquecimento etnocêntrico, vista como uma decoração sem importância, reabilitada apenas recentemente na obra de Gell (1993). Antes dele, a tatuagem foi objeto de estudo da antropometria e gerou inúmeros estudos, inclusive no Brasil, a partir das visões de Lacassagne e Lombroso, cujas obras também são classificadas como antropologia criminal. Quando suas teorias caíram em desuso, os estudos sobre tatuagem escassearam. A decadência da tatuagem como tema de estudos antropológicos foi tão forte – e talvez unido a este fato a decadência das teorias explicativas lombrosianas –, que muitos pesquisadores da tatuagem não são acadêmicos, mas diletantes apaixonados pelo tema. Seu discurso traz um teor altamente nativo, eivado de senso comum. Assim, não é de estranhar que o cronista João do Rio (1997), no começo do século XX no Brasil, e Steve Gilbert (2000), tatuador nas horas vagas no Canadá no final do século XX, apresentem ambos como motivação para a tatuagem o ócio e a vaidade. Não por acaso, Samuel Steward (1990), ex-professor universitário e tatuador, apresenta a tatuagem do meio do século XX nos Estados Unidos da mesma forma que Do Rio (1997): como um elemento da cultura marginal e de camadas baixas da sociedade, ambos os autores influenciados pelas teorias antropométricas. Estas visões perpassam, igualmente, o discurso dos tatuadores contemporâneos, alguns preocupados em apresentar um mínimo de informações sobre sua profissão nas homepages que mantém. Se os tatuadores estão interessados em construir a sua própria

18 história, Margot Mifflin decidiu contar a “história secreta das mulheres e da tatuagem”, como afirma o subtítulo de sua obra, Bodies of Subversion, de 1997, com um discurso feminista. No universo masculino da tatuagem, as mulheres muitas vezes passaram em branco, embora colorissem as peles de outros e a sua própria. Longe de apenas fornecerem dados, estes autores informam, por meio de seu próprio ponto de vista, a visão de uma época, a apropriação que certos segmentos sociais fizeram da tatuagem e a construção de um discurso elaborado a partir da posição que cada autor ocupa neste universo. 1. Do Pacífico Sul à Europa Antes de prosseguir, devo introduzir mais um problema metodológico da elaboração deste texto. Como toda “história da tatuagem” revisada está centrada nos usos ocidentais desta técnica, não é de estranhar que os fatos relatados sobre o Pacífico Sul, primeiro marco histórico do renascimento da tatuagem (MIFFLIN, 1997), digam respeito muito mais ao contato de seus habitantes com europeus do que ao significado mais profundo da tatuagem para os próprios nativos, a não ser pela obra de Gell (1993). Os tatuadores têm sido os principais historiadores da sua arte2. Nesta posição, eles têm apresentado uma visão eurocêntrica, uma vez que o europeu é o centro de importância da tatuagem não européia. É o contato, o conhecimento da técnica, seu uso e disseminação por europeus a chave central destas “histórias”. Embora a tatuagem exista no mundo desde a pré-história (Gilbert, 2000), seu percurso no Ocidente tem alguns marcos que gostaria de apresentar. O primeiro deles é o contato entre habitantes do Pacífico Sul que dominavam a técnica e marinheiros europeus. Foi a partir das viagens do capitão Cook, no século XVIII, que a tatuagem ganhou tradução inglesa na palavra tattoo. Gilbert (2000) afirma que foi a tripulação de Cook quem adotou o costume nativo primeiro, tornando-o uma espécie de moda entre os marinheiros a partir de então. Foram tatuados por mãos nativas e aprenderam a técnica, que depois utilizaram a bordo. Muitos tatuadores ocidentais dos séculos XIX e XX eram ex-marinheiros. Segundo Gilbert (2000), já na metade do século XVIII os principais portos britânicos tinham pelo

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Não raro os tatuadores apresentam a tatuagem sob a categoria de arte, sem indicar exatamente o que a faz uma arte. É, desta forma, uma categoria nativa.

19 menos um tatuador profissional3. Muitos marinheiros, ao se aposentarem, estabeleciam-se nas cidades portuárias como tatuadores (BOREL, 1992; GILBERT, 2000). E assim a tatuagem começou seu longo caminho de popularidade no Ocidente. Diz-se recorrentemente nos estudos sobre tatuagem que foi a partir deste contato que a tatuagem ressurgiu na Europa, após um período de quase desaparecimento durante a Idade Média. Este desaparecimento tem sido contestado na medida em que fontes históricas indicam determinados usos populares da tatuagem européia, sobretudo religiosa e profissional, embora os historiadores ainda não tenham concluído qual a parcela de influência estrangeira em tais costumes4. A pergunta mais importante para o antropólogo, contudo, não é esta. Que a tatuagem foi observada como um costume importado é fato. Mas antes do encontro entre europeus e nativos tatuados do Pacífico Sul, houve um encontro similar que não resultou na importação de tal técnica: o encontro entre europeus e nativos do continente americano. Torna-se necessário perguntar, então, porque um desses encontros resultou na chamada tattoo craze5, e o anterior não. Note-se que alguns arquipélagos colonizados a partir do século XVIII já haviam sido “descobertos” por espanhóis no século XVI, como é o caso das ilhas Marquesas, mas não colonizados (GILBERT, 2000). No encontro entre europeus e ameríndios é possível observar que não apenas a tatuagem não foi importada como técnica como tampouco o foram os nativos americanos tatuados. Quando os europeus desbravaram os mares do Pacífico e, sobretudo, os ingleses, vários foram os nativos que ao longo das décadas foram levados à Europa como souvenirs ou como espécimes de História Natural por serem tatuados. A percepção científica que moveu alguns naturalistas no Pacífico não estava presente nas Grandes Navegações, e creio que esta mudança de mentalidade explica em parte a diferente posição frente aos nativos. Mas eu gostaria de sugerir que quando a tatuagem se tornou um elemento identificador do Outro e de seu exotismo6, ela foi apagada da memória nacional do Eu, embora existisse e sua existência não fosse ignorada. Em outras palavras, um novo imaginário sobre a tatuagem a associou ao exótico e ao selvagem, minimizando o uso europeu da técnica. Este 3

Profissional é uma categoria nativa dos tatuadores que se opõe a amador. A construção desta diferença não está bem clara, mas a narrativa escrita dos tatuadores indica que enquanto a tatuagem não é o único ofício, ela é considerada amadora. 4 Para acompanhar de perto o debate, sugiro a leitura de CAPLAN (2000). 5 “Loucura pela tatuagem” ou “febre da tatuagem”, em tradução livre. 6 Para uma discussão maior sobre a ênfase no elemento exótico, a curiosidade e o papel do Outro da formação de uma identidade nacional européia, ver GUEST (2000).

20 novo imaginário foi construído a partir de uma determinada percepção britânica sobre os habitantes do Pacífico Sul, no século XVIII. É certo que nem a mudança de mentalidade nem a construção de um imaginário moderno sobre a tatuagem explicam porque no século XVI e depois ela não foi adotada no contato com os ameríndios, e a partir do século XVIII ela foi adotada no contato com nativos do Pacífico Sul. De qualquer forma, a percepção da tatuagem que se origina a partir do século XVIII é a raiz da atual visão ocidental da tatuagem e, portanto, é sobre ela que devo me concentrar. É preciso dizer, ainda, que a tatuagem na Europa não estava desaparecida quando marinheiros trouxeram o costume do Pacífico. Havia, como indicam diversos autores (BOREL, 1992; CAPLAN, 2000; GILBERT, 2000; ROSECRANS, 2000), uma tradição religiosa da tatuagem européia, relacionada à peregrinação a locais sagrados, incluindo Loreto, na Itália, e Jerusalém. O que os marinheiros fizeram, de fato, foi retirar o costume deste universo religioso cristão e torná-lo um costume profano popular, no sentido de camadas populares e no sentido de ter sido disseminado. O renascimento da tatuagem no Ocidente é um fenômeno que diz respeito a sua disseminação entre camadas sociais determinadas, a partir do contato entre marinheiros e nativos do Pacífico, fora de seu escopo anterior de prática religiosa cristã. 2. O corpo exposto no circo O circo e a exibição do corpo tatuado como entretenimento foi uma das conseqüências do renascimento da tatuagem na Europa. Segundo Gilbert (2000), o primeiro artista circense tatuado inglês foi John Rutherford, que começou carreira em 1828. O pioneirismo de Rutherford refere-se mais à história que contava sobre si do que à data de seu debut artístico, história que foi copiada e recontada por muitos artistas tatuados depois dele. Dizia ter sido capturado pelos maori e aprisionado por 10 anos. Teria sido tatuado a força logo após a captura. Foi promovido a chefe e os maori lhe ofereceram noivas. Casouse com duas filhas de um chefe. Participou das atividades nativas até ser resgatado em 1826, levado em um navio americano até o Havaí, onde se casou com outra princesa nativa. Após um ano, retornou à Inglaterra, onde iniciou a carreira artística. Dizia que o fazia com desgosto, a fim de conseguir dinheiro suficiente para retornar a Otaheite. A partir de 1830 não foi mais visto.

21 A descrição acima é de Gilbert (2000), que parece levar Rutherford a sério. A história é falsa (OETTERMANN, 2000), mas lançou as bases de um imaginário sobre europeus tatuados por nativos que envolvia, acima de tudo, o elemento do ordálio. Como visto, em histórias verídicas sobre europeus vivendo tatuados entre nativos, a tatuagem não era uma tortura aplicada após a captura, mas um sinal de pertencimento. Em 1873, surge o Príncipe Constantino (GILBERT, 2000), o tatuado mais famoso do século XIX (OETTERMANN, 2000). Apresentava a si mesmo como ladrão e dizia ser admirado pelas mulheres. Este detalhe sugere o exercício de uma atração sexual pelo corpo tatuado. Exibido seminu, ele atraía o olhar e a imaginação. Constantino era grego e foi tatuado em Burma com a intenção de tornar-se artista. Fez muito sucesso, pois suas tatuagens eram bastante elaboradas, inclusive cobrindo grande parte de seu rosto (GILBERT, 2000). Segundo Oettermann (2000), ele dizia pertencer a uma raça selvagem dos Bálcãs ou apresentar-se como “o homem tatuado de Burma”. Também dizia ser contrabandista de armas e caçador de tesouros capturado na terra dos Mougongs e tatuado à força. La Belle Irene entrou para o circo em 1890. Embora suas tatuagens tenham sido executadas por dois famosos tatuadores da época, seguia a tradição do circo e dizia ter sido tatuada no Texas, um lugar selvagem onde as marcas serviam para afastar os índios (GILBERT, 2000). O pai teria tido a idéia de tatuar as filhas para afastar o risco de rapto pelas tribos sioux. Não foi a primeira mulher tatuada no circo americano, mas a primeira na Europa (OETTERMANN, 2000). A partir de La Belle Irene, as mulheres entram no negócio da tatuagem circense, um mercado que podia ser extremamente lucrativo7 (OETTERMANN, 2000). A maior parte das mulheres tatuadas, no entanto, mantinham ligação conjugal com os tatuadores ou outros artistas circenses. No caso das esposas de tatuadores, serviam de propaganda para o trabalho do marido. Desta forma, também puderam aprender o ofício de tatuadoras. Em um universo masculino, a ligação conjugal facilitava a entrada na profissão. Apenas após os

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Tão lucrativo que famílias inteiras se apresentavam tatuadas, até mesmo alguns animais como cachorros e vacas.

22 anos 1960 e o movimento da contracultura8 as mulheres ocidentais conseguiram abrir caminho como tatuadoras sem depender do apadrinhamento marital (MIFFLIN, 1997). Embora Mifflin (1997) não fale sobre o escândalo da exposição do corpo feminino entre os séculos XIX e XX, por mais suave que fosse esta exposição (apenas pernas, colo e braços, estando os seios, barriga e nádegas cobertas) nem sempre era bem vista. Oettermann (2000) afirma que as tatuadas passaram sutilmente à prostituição quando a concorrência aumentou. A exposição dos corpos teria, sugere o autor, um elemento erótico, enquanto a tatuagem se tornara um fetiche. Até a década de 1960, enquanto o circo manteve tatuados, a exposição corporal feminina se tornou cada vez maior, assemelhandose ainda mais a um espetáculo erótico. Great Omi é o último exemplo que eu gostaria de tratar aqui. Quando decidiu tornar-se artista de circo, procurou um famoso tatuador da época e elaborou uma padronagem de listras negras que cobriam todo o seu corpo, de modo a tornar-se o “homem zebra”. Começou a carreira em 1927, com as tatuagens ainda incompletas (GILBERT, 2000; OETTERMANN, 2000). Este caso é interessante, pois marca o início de uma modificação corporal explicitamente animal. A mulher tatuada com manchas bovinas (GOLDENBERG & RAMOS, 2002) e a mulher-tigre (MIFFIN, 1997) contemporâneas seguem o exemplo do Great Omi. A mulher-tigre apresenta-se dentro da tradição circense, mas a mulher-vaca não. Esta pretende uma abordagem artística, em termos de body art, que não estava presente nas reflexões circenses. 3. Marinheiros, prostitutas e prisioneiros Além da entrada dos tatuados no universo do espetáculo por meio do circo, houve outras conseqüências do primeiro marco histórico do renascimento da tatuagem no Ocidente. Alguns grupos foram fortemente associados à tatuagem e esta associação prolongou-se até o presente momento. O primeiro grupo a ser tratado deve ser, obviamente, o dos marinheiros, pois foram eles o motor deste renascimento. Não apenas adotaram o adorno, como aprenderam a técnica da tatuagem, transformando-a em uma profissão. Em

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Contracultura é o termo que Mifflin (1997) utiliza para demarcar o que classifica como um segundo renascimento da tatuagem.

23 um primeiro momento, os tatuadores se encontravam fundamentalmente em dois locais: o porto e o circo. A tatuagem se tornou, entre os marinheiros, parte de sua cultura, fossem comandantes ou pesquisadores, mercenários ou membros da Marinha Real inglesa. Guest (2000) argumenta que a tatuagem operava como sinal de masculinidade, em uma dinâmica intrincada entre as percepções européias sobre si e sobre os nativos do Pacífico Sul. Steward (1990), ex-tatuador que escreveu memórias sobre a profissão, que exerceu no período de 1950 a 1965 nos Estados Unidos, afirma que mesmo na cidade não litorânea de Chicago, onde viveu, os recrutas de uma base naval tatuavam-se como em uma espécie de rito de passagem, geralmente seguido da iniciação sexual. Antes mesmo de ir ao mar, muitos já haviam se tatuado. Talvez tenha sido esta proximidade entre o universo naval e a prostituição que tenha disseminado a prática entre meretrizes. Esta conexão não está clara e mereceria um estudo histórico mais profundo. Não há dados sobre o início da prática entre prostitutas ocidentais, embora haja menção sobre o contexto japonês, no qual a tatuagem marcava os votos de amantes (BOREL, 1992). Há poucos relatos sobre o uso de tatuagens por prostitutas. Parece-me que menos que os fatos, é um certo imaginário que as conecta. Mifflin (1997) indica que até a contracultura, qualquer mulher tatuada nos Estados Unidos era vista como prostituta. Quanto às mulheres tatuadas circenses, Oettermann (2000) indica que a associação não era de todo fantasiosa. Steward (1990) descreve este imaginário: para ele, mulheres “decentes” não se tatuavam, apenas prostitutas e lésbicas. Mesmo as namoradas que seus clientes levavam para que ele fizesse tatuagens de amor eram vistas com certa desconfiança, como o retrato do pensamento de uma época. Havia exceções. Para certos maridos, amantes ou namorados, como Mifflin (1997) indica, a tatuagem era um elemento erótico, não apenas na sua qualidade de jura de amor, mas como um fetiche. O grupo mais fortemente associado à tatuagem foi o dos criminosos, graças a Lombroso (1991) e à escola de pensamento que ele criou. A partir de sua teoria, a tatuagem começou a ser identificada como sinal de criminalidade, embora estudos realizados tenham demonstrado, desde então, que a maior parte dos criminosos se tatua na prisão (SCHRADER, 2000). Este dado leva a uma reflexão sobre o papel do corpo na resistência a

24 sistemas policiais e de exercício de autoridade. Steward (1990) notou a disseminação da tatuagem, neste primeiro momento, de forma mais acentuada em populações cuja característica é a predominância de um único sexo, como corporações militares, presidiários e gangues juvenis.. Não creio que esta seja a questão, mas sim que a tatuagem atingiu grupos cujo isolamento relativo é maior, grupos cujas redes de sociabilidade se formam dentro do próprio grupo, e não em outras esferas da sociedade e, fundamentalmente, grupos sob estreita vigilância social, sob um controle rígido – exatamente o que une os exemplos que inspiraram o autor. Nestes casos, conforme será desenvolvido posteriormente, a marcação voluntária do corpo é uma forma de expressar o que Benson (2000) chamou de posse de si: o corpo se torna a única propriedade do sujeito e seu bem mais precioso, estreitamente vinculado à própria noção de individualidade, ou à noção de Eu. A marca elaborada sobre ele é uma forma de assinalar a posse deste bem, o que significa assinalar a posse de si frente a uma instituição ou situação em que a individualidade é posta em xeque por mecanismos de controle e/ou isolamento. No caso de prisioneiros do sistema penitenciário, o isolamento forma redes internas de sociabilidade e o afastamento do mundo exterior reforça estas redes. Ao mesmo tempo, o controle exercido pelo aparato policial sob estes sujeitos é um controle sobre seus corpos, como indica Foucault (1997). A expressão de uma resistência, questão que não é abordada pelo autor, se dá, de igual maneira, por meio do corpo. Em grupos como o das prostitutas e marinheiros, creio que a questão da posse de si também está presente. A identidade da prostituta está estabelecida em função do uso que faz de seu corpo, uso este negativamente valorizado e sujeito a uma série de sanções sociais que a transporta, como ao criminoso, para as margens da sociedade. Desta forma, creio que a idéia de tatuagem entre prostitutas se relaciona a uma afirmação da posse de seu próprio corpo quando, na prática, este corpo está à venda, quase sempre sob o olhar vigilante e as práticas controladoras de cafetões ou cafetinas. Da mesma forma, o corpo do marinheiro está sob um rígido controle. Foucault (1997) apresenta a mudança no controle dos corpos dentro da ordem militar européia. Em grupos específicos, a tatuagem é uma resposta pessoal, na forma de uma resistência, a situações de controle sobre o corpo e sobre a identidade, em grupos que ainda apresentam uma característica de relativo isolamento social e fracos laços de solidariedade extragrupo.

25 Esta resistência é simbólica, como uma forma de assinalar à instância controladora que o corpo é propriedade do sujeito e, portanto, controlado por ele – muito embora as situações sociais exerçam todo tipo de controle e coerção cotidianamente na forma de regras préestabelecidas de convivência, por exemplo. A falta de uma rede de solidariedade social pode, conforme apontou Souza (1989), gerar uma situação de marginalização social. A tatuagem não seria conseqüência desta marginalização, mas da estrutura de funcionamento destes grupos, em termos de controle, corporalidade e identidade. A noção de preconceito contra os tatuados ou a tatuagem se insere, desta forma, como um discurso que encobre sua estrutura. Se Lombroso (1991) contribuiu para a associação entre tatuagem e marginalidade, esta associação não reside na natureza da tatuagem, em alguma essência desviante dela ou do tatuado. Esta associação encobre um elemento anterior, que é a resistência de certos sujeitos ao controle sobre seus corpos. Este preconceito associa a idéia de tatuagem como elemento do exotismo selvagem e a idéia da tatuagem como elemento de marginalidade. Outras marcas podem ter sido utilizadas por grupos específicos em épocas determinadas. Esta resistência parece obedecer ao seguinte modelo dialético: o controle dos sujeitos significa um controle dos corpos, conforme indicou Foucault (1997); a resistência a este controle se dá, por sua vez, também por meio do corpo (observe-se que não se está tratando aqui de formas abertas de resistência, como rebeliões); o sujeito cujo corpo é controlado reivindica o controle de seu próprio corpo, como uma forma de reivindicar o controle sobre sua própria vida/vontade/identidade (as variáveis podem variar de caso a caso); a marcação do corpo é uma forma de reivindicação do controle sobre o mesmo e sobre si; a tatuagem é a marca mais utilizada; esse controle do próprio corpo e de si pode ser traduzido no conceito de posse de si (BENSON, 2000), que envolve a noção moderna de que o corpo pertence ao sujeito, é uma propriedade individual e não coletiva. Apesar de a bibliografia indicar diversos casos, que aqui serviram de exemplo, em que a tatuagem é uma marca de resistência ao controle corporal, nenhum autor indica por que a tatuagem. Outras marcas poderiam, a princípio, serem utilizadas, mas a tatuagem aparece na bibliografia como uma constante. Conforme identificado por Gell (1993), a tatuagem opera, ao contrário de outras marcações corporais, segundo a díade dentro/fora ou externo/interno. Para grupos socialmente marginalizados ou isolados, de alguma forma

26 excluídos da sociedade, talvez a tatuagem traduza simbolicamente, por esta dinâmica, a situação real experimentada por membros destes grupos. A tatuagem se apresentaria como um tipo de incorporação (ALMEIDA, 1996), na medida em que se tornaria uma experiência corporal que traduz uma situação que não é conscientemente traduzida a não ser pela própria experiência física. O isolamento de certos grupos tatuados traduz, ele também, uma determinada experiência física, além de mental. Haveria, então, dois planos em ação nestes grupos tatuados: o primeiro diz respeito a uma forma de resistência; o segundo, a um processo de incorporação (ALMEIDA, 1996), que não separa corpo e mente, no qual a experiência simbólica da tatuagem como elemento que está dentro e fora do corpo ao mesmo tempo traduz ou simboliza a experiência do tatuado, que está dentro e fora da sociedade ao mesmo tempo. 4. Nobreza européia Em 1862, o Príncipe de Gales foi a Jerusalém, retornando de sua peregrinação, conforme se fizera desde as Cruzadas, com a “cruz de Jerusalém” tatuada no braço (GILBERT, 2000). O príncipe se tornaria o rei Eduardo VII do Reino Unido, que fez mais tatuagens ao longo da vida. Seus filhos, o duque de Clarence e o duque de York, que se tornaria o sucessor de seu pai como George V, visitaram o Japão em 1882, em meio a uma viagem ao redor do mundo, fazendo suas primeiras tatuagens lá. Gilbert (2000) afirma que o tutor dos rapazes fora instruído pelo rei a levá-los ao mestre tatuador Hori Chyo, que desenhou dragões em seus braços. Do Japão, foram a Jerusalém, onde se tatuaram novamente, pelo mesmo tatuador que o rei visitara em sua própria peregrinação. As tatuagens da família real britânica deram início a um processo de imitação prestigiosa (MAUSS, 1994). No corpo da realeza, as tatuagens ganharam novos significados, tornando-se lembranças de países orientais. Foram imitadas por parte da realeza européia. Segundo Borel (1992), eles foram os disseminadores de uma prática que tinha raízes nos viajantes, que, a exemplo dos marinheiros, costumavam levar uma tatuagem nativa de recordação. Assim, o conde Tolstoi se fez tatuar na Oceania. Na França, a moda se espalhou pelo universo da política. Em Berlim, no fim do século XIX, as mulheres elegantes passavam pelas mãos dos tatuadores birmaneses.

27 O tatuador japonês da elite européia no Japão foi Hori Chyo. Muitos tatuadores se tornaram famosos entre os séculos XIX e XX, freqüentemente lembrados como artistas de renome pelos tatuadores. MacDonald, considerado em seu tempo o “Rafael da tatuagem”, serviu na Índia e encorajou os marajás a se tatuarem. Estes iam à Europa ou aos Estados Unidos para tal. As mulheres britânicas da alta sociedade na Índia cobriam seus braços com borboletas ou abelhas. MacDonald tatuava seus clientes com estampas japonesas ou pintura clássica inglesa. Frederico VII da Dinamarca, o Tsar Nicolas II, Alexandre da Iugoslávia, George II da Grécia e Henri da Suécia passaram por suas mãos. Políticos americanos também tinham tatuagens, como Theodore e Franklin Roosevelt, Truman e Kennedy. No Reino Unido, Churchill, o marechal Montgomery e o duque de Edinburgo foram tatuados. Stalin e Tito representaram o costume no mundo soviético (BOREL, 1992). Gilbert (2000) afirma que o exemplo da nobreza britânica influenciou os comandantes de sua Marinha Real, bem como a elite de um modo geral, todos ávidos por tatuagens japonesas. Observa-se que o papel da nobreza foi elaborar a tatuagem como um sinal de bom gosto, elegância e distinção. Uma idéia de gosto que utilizava o elemento exótico em tatuagens elaboradas pelos tatuadores mais famosos da época. Mesmo assim, a tatuagem só ganhou a classe média ocidental no final do século XX. 5. A juventude e a contracultura Embora haja um caminho de disseminação da tatuagem, entre os séculos XVIII e XX que passa pela nobreza européia, os autores da área (MIFFLIN, 1997) têm tratado a contracultura como o marco de um segundo renascimento da tatuagem no Ocidente. Nos Estados Unidos, a tatuagem foi utilizada por marinheiros, criminosos, artistas de circo e por alguns membros da elite econômica local (STEWARD, 1990; GILBERT, 2000). Quando a nobreza européia adotou a tatuagem, em parte por suas relações com os corpos militares nacionais (e vice-versa), alguns milionários americanos passaram a adotála também, aparentemente seguindo a moda londrina. Gilbert (2000) apresenta mais uma vez o caso de Hori Chyo, o famoso tatuador japonês que, perseguido pelo governo de seu país, teria se auto-exilado em Nova York sob a proteção de um milionário local, Max Bandel.

28 Entre os criminosos, parece que a tatuagem fez sucesso entre os mais jovens, sob a égide da delinqüência juvenil. Steward (1990) relata o interesse e a procura destes rapazes por tatuagens. Sua loja ficava localizada, como a maior parte das lojas de tatuadores de Chicago na década de 1950, em uma região freqüentada por gangues, onde a polícia extorquia alguns bandos e procurava os tatuadores para saber o paradeiro de certos fugitivos. Muitos dos clientes do autor eram ex-presidiários, a ponto de Steward ficar conhecido na penitenciária local pelo volume de condenados que haviam se tatuado em sua loja. Na década seguinte, quando Steward (1990) se mudou para a Califórnia, seu publicou se tornou outro. Era muito procurado pelos motociclistas Hells Angels, cujos costumes envolviam a tatuagem como um elemento fortemente presente. Alguns dos desenhos que se tornaram famosos entre os americanos têm sua origem neste grupo, como o número 13 indicando o uso de maconha bem como o hábito das mulheres dos motociclistas serem tatuadas com “propriedade de...”9, a lacuna sendo preenchida pelo nome do grupo ou, mais freqüentemente, do companheiro. Neste momento, a tatuagem americana parece estar no limite entre as gangues e a cultura jovem. Mifflin (1997) indica que a contracultura americana e os hippies eram movimentos formados por pessoas de camadas baixas da população. Mantém-se, desta forma, a prática da tatuagem entre estas camadas. Foi apenas na década de 1980, segundo a autora, que a classe média americana com curso superior passou a fazer uso da tatuagem como adorno corporal. Interessante notar que esta é a década em que o culto ao corpo se dissemina no Ocidente. A tatuagem pode ter se tornado um elemento a mais no emergente culto ao corpo contemporâneo, surgido nas camadas médias-altas. Pereira (1992) apresenta um retrato distinto sobre a contracultura, relacionando-a com a juventude de camadas médias e altas, tanto norte-americanas quanto européias. Neste caso, o percurso apresentado no quadro n. 1 abaixo não diferiria para Estados Unidos, Brasil e Europa, todos apresentando o movimento contracultural centrado na juventude universitária de camadas médias e altas.

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A expressão em inglês é “property of...”.

29 Quadro n. 1 – Mudança no perfil sócio-econômico do tatuado, durante o século XX, no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa. BRASIL ESTADOS UNIDOS EUROPA Marginalidade (camadas baixas) ⇓

Contracultura (camadas médias urbanas) ⇓ Demais camadas sociais

Marginalidade (camadas baixas) e circo ⇓ Elite econômica ⇓ Contracultura (hippies) ⇓ Camadas médias universitárias urbanas

Marinha e camadas baixas ⇓ (Nobreza e elite) ⇓ Contracultura (hippies) ⇓ Camadas médias universitárias urbanas

Fonte: A partir de BOREL (1992), MIFFLIN (1997), GILBERT (2000).

Para Pereira (1992), a contracultura engloba uma série de práticas distintas, tanto políticas quanto religiosas, unidas pela idéia de uma crítica às instituições ocidentais, sobretudo aquelas que são a base de reprodução do capitalismo e de seus valores dominantes. Disseminada entre a juventude de camadas médias na década de 1960, a contracultura teria alguns pontos de expressão nos festivais de música, como o de Woodstock, e nas rebeliões estudantis como a de Maio de 1968, na França. Da forma como é apresentada pelo autor, a contracultura é um movimento de crítica reflexiva sobre a modernidade. O percurso da tatuagem nos Estados Unidos é muito próximo ao percurso da tatuagem na Europa, após o seu renascimento. É importante lembrar que a tatuagem nunca chegou a desaparecer na Europa. Antes da adoção da prática por meio do encontro cultural com o Pacífico Sul, a tatuagem européia era usada de forma religiosa, utilizada como marca de peregrinações a lugares santos, um uso que não foi perdido. Gilbert (2000) recolheu informações que indicam que pelo menos até a década de 1950 havia um tatuador que marcava os peregrinos de Jerusalém, embora não indique se os europeus eram a maioria, como após as Cruzadas. O hábito de tatuar a “cruz de Jerusalém” parece ter se desenvolvido na Europa a partir destas expedições à Terra Santa. Em lugares santos europeus, como Loreto, na Itália, a prática foi descrita no século XIX (CAPLAN, 2000). A partir das expedições do capitão Cook ao Pacífico, os marinheiros adotaram a prática, que se disseminou pelas camadas baixas da população. Segundo Gilbert (2000), a

30 tatuagem na França e na Itália10 nunca foi popular entre a elite como na Inglaterra. Nestes países, os tatuados seriam marinheiros, presidiários e trabalhadores. Os presidiários adotam tais técnicas muito mais fortemente dentro da prisão do que fora dela, onde se tatuam de forma artesanal. Faz parte da cultura penitenciária, não necessariamente da cultura criminosa como um todo. Fora da penitenciária, podem buscar um tatuador profissional para refazer ou retocar o desenho artesanal. No século XIX, os médicos franceses parecem ter se preocupado com as possíveis complicações da tatuagem. Sua influência fez com que a tatuagem fosse proibida na Marinha francesa e, posteriormente, no Exército. Devido à proibição, o grande público para os tatuadores franceses foi formado pelos presidiários (GILBERT, 2000). Na França e nas colônias inglesas no subcontinente indiano, a tatuagem servia como marca identificadora do preso, constando das fichas de identificação destes (ANDERSON, 2000; GILBERT, 2000). Embora Gilbert (2000) não faça menção às tatuagens que representam profissões, ele reproduz desenhos de Lacassagne sobre o açougueiro, o alfaiate e o construtor de barris, indicando, de certa forma, o uso da tatuagem entre classes populares. Dos pobres aos ricos e dos ricos aos jovens: no século XX, a tatuagem européia atingiu a cultura jovem, seguindo o percurso americano da contracultura e do movimento hippie. Só atingiu a classe média urbana e profissionais liberais algumas décadas depois. Este percurso demonstra que as camadas baixas possuem algum poder de influência sobre as práticas corporais das elites, embora estas sejam automaticamente ressignificadas quando atingem outros estratos sócio-culturais. Nos ricos, a tatuagem era sinal de uma excentricidade de bom gosto. Nos jovens, ela flertava com o imaginário da marginalidade.

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Lacassagne, na França, e Lombroso, na Itália, descreveram a tatuagem como elemento da criminalidade, no sentido de que demonstrava quem estava mais propenso a cometer um crime. Esta teoria obteve um impacto profundo na medicina legal da época, e pode ter sido responsável pelo afastamento das elites locais desta prática corporal. Por outro lado, obras sobre tatuagem nestes dois países, à época em que a teoria lombrosiana era dominante, podem ter apagado registros do uso de tatuagem em camadas superiores.

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CAPÍTULO II – A METÁFORA DA TATUAGEM

A tatuagem é uma técnica utilizada desde a pré-História humana (GILBERT, 2000), disseminada entre culturas diferentes de todos os continentes, com um uso bastante variado. Como técnica corporal (MAUSS, 1994), a tatuagem traz um uso que é cultural e socialmente delineado. A operação consiste na inserção de pigmentos – cuja receita varia de cultura para cultura – em camadas profundas da pele. Este processo é permanente, embora muitas receitas tenham sido tentadas para sua retirada (STEWARD, 1990; GUSTAFSON, 2000; GILBERT, 2000), quase todas sem sucesso. O meio mais eficaz para retirá-la atualmente é o raio laser. A tatuagem é o procedimento pelo qual um pigmento é inserido abaixo da camada superficial da pele. Este pigmento toma um caráter permanente. A forma como o pigmento é inserido e a sua constituição química variam de cultura para cultura. De forma geral, pode-se dizer que o pigmento deve ser mais escuro do que a pele marcada, para que seja visível, e deve ser inserido com algum tipo de objeto pontiagudo, assemelhado a uma agulha. Pode-se esfregar o pigmento na pele e depois perfurá-la, de modo a introduzí-lo no corpo, mas pode-se também picar a pele com a agulha e depois esfregar o pigmento, ou ainda molhar a agulha em pigmento e inserí-la na pele. Os pigmentos podem ter origem vegetal, animal ou mineral. A quantidade de agulhas utilizadas e sua espessura também variam de cultura para cultura. Modernamente, no Ocidente, utiliza-se a máquina de tatuar elétrica. Seu mecanismo movimenta a agulha para frente e para trás, como a máquina de costura. Várias agulhas podem ser utilizadas ao mesmo tempo, soldadas pelo tatuador, de forma a cobrir uma extensão maior de pele em menor tempo. Como toda técnica, há debates sobre o resultado final da operação e como conseguir determinados efeitos gráficos (MIFFLIN, 1997). O aparecimento da máquina elétrica não fez a tatuagem artesanal desaparecer. Ainda há tatuadores que afirmam terem se iniciado na profissão praticando sobre o próprio corpo de forma artesanal (MIFFLIN, 1997; COSTA, 2004).

32 Deve-se diferenciar a tatuagem de outras formas de modificação corporal que têm surgido ou se disseminado nos últimos anos. Junto à tatuagem, a mais popular é o body piercing, técnica que fura o corpo para a introdução de uma jóia, que toma formatos diversos em função da área adornada. Outra técnica (bucal) rasga a língua ao meio, dandolhe um formato ofídico. O cutting é mais uma técnica em que a carne é cortada, de forma a desenhar ou escrever sobre a pele com o resultado final de uma cicatriz. É próxima à técnica do branding, que utiliza instrumentos incandescentes com a mesma finalidade – e que não é nova. Estes são apenas alguns exemplos de outras formas atuais de modificação corporal. Algumas delas têm inspiração em culturas tradicionais, embora os sujeitos que delas fazem uso não queiram necessariamente aproximar-se da estética “primitiva”11. Os desenhos tatuados em sociedades tradicionais mantêm-se dentro de padrões culturais pré-estabelecidos. No Ocidente, percebe-se uma variedade de motivos, desde alguns tradicionais adaptados ou não até desenhos com influência de filmes de ficção científica, gibis e outras imagens do universo da cultura de massas. Os desenhos a serem tatuados são agrupados segundo determinados estilos, identificados no capítulo 3. Os usos atuais da técnica envolvem diversos fatores. Marca de pertencimento a um determinado grupo social, adorno corporal com aspectos de fetichismo e usado para a sedução, representação gráfica e imagética de crenças ou aspirações pessoais, amuleto mágico ou marca de uma mudança de status. Muitas vezes os usos se confundem. Os usos possíveis serão apresentados segundo foram surgindo no campo. Outros aspectos relacionados à tatuagem dizem respeito a uma história dos grupos que dela fizeram uso, desde o período conhecido como “renascimento da tatuagem” até o presente momento. A importância de um resgate dos grupos historicamente relacionados à tatuagem no Ocidente se relaciona a um imaginário sobre a prática que foi formulada no senso comum a partir, fundamentalmente, das teorias de Lombroso (1991), que associou a técnica à marginalidade e ao “primitivismo”. Embora creia que este imaginário é ainda operante na sociedade carioca, ele só foi observado na classificação que os próprios tatuadores operam, em seu campo profissional, entre profissionais e “de cadeia”, mas não no sentido que o autor determinava e sim da qualidade da obra executada. 11

Os “modern primitives”, como LE BRETON (2002) menciona, relacionam estas técnicas a sociedades tribais e as utilizam para transformar o corpo, tentando com isso uma crítica à sociedade ocidental contemporânea.

33 1. Tatuagem no Brasil A produção antropológica sobre a tatuagem no país é recente. Antes dela, seguidores das teorias de Lombroso (1991) tentaram perceber o atavismo à brasileira no uso de tatuagens, conforme algumas obras disponíveis12 na Biblioteca do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, fazem ver. Trata-se do retrato de uma época. Não tão distante da escola lombrosiana, Do Rio (1997) descreve a indústria da tatuagem na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Meninos em bandos, munidos de agulhas de costura e tinta nanquim, circulavam pelas ruas do cais do porto oferecendo os serviços a prostitutas, marinheiros e trabalhadores das camadas populares, entre eles imigrantes portugueses. Cronista cujo principal objetivo era retratar o cotidiano da cidade, Do Rio (1997) indica um perfil de usuário comum à tatuagem ocidental no período. Após o abandono das teorias lombrosianas, o tema caiu em esquecimento para os analistas sociais. Emergiu, com um novo fôlego, a partir da crescente popularização da prática entre camadas médias. Assim, Toni Marques (1997), jornalista ligado ao universo da cultura de massas, publicou obra com perspectiva histórica sobre os usos da tatuagem no Brasil, desde as marcas de escarificação dos negros até a abertura dos primeiros estúdios profissionais na cidade do Rio de Janeiro, já nas últimas décadas do século XX. Anos mais tarde, algumas pesquisas de Antropologia Urbana se dedicariam ao estudo do fenômeno no sul do país e na cidade do Rio de Janeiro. Almeida (2001) analisa o uso das tatuagens com a construção de identidades sociais. A marca permanente é vista como um locus privilegiado na construção de identidades vistas pela autora como igualmente permanentes. Sem discutir o fato de que as identidades pessoais são construídas e reconstruídas na dinâmica social, em função dos diferentes papéis exercidos e posições ocupadas, conclui que o erro é do objeto e não do pesquisador. Neste sentido, acusa os tatuados de exercerem um consumo superficial de símbolos cujos significados não consegue extrair dos mesmos, concluindo que não existem. 12

Como, por exemplo: ALENCAR NETO, Dr. Meton de; NAVA, Dr. José. Tatuagens e pseudo-desenhos cicatriciais em menores – as modificações intencionais da pele. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1944. esta obra, ao modo de Lacassagne, apresenta fotos dos desenhos e comenta-os. Há também: LISBOA, Dr. Nuno de Souza Santos. Tatuagens. Rio de Janeiro: s/n, 1942. Ambas as obras são produzidas no contexto de uma medicina-legal lombrosiana. Daí que os autores assinem como “doutores”.

34 Fonseca (2003), tomando a análise de Almeida (2001) como um de seus pontos de partida, consegue desvendar os caminhos que pareciam misteriosos. Tenta identificar o uso de tatuagens não com um processo de construção de identidades, mas de subjetividades, observando também a construção de um projeto corporal – ser tatuado – e seus significados pessoais e sociais. A autora demonstra, ainda, que há uma mudança no público da tatuagem no país na década de 1990: as faixas etárias não jovens sofrem um incremento e os homens deixam de ser o público majoritário em função do crescimento na clientela feminina. Leitão (2002) já havia apontado a mudança no público segundo o gênero. O objetivo de sua pesquisa foi justamente a observação das motivações para a tatuagem e seus usos e costumes em mulheres. O recorte de gênero permitiu à autora efetuar uma relação entre gênero, corpo e identidade feminina, demonstrando o papel do embelezamento e da estética no processo, muitas vezes relacionado a outras intervenções de embelezamento. Costa (2004), por sua vez, esteve atenta à mudança no universo dos tatuadores: de amadores, tatuando na rua ou em suas casas, tornaram-se profissionais, levando adiante empreendimentos comerciais sob a forma dos estúdios. A mudança no status do tatuador, agora um profissional, levou à constituição de uma preocupação em diferenciar amadores e profissionais, envolvendo noções de arte e biosegurança. Os profissionais passaram a se ver como artistas e à sua profissão como arte, ao mesmo tempo em que foram levados a executá-la segundo padrões médicos de profilaxia e higiene. Não há uma linha única que una os estudos aqui apontados, mas há pontos comuns. Entre eles, a idéia de que o perfil do consumidor de tatuagens hoje não é o mesmo daquele apresentado por Do Rio (1997). Nenhum deles, contudo, se detém sobre esta mudança, tomando-a como fato consumado e afastando-se de qualquer explicação sobre sua dinâmica, origens, causas e efeitos. Tomando Marques (1997) por base, muitos destes estudos apontam a mudança do público como relacionada à figura-símbolo de Petit, que ganhou fama por inspirar Caetano Veloso a compor a música “Menino do Rio”, gravada em 1979 por Baby Consuelo e popularizada como música-tema da novela Água-Viva, da TV Globo (Marques, 1997). Petit foi tatuado em Santos (SP) por Lucky, um ex-marinheiro dinamarquês considerado o primeiro tatuador profissional do país (Marques, 1997).

35 O trecho da letra de música escrita por Caetano Veloso que faz menção à tatuagem segue abaixo: “Menino do Rio Calor que provoca arrepio Dragão tatuado no braço Calção, corpo aberto no espaço Coração de eterno flerte Adoro ver-te.”

A mudança no público é concomitante, ao que parece, à mudança na percepção do tatuador e seu ofício. De sujeito marginal, oriundo de meios marginais e neles formando sua clientela, o tatuador passa, paulatinamente, a ser oriundo do mesmo meio que seus clientes, preocupado com a biosegurança e disposto a reformular o ambiente do estúdio, de modo que ele se torne menos parecido com um salão de beleza e mais próximo a uma clínica médica. A mudança no perfil tanto do público da tatuagem quanto do tatuador enseja comparações históricas inevitáveis. De fato, os estudos mencionados incorporam aos seus objetivos a construção de uma perspectiva histórica sobre curtos períodos de tempo, relacionados aos discursos de entrevistados que, freqüentemente, indicam um “antes” e um “depois”, e, com isso, permitem o delineamento tanto da mudança quanto do passado da prática. Para não tornar exaustiva a perspectiva histórica, que também utilizo largamente, apresentei-a segundo minha própria construção, a partir sobretudo de literatura estrangeira sobre o tema. Meu objetivo, menos do que indicar uma ruptura no perfil do público tantas vezes apontada, é indicar uma continuidade. Dentro de um escopo teórico que inclui a conhecida discussão de Dumont (1992) sobre o modelo teórico da sociedade individualista ocidental, tento relacionar o uso de tatuagens a sujeitos marginalizados até o presente momento. Contemporaneamente, contudo, acredito que não se trata mais de uma marginalização em termos de criminalidade, mas sim em termos de exclusão social. Esta exclusão, em uma ordem individualista, atinge aqueles segmentos subordinados que não atingiram uma plenitude em termos de individualização, como as mulheres e os jovens,

36 tutelados pelo Estado e pela família. Não se trata, tampouco, de uma exclusão em termos de classes sociais. 2. Punição, resistência, controle e autonomia Foi baseada nesta relação entre tatuagem e grupos marginais que formulei a hipótese principal deste trabalho. Encontrei em artigo de Schrader (2000) sobre o uso da marca no sistema penal imperial russo uma teoria sobre a tatuagem como forma de resistência a processos de controle social do indivíduo. Foi a partir desta idéia que percebi que se a marca pode ser uma forma de resistência então sujeitos tradicionalmente sob controle seriam o público privilegiado da tatuagem. Os dados do campo pareciam confirmar a hipótese. Mulheres estão sendo apontadas, em diversas fontes, como a maioria do público dos estúdios (LEITÃO, 2002), e sabe-se que o controle dos corpos femininos é exercido de uma forma que não se opera sobre os homens (BOURDIEU, 2003). Os jovens, igualmente, um público privilegiado da prática, embora não necessariamente constituindo uma maioria, têm sua autonomia regulada pela família e pelas instituições escolares. Entre os grupos historicamente vinculados à tatuagem no Ocidente, marinheiros, militares, presidiários, delinqüentes juvenis e prostitutas estão todos sob um controle social estrito, uma vigilância e eventualmente sob algum estigma (GOFFMAN, 1975) ou regime disciplinar. Enfim, são grupos excluídos, marginalizados e cujas redes de sociabilidade muitas vezes se fecham em si mesmos. A marca corporal punitiva existiu em diversas sociedades. Na Grécia clássica, marcavam-se os criminosos com stigma, palavra utilizada simultaneamente para marcação por ferro quente (branding) e tatuagem, mas que manteve o significado de marca negativa. Jones (2000) afirma que na maior parte dos casos a palavra refere-se à tatuagem. A marcação corporal do criminoso com uma tatuagem, cuja principal característica é a permanência, indica que esta é uma condição permanente, e que não se imagina que possa ser modificada. O stigma13 era efetuado em local visível do corpo, de modo a informar visualmente a condição de seu portador bem como o tipo de delito cometido. 13

Embora GOFFMAN (1975) tenha utilizado o termo com sentido próximo, deve-se observar que aqui aponto para seu uso original. Surpreendentemente, o autor não menciona a tatuagem como fator de estigmatização.

37 A prática grega foi assimilada pelos romanos, que marcavam certos tipos de condenados com tatuagem (GUSTAFSON, 2000). Como entre os gregos, a tatuagem era marca de degradação. Os escravos, sobretudo, eram marcados, o que leva Gustafson (2000) a concluir que mais do que a natureza do crime era o status social que determinava a marcação. Em qualquer caso de marcação punitiva, o que está em jogo é o poder de controle da autoridade sobre o indivíduo. A marcação é um meio de estigmatizar e identificar (ANDERSON, 2000). Se ela é permanente, significa que a identidade atribuída por meio da marca também é pensada como permanente por aquele que produz a marca. Gustafson (2000) afirma que a marca é envolta em um processo pedagógico que visa alterar a mentalidade, a noção de si e o poder pessoal. Durante o Império, o sistema penal russo utilizou largamente a marcação corporal. Segundo Schrader (2000), até o governo de Catarina, a Grande, punições corporais que incluíam mutilações eram utilizadas em todas as camadas sociais. Embora estas práticas tenham sido questionadas na virada do século XVIII para o XIX, a inscrição corporal era fundamental no sistema penal russo, pois atribuía os indivíduos a grupos de status, com a finalidade de um maior controle oficial. Impondo uma determinada identidade sobre os prisioneiros, a marca feita com ferro quente (branding) era utilizada por estes como fator de construção de sua subjetividade, segundo o autor. Estes grupos de status visavam não apenas ao controle penitenciário, mas ao controle social. Como forma de resistência, certos indivíduos optavam por uma vida nômade14, escondendo suas identidades, trocando de nome, e escondendo o pertencimento a determinado grupo de status. Os fugitivos deviam esconder também as marcas corporais que denunciavam sua condição. Para o autor, este tipo de estratégia desafiava o poder classificatório estatal. Uma das fontes da prática de marcação punitiva russa foi, segundo indica Schrader (2000), a marcação de objetos para atestar sua propriedade pelos camponeses. A autora sugere que a marca corporal era apenas mais uma forma de o Estado russo marcar sua propriedade, exercendo controle sobre ela e determinando seu status. Neste sentido, não apenas criminosos eram marcados, mas recrutas e desertores também o foram. Desta forma,

14

O autor chama a atenção para a tradição do nomadismo na Rússia, especialmente na Sibéria, cujo significado vai além da resistência ao controle estatal.

38 aqueles que resistiam ao poder controlador do Estado foram os que receberam as marcações. No caso dos condenados, as identidades eram utilizadas também para a formulação de uma hierarquia construída por eles, dando a certos criminosos maior status do que a outros e formando corporações. Assim, novas marcações eram efetuadas pelos próprios indivíduos, numa forma de resistência que, segundo o autor, “transformou uma prática que marcava sua alienação social em uma fonte de orgulho e pertencimento corporativo” (SCHRADER, 2000, p. 185). A maior parte das tatuagens em criminosos era realizada na prisão, de forma voluntária. A partir desta constatação, Schrader (2000) demonstra como os condenados deram novo significado à lógica oficial de marcação e encarceramento, opondo marca punitiva à marca de bravura, tornando o exílio na Sibéria um sinal de honra criminosa, formando corporações próprias. Ao se apropriarem da lógica oficial de controle e transformá-la para uso próprio, os condenados resistiam a este controle, demonstrando que a criatividade social pode construir novos grupos e formas de pertencimento, mesmo em situações de forte controle. A própria automarcação do corpo, nestas circunstâncias, indica que o controle estatal não é total, e que o corpo é o derradeiro locus na luta entre controle externo e autocontrole. Marcando a si mesmos, estes sujeitos indicavam que seu corpo não era uma propriedade alienável. Além de Schrader (2000), Benson (2000) também indicou como o corpo, especialmente a pele, é o lugar da afirmação de uma posse de si15. Embora esta autora se refira ao uso contemporâneo das tatuagens, o caso russo pode ser pensado a partir de sua reflexão. Sobre a contemporaneidade, ela afirma: “O que é distinto nas práticas contemporâneas de tatuagem e a ligação de afirmações de permanências a idéias sobre o corpo como propriedade e posse – ‘uma afirmação de domínio sobre a carne’, como um indivíduo colocou – de fato, como a única posse do Eu em um mundo caracterizado pela acelerada mercantilização e imprevisibilidade (...)” (BENSON, 2000, p. 251).16

15

BENSON (2000, p. 249) afirma que “(...) inscribed on the skin will be the marks of self-possession, not defeat”. 16 “What is distinctive in contemporary tattoo practices is the linking of such assertions of permanence to ideas of the body as property and possession – ‘a statement of ownership over the flesh’, as one

39

Em todos os casos apresentados aqui, a marca serve de sinal de alteridade. No caso russo, entre presidiários e oficiais. No caso grego e romano, a alteridade era construída na falta da marca, vista como “bárbara”. No caso japonês, por exemplo, o surgimento da tatuagem artística deu nova significação à marca, que passou a ser um elemento de alteridade quando ganhou os corpos da Yakuza17, onde seu significado anterior de sinal de criminalidade foi restabelecido (BOREL, 1992). Há mais um caso que deve ser relatado, o das práticas coloniais penais inglesas na Índia e Bengala, descritas por Anderson (2002). A tatuagem voluntária de certas populações chamada godna, tatuagem apontada pelo autor como “decorativa”, era utilizada para o seu reconhecimento pelas autoridades policiais, especialmente daquelas populações que se acreditava serem especialmente inclinadas ao crime. Como conseqüência, estas populações operavam uma estratégia de resistência ao controle que incluía a ocultação destas marcas, fosse através da manutenção de cabelos longos que escondiam tatuagens faciais, fosse através de turbantes com o mesmo fim. Mais tarde, a marcação corporal de condenados com ferro quente (branding) ficou sendo conhecida igualmente como godna, e a palavra passou a designar esta prática, que nunca foi efetivamente padronizada. Como resistência à identidade pública de criminoso, os indivíduos tentavam suprimir tais marcas, cobrindo, removendo ou sobrescrevendo-as18. As tatuagens eram trocadas por escarificações e tentava-se removê-las com processos de corrosão da pele. O processo de resistência envolvia a troca de identidade, fosse pela troca do nome, fosse pela alteração das marcas que identificavam os criminosos. Em um caso relatado por Anderson (2000), as autoridades tentavam identificar um homem como fugitivo, utilizando suas marcas corporais como registro de identidade. Contudo, algumas das marcas apresentadas (cor da pele, altura, cicatrizes) pelo homem quando encarcerado e quando “descoberto” deixavam dúvidas sobre quem ele realmente era. Esta situação indica que por mais que o Estado e o sistema penal tentem exercer um controle efetivo sobre os indivíduos

individual put it – indeed as the only possession of the self in a world characterized by accelerating commodification and unpredictability (...)”. 17 Máfia japonesa. 18 Onde a tatuagem é uma marca punitiva, sua remoção é tentada. JONES (2000) e GUSTAFSON (2000) fazem menção a esta situação, bem como GILBERT (2000).

40 criando marcas em seus corpos ou identificando marcas já existentes, este controle pode ser burlado. Da mesma forma que identifiquei uma relação análoga entre a marca polinésia e a marca ocidental contemporânea, aqui vista no contexto carioca, gostaria de efetuar esta transposição a partir da marca punitiva. A tatuagem como marca punitiva fornece elementos para se pensar que seu uso pode ser relacionado a contextos de resistência a um controle exercido sobre os indivíduos. É verdade que as marcas punitivas descritas foram impostas sobre os sujeitos, da mesma forma que no contexto polinésio. Contudo, observei em campo o quanto as marcas atuais são vistas por diversos tatuados como uma forma de afirmação da individualidade. Benson (2000) teve a mesma sensação e forneceu, assim, uma espécie de elo de ligação entre estes três escopos teóricos utilizados que, de meu ponto de vista, são facetas de uma mesma realidade. Gostaria, então, de aprofundar a noção de posse de si, que foi encontrada em dois autores: a americana Susan Benson (2000) e o francês David Le Breton (2002). Ambos utilizam a noção de posse de si correlacionando-a a um contexto de individualismo e autonomia. Schrader (2000), conforme apresentado acima, é o autor que usa mais fortemente a idéia, relacionando a marcação corporal diretamente à busca de uma autonomia. Benson (2000) situa sua argumentação em duas linhas mestras: de um lado, a oposição interno/externo, conforme construída por Gell (1993); por outro, as idéias de autonomia e individualismo características do contexto ocidental. Embora a autora perceba que há uma ideologia culturalmente determinada operante nos significados que damos aos processos corporais, ela não consegue fugir a esta determinação, e indica sistematicamente que o processo privilegiado no Ocidente é aquele em que a tatuagem exprime o Eu interno, operando segundo a oposição mente (alma, espírito)/corpo. O Ocidente é visto como uma sociedade cujo significado atribuído ao indivíduo está localizado nas idéias de autonomia pessoal e separação (em oposição a uma união no sentido de um coletivismo). Neste contexto, as idéias de auto-realização e auto-domínio são percebidas como centrais para o indivíduo, que é concebido em termos do que repousa ‘dentro’ mas não é ‘do’ corpo – como as noções de alma, espírito, mente – e onde,

41 historicamente, a relação entre superfície e profundidade foi formada como a relação entre aparência e essência. Nestas culturas ocidentais, sugere a autora, a pele, zona de fronteira entre o Eu e o mundo social, é pensada como envolvendo o Eu, como uma membrana que protege – idéia formulada por Anzieu (1989 apud GELL, 1993) –, mas pode também lacrar, no sentido de uma não-abertura ao mundo social e um fechamento do Eu em si mesmo. Neste marco teórico, a marca na pele é vista pela autora como uma marca que tanto protege quanto indica o que há “dentro” (a alma ou uma espécie de Eu essencializado) do indivíduo, mas também como uma afirmação de que o corpo é uma propriedade do Eu (que se refere, aponta ela, paradoxalmente, tanto para o próprio corpo quanto para a alma/mente/espírito). Segundo ela, a tatuagem pode ser ligada tanto a uma supervalorização de certos aspectos das idéias contemporâneas ocidentais do Eu – sobretudo as idéias de autonomia e estilo próprio – quanto a sua transgressão. Em comparação com o passado da prática, afirma que agora a tatuagem é vista como uma afirmação de si, enquanto antes se dizia ter sido tatuado bêbado ou em um impulso, de forma que se negasse a intencionalidade da marca mal vista. O trecho em que Benson (2000) indica, claramente, a idéia de posse de si foi transcrito acima. Ali, a autora aponta como esse contexto de individualismo pode ser posto em xeque por uma ordem econômica em que o homo economicus se torna, ele mesmo, um bem, uma mercadoria. Frente a esta objetificação do sujeito, o corpo pode se tornar o lugar de resistência. Resistência apontada também por Schrader (2000). Envolta no dilema de um Eu essencializado e corporificado, Benson (2000) não se permite ver aí um individualismo talhado por instâncias de controle, como o mercado, embora as reconheça. A autora dá indícios para que se saia deste falso dilema entre mente/corpo, que, como ela mesma aponta, não passa de um paradoxo ocidental, uma vez que a mente não existe nem é visível senão corporificada. Benson (2000) sugere uma ligação entre um contexto de capitalismo tardio, onde as identidades não são fixas, e a necessidade dessa fixidez, alcançada por uma marca do Eu interno. Esta marca é, ao mesmo tempo, visível e permanente, dando ao sujeito algo ao qual se agarrar, uma espécie de sentido, de ponto fixo, que é, de fato, ele mesmo. A partir das idéias da autora, pode-se pensar em uma terceira reflexão que é a noção de posse de si, não em seu sentido de marca identitária, mas sim de afirmação de um individualismo

42 acirrado, que diz ao mundo inconstante e objetificador que o corpo pertence a alguém. Em última instância, pertence à alma que o habita. Se, como Schrader (2000) faz, troca-se o mercado que objetifica por outra instância de controle dos sujeitos, compreende-se que a noção de tatuagem como elemento de um processo de posse de si pode ser utilizada como uma resposta, uma forma de resistência a este controle. Benson (2000) trabalha com a noção tipicamente ocidental de que o Eu interno, também referido na literatura antropológica sobre o corpo como mente/alma/espírito, é dado em cada indivíduo, tornando-se assim uma essência pessoal. Prefiro as abordagens que indicam que o Eu é uma construção social determinada pela posição social que se ocupa e, portanto, não é uma essência, mas fruto de relações sociais (LEMMERT, 1994). Assim, abordo este uso da tatuagem como posse de si a partir desta visão relacional, determinada a partir da posição social ocupada e não de um Eu subjetivo fluido. Especificamente no contexto brasileiro que, como mostra DaMatta (1991), é relacional, um Eu essencializado não faz sentido. Portanto, no contexto brasileiro, a idéia de que a tatuagem reflete o Eu interno só pode ser parcialmente aproveitada, na medida em que esse Eu interno é, de fato, um Eu relacionalmente construído. Isto quer dizer que as escolhas que parecem internas, conforme foi observado em campo, refletem noções socialmente compartilhadas e foram observadas em mais de um sujeito, como idéias de distinção de gênero, de pertencimento, de autenticidade, de mudança de status, de expressão de sentimentos. Le Breton (2002) indica como o corpo é locus de uma “bricolage identitária” que serve para afirmar a existência do sujeito. Ao longo de sua obra, visões da tatuagem como um elemento que aflora do Eu interno e visões da tatuagem como um elemento que pode transformar este Eu se alternam, sem um desfecho final. O autor afirma que a tatuagem é uma marca que serve para “tomar posse de si”, situada em um contexto onde o conflito geracional entre adolescentes e pais opõe o desejo pela marca à sua não aceitação. O autor afirma que, enquanto os pais percebem a busca de autonomia dos filhos no desejo pela marca, ao mesmo tempo a associam a seu passado relacionado à delinqüência. Aos filhos, contudo, resta a idéia de que “os corpos legados pelos pais devem ser modificados para se fazerem definitivamente seus”19 (LE BRETON, 19

“les corps legue par lês parents est à modifier pour lê faire définitivement sien”.

43 2002, p.172). Em Le Breton (2002), a idéia de posse de si se traduz, mais fielmente, na forma de uma conquista individual de autonomia frente a instâncias sociais controladoras. Diz ele, “a marca corporal assinala o pertencimento a si. Rito pessoal para se transformar a si transformando a forma de seu corpo”20 (LE BRETON, 2002, p.175). Aqui os dois processos são claros. Primeiro, a idéia de que a marca sobre o corpo indica um pertencimento a si, uma forma de posse ou propriedade de si mesmo quando em um contexto de controle. Ou seja, tanto uma busca quanto um processo de construção de autonomia pessoal. Segundo, demonstra como o autor identifica alternadamente esta busca dentro do sujeito e fora dele ao mesmo tempo, sem indicar uma origem ou concluir qual deles é preponderante. É mudando a forma do corpo que se muda a si, mas é o desejo de mudar a si, ao Eu, que leva à mudança do corpo. É da superfície que se chega à profundidade. Foi efetuando uma analogia entre a marca como resistência e a posição social ocupada pelo sujeito, ou grupo, que observei – de dentro dos estúdios – que a questão do controle e da autonomia é uma que se coloca para quem quer uma tatuagem, seja na oposição da família à marca, seja nas preocupações com o mercado de trabalho, visto pelos tatuados como instância na qual a marca se torna um estigma (GOFFMAN, 1975). O viés teórico adotado fornece apenas uma visão, que não explica porque as pessoas se tatuam. Creio, contudo, que a busca de autonomia e individualidade é uma das explicações da popularidade da prática entre jovens e mulheres. Como um contraponto da popularidade da tatuagem entre as mulheres, observei que, entre os homens, a prática está revestida por um determinado ethos masculino que faz com que a tatuagem seja uma marca de virilidade, obtida após uma espécie de rito em que a dor desempenha o papel principal, em conjunto com a noção de coragem. Não se furta, portanto, à idéia de autonomia pessoal.

20

“la marque corporelle signe l’appartenance à soi. Rite personnel pour se changer soi em changeant la forme de son corps”.

44 3. Dentro e fora Gell (1993) apontou, sobre o contexto polinésio, que a tatuagem é uma marca que se relaciona a processos de inclusão/exclusão sociais, conquanto eles estejam muita mais vinculados à sacralidade do sujeito, o que poderia ser visto como uma forma de estigmatização, embora a tatuagem sirva, de fato, para amenizar esta emanação contagiosa e perigosa. A sua própria característica de estar dentro do corpo e ao mesmo tempo visível é sui generis. Torna a tatuagem um procedimento que representa as situações em que se está fora/dentro de determinadas posições sociais. Observei, na teoria de Gell (1993), uma outra explicação para o uso da marca nos grupos historicamente relacionados a ela, todos em situação ambígua, dentro e fora da sociedade ao mesmo tempo. Relacionando estes grupos ao atual público da tatuagem, foi possível utilizar a reflexão do autor como um ponto importante de análise e formulação tanto de um olhar sobre a tatuagem carioca atual, quanto de uma tentativa de explicação dos fatores envolvidos nesta prática. Foi o contato de europeus, na figura dos marinheiros, com nativos polinésios que deu origem ao renascimento (MIFFLIN, 1997) da tatuagem no Ocidente. A análise de Gell (1993) está centrada no cotidiano do Pacífico anterior a estas. Ao longo da apresentação de instituições e contextos sócio-políticos, econômicos e religiosos, bem como da cosmologia nativa relativa à prática da tatuagem, o autor passa de um arquipélago a outro na tentativa de construir uma unicidade que relacione a extensão da prática, o modelo político e os sistemas sociais. O autor empreende uma abordagem que relaciona o surgimento, o uso e a manutenção/reprodução da tatuagem ao contexto sócio-político de cada sociedade polinésia analisada. Embora a tatuagem desempenhasse um papel integral na organização e no funcionamento das instituições sociais mais importantes, ela é uma conseqüência destas instituições, e não sua causa, não sendo independente destas, mas transformando-se com elas. O autor aponta que o uso de tatuagens exprimia hierarquias e dominações, contribuindo ainda para a produção da noção de pessoa e do Eu, perfazendo uma espécie de empoderamento, e, ainda, relacionada com o ciclo de vida. Fazia parte da produção de sujeitos políticos. Seus significados não são universais nem mesmo entre os arquipélagos

45 que constituem o mundo polinésio, que foi classificado em tipos ideais para efeito de comparação. Na qualidade de representações, o autor observa a tatuagem antes como uma família de representações, um código corporal onde as forças sociais se fazem registrar como parte da pessoa assim marcada. O autor utiliza dois eixos centrais na compreensão da tatuagem polinésia: a) serve como espécie de escudo de proteção; b) controla o tapu, a energia sagrada que é contagiosa e perigosa. Para desenvolver a idéia de tatuagem como proteção, o autor utiliza simultaneamente a cosmologia nativa, os significados de determinados desenhos tatuados e a teoria de Anzieu (1989 apud GELL, 1993). Para desenvolver a idéia do controle de tapu, o autor analisa a posição social dos tatuados, mas sobretudo a cosmologia, certas normas quanto à manipulação de comida e a percepção polinésia do sangue. Segundo Gell (1993), as percepções ocidentais sobre a pele envolvem a idéia de que ela está no exterior do corpo, e o que está externo é sempre menos importante (ou verdadeiro ou real) do que o que é interno. Desta forma, a pele no Ocidente é pensada como não traduzindo o que a pessoa realmente é. Gell (1993) compara a visão ocidental sobre a pele com a de sociedades melanésias descritas por Turner (1980 apud GELL, 1993) e Strathern (1979 apud GELL, 1993 ). Nestas sociedades, a pele está no exterior do corpo: este exterior é a parte pública e que mantém contato com outras pessoas. Uma percepção de que as pessoas são a soma total de suas relações com outras pessoas induz à percepção de que a pessoa é a pele. Pode-se concluir, a partir desta comparação, que a relação entre sujeito e pele está determinada pela percepção social sobre o sujeito, pessoa, indivíduo ou self. Operando como mediadora entre o Eu interno e o Mundo externo, a pele é duplicada pelo processo de tatuar, quando se produz uma pele artificial, fabricada, que opera como uma camada protetora. Neste sentido, o autor parte da noção de skin ego formulada pelo psicanalista Anzieu (1989 apud GELL, 1993) para constituir os usos relativos à tatuagem em uma espécie de modelo universal que parte, na verdade, dos usos da pele em sua dimensão psico-sociológica. Para Anzieu (1989 apud GELL, 1993), a pele é, de várias formas, a pessoa social. Esta afirmação é mais bem compreendida quando se toma a pessoa pela soma das relações que mantém com outras pessoas, onde a mediação exercida pela pele nestas relações a

46 transforma na pessoa, ou vice-versa. Desta forma, é a pele social que corresponde à pessoa social. Apresentando um “lado” externo e um interno, embora se trate de uma única estrutura, além de mediadora na comunicação entre estas duas esferas, a pele protege o Eu interno, é sensível ao Mundo externo e acumula marcas oriundas da relação do Eu com o Mundo. A partir desta posição privilegiada da pele, Anzieu desmembrou-a em nove funções, indicadas a seguir, que Gell (1993) toma como um “esquema básico da tatuagem”. Função 1 – Suporte: serve à criação de um envelope substituto envolvendo uma persona social – que de outro modo estaria exposta – em uma espécie de abraço protetor. Função 2 – Contenção: a tatuagem “segura”/contém o Eu interior. Ao mesmo tempo em que comunica ao externo aquilo que vem do interno, sela aquilo que contém. Poder-seia sugerir aqui novamente uma função protetora que, conforme será visto, é largamente explorada por Gell (1993). Função 3 – Proteção: a pele tatuada é reforçada por esta cobertura, ao mesmo tempo em que se torna locus de poderes que impedem ferimentos. Tatuagens de proteção são vistas por Gell (1993) como uma forma de controlar perigos, por imporem uma espécie de pré-enfrentamento de uma tarefa árdua e violenta. A tatuagem é também encarada por ele como uma armadura que defende a pessoa social e, simultaneamente, num nível mais elevado, como um componente da pessoa social como um todo, na forma de uma estrutura defensiva. Protege e constitui a pessoa. Função 4 – Individuação: a tatuagem é capaz de criar a identidade pessoal, embora Gell (1993) aponte que esta função é mais forte no Ocidente. Os desenhos testemunham a singularidade do sujeito, suas relações pessoais únicas, suas aquisições e gosto pessoal. Ao mesmo tempo em que se busca esta individuação, com um forte sentido de diferenciação mais do que de individualismo, diz o autor, adota-se emblemas de filiação grupal que indicam a identidade social em face de estranhos e inimigos. Função 5 – Intersensorialidade – e Função 6 – Excitabilidade sexual: devem ser observadas à luz do lugar onde o desenho é tatuado no corpo. Função 7 – Recarga libidinal: a tatuagem possui propósitos eróticos e de expressão da sexualidade, sobretudo na sua função de embelezamento do corpo.

47 Função 8 – Registro: a pele é vista como um tipo de memória biográfica externa. Assim, eventos marcantes ou comemorações são freqüentemente motivos para se tatuar. O autor adverte que a tatuagem é sempre o registro de um meio social, pois é em relação a esse meio que ela ganha significado. Quando é compulsória, registra relações de poder/autoridade. Quando é voluntária, registra um meio competitivo. Função 9 – Auto-destruição: refere-se, no âmbito sociológico, à autoestigmatização, vista como espécie de auto-sabotagem que o indivíduo imprime a si mesmo. Assim, Gell (1993) percebe um movimento duplo em que aquilo que é interno aflora por meio da pele, ao mesmo tempo em que aquilo que é externo, ou social, é internalizado no sujeito. A partir deste esquema básico e empreendendo uma reflexão caso a caso, o autor conclui que a tatuagem está relacionada a práticas inclusivas associadas à maturação social, à formação da pessoa e à reprodução social. Classificando as sociedades polinésias a partir de diferentes variáveis, como tipo de sistema político (mistas, cônicas, devolved ou feudais), grau de intensidade do uso de tatuagens (maior ou menor), ambiente físico/sistema social e ainda cosmologias, o autor faz a seguinte síntese: Esquema fundamental: Muita ênfase

Menor ênfase

Nenhuma ênfase

na operação

na cicatrização

no produto final.

Aqui a tatuagem serve para o controle de tapu (energia sagrada, espécie de mana), por uma dessacralização efetuada a partir do sangramento, que toma o contorno de uma espécie de mutilação ritual. A tatuagem impõe uma barreira entre o Eu secular e a divindade, tornando-se o emblema de humanização, que só é retirado na morte. Morto, o tatuado tem sua pele removida e retorna ao divino, sem seus traços humanos.

48 Sociedades cônicas: Nenhuma ênfase na operação

Muita ênfase

Menor ênfase

na cicatrização

no produto final.

Neste tipo sócio-político, a tatuagem é utilizada para selar a pessoa, protegendo-a e fortalecendo-a. Sociedades devolved: Nenhuma ênfase na operação

Menor ênfase

Muita ênfase

na cicatrização

no produto final.

Apenas neste tipo de sociedade o rosto é tatuado, o que leva o autor a efetuar uma comparação entre a tatuagem facial e a máscara, apontando para uma maior visibilidade e maior requinte da tatuagem neste tipo sócio-político, ao mesmo tempo em que ela é mais individual/biográfica, sem fases etárias pré-definidas para sua aquisição. Apresenta ambos os usos de proteção e de remoção de tapu. Sociedades feudais: Nenhuma ênfase na operação

Nenhuma ênfase na cicatrização

Toda ênfase no produto final

Neste tipo, visto pelo autor como o mais próximo do uso ocidental, a tatuagem é incorporada como um significante flutuante-livre, em uso para a elaboração privada de um Eu público. Este uso não está relacionado a rituais. É onde a tatuagem é mais fortemente um artefato, uma mercadoria. É preciso destacar que a classificação que o autor utiliza para as sociedades polinésias não pode ser utilizada para as ocidentais, uma vez que reflete o contexto local específico. Da mesma forma, os usos polinésios acima indicados não se relacionam aos

49 usos ocidentais, a não ser pelas sociedades polinésias feudais. De qualquer forma, estas sociedades foram transformadas pela colonização européia, e transformaram algumas de suas características conforme descritas pela etnografia utilizada pelo autor, referente sobretudo aos séculos XVIII e XIX. Importa mais nesta análise a relação entre tatuagem e instituições sócio-políticas. Assim, o autor ensaia uma visão da tatuagem ocidental como uma na qual as instituições sócio-políticas não apresentam nenhuma relação com a busca por tatuagens, mas o contexto social sim. Conquanto o seu “esquema básico da tatuagem” seja desprovido de indicadores sociológicos, os usos da tatuagem são explicados a partir das práticas sociais e não dos significados subjetivos de cada tatuado, embora eles existam em maior ou menor grau. Sobre o Ocidente, Gell (1993) limita-se a analisar grupos sociais como marinheiros, criminosos e prostitutas (também nobres e alguns integrantes das forças armadas) como aqueles nos quais a tatuagem ocidental foi mais popular, apontando ainda o impacto, nesse sentido, das teorias de Lombroso. A tatuagem é vista, então, como particular a dois universos distintos: aquele das sociedades tribais e a das minorias reprimidas no Ocidente. Maertens (1978 apud GELL, 1993) afirma, neste sentido, que a tatuagem ocidental floresce em grupos marginais confinados/excluídos. A tatuagem seria utilizada, entre eles, como uma forma de compensação pela existência desgarrada, constituindo, ainda, uma aceitação fatalista da exclusão social. A observação de Maertens (1978 apud GELL, 1993), embora não permita maiores considerações acerca do porque, efetivamente, de uma compensação, ou se esta é existente de fato na mentalidade dos grupos tatuados, apresenta um ponto indicado em minha argumentação, exposta no capítulo anterior, onde aponto elementos desta história do desenvolvimento da tatuagem ocidental após o contato com o Pacífico, e também em toda a tese, na medida em que creio que este sujeito ocidental excluído ainda é o sujeito privilegiado da tatuagem. Antes, este sujeito foi constituído a partir de um corte de classe e étnico-cultural (imigrantes), como bem aponta Do Rio (1997). Depois, constituiu-se um corte geracional, como aponta Marques (1997), que era simultaneamente um corte de gênero, com predominância masculina por todo o período. Hoje, segundo as pesquisas realizadas (LEITÃO, 2002), o corte de gênero tem privilegiado as mulheres, o que acredito

50 inserir-se, ainda, nesta dinâmica entre a prática da tatuagem e o meio social, de maneiras que serão apresentadas ao longo do trabalho. O que Gell (1993) aponta serem duas das variáveis operantes na dinâmica da tatuagem polinésia, isto é, gênero e geração, são variáveis presentes igualmente na dinâmica ocidental: são marcadores de posições de inclusão ou exclusão social dentro de uma determinada hierarquia. Observe-se, apenas, que a marcação corporal na Polinésia, como em todas as sociedades tradicionais, não é uma opção do sujeito. Em contexto ocidental, ao contrário, trata-se de uma escolha individual orientada por diversos fatores. Em uma comparação entre os usos sociais da tatuagem em Fiji, Tonga e Samoa, Gell (1993) conclui que o sujeito tatuado é aquele que está em uma posição ritual, ou simbólica, de menor status. A posição ritual costuma não se sobrepor à posição política, exceto para determinadas lideranças, que não são tatuadas. Neste caso, a mesma díade dentro/fora pode ser utilizada para análise. O gênero que está fora das posições rituais mais elevadas, ou seja, o gênero que é ritualmente de menor status, é o tatuado. Isto não significa que a tatuagem seja uma forma de inclusão social pura e simples, pois outras marcações poderiam ser utilizadas. Segundo o autor, o processo da tatuagem envolve crenças polinésias a respeito do sangue e pode ser comparado a certos rituais onde o sangramento é o ponto em questão. O caráter mais ou menos sagrado do sujeito também está em jogo quanto ao gênero a ser tatuado. 4. Reflexões preliminares A literatura sobre a tatuagem, portanto, trate ela de sociedades tradicionais ou modernas, aponta sistematicamente para a importância do status social para a aquisição – compulsória ou voluntária – da tatuagem. Este pode ser um status elevado, como aquele de determinados chefes tribais polinésios ou daqueles indivíduos em que a concentração de tapu deve ser decrescida com a tatuagem, ou um status marginal ou menor, como no caso das marcas gregas e romanas de stigma, a marcação de prisioneiros e o uso de tatuagens por prostitutas, marinheiros, criminosos e delinqüentes juvenis, grupos de trabalhadores de camadas populares, membros das forças armadas, entre outros. No âmbito brasileiro, somente Do Rio (1997) relacionou status social à marca.

51 A literatura indica, ainda, a importância do papel da tatuagem na formação de uma autonomia pessoal, seja ela construída na forma de uma resistência ao Estado e/ou outras instâncias controladoras do sujeito – em termos carcerários ou não – ou a um universo social que objetifica o sujeito, tornando-o uma mercadoria e esvaziando o sentido de individualidade e autonomia. Neste ponto, pode-se remeter à clássica tensão entre indivíduo e sociedade, na forma da coerção social observada por Durkheim (1995). Mas esta não parece ser a questão aqui, na medida em que a tatuagem não parece ser uma revolta individual contra a sociedade, mas uma forma de expressar uma autonomia pessoal, na forma da posse de si, em um contexto onde esta autonomia – que é dada a outros mas não ao (pré)tatuado – é de difícil acesso. Neste contexto, a tatuagem se torna um emblema de resistência. O corpo é o lugar desta disputa, na medida em que é controlado e ao mesmo tempo espaço de resistência pessoal a este controle. A análise de Foucault (1997) aponta claramente para esta tensão inscrita no corpo, pois ele é o limite entre o Eu (mental individual) e o Mundo (social)21. No corpo, a pele se apresenta como o limite extremo, que toca a esfera interna (do indivíduo) e externa (do mundo). Sendo o limite, pode-se sugerir que é sua região mais sensível, onde as lutas entre controle e autonomia se dão mais fortemente e as marcas de um e de outro são dispostas como troféus. Em certas circunstâncias, há que se observar atentamente o uso que se faz destas marcas: o troféu de um pode ser convertido no troféu do outro, como no caso russo, uma vez que o sujeito apresenta alguma autonomia sobre seu corpo para reificar ou ressignificar as marcas aí presentes. Assim, os troféus podem mudar de mãos, isto é, seus significados podem ser alterados por um ou outro lado, indivíduo ou sociedade, Eu ou Mundo. Desta forma, a partir de um recorte de gênero, a marca de virilidade masculina atesta a dificuldade em “ser Homem”, para a qual a tatuagem serve como uma ferramenta que atesta essa virilidade (e essa dificuldade). Nas mulheres, atesta a dificuldade em exercer autonomia sobre o próprio corpo, controlado e vigiado pela dominação masculina (BOURDIEU, 2003). Esta análise será desenvolvida nos capítulos seguintes, em conjunto 21

Basicamente em contexto moderno-individualista, pois, como apontam RODRIGUES (2001) e FOUCAULT (1997), em contexto pré-moderno não há esta construção individualista do corpo e seus usos e percepções são distintos.

52 com outros fatores intervenientes. Todos eles serão observados, em maior ou menor grau, a partir desta idéia de resistência e controle, fundado também nas corporalidades e no status social.

53 CAPÍTULO III – OS ESTÚDIOS PESQUISADOS

“Antigamente tinha um acordo de não abrir estúdio a menos de 500 metros um do outro.” Proprietário do estúdio pesquisado na Tijuca

Este capítulo é dedicado à descrição e análise dos estúdios de tatuagem pesquisados: seu espaço físico, a localização na cidade, a movimentação dos clientes na loja, a relação dos tatuadores com os clientes e entre si, a diferença entre ser proprietário de um estúdio e ser um dos profissionais contratados, formas de pagamento, entre outros. Estes elementos são importantes para se compreender a dinâmica de funcionamento de um estúdio de tatuagem – descrita por outros pesquisadores da área (LEITÃO, 2002; COSTA, 2004). No estúdio observado na Tijuca, esta dinâmica é ligeiramente alterada pelo contingente elevado de profissionais trabalhando ao mesmo tempo (cinco ou mais), enquanto muitos estúdios contam com um ou dois tatuadores apenas, como é o caso do estúdio observado em Copacabana. Tatuar-se não é mistério: entra-se em um estúdio, escolhe-se um desenho, paga-se e se é tatuado. Nas páginas seguintes as situações costumeiramente encontradas nos estúdios com relação a este ritual serão igualmente apresentadas e analisadas. É neste processo que a relação entre tatuador e cliente é estabelecida: relação de íntima amizade ou relação profissional, de prestação de serviços. Neste sentido, os estúdios observados apresentaram diferenças marcantes: enquanto o proprietário do estúdio de Copacabana praticamente só tatuava amigos, estes eram poucos entre os clientes dos tatuadores na Tijuca. Esta variação quanto à natureza da relação entre o público e o profissional da tatuagem espelha, conforme será apontado, uma diferença na organização administrativa do estúdio. Observou-se que o estúdio de Copacabana opera de uma forma próxima à familiar enquanto o estúdio da Tijuca apresenta uma organização mais próxima à forma burocrática (WEBER, 1971).

54 1. Profilaxias e técnicas A tatuagem como é praticada hoje nos estúdios é uma técnica que consiste na perfuração da pele com agulhas apropriadas, acopladas a uma máquina elétrica, por meio da qual pigmentos especiais são introduzidos na camada mais profunda da pele, de modo que ali permanecem. O uso da máquina elétrica contrasta com procedimentos tradicionais de tatuar, como utilizados por diversos povos ao redor do mundo. Nestes casos, não há máquina, mas uma haste de sustentação da agulha, que pode apresentar diversos tamanhos e espessuras. Os pigmentos utilizados variam segundo cada cultura (GILBERT, 2000). As cores utilizadas hoje são diversas e as tintas para tatuagem, adquiridas prontas de fornecedores especializados, podem ser misturadas entre si para se criar novas cores. As agulhas, por sua vez, são soldadas pelo próprio tatuador, na forma de um pente. Para cobrir áreas extensas do corpo com uma única cor, utiliza-se uma quantidade maior de agulhas, de forma que a operação seja agilizada e, conseqüentemente, a dor seja reduzida. Para os contornos dos desenhos, é comum utilizar-se um mínimo de três agulhas soldadas. Para a segurança do cliente, os tatuadores seguem um processo de higienização e esterilização dos materiais utilizados. Limpa-se a bancada onde ficarão os materiais necessários com álcool hospitalar, que em seguida é coberta com filme plástico e papeltoalha. Sobre o filme plástico, são colocados os botoques, presos por uma porção pequena de vaselina, que também é utilizada sobre a pele do cliente. Os botoques são recipientes descartáveis, de plástico, que contém algumas gotas da tinta necessária ao desenho. A agulha é embebida na tinta desses recipientes, de modo que eles entram em contato com o sangue do cliente. Os recipientes de álcool, os tubos de tinta e os recipientes de água com sabão, usados constantemente para limpar a pele do excesso de tinta, são cobertos com sacos plásticos, descartados a cada cliente. Se o local da tatuagem fica em contato com uma almofada, num banco ou cadeira, a mesma também é embalada em filme ou saco plástico, posteriormente descartado. O material que entra em contato com o sangue22 do cliente é todo descartado.

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A maior parte das tatuagens causa algum grau de sangramento, em algum ponto da pele, já que o processo envolve a perfuração da mesma.

55 As agulhas esterilizadas são embaladas separadamente e as agulhas utilizadas são destruídas na frente dos clientes23 e depositadas em caixas apropriadas, com alerta sobre material infectante24. Os tatuadores utilizam luvas descartáveis, máscaras e aventais. Essa preocupação com a profilaxia tem levado os estúdios a uma transformação não apenas nos cuidados com o cliente, mas também em sua apresentação. Eles estão, cada vez mais, se tornando parecidos com clínicas médicas: existem aparelhos de esterilização, como o autoclave25, e alguns estúdios utilizam cadeiras de dentistas. Embora os tatuadores não considerem a tatuagem como uma cirurgia, em conversa com o tatuador proprietário do estúdio pesquisado na Tijuca, ele sugeriu que o processo de tatuar assemelhava-se a uma micro-cirurgia, como as realizadas em consultórios odontológicos. Muitas vezes presenciei clientes deste estúdio comparando o barulho da máquina de tatuar com o do motor dos instrumentos odontológicos, ao que os tatuadores sempre respondiam que o barulho era diferente, o do dentista sendo mais agudo. Se a comparação é inevitável, o tatuador não se vê na mesma posição que um profissional da saúde. Em certas ocasiões, observei clientes insistirem sobre a possibilidade de reduzir a dor da operação, muitas vezes referida como ardência. Os tatuadores conhecem uma pomada anestésica de uso tópico local, mas na Tijuca raramente a recomendam, baseandose na premissa de que não são médicos, portanto não devem prescrever medicação, como ouvi uma tatuadora dizer. Na Tijuca, antes de ser tatuado, o cliente preenche uma ficha de cadastro, onde informa nome, endereço, profissão, além de dados sobre saúde: estado da pressão arterial (alta ou baixa), se é anêmico, se está tomando medicamentos. Pago o valor do trabalho, o cliente é tatuado. Assim que escolhe o desenho que quer tatuar, que pode ser aumentado ou reduzido na fotocopiadora, ou modificado pelo tatuador na hora, tanto em termos de cores quanto de outros elementos, ele é passado para o papel-manteiga com lápis cópia e então decalcado sobre a pele. A pele deve ser preparada para a tatuagem: primeiro, limpa-se a pele com álcool hospitalar; em seguida, raspa-se com aparelho descartável de barbear os pêlos da região; depois, uma fina camada de desodorante stick26 é passada para que o

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Procedimento observado no estúdio da Tijuca, mas não no de Copacabana. Conhecidas como descarpacks. 25 Aparelho que esteriliza bicos de máquina e agulhas por altas temperaturas. 26 Desodorante em bastão. 24

56 decalque fixe o desenho na pele. Sobre o decalque, o tatuador passa pigmento preto, já com a máquina de tatuar, no contorno. Por último, a tatuagem recebe outras cores, se for o caso. Uma tatuagem pode ser realizada em uma ou várias sessões, segundo a resistência do cliente à dor, sua disponibilidade financeira e o tamanho e/ou complexidade do desenho. A dor faz parte da operação de tatuar, mas é tolerada e experimentada de formas diferentes pelos clientes. Recomenda-se que uma sessão não ultrapasse três horas, de forma que, nesse tempo, um cliente pode se submeter a uma ou várias tatuagens. Os desenhos maiores são mais caros e é comum que os clientes paguem sessões mensais ou quinzenais até que a tatuagem esteja completa, de forma que o gasto financeiro é diluído. Finda a sessão de tatuagem, deixa-se a marca eliminar fluidos. Após cinco ou dez minutos, ela é coberta por uma espécie de curativo. Há alguns anos, usava-se papel-toalha, preso à pele por fita crepe. O papel colava sobre a tatuagem, em função da eliminação de fluidos, e tinha que se retirado com o auxílio de água. Hoje, passou-se a utilizar o filme plástico de cozinha, pois o mesmo não cola sobre a pele e é de mais fácil retirada. Contudo, o filme plástico não permite a respiração da pele e não é considerado ideal. O cliente é orientado sobre as precauções que deve tomar no período de cicatrização. A cicatrização é um processo que demora de 5 a 10 dias, variando segundo cada organismo. Neste momento, o corpo produz sobre a área tatuada uma cobertura que eles chama de “casquinha”. Costuma ser uma “casquinha” fina, que os tatuadores orientam não ser retirada em hipótese alguma, pois isto compromete a tatuagem. Ela deve soltar-se naturalmente. Durante este processo, é normal o surgimento de coceira na área. Se a “casquinha” é puxada ou retirada bruscamente, o desenho fica comprometido, os pigmentos não permanecem na pele e ocorre o que chamam de “falha”. Nestes casos, a tatuagem deve ser retocada. Orienta-se, ainda, manter a região seca, lavando-a apenas uma vez ao dia. Sol, água do mar e de piscina, bem como atividades físicas, são desaconselhados até a total cicatrização. Uma pomada cicatrizante também é recomendada. Durante a observação de campo, pude perceber que os tatuadores têm opiniões distintas sobre o melhor processo de cicatrização de uma tatuagem. Produtos diversos podem ser utilizados ou recomendados para este fim. De um modo geral, todos os tatuadores da casa recomendam a mesma pomada. Contudo, sei que há tatuadores que

57 recomendam o uso de vaselina sólida ou de um hidratante corporal comum. Alguns, ainda, não recomendam o uso de nenhum produto. Nos últimos tempos, o mercado de produtos voltados para o universo da tatuagem tem crescido. Além da expansão dos próprios estúdios, há comerciantes de máquinas de tatuar e tintas, tatuadores que vendem desenhos, feiras e eventos voltados para a tatuagem e um mercado de produtos médicos utilizados atualmente pelos tatuadores. Além dos elementos de higienização e esterilização, como luvas, máscaras, aventais e o autoclave, vi tatuadores do estúdio pesquisado utilizarem um adesivo cicatrizante especial. Como o filme plástico não é ideal para curativos, alguns profissionais têm experimentado o adesivo póscirúrgico, material caro e que só é utilizado em desenhos pequenos. Ele deve ser mantido sobre a pele durante uma semana, sem ser retirado. Contudo, observei reclamações de clientes sobre os adesivos: em um caso, uma moça queixava-se de que havia desenvolvido “bolinhas” na região próxima, o que foi interpretado pelo tatuador como uma possível alergia à cola do adesivo; em outro, uma cliente descrevia como o adesivo reteve os fluidos oriundos da tatuagem, formando uma bolsa de líquido, quando ela decidiu retirá-lo e lavar o local com medo de uma possível infecção. O que parece ocorrer é ainda uma certa precariedade de materiais e técnicas concernentes aos processos orgânicos. Tintas, máquinas e agulhas podem ser compradas, hoje, sem maiores problemas, mas os tatuadores ainda não contam com um mercado de produtos médicos específicos para a tatuagem, e utilizam materiais precários como a vaselina sólida, o desodorante stick e o filme plástico. Contudo, a preocupação em utilizar materiais adequados e a preocupação com higiene são reflexos de um movimento social maior, em que a medicina e as preocupações médicas têm invadido o cotidiano. Muitas vezes, essa medicalização do cotidiano vem revestida pela idéia de risco: os riscos da má alimentação, os riscos de uma tatuagem mal-feita, os riscos da obesidade, os riscos de tratamentos de beleza, de cirurgias plásticas... a lista poderia ser quase infinita.

58 2. Variações sazonais Segundo Leitão (2003), tatua-se mais no verão do que no inverno. Para os tatuadores com quem conversei na Tijuca, tatua-se mais em dezembro e durante todo o verão, mas também em julho, pois é época de férias. Os tatuadores pensam que o verão é o momento privilegiado em função de dois aspectos: o pagamento de adicionais de férias e 13o salário e pela exposição corporal característica desta época na cidade. Para a própria tatuagem, contudo, com respeito a seu aspecto técnico, o melhor momento para se tatuar seria o inverno, pois a tatuagem recém-adquirida não pode ser exposta ao sol. Se, por um lado, se está de férias em julho, por outro o clima pode não ser dos melhores para a exibição do adorno recém-adquirido. Em Porto Alegre, cidade pesquisada por Leitão (2003), o inverno é mais frio do que no Rio de Janeiro, onde mesmo nesta época se praticam atividades ao ar livre, eventualmente nas praias. Se o inverno chega brando à costa carioca, a praia é aproveitada em toda a sua plenitude. Talvez por isso a clientela seja percebida como menor entre os gaúchos no inverno do que no verão, enquanto cariocas mantém o movimento do estúdio mesmo na estação fria. Ao longo dos meses de trabalho de campo observei que logo após o Carnaval de 2004 houve uma queda significativa de clientes na loja da Tijuca. De fato, havia dias em que o estúdio não era visitado por um único cliente, nem mesmo para informações. Nestes momentos, os profissionais saíam da loja e ocupavam o tempo ocioso conversando do lado de fora. Aquele mês de março foi permeado por conversas sobre dinheiro que, desde novembro de 2003, quando iniciei a pesquisa de campo, jamais ouvira. Cobrava-se pagamento e perguntava-se sobre quando determinados cheques seriam descontados. A aflição por dinheiro estava relacionada à escassez de clientes. Era pouco o que se tinha para receber e esse pouco fazia falta. No estúdio pesquisado em Copacabana, por sua vez, o movimento não parecia pequeno nos meses pesquisados (março a maio de 2005), embora o segundo tatuador (COSTA, 2004) e o piercer passassem muitas tardes em completa ociosidade. A agenda do proprietário estava sempre cheia e raramente “ganhava” uma tarde de folga. O segundo tatuador, contudo, contou-me que até o Carnaval o movimento era melhor. Nesta época do ano, a clientela é formada, sobretudo, por turistas estrangeiros, fato que não se observa na

59 Tijuca. Contudo, o dinheiro vindo de fora (dos turistas) reafirma a idéia de que o público local fica descapitalizado nos grandes feriados, poupando dinheiro para viagens. É visível que existem variações sazonais na prática da tatuagem, embora não esteja clara essa associação com o clima. Os tatuadores com quem conversei apresentaram o dinheiro como fator relevante para as altas e baixas financeiras da profissão. Após longos feriados, ou na véspera destes, o movimento cai. Se a lógica fosse a da mera exposição dos corpos adornados, os feriados poderiam ser momentos de maior procura pela tatuagem, mesmo levando-se em conta o tempo de cicatrização da mesma, o que não ocorre. Por outro lado, se há variações em Porto Alegre em função exclusivamente do clima, esta é uma variável a ser considerada. Optaria, então, por apontar um equilíbrio entre os dois fatores, observando-se que a possibilidade de exposição corporal é fundamental, mas sem dinheiro ela não passa de uma fantasia. 3. Localização: Tijuca É importante dizer que descrever a localização deste estúdio foi um exercício de estranhamento do familiar. Nascida e criada na Tijuca, residindo na Zona Norte por toda a vida, não sei dizer quando tomei conhecimento do estúdio pesquisado. Ele faz parte da vida do bairro, do cotidiano da juventude da região, ao menos daquela interessada em tatuagens. Sei que fui levada lá por amigos e retornei muitas vezes para “olhar os desenhos”, sem intenção imediata de ser tatuada. Percorri os corredores da galeria onde se localiza o estúdio por vários anos. Tudo naquele ambiente me é familiar, ao contrário do outro estúdio pesquisado, inserido em ambiente para mim menos familiar, como a Zona Sul. Na qualidade de moradora da Tijuca, contudo, pude oferecer uma visão do bairro que apenas o olhar formado pelos anos passados naquela vizinhança permitiria. O estúdio pesquisado da Tijuca está localizado no terceiro andar de uma galeria comercial, no coração comercial do bairro: a Praça Saens Pena. Esta área é caracterizada pela presença do metrô, de um forte comércio de rua, em galerias e shopping centers27, bem como de diversos consultórios médicos, odontológicos e laboratórios de exames em geral.

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Na própria Praça Saens Pena há um shopping center. Há dois quarteirões desta existem outros dois shoppings.

60 Há um fluxo constante de pedestres nas redondezas em busca de atendimento médico e do farto comércio local. Linhas de ônibus, além do metrô, fazem a ligação entre a região, a Zona Sul, a Zona Oeste e demais bairros da Zona Norte. A galeria em questão não é um ponto privilegiado de comércio. Muitas de suas lojas estão fechadas, provavelmente em função dos novos centros comerciais – shopping centers – abertos há alguns anos. Nesta galeria existe um salão de beleza, um restaurante, agências de viagens, lojas de quadros, lojas de discos, lojas de roupas e de aluguel de roupas de festa, lojas de bijuterias, lojas que vendem material hospitalar, entre outros. Chama a atenção a existência de três lojas de discos voltadas para a música rock e suas variações mais pesadas, como o heavy metal. Freqüentadas quase que exclusivamente por um público adolescente do sexo masculino, vendem, além de CDs, camisetas e acessórios. As três localizam-se no segundo andar da galeria, em frente à escada rolante: ponto de passagem obrigatório para se ir ao estúdio pesquisado. A princípio, imaginei que o público destas lojas e do estúdio seria o mesmo, não existindo uma coincidência na localização, mas sim um interesse comercial. Contudo, ao longo da pesquisa de campo, percebi que tal não ocorria. Adolescentes raramente se tatuam no estúdio observado e quando se tatuam tratase, sobretudo, de meninas. 4. Localização: Copacabana O estúdio pesquisado em Copacabana encontra-se, também, em uma galeria. Ao contrário daquela da Tijuca, composta por três andares ligados por escadas rolantes, esta galeria apresenta apenas um pavimento. Entre as lojas vizinhas ao estúdio, estão duas alfaiatarias de conserto de roupas, uma loja de bijuterias, uma de serviços de informática, uma loja de produtos para a casa, uma loja de discos e uma voltada para produtos de hiphop, como tintas para grafite, roupas e acessórios e dois salões de beleza. Segundo observei, a movimentação de pessoas na galeria é formada, em maior parte, pelos clientes das lojas de reparo de roupas e dos salões de beleza, clientes que não são os mesmos do estúdio. O estúdio compartilha alguns clientes com a loja de discos. Este estúdio pertencia, originalmente, a um famoso tatuador carioca, que o passou a um dos tatuadores que trabalhava junto com ele, pois decidira mudar de cidade. Muitos dos

61 clientes ainda perguntam pelo proprietário anterior e alguns trazem notícias dele. O atual proprietário reformou o estúdio, que ocupava duas lojas, e reduziu-o para o espaço de uma loja. Funcionam no estúdio, além do serviço de tatuagem, também serviços de piercing e alargamento de lóbulo auricular, ambos executados pelo piercer. Este estúdio está localizado no limite entre os bairros de Copacabana e Ipanema, a poucos metros das duas praias mais famosas da cidade. Em frente à galeria, encontra-se um hotel. Há um movimentado comércio na região, embora se trate de área residencial. Nas proximidades há também bares e restaurantes. Devido a esta localização, há um diferencial quanto ao público: muitos clientes saem da praia e vão ao estúdio, outros são surfistas e há, ainda, uma freqüência de turistas estrangeiros, sobretudo europeus, em busca tanto de tatuagens quanto de piercings, uma vez que estes são mais baratos no Brasil do que no exterior. 5. O espaço físico Os dois estúdios apresentam uma configuração e um aproveitamento do espaço físico semelhantes. Conforme outros estúdios (LEITÃO, 2002; COSTA 2004), há uma sala de espera e a sala de tatuar. No caso dos estúdios observados, há ainda o uso da parte externa da loja, onde um banco serve de espaço de sociabilidade, freqüentemente utilizado pelos fumantes. 5.1. Tijuca O estúdio pesquisado apresenta dois momentos distintos em seu espaço físico, pois durante a pesquisa houve uma obra de expansão. A loja contígua ao estúdio foi comprada, o que gerou a necessidade da obra, que na verdade operou uma reformulação estética total no estúdio, incluindo novas cores, novo layout externo, novos móveis, bem como espaços internos antes inexistentes. Ao começar a pesquisa de campo, em novembro de 2003, o estúdio ocupava o espaço de uma loja na galeria. A frente, toda em vidro, permitia ver de fora o que ocorria na

62 recepção. Neste espaço, havia duas prateleiras à direita com muitos álbuns de desenhos28; um balcão de recepção à esquerda, onde o recepcionista atendia os clientes; um sofá de dois lugares em frente às prateleiras dos álbuns; vários desenhos emoldurados e pendurados na parede. Atrás do balcão da recepção, uma porta levava à área onde a tatuagem era executada. Do sofá, na sala de espera, era possível ouvir o barulho das máquinas de tatuagem funcionando. Na frente da loja, no corredor da galeria, há um banco sem encosto que funciona como sua extensão. Nesse banco, os clientes olham desenhos quando o estúdio está cheio, os tatuadores conversam e os amigos ou parentes de clientes aguardam. Toda a movimentação daquele pequeno espaço se dá em função do estúdio. O banco era, de fato, sua extensão, uma área de sociabilidade tanto de clientes quanto de tatuadores. O estúdio parecia dividido em três: o banco no corredor, a sala de espera e a sala de tatuar. Na sala de tatuar, a parte interna do estúdio, havia bancadas de madeira e armários em três paredes, com espelhos em todas elas. Uma pia servia de lavatório e, ao lado desta, ficava um aparelho para destruir agulhas usadas e o descarpack, caixa para materiais infecciosos. Na entrada da sala, encontrava-se um cabideiro na parede, um bebedouro de garrafão e uma estante com livros e CDs, com um aparelho de som. Nesta parte interna havia, ainda, um banheiro. Com esta disposição, o estúdio podia atender até quatro clientes ao mesmo tempo, o que significa dizer que até quatro tatuadores podiam trabalhar simultaneamente. Os tatuadores utilizavam o espaço nas bancadas de madeira para organizar o material necessário à tatuagem: água pura ou com sabão, tintas, papel-toalha, vaselina. Cada cliente sentava-se em uma cadeira ou banco (algumas vezes era necessário deitar o cliente numa maca) mais apropriado ao trabalho, enquanto o tatuador sentava-se em outra cadeira. Embora muitos estúdios utilizem uma cadeira reclinável como a dos dentistas, esse não era o caso do estúdio pesquisado. Espelhos nas paredes, dispostos acima das bancadas, permitiam uma visão em vários ângulos, enquanto a tatuagem estava sendo executada e depois de pronta.

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Os álbuns são pastas com folhas plásticas onde são guardadas as folhas com desenhos para que os clientes escolham o que será tatuado.

63 Após a obra de reforma, a recepção ganhou novos móveis, mas sua disposição permaneceu a mesma. Acima das prateleiras de álbuns foi colocado um espelho. A frente da recepção permaneceu em vidro, mas a frente externa da loja anexada foi coberta com um painel em que várias fotos de tatuagens executadas no estúdio formam uma espécie de mosaico. Ouvi tatuadores reclamando que de longe não é possível discernir nem os desenhos nem a qualidade dos trabalhos no painel, o que, nas suas opiniões, deveria ser o objetivo de tal recurso: uma espécie de portfolio gigante. A divisão interna do estúdio foi alterada e mais clientes puderam ser atendidos ao mesmo tempo. À direita, no espaço referente à loja anexada, localiza-se a sala de tatuar, dividida em quatro bancadas diferentes, em granito, com armários embaixo, que formam espécie de baias. Há também uma sala íntima, chamada de box, com porta, em que se atendem preferivelmente clientes cujas tatuagens serão localizadas em partes íntimas do corpo, como seio ou virilha, mas que é utilizada regularmente quando não há esta demanda. Seu espaço interno é maior que o das baias. Acima de cada bancada, há um espelho, e há outro, ainda, em uma parede em que não há bancada. Desta forma, como na disposição antiga, o cliente pode ver sua tatuagem de vários ângulos diferentes. À esquerda da entrada, no espaço que correspondia à loja antiga, o proprietário do estúdio reformou o banheiro, e construiu dois novos ambientes: uma sala de televisão, com aparelhos de videocassete e DVD e um sofá para que os tatuadores tenham um lugar quando não estão tatuando e, eventualmente, para que algum cliente espere. Atrás do aparelho de televisão, uma parede divide o espaço em outro ambiente, com armários, prateleiras e uma bancada em madeira, onde são guardados materiais diversos do estúdio, incluindo documentos e adesivos de propaganda. A cor predominante, após a reforma, passou a ser o branco. As cadeiras e sofás são da cor laranja. Porta-papéis, também na cor laranja, foram afixados às paredes, próximo a cada baia de tatuar. Na recepção, uma das paredes também foi pintada em laranja. Comentei com o proprietário que, após a reforma, o estúdio ganhou um ar de hospital, lembrando uma clínica médica. Ele me disse que sua intenção fora essa: queria dar uma impressão de limpeza e assepsia para tranqüilizar os clientes quanto aos procedimentos envolvidos.

64 A limpeza interna do estúdio aumentou consideravelmente após a reforma. Os procedimentos dos tatuadores mantiveram-se os mesmos, mas o cuidado com o ambiente físico do estúdio aumentou, muito em função, é verdade, da necessidade de conservação dos novos móveis. A tinta da tatuagem, que muitas vezes mancha as roupas dos tatuadores, pode manchar também os móveis. Cadeiras manchadas de tinta dão um aspecto de má conservação, sujeira e desgaste. Não raro, ouvi comentários dos tatuadores sobre a necessidade de cuidados ao se lidar com as cadeiras, para que não se estragassem. O chão do estúdio, um xadrez em preto e branco, manteve-se o mesmo. Interessante notar que vários estúdios da cidade que visitei tinham o mesmo tipo de piso, embora nem todos utilizem a cor branca na profusão em que o estúdio pesquisado a utiliza. De fato, a decoração de cada estúdio depende do gosto do proprietário. O estúdio pesquisado contava, antes da reforma, com uma série de máscaras decorativas balinesas. Após a mesma, as máscaras foram penduradas nas paredes da sala de TV, enquanto a sala de tatuar foi decorada com objetos chineses e pinturas de inspiração japonesa, pois o estúdio tem um nome em japonês29. A reforma serviu, em vários aspectos, para uma adequação do estúdio às novas regras para funcionamento de estúdios de tatuagem e piercing formuladas pelo município. Entre as necessidades atendidas estavam a de que as bancadas fossem de material lavável e resistente a produtos de limpeza, o que não é o caso da madeira, e os toalheiros de papel fossem fixados à parede. A quantidade de espelhos, após a reforma, permaneceu praticamente a mesma. No entanto, chama a atenção sua profusão na sala de tatuar. Em visita a outros três estúdios da cidade, não observei nenhum caso semelhante. Embora haja uma idéia entre tatuados de que não olhar para a execução da tatuagem alivia a sensação de dor (LEITÃO, 2003), o que os espelhos fazem crer é que se quer dar ao cliente a oportunidade de acompanhar todo o processo de tatuar. Conforme será visto em outro capítulo, a maior parte das tatuagens do estúdio é executada na região das costas, onde os clientes só podem visualizar o desenho por meio do espelho.

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O Japão apresenta uma técnica e padrões de tatuagem considerados sofisticados em relação à tradição ocidental, que incorporou largamente sua influência.

65 O espelho dá origem a situações peculiares. Certa vez, enquanto a namorada era tatuada, o rapaz olhava-se continuamente no espelho, como se o mundo externo houvesse se apagado: fazia caretas, verificava a pele do rosto, olhava os músculos do braço e ignorava a moça a quem deveria dar apoio. O espelho se tornou elemento de narcisismo. Será o mesmo para os tatuados? Acredito que sim. Na tatuagem, o olhar é fundamental. Deixar-se ver, deixar que vejam a marca na pele, ou não deixar, escondendo-a, são formas de transparecer a ligação que a marca apresenta com o olhar. O espelho é o instrumento que permite o olhar a si, olhar a própria marca, olhar-se como um Outro refletido em plena transformação. 5.2. Copacabana Embora o proprietário indicasse constantemente em seu discurso a necessidade e a intenção de reformar o estúdio, esta reforma não foi observada. O que houve, de fato, foi a modificação do sistema de refrigeração e outras modificações meramente decorativas. O estúdio é composto por uma sala de espera, uma sala de tatuagem e piercing, banheiro, centro de esterilização e uma segunda sala de tatuar, construída como um mezanino. A fachada da loja, toda em vidro, permite a visualização de seu interior a partir da galeria. Em frente à loja, disposto de costas para o estúdio, um móvel de três cadeiras, característico das salas de espera, serve como uma extensão. Nestas cadeiras, os funcionários conversam com clientes e funcionários de outras lojas da galeria e, principalmente, fumam. Não se fuma dentro do estúdio, embora os dois tatuadores, o piercer e a recepcionista sejam fumantes. Isto provoca um constante entra-e-sai. Na sala de espera encontram-se duas prateleiras com álbuns de desenhos, revistas de tatuagens e algumas fotos de trabalhos executados pelos artistas. Nas paredes, quadros de desenhos de tatuagens. O balcão de recepção é, também, uma vitrine para as jóias de piercing. Sobre ele está um computador onde se escuta música, agenda-se os clientes e procuram-se desenhos e fotografias de trabalhos executados. O piercer, costumeiramente com poucos clientes, e a recepcionista utilizam ainda o computador para conversarem online com amigos. Três cadeiras servem aos clientes. A sala de espera conta, ainda, com quatro quadros de uma antiga campanha publicitária de um conhecido shopping da Zona

66 Sul carioca, em que as modelos aparecem com os próprios rostos tatuados. Na verdade, trata-se de um desenho executado pelo proprietário do estúdio, que foi posteriormente sobreposto às modelos em computador. A recepção dá caminho para um corredor, pelo qual se chega à sala de tatuagem e piercing, à escada para o mezanino, ao banheiro e ao centro de esterilização. A sala de tatuagem e piercing é composta por dois lavatórios, duas cadeiras reclináveis elétricas, como aquelas de consultórios odontológicos, e dois espelhos redondos. Uma persiana garante a visibilidade ou privacidade do que ocorre dentro dela. Já a sala de tatuar localizada no mezanino não tem lavatório. Há apenas a cadeira reclinável, mesas de apoio para o tatuador e um espelho retangular, maior do que os encontrados na sala de baixo. Embora todas as salas tenham recipientes para sabão líquido e porta-papel-toalha afixados à parede, os mesmos não estão em uso. O papel-toalha é cortado, dobrado e acondicionado em outros recipientes. Não observei, nas salas de tatuar, nem o descarpack, nem o aparelho de destruição de agulhas. O centro de esterilização é uma sala separada, ao final do corredor, ao lado do banheiro, onde se encontra o autoclave e todo o material necessário ao procedimento de esterilização, bem como o estoque de material descartável utilizado no estúdio. O estúdio foi decorado em preto, branco e vermelho. Como em outros estúdios que visitei na cidade, há a presença de ladrilhos em xadrez preto e branco, mas não no piso como é costume e sim na parede. O piso do estúdio é composto por três materiais diferentes, com marcas de rodapés não mais existentes. 6. Concorrência e proliferação de estúdios na cidade: a ética do tatuador Três meses depois de iniciada a pesquisa de campo, foi aberto outro estúdio na Praça Saens Pena, a menos de um quarteirão de distância do estúdio observado, uma filial de um famoso estúdio de Copacabana. Nos últimos anos, o Rio de Janeiro tem sido palco de uma expansão de estúdios de tatuagem e piercing. Estúdios de renome na cidade têm aumentado sua área de atuação em busca de novos clientes, o que sugere uma alta procura pelos seus serviços. O primeiro local desta expansão foi a Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste da cidade. O próprio estúdio pesquisado abriu, anos atrás, sua filial na Barra, onde

67 trabalham os mesmos tatuadores que atendem na Tijuca. O estúdio concorrente também possui uma filial na Barra. Em agosto de 2004, um outro estúdio abriu suas portas na região da Praça Saens Pena. Na verdade, mudou-se de uma rua pouco movimentada, sem comércio e com baixo fluxo de pedestres, entre a Tijuca e Vila Isabel, bairro adjacente, para um dos shopping centers próximos à Praça Saens Pena, de frente para outro shopping center, a dois quarteirões de distância do estúdio pesquisado. Visitei-o assim que abriu suas portas, nos seus primeiros dias de funcionamento e percebi um fluxo grande de clientes antigos e novos, interessados em serem tatuados. Embora a concorrência seja parte do mercado, no ramo dos estúdios de tatuagem existe um discurso sobre uma ética que deve ser respeitada. Segundo o proprietário do estúdio pesquisado, há uma espécie de acordo entre cavalheiros quanto à localização dos estúdios: não se deve abrir um a menos de um quarteirão de distância de outro. Quando percebi a presença do novo estúdio tão próximo, na própria Saens Pena, perguntei-lhe se a concorrência seria dura. “É uma falta de ética”, protestou. “Antigamente tinha um acordo de não abrir estúdio a menos de 500 metros um do outro.”. Disse que faltava registro a muitos estúdios, bem como reconhecimento profissional e ética aos tatuadores, que, segundo ele, “são cobrados do governo e não se ajudam”. Meses mais tarde, em agosto de 2004, essa “cobrança do governo” tomou corpo numa Resolução Municipal regulamentando o funcionamento de estúdios no Rio de Janeiro. O proprietário protestou, ainda, sobre a quantidade de impostos necessários à manutenção de seu estúdio. Disse-lhe que havia notado uma proliferação de estúdios pela cidade. Ele reiterou que faltava ética, dizendo escolher seus profissionais a dedo para servir a um público diferenciado. Neste ponto, não via o concorrente como um obstáculo aos negócios, pois a “proposta” dos estúdios é diferente. O problema, contou, é que o concorrente abrira suas portas com preços baixos para atrair clientela. “Talvez perca pequenos trabalhos, uma estrelinha, porque as pessoas procuram preço também”. Contudo, acreditava que havia público para os dois. Ele sugeriu que eu fosse ao concorrente para ver a diferença entre os dois estúdios e perceber como o público é distinto. De fato, fui ao estúdio concorrente e percebi que o funcionamento era distinto. Faltava público: apesar dos preços mais baixos, estava vazio. Enquanto o estúdio observado

68 atendia com ou sem hora marcada, o concorrente só atendia com hora marcada mediante pagamento antecipado de R$50. Havia apenas um tatuador trabalhando na casa e os álbuns de desenhos disponíveis eram xeroxes em preto e branco de outros desenhos, de modo que mal se podia identificar certas figuras e, sem as cores, não se podia ter idéia de como a tatuagem ficaria na pele. O discurso do proprietário do estúdio pesquisado traz algumas informações relevantes para se compreender o universo dos estúdios de tatuagem. Primeiro, embora haja um Sindicato dos Tatuadores na cidade, ele não foi mencionado em nenhum momento, e parece não servir como agente regulador em causas que ele considerou como éticas. Segundo, a qualidade do trabalho dos tatuadores é o grande diferencial de um estúdio. Há tatuadores especializados em tipos de desenhos diferentes. Idealmente, o cliente deve optar por um estúdio e um tatuador que seja especialista no desenho que ele deseja tatuar. Como exemplo, há um tatuador no estúdio pesquisado especialista em motivos orientais, como dragões, e em retratos. Nem todos estes trabalhos são executados por ele, mas ele é normalmente indicado tanto pelo recepcionista quanto por seus colegas para executar tais trabalhos quando há demanda por parte de um cliente. A qualidade do trabalho do tatuador traz inúmeras reflexões que serão vistas adiante, pois constrói a idéia de ser um profissional, bem como a idéia de que a tatuagem é uma forma de arte. O proprietário indica, ainda, como os estúdios têm lidado com a expansão da demanda por tatuagens na cidade. A procura acentuada pelos serviços dos tatuadores é o que possibilita a expansão dos estúdios, uma vez que a tatuagem é um serviço caro. A concorrência não é vista com maus olhos, a não ser que seja desleal, como na cobrança de preços abaixo do mercado. Há uma grande variação de preços entre os estúdios, e entre estes e tatuadores que atendem em suas residências. Além do preço, o cliente de tatuagem também se preocupa em buscar um local limpo, tatuadores qualificados e um repertório de imagens que lhe agradem. De fato, nem todos têm essa preocupação: desenhos podem ser obtidos fora do estúdio, em revistas, livros e na Internet; a qualificação do tatuador é difícil de ser medida, e normalmente constrói-se uma reputação a partir do boca-a-boca, da indicação de ex-clientes ou por trabalhar em um estúdio famoso; a limpeza e profilaxia utilizadas, apesar de todas as possibilidades de contágio, nem sempre é uma preocupação, visto que há ainda tatuadores

69 que trabalham nas ruas, onde nada indica que o material utilizado esteja devidamente esterilizado. Há que se observar, ainda, que o proprietário fala em propostas diferentes dos estúdios. O estúdio pesquisado pareceu-me, ao longo de um ano de observação, sem um público definido em termos de uma tribo urbana, ou alguma cultura juvenil. O proprietário do estúdio parece procurar um público ligado ao rock. Como observei acima, o estúdio está localizado em uma galeria em que funcionam três lojas de discos voltadas a este gênero musical. O rock é a música preponderantemente ouvida pelos tatuadores dentro do estúdio e percebi em campo que freqüentam também shows de rock. Por este perfil, o proprietário escolheu uma rádio FM de rock para veicular anúncio do estúdio de tatuagem e da loja de piercing, que funciona no mesmo andar na galeria. 7. Fazendo a propaganda de um estúdio Além da propaganda em rádio, o proprietário optou pela propaganda em busdoor30, já utilizada por outros estúdios da cidade. Um conhecido estúdio da Zona Sul carioca, o mesmo que abriu filial a menos de um quarteirão do estúdio pesquisado, optou por esta forma de propaganda. Indicava sua localização por diversos bairros da cidade: Copacabana, na Zona Sul; Barra da Tijuca, na Zona Oeste; e Tijuca, na Zona Norte da cidade. Analisando as fichas de cadastro31 do estúdio pesquisado referentes aos meses de setembro de 2003 e janeiro de 2004, observei que o proprietário teve a preocupação de medir a eficiência da propaganda com a seguinte pergunta: “como tomou conhecimento do estúdio?”. Apesar da propaganda em uma rádio FM e dos anúncios em busdoor, a maior parte do público chega até lá encaminhado pelo “boca-a-boca” de amigos: em setembro, apenas três clientes foram atraídos pelos anúncios, e em janeiro foram 15 clientes. O anúncio em busdoor foi veiculado por dois anos e nove meses, até março de 2004, segundo o recepcionista do estúdio, e retornou em dezembro de 2004. O anúncio em rádio tem sido veiculado sem pausas desde, aproximadamente, abril de 2002 até o momento da pesquisa de campo, em 2004. 30

Trata-se de um painel anexado ao vidro traseiro dos ônibus que circulam pela cidade. As fichas são dadas aos clientes para que preencham campos como nome, endereço, telefone, profissão, data de nascimento, estado de saúde, tatuador, desenho e sua localização no corpo.

31

70 Uma vez perguntei ao recepcionista se os anúncios haviam aumentado a clientela da loja. Ele confirmou. No entanto, os números não demonstram esse crescimento. A propaganda mais forte no universo da tatuagem, mesmo na França, conforme aponta Le Breton (2002), é o “boca-a-boca”. Ter uma indicação de um amigo é como ter um atestado de que o local é limpo e seguro – mais confiável que o da Vigilância Sanitária, por assim dizer, muito embora os critérios sejam outros – e de que o tatuador indicado apresenta qualidades artísticas. Preço, ao que parece, nem sempre é a questão fundamental num “boca-a-boca”. Se os anúncios não aumentam a clientela da loja, por que veiculá-los? Sugiro que, menos do que trazer novos clientes, o valor do anúncio é fazer com que o estúdio se torne conhecido, se torne um estúdio de renome, entrando definitivamente entre os estúdios mais tradicionais da cidade. Afirmei, anteriormente, que este estúdio é tradicional no bairro onde está sediado há mais de 20 anos. Essa afirmação foi baseada nas respostas que clientes apresentaram nos referidos cadastros, quando alguns responderam conhecer o estúdio pelo simples fato de morarem no bairro. Será visto adiante que o público da casa é formado majoritariamente por habitantes do bairro e, em segundo lugar, por habitantes de demais bairros da Zona Norte. Os anúncios permitem ao estúdio tornar-se conhecido fora das fronteiras da Zona Norte. Outras formas de propaganda empregadas são a camiseta promocional e os adesivos. O estúdio tinha algumas camisetas de malha preta, com sua logomarca na frente, em tamanho grande, bem como adesivos para carros, redondos, com a mesma logomarca. Um modelo mais antigo de adesivo apresentava o slogan Tatuagens tão perfeitas que até sua mãe vai querer uma. No entanto, nunca presenciei a distribuição de tais itens a clientes, de nenhuma forma, gratuita ou não. Outro conhecido estúdio da Zona Sul carioca, cujo tatuador proprietário encontra-se hoje, segundo fui informada, aposentado e fora da cidade, costumava distribuir adesivos de propaganda. Em uma de suas versões, o material trazia a seguinte frase, além do nome do estúdio: “Keep hell beautiful: get tattooed”. Em português: Mantenha o inferno bonito: tatue-se. Chamo a atenção para as propagandas deste estúdio porque, como no caso do estúdio pesquisado, ela faz uso de um determinado imaginário sobre a tatuagem. Por que

71 manter o inferno bonito? Tatuados são religiosos? São cristãos que acreditam no inferno? São pessoas más que vão para o inferno? Acredito que a utilização da idéia de inferno remete não à expressão de uma religiosidade do tatuado, mas é uma referência à religiosidade preponderante no Brasil, que é de viés cristão. Dentro desta referência, o slogan trata da associação entre tatuagem e desvio, com a idéia de que tatuados são desviantes. Talvez mais do que desviantes, marginais. Em suma, o tatuado, que aparece aqui como um tipo de rebelde, estaria passível das punições infernais. Trata-se de um slogan que faz uso de um determinado imaginário sobre a tatuagem que ainda a vincula ao mundo do crime e do desvio, quando hoje o público dessa prática é mais heterogêneo. Neste sentido, convém observar que o slogan fazia propaganda de um estúdio de tatuagem, e não de um tatuador de cadeia. Esta oposição estúdio/cadeia é, na verdade, uma oposição entre o profissional e o amador, efetuada pelos próprios tatuadores conforme será visto adiante. O tatuado, no slogan em questão, é percebido pelo próprio tatuador como um desviante, mas eu sugeriria que se trata de um desvio na forma de uma vanguarda, dado o público do estúdio em questão, conforme será indicado a seguir. Desde a contracultura, pelo menos, não estar de acordo com algumas normas socialmente estabelecidas pode ser visto como um dado positivo, quando estas são vistas como burguesas, caretas, conservadoras. Uma tatuagem pode ser, neste sentido, uma espécie de rebeldia, de não aceitação das normas vigentes quanto à estética corporal preponderante. O que desejo demonstrar no presente trabalho, contudo, é que essa associação já não é tão forte, uma vez que a tatuagem parece estar fazendo parte da estética corporal dominante na sociedade carioca. Observe-se, neste sentido, que a tatuagem já é explicitamente tratada como uma forma de embelezamento do corpo no outro slogan. Por que o slogan está em inglês? É necessário indicar que este antigo estúdio, hoje de portas fechadas, vendido a outro tatuador e reformado dando origem a um novo estúdio que foi pesquisado e analisado neste trabalho, localizava-se entre Copacabana e Ipanema, região bastante valorizada da cidade, contando com uma população de alto poder aquisitivo. Uma população que possivelmente dava origem a um público capaz de entender a língua inglesa. Ao mesmo tempo, utilizar o inglês torna-se uma forma de distinção de

72 classe, provavelmente trazendo um público selecionado de classes superiores e médias altas. 8. Ser proprietário de um estúdio, ser tatuador, ser recepcionista Nem todo estúdio de tatuagem, conforme a visita a diferentes estúdios demonstrou, apresenta estes três elementos: proprietário, tatuador e recepcionista. Alguns estúdios não contratam recepcionistas. Quando estes existem são, em geral, mulheres. O proprietário do estúdio é, normalmente, um tatuador. Ele pode convidar outro profissional a trabalhar em seu estúdio ou atuar sozinho. Estas disposições variam de estúdio para estúdio revelando, na verdade, o tipo de organização aplicado. As diferentes posições no processo organizativo mostram, por outro lado, distintos papéis e funções. Há um padrão nos estúdios de tatuagem em que a casa fica com metade do valor do trabalho executado e o tatuador com a outra metade. Os tatuadores que chamo de “contratados” não apresentam, de fato, vínculo empregatício formal, mas trabalham por esta forma de comissionamento. Assim, não recebem direitos trabalhistas como 13o salário nem têm direito a férias. Na qualidade de autônomo, espécie de profissional liberal, o tatuador só ganha o que produz. Ser um proprietário de estúdio e contratar outros profissionais, então, passa a ser uma forma de aumentar o ganho pessoal. Mas, se não houver clientes suficientes, a loja se torna custosa e não consegue arcar com os próprios gastos. Como a maioria dos comerciantes, não vêem feriados longos com bons olhos, pois são dias de trabalho a menos e, conseqüentemente, de menor ganho. Dentro desta autonomia do tatuador, há situações difíceis. Uma doença que impeça o trabalho faz com que a renda caia, pois sem trabalho não há ganho. Preocupado com isto, o proprietário do estúdio de Copacabana confidenciou, em certa ocasião, que deixara de lado atividades que poderiam lhe trazer uma incapacidade física para o trabalho, como andar de motocicleta. Trocou a motocicleta por um carro e fez um seguro de invalidez porque “se eu quebrar o braço, faço o quê? Fico sem comer? Se eu perder os movimentos do braço direito, não como mais?”. Também passou a contribuir para uma previdência privada.

73 8.1. Tijuca Os tatuadores não são empregados do estúdio pesquisado, mas comissionados. O comissionamento atinge, também, o recepcionista. Além de ser uma espécie de gerente do estúdio, ele é a linha de frente da venda de tatuagens. O tipo de remuneração dos tatuadores faz com que tenham que atuar como vendedores de seus serviços, convencendo os clientes a se tatuar, de preferência na hora, ou a agendar o serviço. O agendamento é uma forma de prender o cliente que não quer ou não pode se tatuar no momento em que vai ao estúdio, garantindo o trabalho futuro. Ao pagar o adiantamento, o cliente fica preso ao compromisso, caso contrário o dinheiro é perdido. Foi o recepcionista quem me esclareceu a organização dos comissionamentos: ele próprio tem direito, além de um salário fixo, a 5% do valor da tatuagem. O restante é dividido meio a meio entre o tatuador e o proprietário do estúdio. Ao proprietário cabe a compra de material para higiene e assepsia, como filme plástico e papel-toalha, embalagens para agulhas esterilizadas e as tintas utilizadas, normalmente importadas. Aos tatuadores cabe a confecção das agulhas, de diferentes tamanhos e espessuras, e a aquisição de parte do material descartável, como luvas e máscaras. Certa vez, observei um dos tatuadores tirar dúvidas de uma cliente na recepção do estúdio. A moça queria tatuar uma Betty Boop, personagem de desenhos, e procurava uma nos álbuns do estúdio. Encontrando o que queria, conversou com o tatuador sobre o local a ser tatuado e o tamanho ideal para o desenho. Queria uma tatuagem menor, mas o profissional orientava sobre a proporção do desenho, já que a personagem é caracterizada por uma cabeça enorme e um corpo esguio. Contudo, o tatuador disse que poderia fazer as modificações necessárias para que o desenho agradasse à cliente. Ela, insegura, decidiu procurar por conta própria mais desenhos da personagem e, então, retornar ao estúdio. Quando saiu, o tatuador comentou comigo, em tom de frustração: “gastei minha saliva a toa”. Este episódio resume a preocupação dos tatuadores em vender seus serviços. Perder um cliente é, muitas vezes, perder R$100 ou mais. Dependendo da época do ano, pois há uma variação sazonal na busca por tatuagens, a perda de um cliente pode ser a perda do ganho do dia. Em função do tipo de comissionamento e da variação da demanda pelos serviços, o ganho dos tatuadores é flutuante, aumentando e diminuindo ao longo do ano.

74 O preço da tatuagem é dado pelo tatuador e eventualmente barganhado. No estúdio pesquisado, observei ser comum um tatuador perguntar a outro qual preço cobraria pelo desenho. Os desenhos não são tabelados e seu preço pode variar em função do local a ser tatuado, pois há regiões do corpo mais difíceis de tatuar, como a costela onde a elasticidade da pele pode levar a um erro no desenho. Os preços variam, ainda, em função das cores, do tamanho e da técnica utilizada. Se o pagamento é feito à vista, em dinheiro, o cliente recebe um desconto de 10%. Os pagamentos podem ser efetuados também em cheque ou cartão de débito ou crédito. Eventualmente, o cliente consegue barganhar com o tatuador e negociar um preço ou forma de pagamento mais conveniente. Em época de escassez de clientes, a barganha se torna mais fácil. Uma tarde no estúdio observei tatuadora e cliente negociando o trabalho. O rapaz estava querendo um cover-up32, tatuagem nem sempre fácil de ser executada. Decidiu-se por uma índia norte-americana, com cocar de penas longas. “Vai tatuar hoje?”, a tatuadora perguntou. “Não, não é assim não... tem que ter uma preparação psicológica. E a gente tem que conversar preço”, respondeu o cliente. O trabalho foi orçado entre R$600 e R$700, sem um valor exato. O rapaz achou absurdo. “Mas esse trabalho é difícil, por isso é caro mesmo”, dizia a tatuadora, enquanto os outros profissionais da casa concordavam. “Você pode fazer em duas sessões e pagar em duas vezes”, sugeriu. “Ah... já está melhorando... mas não precisa duas sessões, né?”, disse ele. “Não...”, ela respondeu, “...vou fazer por R$600 e, se você pagar à vista, tem desconto”. Ela abaixou o preço para R$500, dizendo: “com 10% [de desconto] seria R$540, então faço R$500”. O rapaz resolveu marcar a sessão. Quando os dois saíram, a tatuadora parecia feliz e comentava que havia conseguido R$500. O preço mínimo de uma tatuagem varia de estúdio para estúdio e é raramente inferior a R$60, sendo normalmente superior. Levantamento efetuado nas fichas de cadastro dos clientes do mês de setembro de 200333 indicou uma concentração de trabalhos entre R$90 e R$330, da seguinte forma: 65 trabalhos entre R$90 e R$150, 34 entre R$160 e R$220, e 33 entre R$220 e R$300, em um total de 159 respostas em 162 fichas. Trabalhos de R$80, preço mínimo da tatuagem no estúdio pesquisado, somaram 13 clientes e, acima 32

Tatuagem que cobre um desenho anterior. Entre os meses selecionados para o levantamento, setembro era o único em que constavam os valores pagos pelos clientes.

33

75 de R$330, 14 clientes. Muitas vezes este valor é parcelado no cartão de crédito ou ao longo de duas ou três sessões. Há um equilíbrio entre as faixas de valores: o preço mínimo e a faixa de valores mais altos apresentam praticamente a mesma quantidade de clientes, assim como a faixa de R$90 a R$150 apresenta praticamente a mesma quantidade de clientes que as duas sucessivas somadas, de R$160 a R$300. Gráfico n. 1 – Faixas de preço de gastos, em números absolutos, referentes ao mês de setembro de 2003 no estúdio pesquisado na Tijuca .

acima de R$330 R$221 a R$330 R$160 a R$220 R$90 a R$150 R$80 0

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Embora o proprietário do estúdio seja também um tatuador, raramente ele atende aos clientes. Há aqueles que querem ser tatuados apenas por ele, que chegam ao estúdio por indicação de amigos e conhecidos, mas nem todos conseguem. Apenas clientes mais antigos são atendidos por ele. Um dos motivos desta ausência é que o proprietário é, antes de tudo, um empresário. Sua função no estúdio é administrativa. Embora esteja sempre presente, raramente atende aos clientes. Resolve questões relativas ao contrato de propaganda com a rádio, fala com o gerente do banco quando é necessário, toma decisões relacionadas a obras, lida com um contador e um advogado, orienta o recepcionista no pagamento aos tatuadores e na aquisição de materiais para tatuar, entre outros.

76 Devo observar aqui uma distinção entre gerência e administração, segundo utilizo os termos: o recepcionista do estúdio é, também, uma espécie de gerente, enquanto o proprietário é um administrador. O recepcionista orienta os clientes quanto à técnica de tatuar, os melhores locais do corpo para certos desenhos, a possibilidade de mudanças nos desenhos, o preço dos mesmos, a duração da operação e os cuidados com a tatuagem, e marca os horários para aqueles que querem agendar o serviço de um tatuador. Além disso, ele gerencia o estoque de material, repassando ao proprietário as necessidades indicadas pelos tatuadores. É o recepcionista, ainda, quem recebe e repassa os pagamentos relativos aos trabalhos executados. O estúdio conta, também, com o serviço de um office boy, que sob orientação do proprietário e do recepcionista efetua pagamentos e eventualmente compra materiais necessários. O proprietário do estúdio aparece, então, como um empresário do ramo, administrando dois estúdios de tatuagem e uma loja de piercing, onde trabalhavam sua esposa e sua cunhada. É ele quem decide sobre a expansão do estúdio, preços, formas de pagamento, bem como atendimento a menores de idade. Em nenhum momento, contudo, eu o vi supervisionar o trabalho dos tatuadores. Pelo contrário, os profissionais têm liberdade para atuar, embora estejam submetidos às regras de funcionamento do estúdio, referentes, sobretudo, a formas de pagamento, horário de funcionamento, cuidado com a manutenção do espaço físico, higiene do material, entre outros. Os tatuadores são menos empregados do que amigos do proprietário. Por isso, na obra de expansão da loja da Tijuca, ele teve o cuidado de mandar construir um espaço de espera e descanso para os tatuadores, com um sofá, televisor e aparelhos de videocassete e DVD. Este não é o seu primeiro estúdio. Antes de comprá-lo, foi proprietário de um outro em Ramos34, bairro da Zona Norte carioca. Alguns tatuadores que trabalharam com ele em Ramos foram convidados a trabalhar na Tijuca. O sonho de muitos profissionais da área é ter seu próprio estúdio, conforme aponta Costa (2004). Ter um estúdio é uma maneira de ter renome. É por isso que muitos estúdios levam o nome de tatuadores. Um dos profissionais da casa saiu, durante a pesquisa, para abrir seu próprio estúdio, em uma outra 34

Em conversas com o proprietário do estúdio e outros tatuadores fui informada de que o estúdio pesquisado era de propriedade de dois irmãos, ambos tatuadores, cujo gerenciamento do negócio era precário: não sabiam administrar as contas, deixavam clientes esperando e abriam a loja quando queriam, sem ter horário fixo e uma rotina pré-estabelecida. Durante três anos o atual proprietário sanou problemas financeiros, até tornar-se dono da loja.

77 galeria comercial, vários quarteirões de distância, mas ainda no mesmo bairro, numa região já com um outro estúdio de tatuagem. O proprietário não parece ter se aborrecido, mas ficado contente com a ascensão profissional do amigo. Ser proprietário de um estúdio é, portanto, parte do imaginário e das aspirações de muitos tatuadores. O que torna distinta a posição do proprietário do estúdio pesquisado é que, ao expandir os negócios, ele se tornou muito mais um administrador do que um tatuador. São outros os profissionais que fazem nome em seu estúdio, ao mesmo tempo em que a qualidade desses profissionais dá renome ao estúdio. Neste sentido, há uma troca constante. Os tatuadores consideram sua técnica, na maior parte das vezes, como uma arte: a arte de desenhar sobre a pele. O domínio da arte de desenhar é, no universo dos tatuadores, um valor positivo, invejado e almejado. Aparentemente uma contradição, nem todo tatuador é bom desenhista. Desenhistas normalmente criam novos desenhos em papel, que são vendidos a outros tatuadores e estúdios, ou sobre a pele diretamente. O tatuador profissional considera-se um artista. O termo profissional, aqui empregado, deve ser compreendido não apenas no sentido da profissão de tatuar, mas, sobretudo, no sentido da qualidade da obra tatuada. O profissional é um bom tatuador, como observa Costa (2004). Em oposição a ele, estaria o tatuador de cadeia, considerado uma espécie de amador, cuja obra não tem valor artístico. De cadeia é um termo utilizado no universo da tatuagem com o sentido de obra mal realizada, sem técnica, de baixa qualidade, amadora, como demonstra Leitão (2003). As tatuagens realizadas ainda hoje nas prisões, sem tintas ou material adequados, com agulhas ou máquinas improvisadas, não têm valor artístico para eles. Falta-lhes uma técnica, que o tatuador aprende e domina ao longo da carreira, tornando-se conhecido por sua experiência e bons resultados. 8.2. Copacabana A organização deste estúdio é diferente do anterior. Existem apenas dois tatuadores trabalhando: o proprietário, que atende à maior parte da clientela, e o segundo tatuador (COSTA, 2004), que atende prioritariamente àquela parte da clientela que não é formada pelos amigos do proprietário, que são tatuados exclusivamente por ele. Esta divisão entre

78 amigos e não-amigos orienta boa parte dos procedimentos do estúdio. Como o estúdio trabalha principalmente com o sistema de hora marcada, pede-se aos clientes novos que paguem um adiantamento de R$50,00 pela reserva do horário. Aos amigos, contudo, não se faz tal pedido. De fato, os amigos-clientes não costumam faltar às sessões de tatuagem e estão sempre em contato com o estúdio, por telefone ou pessoalmente, para confirmar horários e desmarcar sessões caso haja necessidade. O estúdio, por sua vez, se torna mais flexível, desmarcando sessões quando necessário pois se trata de um negócio entre amigos, em que boa parte da clientela é conhecida entre si. Normalmente as sessões são marcadas com uma semana de antecedência, segundo a disponibilidade de agenda do proprietário. O segundo tatuador, atendendo a clientes novos, tem poucos agendados. Fica, portanto, restrito àqueles que vão ao estúdio sem uma indicação precisa de qual dos dois profissionais requisitar. Dificilmente ele recebe clientes indicados por outros clientes ou profissionais, como ocorre com o proprietário. O “boca-a-boca”, tão fundamental no universo da tatuagem, não funciona para o segundo tatuador. Para ele, a clientela vem do fato de estar trabalhando em estúdio, ao invés de em sua residência ou sem local fixo. Durante a observação de campo, notei que o segundo tatuador passa muito mais tempo ocioso do que ocupado e tem mais tempo ocioso do que o proprietário. No sábado, contudo, o segundo tatuador trabalha sozinho. Segundo o proprietário do estúdio de Copacabana, costumava trabalhar no sábado, abrindo o estúdio ao meio-dia, como durante a semana. Os clientes, porém, só apareciam após as 17 horas, vindos diretamente da praia, o que o levava a fechar a loja tarde da noite, depois das 22 horas. Cansado, desistiu de trabalhar aos sábados. Sábado é, no estúdio pesquisado na Tijuca (e, segundo o proprietário, também em sua filial na Barra da Tijuca, na Zona Oeste), o dia mais lucrativo. É tão movimentado, que me pediu que jamais fosse pesquisar aos sábados, pois eu seria um transtorno, dada a quantidade de clientes. Como todo profissional da área, o segundo tatuador deseja ter seu próprio estúdio. Certa vez, contou-me que desejava abrir um em Vila Isabel, onde eu residia na época, na Zona Norte carioca. Bairro com forte comércio de rua e desprovido de estúdios, parecia-lhe um bom empreendimento. Permanecia na Zona Sul, contudo, pois queria ganhar mais experiência e renome. Conforme apontei anteriormente, o atual proprietário deste estúdio

79 fora segundo tatuador até conseguir o ponto comercial para si. Trabalhando no mesmo local, ele manteve a mesma clientela do estúdio anterior. Ao contrário do proprietário do estúdio da Tijuca, portanto, este não é um administrador, mas um profissional atendendo a uma clientela formada em anos de trabalho. Como a maior parte dos clientes é formada por amigos do proprietário, não existe uma atitude de “venda” de tatuagens, pois isto não é necessário para garantir o ganho mensal. O segundo tatuador recebe 50% do preço de uma sessão e a recepcionista não é comissionada. O proprietário, contudo, disse-me que também recebe apenas 50%, separando o que considera “o dinheiro da loja” para os custos de manutenção desta. Como o proprietário tem mais clientes do que o segundo tatuador, seus ganhos são maiores. O proprietário deste estúdio costuma passar vários meses do ano viajando. É convidado para trabalhar no Caribe, onde conhece tatuadores. Disse várias vezes que ganha mais trabalhando fora do país. Embora seja, para ele, um prazer sair da cidade por alguns meses, encara o trabalho no exterior também como uma necessidade, pois disse que teve que enviar dinheiro de fora para arcar com o custo de funcionamento do estúdio. A recepcionista, sua namorada, viaja com ele. Enquanto está fora, o segundo tatuador trabalha sozinho. Os clientes-amigos do proprietário não procuram os serviços do segundo tatuador, mas esperam até que retorne de viagem. O preço mínimo da tatuagem é R$100,00. Ao contrário do que observei na Tijuca, a barganha por um preço menor não é comum. Os clientes-amigos muitas vezes não perguntam o preço da tatuagem. Muitos chegam ao estúdio sem sequer ter escolhido o desenho e mesmo sem nenhum preferência. Muitas vezes o desenho é elaborado na hora e tatuado antes que se discuta o preço. Neste sentido, estar na Zona Sul, área mais rica da cidade, faz diferença. Ao longo da observação, verifiquei que a maior parte dos trabalhos executados nos amigos-clientes é considerada de tamanho grande, o que significa dizer que são também caros. Quando há mais de uma sessão, cada uma custa em média R$300,00. Muitas vezes são realizadas duas ou três sessões por mês no mesmo cliente. Mesmo desenhos considerados menores saem por R$300,00, e os considerados médios custam de R$500 a R$600.

80 Comparando-se os valores observados entre os clientes dos dois estúdios, gasta-se mais em uma tatuagem em Copacabana do que na Tijuca, por indivíduo. Contudo, o estúdio da Tijuca apresenta uma clientela maior, embora não seja uma clientela fixa. As variações sazonais são relevantes no fluxo de clientes e, conseqüentemente, de dinheiro nos estúdios. O trabalho na recepção também difere daquele observado na Tijuca. A recepcionista é a namorada do proprietário. Atriz interessada em produção de filmes, conjuga o trabalho no estúdio com cursos de sua área profissional. Ser recepcionista neste ambiente familiar proporciona a ela uma flexibilidade ímpar: vai ao salão de beleza durante o expediente e duas vezes por semana sai mais cedo para seu curso. Difere, também, na aparência: ao contrário de recepcionistas extensamente tatuados, conforme observei em outros estúdios, apresenta apenas uma tatuagem, em função do desejo de atuar nos palcos. Recebendo um salário fixo, sem comissões, ela não atua como uma vendedora. Ao contrário, todas as explicações mais técnicas sobre o processo da tatuagem, a possibilidade de tatuar determinados desenhos, as regiões do corpo mais indicadas são dados diretamente pelo tatuador. Seu trabalho limita-se ao gerenciamento da agenda e ao recebimento do pagamento dos clientes. Quando o cliente é novo, ela pede que preencha uma ficha de cadastro, mas clientes-amigos não costumam passar pelo procedimento. Se há necessidade de compra de algum material, ela também providencia por telefone, requisitando entrega direta na loja. Na convivência com o namorado tatuador, a recepcionista aprendeu a tatuar. Quando o namorado requisita, ela faz o estêncil das tatuagens, isto é, passa o desenho para uma forma de decalque, mas esta não costuma ser tarefa sua. Embora tenha aprendido o ofício, o que permite que dê sugestões nos desenhos que o proprietário cria para seus clientes, disse-me que não deseja exercer a profissão. Muitas vezes, a recepção fica a cargo do piercer, que passa a maior parte do tempo ocioso. A procura por piercings é baixa. Novos furos são raros e a maior parte dos interessados entra na loja em busca apenas das jóias. Não sendo efetivamente um recepcionista nem tampouco um vendedor, o atendimento que presta aos clientes é mínimo, limitando-se a buscar figuras no computador e encaminhar o mais rápido possível o cliente ao tatuador, para que este forneça as informações desejadas.

81 Há, ainda, uma profissional de esterilização. Formada em instrumentação cirúrgica, contou-me que já trabalhou em um necrotério e tinha vontade de trabalhar no Instituto Médico-Legal, porque “perder paciente na mesa de cirurgia é muito triste. No necrotério já estão mortos, a gente não passa por isso”. Antes trabalhando todos os dias, seu expediente foi reduzido pela metade por que, segundo me disse o piercer, “ficava muito tempo ociosa”. De fato, passava a maior parte do tempo nas cadeiras do corredor conversando com funcionários de outras lojas. Seu trabalho se limita à esterilização das agulhas e dos bicos da máquina de tatuar e à limpeza da sala de tatuar após uma sessão. Esta limpeza consiste em retirar o material descartável utilizado, limpar as mesas de apoio com álcool, limpar o chão com produtos desinfetantes e cobrir as cadeiras com material descartável. Também costuma preparar o ambiente antes de uma nova sessão, dispondo papel-toalha em profusão à mão do tatuador. Quando não está presente, os tatuadores têm de efetuar estas funções sozinhos. Diferente do estúdio da Tijuca, aqui o material descartável é todo comprado pela loja. Não há material pessoal, apenas a máquina de tatuar e seus componentes. 9. Tatuagem como arte: profissionais e amadores Sobre a idéia da tatuagem como arte e do tatuador como um artista, gostaria de fazer uma comparação. Price (2002), estudando a percepção ocidental sobre a arte primitiva, indica que esta é uma classificação que envolve certos critérios, entre eles, a falta de um autor. Em outras palavras, a arte primitiva não é “assinada” por um artista, mas é vista como a arte de um povo, de uma cultura. A tatuagem ocidental era tratada da mesma forma até o século XIX: não havia nomes conhecidos de tatuadores, apenas a idéia genérica de tatuagem, quando alguns tatuadores, considerados de elevada técnica, fizeram não apenas seu nome, mas se tornaram uma espécie de mito, principalmente aqueles que tatuaram a nobreza européia da época, de onde advém este renome. Em contato com camadas superiores, eles ascenderam e o mundo da tatuagem ascendeu com eles. Fazer um nome, parece, portanto, também uma forma de assegurar que se é um artista da tatuagem. Algumas vezes ouvi clientes no estúdio sugerirem aos tatuadores que assinassem suas obras. Os tatuadores normalmente não aceitam tais sugestões, pois a

82 tatuagem é a reprodução ou a produção de um desenho sobre a pele, e apenas o desenho deve estar tatuado. Não funciona, de forma alguma, como uma pintura, em que o artista assina a obra. Os tatuadores constróem uma diferenciação interna ao grupo a partir desta noção de que são artistas. Costa (2004) observou o processo em estúdios de Florianópolis e Leitão (2003) em Porto Alegre. O tatuador de estúdio considera-se um profissional e um artista e se coloca em oposição ao amador, normalmente referido como “tatuador de cadeia”. A tatuagem de cadeia, uma das marcas da tatuagem no Ocidente, se tornou parte do imaginário sobre a tatuagem ocidental a partir do sucesso das teorias de Lombroso (2001) e sua antropometria criminal que tomava a tatuagem como característica de um homem menos evoluído, mais próximo à mentalidade primitiva. No universo contemporâneo da tatuagem, e ao que tudo indica em todo o país, o termo “de cadeia” não se refere às teorias lombrosianas, mas a uma percepção de tatuagem mal-feita. O ponto de comparação, portanto, entre o profissional e o amador é a qualidade do trabalho executado, o primeiro sendo considerado como um artista. O profissional é um bom tatuador e a idéia de arte na tatuagem se refere, sobretudo, à habilidade no desenho, conforme indica Costa (2004). Para Le Breton (2002),o tatuador é um artista do corpo alheio, cuja obra não é livre, mas está subordinada à demanda dos clientes, cujos gostos são variados. A aprendizagem da técnica de tatuar se faz, conforme Costa (2004) e Le Breton (2002) apontam, sob a égide do processo de aprendizagem, em que o aprendiz observa o tatuador mais experiente e constrói a partir daí o seu conhecimento. Neste sentido, minha presença nos estúdios pesquisados levava muitos clientes a me perguntarem se eu era uma aprendiz. Para o aprendizado da tatuagem, é necessária uma desenvoltura anterior na prática do desenho. Sem uma escola de formação, o tatuador se torna uma espécie de autodidata, contando apenas com a boa vontade de um colega para aprender a profissão. Formar um novo tatuador implica, conforme ambos os autores demonstram, formar um concorrente. Portanto, não é fácil encontrar quem queira aprendizes. Controlando a dinâmica de formação de novos profissionais, os tatuadores constroem um campo fechado, controlado, corporativista. Este corporativismo, no Rio de Janeiro, se tornou aparente quando da

83 publicação de uma Resolução Municipal regulamentando o funcionamento de estabelecimentos de tatuagem e piercing. Antes de apresentar a Resolução, gostaria de aprofundar a reflexão sobre a dicotomia profissional/amador, a partir de uma narrativa dos próprios tatuadores. Knud Harald Lykke Gregersen é considerado35 o primeiro tatuador e pioneiro da tatuagem no país (MARQUES, 1997). Dinamarquês, filho de tatuador, chegou à cidade de Santos/SP em 1959, e ficou conhecido como Lucky. Já havia trabalhado em grandes cidades européias e norte-americanas, tanto em terra firme quanto embarcado, seguindo a tradição naval da tatuagem, tendo sido ele próprio marinheiro. Segundo Marques (1997), abriu dois estúdios em duas localizações diferentes da cidade, o segundo em um bairro que o autor compara à Lapa carioca. Trabalhou em Santos por 18 anos, mudando-se para Itanhaém/SP, onde permaneceu por cinco anos, até chegar a Arraial do Cabo/RJ, onde permaneceu por um ano até falecer, aos 55 anos de idade, em 1983. Embora Do Rio (1997) descreva a indústria da tatuagem no Rio de Janeiro, Lucky é considerado o primeiro profissional do ramo. A origem da tatuagem no país é traçada a um ponto único, que é Lucky, ignorando-se qualquer referência outra. A identidade de profissional fica, desta forma, resguardada e é baseada em uma linhagem ancestral clara e definida, oriunda dos centros ocidentais da tatuagem (Europa e Estados Unidos) e muito mais próxima à realidade contemporânea, na medida em que Lucky tornou-se famoso tatuando um ícone da nova juventude surgida num país urbano em crescimento econômico: Petit, o “menino do Rio” que teve um dragão tatuado por ele em seu braço. Em outras cidades do Brasil, além de Santos, tatuadores também trabalhavam, mas aparentemente sem o equipamento e a experiência de Lucky, o que parece ser o critério utilizado para classificar profissionais e não-profissionais. Marques (1997, p.176) indica que o jornal O Globo considerou Lucky “o único tatuador profissional da América Latina”, em 1975. O universo dos tatuadores é competitivo. Acusar algum tatuador de não ser profissional é uma maneira de colocá-lo à margem. Marques (1997, p.219) afirma que

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Como exemplos pesquisados, cito http://www.neoarte.net/historia.htm, em 25/07/2002, http://www.terra.com.br/jovem/especiais/tatuagem/historia.htm, em 25/07/2002. A primeira

e é produzida por tatuadores, a segunda constitui matéria especial do provedor Terra, direcionada ao público jovem, assinada por NOYORI (2002).

84 “tatuadores mais ou menos bem-sucedidos se queixam da facilidade com que os novatos proliferam e agem clandestinamente, favorecidos pela disponibilidade de tudo quanto é tipo de equipamento. Dizem que bastará um clandestino fazer besteira, para destruir a imagem sadia de uma arte historicamente suspeita”. (MARQUES, 1997, p.219)

Muitos pontos poderiam ser analisados na passagem acima, mas gostaria de me concentrar na idéia de profissionalismo. O que o autor diz, em outras palavras, é que a “arte historicamente suspeita” se tornou “sadia” na medida em que os profissionais dominaram o campo. Seu domínio foi posto em xeque porque não há uma corporação que regulamente a ação de novatos, que podem tatuar uma vez munidos dos recursos técnicos necessários. Expulsar os amadores, deixar claro quem é “clandestino”, é uma forma de regulamentar o campo. A Resolução carioca trata exatamente disto, e será vista adiante. Quero indicar, ainda, que as categorias amador e profissional não se referem apenas à qualidade do trabalho executado. O profissional/artista não está em oposição ao amador/de cadeia apenas na qualidade da obra, mas sobretudo no domínio de um campo competitivo. Acusar um amador de colocar a imagem da tatuagem em risco de suspeita, por um trabalho mal-executado e mesmo sem a higiene devida, é uma forma de expulsar qualquer novato do campo ou, antes, de impedir o seu ingresso ou pertencimento. Utilizo a noção de campo, aqui, conforme a definição de Bourdieu e Wacquant (1992). Segundo eles, um campo pode ser visto como uma rede, uma configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas em suas existências e nas determinações que impõem a seus ocupantes – agentes ou instituições – pela situação atual ou potencial na estrutura de distribuição de diferentes espécies de poder (ou de capital), onde a sua posse comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo, e pelas relações objetivas com as outras posições. Assim, não é que os amadores não façam parte do campo, mas, antes, que estão relegados às posições dominadas, nas hierarquias inferiores. Eles fazem parte do campo como elementos que jamais ascenderão a patamares de maior renome e prestígio. Observando esta relação por outro viés teórico, amadores e profissionais constituem categorias de alteridade. Ser um profissional é não ser um amador, e vice-versa. Para a presente análise, é interessante observar o campo da tatuagem, ou dos tatuadores, como uma espécie de campo artístico. Para Bourdieu e Wacquant (1992), o

85 campo artístico é constituído na e pela recusa, ou inversão, da lei do ganho material. Por isso, eu sugeriria, tatuagens para concursos são, muitas vezes, realizadas de graça em “modelos” que as aceitam em troca da exposição da obra em convenções de tatuagens. São, normalmente, desenhos grandes, sobretudo painéis, cujo preço ultrapassa mil reais. A escassez de clientes dispostos a desembolsar tais quantias dificulta a exposição deste tipo de trabalho. No estúdio pesquisado na Tijuca, observei um caso desses, um rapaz que era tatuado de graça por um dos profissionais da casa para ser exposto na convenção de São Paulo, a principal do país. Nos concursos, o que se avalia é justamente a qualidade artística da tatuagem e, portanto, a qualidade artística do tatuador. A idéia de tatuagem como uma forma de arte engendra, ainda, conseqüências para as relações de gênero na profissão. Tenho indicado que se trata de uma profissão eminentemente masculina, um tipo de ocupação onde se encontram mais homens do que mulheres. Estas são mais visíveis nas recepções dos estúdios ou trabalhando como piercers. Na medida em que a tatuagem é um processo que pode ser visto como arte, enquanto desconheço debates sobre a prática do piercing como um processo artístico, aquela se torna uma ocupação (ser tatuador) mais valorizada do que esta (ser piercer). Assim, os piercers costumam trabalhar nos estúdios de tatuagens, e não em lojas dedicadas exclusivamente ao piercing, por se tratar de uma forma de modificação corporal menos valorizada e que, portanto, entende-se que não exista sozinha. Ser praticado em estúdios de tatuagem coloca o piercing em uma posição não apenas inferior, mais baixa, mas submetida. Com tantas características femininas (BOURDIEU, 2003), não é por acaso que tenha se tornado um terreno de mais fácil ingresso para mulheres. 10. A Resolução SMG “N” nº 690 de 30 de julho de 200436 Em 2 de agosto de 2004, a Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro tornou de conhecimento público Resolução sobre o funcionamento de estúdios de piercing e tatuagem. Embora a maior preocupação da Resolução seja quanto aos processos de esterilização nas duas práticas, o seu maior impacto foi restringir oficialmente a idade em

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Agradeço as considerações e esclarecimentos de ordem jurídica prestados por Christian Edward Cyril Lynch e Dax Moraes.

86 que se pode ser submetido a elas. Contudo, como menores entre 16 e 17 anos são considerados “relativamente incapazes”, enquanto abaixo de 16 são “absolutamente incapazes”, segundo o Código Civil, há a possibilidade de execução de ambas as técnicas nesta faixa etária. Como as regras focalizam questões relativas à higiene, sua fiscalização está sob responsabilidade da Vigilância Sanitária. Além de processos de esterilização e higienização que, até onde observei em campo, já são largamente utilizados pelos profissionais há alguns anos, os estúdios devem manter um cadastro de clientes – o que também já fazem – e um livro com registros de ocorrência de incidentes de saúde, como reações alérgicas. O profissional que atende ao cliente se torna o responsável técnico pela operação, podendo responder administrativamente por seus atos, o que se refere a punições como multas e perda de alvará para o estabelecimento onde atua, por exemplo. Todo cliente, ou responsável por menor de idade, em contrapartida, deve assinar um termo de responsabilidade, indicando que está ciente das dificuldades de remoção de cada prática bem como dos riscos de execução. Estes riscos, como se refere o texto da Resolução, devem estar igualmente sinalizados em local visível nos estabelecimentos. Tatuagens e piercings só podem, doravante, ser executados em locais de construção sólida e em ambientes individuais, o que torna proibida a sua execução ao ar livre. Neste caso, é interessante observar que se faz uma ruptura com o que antes era a prática da tatuagem no Brasil, marcada pelos amadores e pela falta de estrutura para tatuar, conforme aponta Costa (2004). Esta mudança é, segunda a autora, indício de preocupações com questões relativas à saúde, da parte dos próprios tatuadores, mas também um reflexo destas preocupações na própria sociedade. Ficou proibida, ainda, a administração de anestésicos por via intravenosa. Eu desconheço este procedimento na cidade do Rio de Janeiro, mas Costa (2004) menciona um anúncio publicado em revista sobre tatuagem em que um estúdio de São Paulo fazia utilização de anestésicos do gênero. No Rio de Janeiro, observei apenas a utilização de anestésicos tópicos, na qualidade de pomadas, e mesmo assim pouco recomendados pelos tatuadores. Proíbe-se, também, a tatuagem em áreas cartilaginosas do corpo, mas não o piercing.

87 A Resolução apresenta três “Considerandos”, ou seja, motivações para sua existência: a competência da direção municipal do Sistema Único de Saúde quanto à normatização complementar das ações de saúde; o Código de Proteção e Defesa do Consumidor, “que estabelece ser um dos direitos básicos do consumidor a proteção da saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de serviços” (RIO DE JANEIRO, 2004); e “que a execução dos procedimentos inerentes à prática de aplicação de piercing e tatuagem, expõe o usuário e o executor ao risco de contaminação pelos agentes infecciosos veiculados pelo sangue” (RIO DE JANEIRO, 2004). As motivações da Resolução são, portanto, de saúde pública, versando sobre as competências estatais para regulamentar procedimentos que envolvam riscos para a saúde. Ao mesmo tempo, apresenta-se a atividade como sendo um serviço prestado, determinando uma relação entre fornecedor e consumidor, por assim dizer, em que este deve ter seus direitos resguardados. Por último, estabelece-se que a prática envolve riscos à saúde, sob a forma de possíveis infecções. Ambos, tatuagem e piercing, são definidos como “práticas invasivas” e “procedimentos de embelezamento”. Outras formas de modificação corporal, como implantes subcutâneos, não são mencionadas. Durante a pesquisa de campo, no período anterior à Resolução citada, o dono do estúdio pesquisado na Tijuca disse em várias ocasiões que não se sentia à vontade para tatuar menores, a não ser que estes se apresentassem na companhia dos pais. O termo de responsabilidade para menores, segundo Costa (2004) também utilizado em Florianópolis, não havia no Rio de Janeiro até então. Os estúdios cariocas, de um modo geral, já limitavam, mesmo que de modo não sistemático, a tatuagem em menores. No estúdio pesquisado em Copacabana, os menores não são nem tatuados nem submetidos ao piercing, mesmo em companhia dos pais, como pude presenciar. Penso que, na verdade, esta Resolução torna oficiais procedimentos que os tatuadores já adotavam antes dela. Conforme reportagem de Magalhães (2004) para O Globo, o Sindicato dos Tatuadores assessorou a Prefeitura na formulação de tais normas, o que é provavelmente responsável pela adequação da maior parte dos estúdios a priori. Contudo, creio que a oficialização de tais procedimentos, com as punições cabíveis pelos órgãos estatais, é mais uma parte do processo de diferenciação observado no universo da tatuagem entre os profissionais e os amadores. Forma-se, a partir desta Resolução, um campo oficial da

88 prática da tatuagem e do piercing na cidade, que passa pela intervenção do Sindicato dos Tatuadores, que com isto ganha prestígio e se lança como intermediário e porta-voz dos profissionais da área, adensando a separação entre estes e os amadores, que são excluídos do campo de atuação. A Resolução cumpre, portanto, várias funções. Ao mesmo tempo em que torna o Estado uma instância efetivamente reguladora de questões de saúde relativas a estas duas práticas na cidade do Rio de Janeiro, torna instância reguladora igualmente o Sindicato dos Tatuadores. Associados na forma de um sindicato, fenômeno que não é visto em todo o Brasil37, os tatuadores cariocas estão operando uma forma de distinção em seu campo de atuação profissional e construindo uma instância reguladora própria, com legitimidade suficiente para ser consultora do próprio Estado. O Estado, na verdade, tornou oficiais práticas já adotadas pelos tatuadores profissionais, que agora contam com o aparato da Vigilância Sanitária para afastar de seu campo os amadores, ou seja, aqueles sem infraestrutura adequada para a execução do trabalho: sem autoclave, sem alvará, sem construção sólida, entre outras requisições. Isto não quer dizer que os tatuadores de estúdio estejam sendo privilegiados, pois os tatuadores e piercers que trabalham em suas próprias residências podem igualmente manter-se dentro das requisições e recomendações da Resolução municipal. A regulamentação da prática por instância governamental traz novas reflexões sobre a tatuagem. Primeiro, há uma preocupação da ordem de saúde pública, o que implica um certo discurso médico sobre a prática. Por outro lado, limita-se a idade a ser tatuado, o que por sua vez implica uma certa concepção sobre o bem-estar e a autonomia de crianças e adolescentes. Apresentarei, mais oportunamente, o discurso médico sobre a prática, visto que os estúdios de tatuagem são diretamente atingidos pelas regulamentações práticas quanto a profilaxias. A influência do discurso médico atinge as restrições quanto à faixa etária de submissão à prática da tatuagem. No capítulo seguinte, concernente ao público do estúdio, voltarei à questão do uso de tatuagens entre adolescentes.

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COSTA (2004) se refere a uma Associação dos Tatuadores em Florianópolis, e não a um sindicato.

89 11. Conseqüências do novo cenário: expansão e retração dos negócios em um ambiente de concorrência Os estúdios pesquisados, embora se localizem espacialmente pela cidade entre as Zonas Norte e Sul, não foram “escolhidos” por esta característica, mas foram oportunidades abertas por amigos para que o trabalho de campo fosse realizado. Conquanto a comparação baseada nesta localização espacial pudesse ser feita, uma vez iniciado o trabalho de campo no segundo estúdio, aquele localizado em Copacabana, a comparação mais rica pareceu ser aquela quanto às distintas formas de organização do estúdio, compreendido como empreendimento comercial. Estas distintas formas de organização estão relacionadas ao momento de expansão da prática da tatuagem na cidade do Rio de Janeiro. Com o aumento do público, novos estúdios abriram suas portas e estúdios tradicionais, de renome, abriram filiais. Este se tornou, então, um comércio permeado pela concorrência, que era muito menor antes desta expansão e deste crescimento de público em busca dos serviços de tatuagem e piercing. A abertura de filiais não apenas é uma resposta ao aumento do público como também consolida o nome de estúdios tradicionais, que passam a atuar e serem conhecidos fora das fronteiras dos bairros onde originalmente atuavam. Assim, o próprio tatuador proprietário, cujo renome é bastante forte para garantir uma determinada clientela, aumenta sua fama, garantindo com isto maiores lucros. É importante lembrar que o estúdio sempre ganhava cerca de 50% do valor de uma tatuagem executada, logo, quanto mais profissionais atuando, maior será o lucro. Observei, neste capítulo, que os estúdios pesquisados, além de apresentarem uma distinção quanto à sua organização administrativa, apresentam também uma distinção quanto ao seu público. O estúdio pesquisado em Copacabana, pela sua própria localização na área turística da cidade, recebe um constante fluxo de turistas estrangeiros, o que não ocorre na Tijuca. Por outro lado, seu público majoritário é formado por amigos do proprietário. Isto ocorre porque há 12 anos o profissional atende no mesmo ponto comercial, antes como segundo tatuador e depois, comprando o estúdio onde trabalhava, como proprietário. Trabalhando quase metade do ano no exterior, sua presença na cidade concentra os clientes fiéis, já considerados amigos.

90 Na Tijuca, a profusão de profissionais na casa não permite a freqüência exclusiva de amigos. O sucesso e o crescimento do negócio – o estúdio abriu loja específica para piercing na Tijuca e filial na Barra da Tijuca – tornaram o proprietário um administrador, que gerencia as lojas, faz propaganda dos estúdios e raramente tatua. A própria organização dos dois estúdios pesquisados, neste sentido, mostrou-se distinta: o estúdio de Copacabana apresenta uma característica mais familiar, enquanto o da Tijuca assemelha-se mais a um modelo burocrático (WEBER, 1971). Essa diferenciação na organização administrativa dos estúdios é reflexo do crescimento na clientela de tatuagens na cidade. A expansão para outros bairros do que ainda é um negócio estritamente regionalizado, que atende fundamentalmente a um público do bairro, demonstra este crescimento. Embora o estúdio pesquisado em Copacabana sofresse quedas de receita, sanadas pela freqüência de turistas estrangeiros ou pela remessa de dinheiro pelo proprietário quando trabalhando no exterior, creio que isto se deve menos a uma retração da clientela de Copacabana, que como visto gasta em média mais do que aquela observada na Tijuca, do que a uma administração que não tem tido sucesso em aumentar a clientela. Em outras palavras, se o proprietário do estúdio de Copacabana sente necessidade de trabalhar fora do país para recuperar um lucro que não tem aqui, isto se deve menos à retração de uma clientela para as tatuagens na cidade do que ao gerenciamento de seu próprio negócio. Na medida em que ele atrela sua clientela a uma relação de amizade, faz com que o estúdio seja mais freqüentado quando está presente, o que produz seu esvaziamento quando está ausente, levando a uma queda de receita. Trata-se, portanto, de uma forma de gerenciamento que não está permitindo a sobrevivência do estúdio em um cenário novo para este negócio na cidade, um cenário de expansão e concorrência. Estar na Zona Sul ou na Zona Norte carioca não é o fator principal da resposta dada por cada estúdio para o novo cenário de concorrência. Parece, antes, haver um ethos diferente de administração, uma opção efetuada pelo proprietário por quem será o público e qual será a estratégia para alcançá-lo. É a conjugação destes dois fatores que parece influenciar o sucesso ou fracasso do estúdio como empreendimento, em termos de lucratividade, medido aqui na abertura de filiais e, conseqüentemente, aumento no número de tatuadores trabalhando no estúdio.

91 No estúdio pesquisado em Copacabana, ao mesmo tempo em que os amigos são a clientela majoritária, sua presença está concentrada nos períodos do ano em que o proprietário está no país. Estes clientes-amigos dão ao estúdio um ethos relacional, de empreendimento familiar executado entre pessoas conhecidas. Na Tijuca, ao contrário, a impessoalidade e a grande quantidade de profissionais deram ao proprietário um ethos de administrador, quase burocratizado, o que se mostrou estratégia mais exitosa de sobreviver à concorrência.

92 CAPÍTULO IV - O PERFIL DO PÚBLICO

“Quem pinta o corpo é índio.” Pai de cliente do estúdio pesquisado em Copacabana

Há um imaginário ocidental sobre a tatuagem que se remete ao período em que apenas adornava os corpos de criminosos, marginais, prostitutas e marinheiros. Neste imaginário, a tatuagem era um elemento de subculturas fundamentalmente masculinas, como a de presidiários e marinheiros. Hoje, como alguns estudos vêm demonstrando (LEITÃO, 2002; FONSECA, 2003), o público da tatuagem é majoritariamente feminino. Além da transformação nas camadas ocupacionais, a prática da tatuagem apresenta uma transformação em seu público em termos de gênero. Dentro das transformações do público da tatuagem ocidental desde o período em que estava reservada àqueles grupos socialmente marginalizados, surgiu um novo imaginário que associou a prática a tribos urbanas e determinados grupos jovens. Quando Petit, o “Menino do Rio” que Caetano Veloso cantou em versos, fez sua aparição na Praia de Ipanema com o célebre “dragão tatuado no braço”, ele não era o primeiro de sua geração a associar surf e juventude ao uso de tatuagens (MARQUES, 1997). Contudo, foi um pioneiro e serviu de ícone na difusão da prática tanto entre jovens quanto entre as camadas médias cariocas. A partir de Petit, construiu-se um imaginário ligando a tatuagem à juventude no país. Além dos surfistas, outras “tribos urbanas”, como os punks do ABC paulista, faziam uso da marca (MARQUES, 1997). A juventude se tornou, desta forma, uma das características do público da tatuagem. Em observação de campo nos dois estúdios de tatuagem na cidade do Rio de Janeiro, percebi que os grupos de cultura jovem, ou “tribos urbanas”, não formam a maioria da clientela. Em um dos estúdios pesquisados, próximo às praias de Copacabana e Ipanema, os surfistas são um grupo visível entre os clientes, mas não constituem o público majoritário. Por outro lado, o mesmo imaginário que associa a prática a estes grupos, normalmente a associa a um universo masculino e os próprios grupos jovens são pensados

93 como fundamentalmente masculinos. Em campo, identifiquei um público majoritariamente feminino, que não podia ser associado a nenhuma tribo urbana. Analisando fichas de cadastro de clientes de um dos estúdios pesquisado, localizado no bairro da Tijuca, observei que as mulheres formam a maioria da clientela. As fichas de cadastro do estúdio pesquisado na Tijuca apontaram, ainda, para faixas etárias outras que não aquelas consideradas “jovens”. Estes dados indicaram a necessidade de se repensar a tatuagem não mais como uma prática de juventude, mas como um processo de marcação corporal que tem atingido extratos populacionais que não estão relacionados às culturas jovens. Por outro lado, há ainda muitos jovens que buscam a tatuagem. Entre os casos observados em campo, os recém-completos 18 anos podem ser “comemorados” ou, melhor dizendo, marcados pela aquisição da tatuagem. Os 18 anos têm sido uma idade limite, na medida em que uma Resolução Municipal impediu a prática em menores de 16 anos, e entre os 16 e 17 anos apenas com termo de responsabilidade assinado pelo responsável. Ainda assim, os estúdios pesquisados implementaram regras próprias, ainda mais rígidas: naquele pesquisado em Copacabana, menores não são tatuados, enquanto no estúdio pesquisado na Tijuca o termo deve ser apresentado pelo próprio responsável. Esta situação indica uma tutela por parte da família que é vista por alguns como incômoda. Parece ser a necessidade de romper com este status de menoridade, não no sentido jurídico mas valorativo, que leva alguns a serem tatuados assim que os 18 anos chegam. A marca parece ser um indicativo de liberdade – aqui uma liberdade sobre o próprio corpo que se conjuga a uma liberdade por escolhas. Trata-se de processo análogo ao que se observou entre algumas mulheres de diferentes faixas etárias em que a resistência da família, sobretudo nas figuras do pai e do marido, teve que ser rompida com afirmações do tipo “esse corpo é meu”, indicando não apenas a necessidade de uma autonomia individual, mas a dificuldade de se adquirir esta autonomia. 1. Área de residência A partir das fichas de cadastro, foi possível determinar a região de residência dos clientes do estúdio pesquisado na Tijuca. 70% dos clientes é oriunda da própria Zona Norte.

94 A Tijuca, onde o estúdio está localizado, responde por 42.2% da clientela desta região, e forma entre 25% e 30% do público total do estúdio. Nenhum outro bairro da Zona Norte apresenta um contingente tão grande de clientes. Os outros bairros mais freqüentemente citados são: Grajaú (8.9%) e Vila Isabel (6.3%), bairros contíguos à Tijuca. Como a Zona Norte é uma região extensa que abrange diversos bairros, muitos deles apresentam apenas um cliente, o que representa menos de 1% do público. Gráfico n. 2 – Percentual dos bairros da Zona Norte onde mais freqüentemente residem os clientes do estúdio pesquisado.

45,00% 40,00% 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0,00%

Tijuca

Grajaú

Vila Isabel

A Zona Sul representa 12% a 15% do público mensal do estúdio. Botafogo (21%), Flamengo (17.5%) e Copacabana (14%) são os bairros mais citados, representando 52.5% da clientela residente na Zona Sul. A Zona Oeste representa 7% do público do estúdio, incluindo-se a Barra da Tijuca, onde o estúdio mantém uma filial. A região do Centro foi a que apresentou a maior variação entre os meses pesquisados. Em setembro de 2003, formava quase 7% dos clientes. Em dezembro de 2003, a percentagem caiu para 3%, embora em números absolutos a freqüência de residentes da área seja apenas ligeiramente menor (uma queda de 11 para 8 indivíduos). Em janeiro de 2004, apenas um cliente residente na região procurou o estúdio, o que representa 0.6% da clientela.

95 Gráfico n. 3 - Percentual dos bairros da Zona Sul onde mais freqüentemente residem os clientes do estúdio pesquisado

25% 20% 15% 10% 5% 0%

Botafogo

Flamengo

Copacabana

O estúdio recebe, ainda, clientes de outras cidades. Alguns são provenientes de outros estados, mas a maioria desse contingente é formada por residentes de municípios próximos ao Rio de Janeiro, como municípios da Baixada Fluminense, Niterói e sua região metropolitana. Estes clientes representam de 4% a 6% do público mensal. Foi observado um alto índice de residentes em Niterói e em Duque de Caxias, mas as variações de mês a mês são altas o que não permite concluir que a maior parte dos clientes oriundos de fora da cidade do Rio de Janeiro proceda destes municípios. Observa-se que o público do estúdio é formado preponderantemente pelos moradores do bairro onde está localizado e por outros moradores da Zona Norte. Há, portanto, um caráter de serviço de bairro. É interessante observar, neste sentido, que as fichas de cadastro apresentavam a indicação de amigos e parentes como a forma principal como os clientes tomaram conhecimento do estúdio, o que pode indicar uma rede de sociabilidade entre os clientes formada no próprio bairro e na Zona Norte de um modo geral.

96

Gráfico n. 4 – Maiores percentuais de clientes encontrados no estúdio pesquisado, segundo região de origem.

Outros Municípios Centro Zona Oeste Zona Sul Zona Norte 0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

No estúdio de Copacabana, as fichas não são constantemente atualizadas. Como a maioria da clientela é formada por amigos do proprietário, não se requisita que preencham ficha. Apenas os novos clientes passam pelo procedimento. O proprietário afirmou que todo trabalho executado deveria ser registrado em ficha, mesmo o dos clientes conhecidos. Segundo ele, “é que isso não virou um hábito ainda”. Como as fichas de cadastro deste estúdio não correspondem à realidade da clientela, restou apenas a observação para verificar onde residem os amigos-clientes. Verificou-se, então, fenômeno análogo ao do estúdio anterior, em que a clientela reside em bairros próximos ao estúdio. Este dado só foi alcançado devido à proximidade entre proprietário e clientes. Ao reencontrar amigos no estúdio, o tatuador freqüentemente pergunta se ainda moram no mesmo lugar, o que permitiu identificar o público como caracteristicamente da Zona Sul, à exceção dos turistas estrangeiros. Área turística por excelência, é compreensível que os turistas busquem este tipo de serviço na Zona Sul. A freqüência de turistas no estúdio é constante. No Carnaval e próximo a ele, conforme informou o piercer, a quantidade de turistas no estúdio aumenta, já que aumenta também na cidade. Os estrangeiros procuram tatuagens no Brasil porque são baratas em comparação com os preços praticados no exterior.

97

2. A predominância feminina Encontrei,

nos

estúdios

pesquisados,

um

público

da

tatuagem

que

é

majoritariamente feminino. O que antes era parte da cultura masculina parece ser hoje parte da cultura feminina de cuidado com o corpo. A tatuagem, conforme Leitão (2003) demonstra, é utilizada pelas mulheres como uma forma de embelezamento e cuidado de si, traduzido no cuidado com o corpo, com o sentido contemporâneo de embelezá-lo. Contudo, não creio que processos relacionados à beleza sejam a causa única do incremento das mulheres como público da tatuagem. Pelo contrário, creio que o processo encerra antes uma característica de posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002) que, a meu ver, se torna responsável pela preeminência feminina na clientela dos estúdios. Os homens, por outro lado, parecem conseguir na tatuagem um espaço de manifestação do ethos guerreiro. Na tabela abaixo, apresento o número de clientes cadastrados por mês e a indicação percentual de homens e mulheres a cada mês. Pelos percentuais, é possível observar um progressivo incremento do número de homens a cada mês, em uma variação que chega aos 15%. Embora a variação não seja pequena, creio que a amostra não é suficiente para se concluir que o número de homens que procuram a tatuagem vem aumentando nos últimos tempos. Para tal afirmação, seria necessária uma amostra maior. Tabela n. 1 – Mulheres e homens na clientela do estúdio pesquisado na Tijuca. MÊS/ANO

MULHERES

HOMENS

TOTAL

Setembro/2003

130 (80.2%)

32 (19.8%)

162 (100%)

Dezembro/2004

183 (70%)

79 (30%)

262 (100%)

Janeiro/2004

118 (65.5%)

62 (34.4%)

180 (100%)

Observe-se que as mulheres formam cerca de 70% dos clientes, número observado por outros tatuadores em outros estúdios, como Emerson, tatuador da Rocinha38, que afirmou ao site Beleza Pura39 que 70% de seus clientes são mulheres (LEAL, 2005).

38

Antiga “maior favela da América Latina”, hoje com status de bairro, encravada no morro entre os bairros da Gávea e São Conrado, Zona Sul carioca, áreas extremamente valorizadas da cidade. 39 Ligado ao site do projeto Viva Favela do Viva Rio, ONG carioca. O projeto privilegia as comunidades de favelas e assim o faz também o Beleza Pura, mas voltado ao universo da estética.

98 Gráfico n. 5 – Homens e mulheres, em números absolutos, no estúdio pesquisado na Tijuca.

jan/04 Mulheres

dez/03 set/03

Homens 0

20

40

60

80

100

120

140

160

180

200

Embora haja uma predominância feminina entre os clientes, a profissão de tatuador continua sendo preponderantemente masculina. Há poucas tatuadoras trabalhando na cidade. No estúdio pesquisado na Tijuca, havia uma única mulher tatuando em meio a 8 homens, embora apenas mulheres apliquem o piercing na filial dedicada a esta prática. Isto indica que embora o público seja feminino, a técnica ainda é dominada pelos homens. O domínio da técnica nas mãos masculinas representa o passado da prática, que estava vinculada sobretudo a grupos masculinos40. Pouco a pouco as mulheres têm se inserido na profissão, embora tenham se dirigido mais à atividade de piercer do que de tatuadora41. No estúdio de Copacabana, a observação indicou um quadro distinto. A maioria dos clientes-amigos do proprietário tatuador é formada por homens. A observação foi contrastada com a opinião do proprietário, que concordou. O segundo tatuador, contudo, informou que a sua clientela é formada preponderantemente por mulheres, acrescentando que “[é formada por] mulher, sapatão e viado. No Carnaval [de 2005] então... só sapatão e viado. Teve um dia que ficou cheio isso aqui”. Durante o período, o proprietário encontrava-se tatuando fora do país.

40

Ver Capítulo 1. MARQUES (1997) afirma que o primeiro estúdio profissional de tatuagem do Rio de Janeiro foi aberto em Ipanema por uma tatuadora, Ana Velho.

41

99

3. Pele: classificações de tatuadores e perfil do público A grande maioria do público da tatuagem é branca. Esta cor de pele permite o uso de qualquer tipo de traço e cor, como uma tela de pintura para o artista. Quanto mais escura a pele, maiores são as limitações no uso de cores. A pele negra não é propícia à tatuagem. As peles mulatas só permitem o uso de tinta negra. Para peles bronzeadas prefere-se a utilização de cores quentes, como vermelhos e laranjas. Desta forma, não é de se estranhar que o público seja majoritariamente branco. Quando utilizo a categoria “branco”, estou fazendo menção a características que, no Brasil, são associadas a este grupo. Os tatuadores, no entanto, parecem utilizar uma outra classificação para a cor da pele, que não envolve características raciais, mas apenas a cor. No início do trabalho de campo, enquanto realizava as observações a partir da sala de espera do estúdio da Tijuca, observando o ir-e-vir de clientes e curiosos em geral, pude presenciar a classificação de cor da pele elaborada pelos tatuadores em ação. Um casal foi ao estúdio querendo tatuar-se. Eram brancos, jovens, aparentando idade não muito superior aos vinte anos. Estavam bronzeados, apresentando a pele queimada e avermelhada pelo sol. Conversavam com o tatuador sobre o desenho desejado e o local do corpo escolhido para ser marcado. O rapaz perguntou ao tatuador se deveriam optar por uma tatuagem colorida ou apenas em preto, ao que o profissional lhe respondeu que “vocês não são brancos” e que nesse caso não era recomendável uma tatuagem colorida, pois as cores não “apareceriam”. “A pele morena não pega cor muito bem”, disse ao casal. O casal em questão era loiro e de cabelos lisos, longe do que o senso comum brasileiro considera como “moreno”. No universo da tatuagem não é a concepção racial que é utilizada, mas uma outra categoria definida exclusivamente pela cor da pele em função das possibilidades da própria prática de tatuar. Trata-se de classificar a cor de pele apenas pela cor visualmente percebida, independente das classificações raciais, de status ou de posição social. Em outra ocasião, quando passei a observar os clientes sendo tatuados, presenciei situação semelhante. Uma moça de 25 anos, cabelos alisados e olhos claros, foi ao estúdio acompanhada da mãe para fazer sua primeira tatuagem, um presente de aniversário que

100 conquistou junto à família. Tatuava um personagem de desenho animado, colorido em azul e branco, na região lombar. O tatuador, classificando-a como “morena”, sugeriu que não utilizasse o branco no desenho, pois a pele não seria capaz de absorver pigmento tão claro. No momento em que foi classificada como “morena”, a cliente respondeu ao tatuador que era branca e dizendo que apenas estava bronzeada de praia. Uma de suas principais preocupações ao ser tatuada era justamente a extensão do período em que teria de ficar afastada da praia e do sol. O sol é um dos grandes “inimigos” da tatuagem, pois queima não apenas a pele, mas os próprios pigmentos utilizados, alterando o tom e o brilho das cores. Para se tomar sol, é necessário cobrir a tatuagem com uma camada espessa de filtro solar. No estúdio pesquisado em Copacabana a classificação em ação é a mesma. Para peles negras, mais ou menos escuras, diz-se que são “morenas”, e informa-se que a utilização de cores não é ideal. Para aqueles bronzeados de praia, da mesma forma, sugerese pouca cor, ou tons mais escuros. 4. Perfil etário Embora se costume associar o uso da tatuagem à juventude, a pesquisa de campo na Tijuca apontou para um público que ultrapassa o que se costuma considerar como juventude, sem seguir aqui pelas discussões dos limites etários desta categoria. Segundo os tatuadores com quem conversei, a maior parte de seus clientes está dentro de uma faixa etária que vai dos 25 aos 45 anos. O levantamento efetuado no cadastro de clientes do estúdio pesquisado, referente aos meses de setembro e dezembro de 2003, demonstrou uma variação interessante quanto à faixa etária da clientela. Dezembro é considerado um mês de alto movimento. Os meses do verão, os que o antecedem e o mês de julho são considerados mais proveitosos financeiramente pelos tatuadores. O total do mês de setembro é de 159 respostas sobre idade em 162 fichas, enquanto o de dezembro é de 254 em um total de 262 fichas. O de janeiro é de 166 respostas em 180 fichas. A construção de faixas etárias é, até certo ponto, arbitrária. A busca por um critério que permitisse a organização de tais dados levou em consideração a preponderância numérica de casos em determinadas idades, que foram agrupadas. Entre os 16 e 17 anos é

101 possível ser tatuado com a apresentação de uma autorização dos responsáveis. A partir dos 18 anos, construí faixas que possibilitassem uma diferenciação numérica visível ao leitor quanto a que público é realmente majoritário, em que faixa etária. O que se torna mais relevante, ao meu ver, é saber em que medida a tatuagem é hoje um elemento da cultura jovem, esteja ela vinculada à idéia de tribos urbanas ou não, e em que medida ela tem sido buscada por sujeitos mais velhos. O contrário de juventude, aqui, não é velhice. Não se está trabalhando com categorias como adolescente versus adulto ou jovem versus velho. Desta forma, creio que os resultados finais podem ser agrupados em dois blocos: um que vai dos 16 aos 25 anos e outro que vai dos 26 em diante. Tabela n. 2 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Tijuca. MÊS /ANO FAIXA ETÁRIA 16-17

SETEMBRO/ 2003 4 (2.5%)

DEZEMBRO/ 2003 6 (2.4%)

JANEIRO/ 2004 1 (0.6%)

TOTAL

18-19

16 (10%)

10 (4%)

12 (7.2%)

38 (6.6%)

20-25

57 (35.8%)

78 (30.7%)

46 (27.7%)

181 (31.3%)

26-29

20 (12.6%)

49 (19.3%)

29 (17.5%)

98 (17%)

30-39

36 (22.6%)

87 (34.2%)

52 (31.3%)

175 (30.2%)

40-49

19 (12%)

17 (6.7%)

22 (13.2%)

58 (10%)

50-59

6 (3.8%)

4 (1.6%)

3 (1.8%)

13 (2.2%)

60 ou mais

1 (0.6%)

3 (1.2%)

-

4 (0.7%)

TOTAL

159 (100%)

254 (100%)

166 (100%)

579 (100%)

11 (2%)

Dos 16 aos 25 anos, tem-se um total de 230 casos (39.9%). Acima desta faixa, ou seja, dos 26 em diante, há um total de 349 casos (60.1%), conforme o Gráfico n. 7 acima. Se o cálculo fosse efetuado com um grupo de 16 aos 29 anos, este total se alteraria para 338 casos (56.9%), contra 250 casos (43.1%) a partir dos 30 anos, conforme o Gráfico n. 8 abaixo. A faixa entre 26 e 29 anos, portanto, é o diferencial para se definir se a tatuagem é hoje procurada por jovens ou não jovens. Fugindo à possível polêmica sobre o que é, afinal, a juventude, o que é ser jovem, pode-se observar no quadro acima que o público preponderante está entre os 20 e os 39 anos, com uma ligeira vantagem para as faixas entre 20 e 25 anos e entre 30 e 39 anos. Esta última faixa é, a meu ver, aquela que causa alguma

102 surpresa, pois os trinta anos não costumam ser considerados no escopo de possibilidade de definição do que seja juventude. Para outros, contudo, mais surpreendente pode ser a existência de casos de tatuagem em indivíduos acima dos 60 anos. Gráfico n. 6 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Tijuca, em números absolutos, nos meses pesquisados. 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

set/03 dez/03 jan/04

1617anos

18-19 anos

20-25 anos

26-29 anos

30-39 anos

40-49 anos

50-59 anos

60 ou mais

Gráfico n. 7 - Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Tijuca, nos meses citados, agrupados em duas faixas etárias, com corte aos 25 anos.

26 anos e acima 16-25 anos 0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

70,00%

103 Gráfico n. 8 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Tijuca, nos meses citados, agrupados em duas faixas etárias, com corte aos 29 anos.

30 anos e acima 16-29 anos 0,00%

10,00%

20,00%

30,00%

40,00%

50,00%

60,00%

Em seu estudo sobre as práticas da tatuagem na França, Le Breton (2002, p.137-8) observou entre seus entrevistados uma percepção de que a juventude terminaria em torno dos 30 anos. “’Como estou me aproximando dos 30, tenho a tendência a me sentir um pouco mal porque eu me digo que não é mais a minha geração. É um pouco como ver uma senhora de salto agulha.’ (Maryse, 27 anos, estudante) ‘Eu escolhi uma tatuagem discreta na parte de baixo das costas porque a pele não pára de envelhecer e eu poderei escondê-la mais tarde, quando eu tiver filhos.’ (vendedora, 22 anos)”42

Com relação ao público dos estúdios pesquisados, não observei a mesma percepção. É certo que, como o autor aponta, a preocupação com a velhice se expressa também no Rio de Janeiro mais entre as mulheres do que entre os homens, mas se trata aqui de uma velhice avançada, percebida esteticamente (a pele flácida) e não em termos de compromissos sociais (ter filhos), como na França. A tatuagem é vista, entre o público observado, como estranha para um corpo enrugado e flácido, e não para uma pessoa idosa. A juventude, portanto, é pensada na França como um momento de menos compromissos sociais, enquanto no Brasil ela é percebida com um aguçado senso estético, em função do viço da pele e da beleza do corpo.

42

“’Comme j’approche de la trentaine, j’ai tendence à me sentir um peu mal à l’aise parce que je me dis que ce n’est plus ma generation. C’est um peu comme de voir um vieille à talons aiguilles.’ (Maryse, 27 ans, étudiante); ‘J’ai choisi um tatouage discret e dans lê bas du dos car la peau ne se détendra pas em vieillissant et je pourrais le cacher plus tard quand j’aurai des enfants.’ (vendeuse, 22 ans).”

104 Como exemplo, posso citar uma tarde no estúdio da Tijuca em que observei duas irmãs, acompanhadas da mãe, que iriam ser tatuadas. As filhas aparentavam vinte anos, talvez com uma diferença pequena de idade entre elas. A mãe aparentava cinqüenta ou mais. A mãe consertava eventuais erros de proporção nos desenhos escolhidos pelas filhas, dava palpites na localização das tatuagens e dizia estar lá para dar apoio moral às moças. Dizia não ser contra tatuagens e pensava em um dia fazer uma, mas sentia-se “muito velha” para tal. Sabia, inclusive, qual desenho gostaria de ter tatuado e em que parte do corpo: queria um “olho de Hórus” na nuca (Figura 14). “Se eu fosse mais nova”, disse, “faria uma cobra de alto a baixo da coluna. Mas agora que estou velha, as pelancas caindo, não sei”. Uma das filhas se manifestou: “a minha aqui também vai cair um dia.” A concepção de velhice da mãe era a mesma da filha, referindo-se à estética corporal. Para a filha, contudo, a velhice, pensada em termos da “queda” da pele, ou como a mãe definiu, a “pelanca”, a pele flácida e mole, não era um problema na decisão de adquirir uma tatuagem. A filha não pensava em uma realidade ainda distante, mas demonstrava que a reflexão não lhe escapou. A mãe, por outro lado, sentindo-se já velha, observando seu corpo sem o mesmo viço da juventude, demonstrava preocupação com uma realidade imediata e não vindoura. Na França (LE BRETON, 2002), os 30 anos marcam o começo do envelhecimento, porque marcam também a idéia da formação da família, sobretudo entre as mulheres. Não é apenas com a estética envelhecida que a marca não combina, mas com as responsabilidades de um sujeito adulto. A juventude emerge, ao contrário do caso carioca, como a antítese do mundo adulto. No estúdio da Tijuca, observei muitos clientes acima dos 30 anos fazendo tatuagens, e muitas vezes a primeira. O envelhecimento não era, para eles, uma preocupação. O elevado número de clientes de 30 anos ou mais (43.1%) parece se dever, portanto, também a uma percepção em que a tatuagem não é vista como uma prática apenas da juventude, mas como uma prática corporal disponível a quem dela queira fazer uso. Além dessa dissociação, creio que a existência de um público acima dos 30 anos envolve questões tanto financeiras, porque a tatuagem é uma prática cara, quanto questões estruturais que defino no conceito posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002). Segundo esta idéia, os tatuados marcam seu corpo como uma forma de afirmação de propriedade sobre ele. Como

105 será visto na discussão sobre gênero, para as mulheres é difícil e parece necessário declarar essa posse de seu próprio corpo, regulado constantemente pela família, sobretudo por maridos e pais. Sem as fichas de clientes, tornou-se difícil elaborar um padrão etário para o estúdio de Copacabana. A maior parte da clientela parece estar abaixo dos 30 anos, embora haja clientes assíduos acima desta faixa etária. Certa vez, um senhor aposentado chegou ao local para sua primeira tatuagem, influenciado pelo filho, cliente do estúdio. Descrevo este cliente em outro capítulo, pois sua concepção mística das tatuagens gerou uma análise sobre os desenhos e suas significações pessoais para os tatuados. 5. Adolescência e a sedução da tatuagem Embora o consumidor desta prática corporal não seja essencialmente adolescente, estúdios e poder público desenvolveram uma série de restrições para o seu atendimento, conforme apontado no capítulo anterior. A partir de agosto de 2004, a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro determinou que menores de 16 e 17 anos podem ser tatuados desde que os responsáveis assinem um termo de responsabilidade. Apesar das restrições e do baixo número de clientes nesta faixa etária (2%), pode-se encontrar nos próprios estúdios quem tenha feito a primeira tatuagem em idade inferior aos 16 anos. Em uma tarde de observação na Tijuca, ouvi a história de Márcia, uma moça de 28 anos, casada, mãe de dois filhos, micro-empresária. Era de estatura mediana, branca, magra e tinha os cabelos aloirados por tintura. Estava fazendo sua terceira tatuagem. A primeira, contou, fizera aos 13 anos (não deixou claro se em estúdio ou não). Já estava desgastada e ela pensava em retirá-la com laser. Não queria retocá-la nem cobrí-la com outro desenho, pois achava a região tatuada exposta, à mostra com certos tipos de roupa. A tatuagem localizava-se nas costas, perto do ombro. Segundo disse, esteve em um evento com clientes de sua empresa e, sentindo calor, retirou o casaco. O vestido que usava deixava a tatuagem à mostra, o que foi observado por algumas pessoas e automaticamente se transformou em assunto entre elas. O comentário que recebeu e reproduziu para mim foi o seguinte: “Nossa, você tem tatuagem? Mas nem parece!”. A tatuagem executada sobre a adolescente de 13 anos passou a ser vista como um transtorno quinze anos depois, em função das exigências do mercado de trabalho. O ato de

106 tatuar-se, contudo, não causou nenhum arrependimento, visto que Márcia fez mais duas tatuagens. A diferença era, apenas, na escolha da região do corpo: tatuava-se em regiões em que pudesse esconder a marca. O desejo de escondê-la não é particularidade sua, mas uma preocupação de vários tatuados, sempre em função do mercado de trabalho. O comentário recebido por Márcia deixa transparecer que a tatuagem não é tão bem aceita quanto se imagina atualmente: não apenas há situações em que ela deve ser escondida, como o fato de ter de sê-lo envolve uma percepção real, factual, e não imaginária, de que a tatuagem pode causar transtornos, pois ainda está associada ao seu passado de marginalidade. Os problemas enfrentados pelos tatuados no mercado de trabalho serão analisados posteriormente. Em outra ocasião, antes de serem tornadas públicas as novas determinações municipais sobre o funcionamento dos estúdios, observei um caso correlato na Tijuca. Uma menina de 16 anos, acompanhada pela mãe, queria ser tatuada. Era alta, branca, magra, o rosto marcado pelas espinhas e os cabelos aloirados por tintura. O recepcionista encaminhou mãe e filha para que conversassem com o proprietário do estúdio. Este não se recusou a tatuar a menina, argumentando para mim que se ele se negasse a atendê-la, ela procuraria um outro estúdio ou outro profissional. Em seu estúdio, disse-me, tinha a certeza de que ela seria bem atendida, com profissionais capacitados e material esterilizado. Ao mesmo tempo em que não queria perder a cliente, ele preocupava-se com o que um entrevistado de Costa (2004) chamou de biosegurança, isto é, a preocupação com a higiene e o corrente processo de medicalização observado no universo da tatuagem. Durante a conversa com a menina, alertou-a que pensasse bem sobre qual desenho gostaria de tatuar e em que parte do corpo. O ingresso no mercado de trabalho foi o alvo dos alertas sobre o local escolhido. Segundo ele, ela deveria optar por uma região que não lhe causasse transtornos futuros. Sobre o desenho, disse-lhe que aquela tatuagem seria carregada pelo resto da vida, que escolhesse algo de que não se arrependesse, pois os gostos da adolescência nem sempre são os mesmos da idade adulta. Neste ponto, a mãe da menina concordou com ele e disse à filha que a mentalidade da adolescência e os interesses deste período nem sempre acompanham as mudanças da vida. Apenas depois de tantos alertas, perguntou-se à menina o que ela desejava tatuar: “uma estrela”, ela disse. O dono do estúdio relaxou, pois concordou que era um desenho difícil de causar arrependimento.

107 Há uma representação social sobre a adolescência presente nas histórias acima que parece ser um dos fatores de preocupação quanto à tatuagem em menores. O adolescente é visto como uma força transformadora, mas também como um elemento desordenado e caótico: não pensa no futuro, não pensa em seu ingresso no mercado de trabalho, e por isso pode se arrepender de se tatuar em locais visíveis, ou mesmo de se tatuar; sua mentalidade e interesses podem mudar, pois é um ser incompleto e inexperiente, que viveu poucos anos. Enquanto ele muda e a juventude passa, a tatuagem permanece. Por isso deve-se pensar bem, escolher com cautela e refletir. Mas, como indica Almeida (2001), mesmo para pósadolescentes nem sempre a tatuagem é o resultado de um processo reflexivo. 6. Mudança de status Em outras ocasiões, vi meninas com os recém-completos 18 anos irem ao estúdio para serem tatuadas. No estúdio pesquisado em Copacabana, observei uma moça recémcasada adquirir tatuagens em função da saída da casa materna e da mudança de seu status de solteira para casada. Em outra ocasião, conheci um senhor recentemente aposentado que fazia sua primeira tatuagem com o significado de um recomeço em sua vida, portanto marcando igualmente uma mudança de status. Entre as jovens observadas, Mônica foi ao estúdio para dar-se de presente de aniversário, como me contou, sua primeira tatuagem. Havia completado a maioridade três dias antes. Era uma moça de cabelos compridos lisos castanhos. O namorado foi acompanhá-la. Escolhera tatuar um leão por ser o seu signo astrológico. O tatuador escolheu um leão filhote como modelo e teve a preocupação de torná-lo “um desenho feminino”, conforme disse a Mônica. A moça escolheu a panturrilha como local a ser marcado, na parte lateral, um pouco acima do tornozelo. Marcela, por sua vez, era uma moça de 18 anos recém-completos, branca, cabelos compridos lisos castanhos. Fora até lá para sua primeira tatuagem, acompanhada de uma amiga de cerca de 35 anos, que já possuía algumas. O desenho era um presente de aniversário, cujo valor seria dividido entre as duas. Escolheu um gnomo sentado em um cogumelo, mas pediu ao tatuador que diminuísse o desenho. Escolheu as costas (por trás do ombro) para tatuá-lo.

108 A panturrilha que Mônica escolheu tatuar é um local tão visível quanto as costas (por trás do ombro) onde Márcia e Marcela fizeram suas primeiras tatuagens. Sendo a tatuagem um adorno corporal, que o tatuado entende como uma espécie de embelezamento de seu corpo, convém perguntar se a primeira marca não é escolhida justamente em algum lugar de fácil visibilidade, para que esteja à mostra, identificando o antes não tatuado a um agora-tatuado. A idéia de ser tatuado pode envolver idéias de autenticidade, de que o tatuado é uma pessoa alheia às imposições sociais, que tem personalidade para ir contra elas, o que de fato nem sempre ocorre, dada a preocupação em se poder esconder os desenhos. Ao mesmo tempo em que a panturrilha de Mônica e as costas de Márcia e Marcela podem ser facilmente deixadas à mostra, também podem ser escondidas pelas roupas. Para Marcela e Mônica, os 18 anos foram marcados pela idéia de liberdade: a liberdade de se tatuarem, a autonomia sobre seus corpos, a liberdade de fazerem dele o que quisessem, sem a presença de nenhum responsável, mas com o apoio de uma amiga ou um namorado. Ou seja, liberdade e autonomia, mas não um isolamento. As duas pareciam igualmente realizadas por passarem por aquele processo, como se ele fosse a prova que mostrava ao mundo o novo status recém-adquirido. Tatuadas, estavam informando, por meio de seus corpos, que eram pessoas “maiores”, com um grau de autonomia antes não existente. A fim de aprofundar a idéia de autonomia relacionado ao uso jovem da tatuagem, é interessante retomar a forma como Le Breton (2002) utiliza a noção de posse de si quando analisa o uso de tatuagens entre os jovens franceses, apontando para uma tensão entre diferentes gerações: os pais tentando controlar seus filhos e estes tentando fugir a tal controle. A partir desta visão, torna-se mais clara a relação entre tatuagem, juventude e autonomia. Por outro lado, o uso jovem da tatuagem parece envolver a idéia de autenticidade, que pode estar vinculada a noções de autonomia, individualidade e originalidade. É necessário apontar aqui que estas idéias parecem caminhar juntas no uso atual das tatuagens, até certo ponto tornando-se indissociáveis. A noção de originalidade, quase sinônimo de autenticidade, envolve, como será visto, a idéia do exercício individual do gosto pessoal, reforçando um individualismo baseado numa concepção essencialista do Eu,

109 como inerente ao sujeito e não como construído nas relações sociais mantidas e nas posições sociais ocupadas43. Assim, o que chamei de “uso jovem” na verdade nada tem de jovem, mas se confunde com toda a gama de usos identificados em campo, os quais apontam constantemente para uma leitura em termos de autenticidade, individualidade, autonomia, controle social e originalidade. 7. Conflitos geracionais Durante o campo no estúdio da Tijuca, não percebi nenhum conflito geracional na escolha pela tatuagem. Nunca ouvi nenhum cliente comentar sobre posições contrárias oriundas da família, a não ser no caso de mulheres com relação a seus maridos. Entre os clientes mais jovens, contudo, a família não era mencionada. Diversas vezes, na verdade, observei as jovens comparecerem ao estúdio acompanhadas pelas mães. Em alguns casos, a mãe se torna conselheira, observando o processo de tatuar. Na maior parte das vezes, vi as mães aguardarem as filhas na sala de espera. No caso de menores de 18 anos, a companhia de um dos responsáveis é condição sine qua non para a tatuagem. No estúdio de Copacabana, os menores não são nem tatuados nem se aplica piercings, mesmo com o acompanhamento de um dos responsáveis. Neste estúdio, observei um caso em que a mãe era contra a tatuagem, mas observei também clientes sendo acompanhadas pelas mães. Joyce fez sua primeira tatuagem em janeiro de 2005: o nome de São Judas Tadeu na nuca. Devota do santo, esperava para tatuar sua imagem em outra ocasião, o que realmente ocorreu. Na época de sua primeira tatuagem morava com a mãe, contrária aos desenhos permanentes no corpo, e afligia-se em ter que esconder a marca. O irmão era cliente do estúdio e a levou lá, em companhia de sua noiva, que também seria tatuada. Joyce havia escolhido a nuca propositalmente, pois os longos cabelos serviriam para esconder a marca do olhar cuidadoso e vigilante da mãe. Embora o irmão fosse tatuado, a mãe de ambos não poupava críticas à escolha do filho e Joyce pretendia fugir às críticas maternas ocultando a marca.

43

Para um aprofundamento da discussão, ver LEMMERT (1994).

110 De dentro do estúdio, de fato, é mais difícil observar posições familiares contrárias à prática da tatuagem. Na sociedade, o conflito pode se tornar mais evidente, mas, como esse conflito se desenrola na esfera privada, ele se mantém ainda invisível. Em reportagem de capa para a revista Vida de agosto de 2004, veiculada no Jornal do Brasil, sobre a Resolução municipal carioca, o conflito geracional se torna mais evidente, mesmo que se trate do uso do piercing e não da tatuagem. Apresentados na reportagem como grupos geracionais em conflito, creio antes que se está diante de um embate entre a percepção médica do corpo e os usos que os sujeitos fazem dele. Ao longo da reportagem, percebe-se que os pais entrevistados, embora apelem para questões de “risco à saúde”, nem sempre estão preocupados com os malefícios físicos que tal prática pode vir a trazer, mas sim com as suas implicações morais, nunca mencionadas diretamente. Apenas o risco à saúde é caracterizado, conquanto os pais se refiram a “problemas”, nunca especificados, o que leva a uma idéia de que ou não há argumentos substanciais e a noção de risco está vinculada a um medo não especificado, ou se trata de uma alusão a possíveis estigmas (GOFFMAN, 1975) tampouco determinados. Na revista, apenas adolescentes do sexo feminino são entrevistadas. Um único rapaz é mencionado, primo de uma das entrevistadas, todas menores de 18 anos. Ao final da reportagem, as opiniões de um médico e de um psicólogo dão pistas sobre as diferentes visões: de um lado os pais e o discurso médico se alinham em uma voz quase uníssona; de outro, os filhos e o psicólogo apresentam as modificações corporais como fruto da sociedade e da cultura. A professora Maristella Almeida Cunha, mãe de uma adolescente que fez um piercing aos 13 anos, contou à revista Vida como se preocupou com o que considerou “despreparo para algum imprevisto. Não havia kit de primeiros socorros, nem um profissional de saúde (...)” (p. 17), apesar de ter considerado o local bastante asséptico. Logo após, ela conclui: “Não considero o piercing um adorno bonito. Ao contrário, acho vulgar” (p. 17). O designer gráfico Cláudio Novaes, pai de uma adolescente de 14 anos que teve a jóia colocada em seu umbigo, tinha como argumentos contra a prática “perigos [não especificados] à saúde”, o peso de ser uma marca definitiva no corpo e a imaturidade da filha para cuidar do local perfurado. A solução para as aflições do pai zeloso foi procurar

111 um cirurgião que colocasse a jóia na menina. A preocupação de Cláudio foi reforçada, segundo a reportagem, por um evento familiar. O primo de sua filha, Daniel Viana, colocou um piercing na língua, aos 17 anos, sem o conhecimento dos responsáveis. Segundo Daniel, o profissional “esterilizou os instrumentos e me mostrou que a agulha era descartável (...)” (p. 19), o que lhe fez confiar no processo. Contudo, segundo a repórter, ele teve “uma leve inflamação no local” (p. 19), o que fez a mãe do rapaz, médica, determinar a retirada da jóia, alegando, segundo Daniel, que ele estava propenso a desenvolver um câncer na língua. O rapaz argumentou que, sendo fumante, a mãe corria mais riscos de ter a doença do que ele. Vânia Maria de Oliveira, dona-de-casa, negou às filhas de 13 e 16 anos permissão para se submeterem ao piercing. Segundo ela, “isso é só um modismo. Vai passar como todas as modas. Além disso, existem riscos à saúde delas. (...) Se permitisse que elas colocassem o piercing, estaria trazendo problemas para todos nós” (p.18). A filha de 16 anos argumentou que o piercing pode ser retirado, diferentemente da tatuagem, que é permanente: “Tatuagem, não. É uma marca para sempre” (p. 18). Neste caso, o piercing está em oposição à tatuagem na percepção adolescente, mas não na materna. Esta diferença é utilizada como argumento para uma prática vista pelos pais não apenas como perigosa, mas como de mau-gosto, vulgar, fruto de uma moda que, como todas as modas, há de passar um dia. Sobre esta categoria moda, é interessante observar que a palavra traz em si a idéia de algo passageiro, compartilhada pela filha. Ao mesmo tempo, moda ganha um tom pejorativo, de algo que influencia os sujeitos para além de sua capacidade reflexiva e crítica, o que é indicado pela noção de que um piercing poderia trazer problemas para toda a família, e não apenas para as meninas. Sendo algo passageiro para Vânia, ela não lhe dá valor, prevendo que o tempo eliminará os desejos das filhas. A adolescente, contudo, utiliza o mesmo argumento para convencer a mãe de que os eventuais problemas também seriam passageiros, pois a jóia pode ser retirada. Não creio, contudo, que se tratem dos mesmos problemas. Quando a adolescente compara tatuagem e piercing, trazendo à tona a diferente natureza das práticas quanto à sua permanência, o que faz é elaborar uma reflexão sobre elas. Ela se coloca em posição desprivilegiada para decidir sobre algo que pode marcá-la

112 por toda a vida, como a tatuagem, mas não para decidir sobre o piercing, por sua qualidade não-permanente. No conflito de gerações, noções de gosto parecem exprimir os prós e contras para piercings e tatuagens – e possivelmente outras práticas de modificação corporal. Quando o gosto adolescente e o gosto paterno entram em conflito, lança-se mão dos “riscos à saúde” para coibir as intenções dos mais jovens. Em sujeitos acima desta faixa etária, não há como proibir a prática, mas a atuação repressiva da família opera mais diretamente com a noção de gosto, conforme será visto adiante. Um cliente do estúdio pesquisado de Copacabana indicou como viveu processo familiar contrário à tatuagem. Morando sozinho desde seus 19 anos, tatuou-se sem o conhecimento de seus pais. O desenho gravado no braço era escondido pelas mangas de camisa. Quando se tornou mais confiante de seu desejo por novas marcas, o cliente tornouse, ao mesmo tempo, mais relaxado no encobrimento da tatuagem. A mãe, ao perceber a marca, disse-lhe que era bonita, mas que esperava que fosse a única. A cada nova tatuagem, contou o cliente, a mãe reforça o desejo de que não se tatue mais. Seu pai, por outro lado, foi mais enfático na crítica ao filho: disse-lhe que “quem pinta o corpo é índio”, indicando a velha diferenciação entre hábitos civilizados, de bom gosto, e hábitos selvagens, que devem ser evitados. 8. Quem são os tatuados? Não se pode dizer a quais grupos urbanos, jovens ou não, pertencem os tatuados cariocas. Para tanto, seria necessário pesquisar cada um deles, tarefa exaustiva e impossível no presente estudo. Observando-se os dados levantados, contudo, pode-se traçar um perfil mais geral dos tatuados cariocas. Hoje esse público tem sido formado prioritariamente por mulheres, não necessariamente nos estratos etários considerados como juventude. Essa constatação quebra com um imaginário da tatuagem que a relacionava ao universo masculino e à juventude. O que um dia foi, de fato, uma prática masculina já não é mais. Essa mudança reflete não apenas novos caminhos do feminino e do corpo em nossa sociedade, mas possibilita uma visão analítica da marca que busca um ponto comum entre a atual predominância feminina, a sua expansão entre camadas além do que se considera

113 vulgarmente como juventude, e o antigo público marginal da prática. Esse ponto comum parece residir na idéia da marca como um manifesto da autonomia individual, referida no conceito de posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002). Por outro lado, o perfil do público da tatuagem, predominantemente branco, aponta para uma classificação de cor entre os tatuadores diferente daquela comumente encontrada em nossa sociedade. A pele, pensada como uma tela, ganha classificações baseadas na apresentação momentânea de bronzeado ou não, utilizando-se a categoria moreno para situações tanto raciais referentes aos pardos quanto de exposição ao sol. O perfil do público indica, ainda, que os estúdios mantêm uma clientela essencialmente de bairro, mas também oriunda de bairros próximos, mantendo-se a repartição costumeira entre as Zonas Norte e Sul da cidade. Se a fama de um estúdio, o seu renome, atravessa os túneis que fazem a comunicação entre estas duas áreas da cidade, mais raramente atravessam-nos os clientes, pois as zonas correspondem a distintos estilos de vida que refletem diferentes concepções do carioca sobre estes espaços sociais. Creio que o ponto mais importante aqui, contudo, é desfazer uma associação comum entre a tatuagem e a cultura jovem, como se a prática estivesse intrinsecamente relacionada a uma juvenilização do usuário. Muitas vezes ouvi de colegas, quando expunha este estudo em comunicações orais, que o valor atribuído atualmente a uma aparência jovem, conforme vários autores demonstram (TURNER, 1996), poderia servir para se compreender a atual disseminação do uso de tatuagens entre indivíduos tão diferentes (homens, mulheres, jovens, adultos, velhos, de distintas camadas sociais, profissões etc.). Minha argumentação visou, justamente, criticar esta abordagem, uma vez que relaciono o uso de tatuagens a outros valores/motivações que não a aparência jovem. Entre estes valores/motivações, estão a autonomia pessoal, a idéias de autenticidade vinculada ao exercício da individualidade e de mudança de status social. Assim, desejei demonstrar que os adultos que fazem uso de tatuagens parecem fazê-lo pelos mesmos motivos dos jovens, conforme apontado. A mudança de status observada é uma na qual ganha-se autonomia pessoal, usufrui-se de uma liberdade maior do que a anterior. A tatuagem constitui uma forma de marcar um espaço pessoal, espaço exercido e marcado no próprio corpo, mas cujas conseqüências vão além de um desenho na pele. Lutando contra a família pelo desejo de ser marcado, mulheres e jovens constróem aí este espaço de

114 autonomia pessoal. Eu sugeriria, embora os dados de campo não me permitam afirmar, que esta busca por autonomia é anterior à marca.

115 CAPÍTULO V – DESENHOS, ESTILOS, REGIÕES DO CORPO: representações de gênero no universo da tatuagem.

“Tatuagem pequena é coisa de mulher, sabe? De mulherzinha.” Cliente do estúdio pesquisado na Tijuca

Este capítulo trata dos desenhos mais freqüentemente procurados pelo público e regiões do corpo a serem tatuadas. Os desenhos são classificados em estilos, o que envolve tanto uma noção estética quanto de técnica a ser empregada. Os estilos aqui apresentados foram compilados do que foi observado em campo e na literatura da área. Para uma análise dos desenhos, contudo, apliquei uma classificação minha que destaca o elemento central que desejo analisar. Os dados sobre desenhos mais procurados e locais do corpo mais freqüentemente tatuados são oriundos de fichas de clientes pesquisadas no estúdio observado na Tijuca. Após o levantamento destes dados, observou-se que a região a ser escolhida e o desenho a ser tatuado estão intrinsecamente relacionados às diferenças de gênero. Os desenhos preferidos pelos homens se mostraram aqueles relacionados ao que classifiquei como um ethos guerreiro, pois evocam elementos associados à morte, à agressividade e à destruição. Os desenhos preferidos por elas, ao contrário, são aqueles considerados delicados: são pequenos, coloridos e representam a idéia de fragilidade, como as flores e as borboletas. Os locais tatuados raramente se confundem. Os homens tatuam sobretudo os braços, ressaltando a força muscular como característica masculina e componente deste ethos guerreiro. As mulheres, por outro lado, buscam áreas menores e por vezes escondidas, como a nuca, o pé e as costas. A escolha por um desenho envolve uma gama variada de motivações. Nem sempre a escolha está claramente disposta de forma lógica como “quem tatua o Cristo é religioso” ou “quem tatua gnomos acredita neles”. O processo de escolha de um desenho pode ser longo, durando anos e envolvendo uma pesquisa por parte do tatuado sobre a imagem e o seu significado, ou pode ser curta, quase instantânea, a partir dos desenhos disponíveis em um estúdio.

116 Entre os aspectos desta escolha, estão as noções de distinção e pertencimento. Muitas vezes, uma tatuagem é realizada em função da imitação e do pertencimento a um determinado grupo social. Em outros casos, é a necessidade de distinção, de ter um desenho único, que move a escolha. A distinção está relacionada a uma singularidade, a uma concepção de individualismo. Assim, mesmo os desenhos de catálogo são normalmente modificados pelos tatuadores, de forma que se tornem únicos. Outro processo presente na escolha de desenhos e locais do corpo a serem tatuados é a dinâmica revelar/esconder, que traduz um cálculo por parte do tatuado sobre o quão interessante pode ser mostrar sua marca em público, ou não, e em quais situações. Esta dinâmica está relacionada ao mercado de trabalho e à tatuagem como um elemento de sedução. 1. Estilos de tatuagem O desenho a ser tatuado pode estar dentro do repertório fornecido pelo estúdio, pode ser levado por quem quer ser tatuado ou pode ser desenhado na hora pelo tatuador, em papel ou direto na pele do cliente44. Existem, em qualquer estúdio, vários álbuns de desenhos, que o cliente pode consultar. Os álbuns costumam ser classificados em diferentes categorias, ou ao menos os desenhos costumam ser divididos segundo algum critério. As categorias mais comumente encontradas são: tribais, caveiras, guerreiros, animais selvagens, flores, desenhos femininos, dragões e desenhos orientais. A classificação que os tatuadores fazem do repertório iconográfico de seu universo é, contudo, maior. Na homepage de um estúdio carioca45, encontrei a seguinte classificação: tradicionais, new school, tribal, cartoon, femininas, realismo e cover up. Tentarei delinear os principais traços de cada estilo, embora não tenha percebido, em campo, uma homogeneidade do uso de tais classificações. Na própria homepage citada, algumas tatuagens poderiam estar em mais de uma categoria.

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Técnica conhecida como free hand, a mais valorizada no universo da tatuagem. Utiliza-se lápis cópia para marcar o desenho na pele, ao invés do papel, segundo as curvas do corpo do cliente. Para esta técnica, o domínio de desenho é fundamental. Segundo COSTA (2004) e conforme pude também observar em campo, o domínio da arte de desenhar é uma das habilidades mais valorizadas pelos tatuadores. 45 SUPERNOVA TATTO, , acessado em 14 set. 2002.

117 O que é chamado de tradicional, envolve um repertório de imagens bastante populares nas décadas de 1940 e 1950, mas também imagens populares nas décadas seguintes. Parece-me que a idéia de uma iconografia tradicional contrasta, na verdade, com uma nova forma de desenhar tatuagens, mais contemporânea, chamada de new school. Em revistas estrangeiras de tatuagem, o que é chamado aqui de tradicional aparece sob a categoria old school, explicitando a oposição. Trata-se, na tatuagem tradicional ou old school, de desenhos de animais selvagens, como panteras e leões, dragões e outros motivos orientais, sereias e mulheres nuas ou seminuas, referências a jogos de azar, corações de Cristo ou com cupidos, caveiras e navios, por exemplo. A categoria new school refere-se a uma forma de desenhar que tem mais movimento e utiliza cores mais fortes e brilhantes. O repertório pode brincar com elementos tradicionais, como o coração de Cristo, que é redesenhado utilizando-se novos elementos e, muitas vezes, novas cores. Este estilo de tatuagem lembra o tipo de desenho dos grafiteiros, observando-se que o grafite é um dos elementos da cultura hip-hop. O estilo tribal (ver Figura 2), segundo Gilbert (2000), teria se originado em uma apropriação livre de tatuagens nativas do Bornéu, caracterizadas por traços espiralados e pontas como espinhos, coloridas em negro. No Ocidente, a releitura tomou formas as mais distintas, misturando-se as tribais com quaisquer elementos, como símbolos de diversas procedências ou flores coloridas. Na homepage citada, entravam na categoria tribal uma série de tatuagens sem estas características, mas influenciadas por culturas “exóticas”, como desenhos celtas e astecas. A tribal foi um dos estilos de tatuagem mais populares no Rio de Janeiro da década de 1990. Hoje em dia, a sua procura ainda é grande. O estilo cartoon refere-se a um repertório iconográfico formado por elementos de desenhos animados e gibis. A palavra inglesa se refere, exatamente, a estas duas formas de desenho (ver Figura 3 e Figura 5). O realismo (ver Figura 4) é uma técnica em que se reproduz sobre a pele um retrato, como se fosse uma fotografia, que pode ser de uma pessoa amada ou admirada, como um parente ou uma celebridade, ou ainda um animal de estimação, um animal selvagem ou uma paisagem. No caso do retrato de parentes e pessoas amadas, a técnica realista se inscreve em uma outra categoria, observada no estúdio pesquisado: a homenagem. Esta se refere a esposas/maridos e mais comumente a filhos pequenos ou pais já falecidos.

118 O cover-up (ver Figuras 5 e 6), da mesma forma, é mais uma técnica do que um estilo de tatuagem. Trata-se de cobrir ou retocar tatuagens antigas, desgastadas pela ação do tempo. O sol, sobretudo, envelhece a tatuagem, desbotando as cores. Com o tempo, o contorno em negro também fica desbotado, com o traço descontínuo. Além do sol, o próprio organismo é responsável pelo envelhecimento da tatuagem, pois vai digerindo os pigmentos lentamente, que se infiltram até camadas cada vez mais profundas da pele, conforme um tatuador me informou, e podendo mesmo chegar aos ossos (GILBERT, 2000). Para se cobrir uma tatuagem que não se quer mais com uma nova, é aconselhado optar por desenhos “carregados na sombra”, conforme ouvi uma tatuadora dizer, ou seja, de cores escuras. Durante a observação de campo, vi muitos clientes em busca dessa técnica. Eles eram aconselhados a tatuarem cabeças de cachorro ou tatuagens orientais, pois as mesmas utilizam bastante a cor negra. Existem outros estilos que não foram mencionados na citada homepage, como celta, azteca (ver Figura 7), biomecânico, oriental. Os dois primeiros são inspirados nas referidas culturas, o último é inspirado em elementos orientais em geral, sobretudo japoneses. Incluise nesta categoria as “letras” japonesas e chinesas, mas também carpas, samurais, dragões e toda sorte de iconografia oriunda da tatuagem tradicional japonesa (ver Figura 9). Esta apresenta características próprias, normalmente tomando uma vasta região do corpo e muitas vezes aproximando-se da forma de uma roupa, já que foi criada como uma espécie de imitação do tecido (BOREL, 1992). O estilo biomecânico envolve a reprodução, sobre a pele, de seres cibernéticos, metade orgânicos, metade máquinas. É um estilo que flerta com elementos da ficção científica. 2. Os “desenhos femininos” Existem desenhos que são criados especialmente para mulheres, chamados “desenhos femininos” (ver Figuras 5, 10, 11, 12). Eles se diferenciam pela temática, envolvendo fadas, anjos, estrelas, luas, flores e desenhos com um certo tom infantil. Não existem “desenhos masculinos”. Percebi, em campo, que os desenhos podem ser classificados em três colunas, segundo o gênero, que é um elemento que atravessa todo o

119 universo da tatuagem: aqueles usados apenas por mulheres, os preferidos pelos homens e os que são escolhidos por ambos. A região do corpo a ser tatuada também pode diferir bastante entre homens e mulheres, havendo regiões que são preferidas por elas e outras por eles, e ainda algumas tatuadas por ambos. Os “desenhos femininos”, muitas vezes, apresentam um aspecto infantil, de desenhos feitos por crianças ou para crianças, como bonecas e querubins. Os animais escolhidos por elas são domésticos ou vistos como inofensivos, como gatos, beija-flores e golfinhos. Há uma procura muito grande, nos últimos tempos, por flores, borboletas e estrelas. Fadas, unicórnios e outros elementos mitológicos também são procurados. Não ter um desenho que remeta ao repertório masculino, nem localizá-lo numa região do corpo considerada masculina, parece ser uma preocupação das mulheres que buscam tatuagens. Como exemplo, posso citar o caso de uma cliente do estúdio da Tijuca que, aos 26 anos, fez sua primeira tatuagem. Bronzeada de praia e apaixonada pelo mar, queria tatuar um tubarão, mas fora desaconselhada por parentes e amigos porque o desenho seria agressivo e masculino. Optou então pela sua versão comics, e tatuou o personagem Tutubarão na região lombar. Segundo Bourdieu (2003), as diferenças culturais entre os gêneros estão inscritas em seus corpos, segundo a noção de habitus. O habitus é uma disposição corporal construída pela sociedade e pela cultura, ou seja, uma lei social incorporada. Desta forma, pode-se observar o corpo como locus de diferença sexual, não por suas disposições biológicas, mas socialmente construídas. A força simbólica que a sociedade exerce sobre o indivíduo, diz ele, exerce também e, sobretudo, sobre os corpos. Assim, os corpos femininos e masculinos se diferenciam quanto a uma série de movimentos, posições e posturas que traduzem as diferenças pensadas e construídas sobre os gêneros, ou pelo menos se observa os corpos como tendo estas diferenças. As sociedades são, para Bourdieu (2003), organizadas segundo uma diferenciação entre os gêneros que dispõe o masculino como preponderante, o que chama de dominação masculina. Esta dominação impõe uma visão androcêntrica de mundo, onde o que é masculino é visto como neutro, sem necessidade de ser enunciado em discursos que visem legitimar esta visão. A dominação masculina cria estruturas práticas de diferenciação entre os sexos tanto quanto estruturas mentais.

120 É a partir desta forma de conhecimento sobre o mundo, que se pode perceber a experiência feminina do corpo como diferente da experiência masculina. O corpo feminino, diz o autor, é, sobretudo, um corpo-para-o-outro, um corpo objetificado pelo olhar e pelo discurso de outros. Sendo objeto de olhares, a mulher é tomada pela lógica da dominação e passa a exercer, sobre este olhar, uma contrapartida, na idéia de atrair a atenção e agradar, traduzidas na coqueteria feminina. Contudo, o olhar dos outros cria uma distância entre o corpo real e o corpo ideal. A partir desta idéia de Bourdieu (2003), é possível perceber porque existem “desenhos femininos”, enquanto seu análogo “desenhos masculinos” jamais foi encontrado em campo. Sendo neutro, o masculino não precisa ser diferenciado. Da mesma forma, observa-se porque clientes e tatuadores preocupam-se em tornar femininos certos desenhos que trazem a idéia de agressividade, como o leão ou o tubarão, porque a agressividade é considerada uma característica masculina e o feminino é construído na negação destas características. As áreas tatuadas, da mesma forma, seguem esta lógica de diferenciação, e busca-se jamais tomar para si regiões que sejam destinadas, por tradição, ao sexo oposto. As distinções entre os gêneros explicam, ainda, porque as tatuagens dos homens costumam ser maiores que as tatuagens das mulheres, relacionadas à idéia de agressividade e afirmação de virilidade, enquanto as tatuagens femininas são pequenas e se referem a desenhos que sugerem fragilidade, doçura e mesmo infantilidade. A partir das entrevistas apresentadas por Leitão (2002), contudo, pode-se observar a emergência de mais de um modelo de feminilidade quando se trata de tatuagens: mulherzinha

e

mulher

fatal/puta.

A

mulherzinha

expressa

uma

feminilidade

exageradamente frágil. A mulher fatal apresenta um forte componente de sedução, o que muitas vezes a transporta para o lado da puta. É uma sedução exagerada e, segundo os discursos, permeada de vulgaridade. Tatuagens nos seios e nádegas são muitas vezes vistos como chamando a atenção para os locais mais valorizados do corpo feminino, locais que não precisam dessa marca de sedução pois já atraem os olhares. Desta forma, se tornam signo da mulher oferecida, a mulher sem pudor, a puta. No ponto de equilíbrio entre a extrema fragilidade e a falta de pudor, está a mulher sem classificação, um modelo de feminilidade que não ganhou nome, mas que é visto como o mais adequado.

121 Observe-se que a puta é sempre um modelo mal comportado, malvisto, e freqüentemente associado a mulheres que expressam uma maior autonomia individual do que a permitida para as mulheres de um modo geral. A “mulherzinha” demonstra que a autonomia feminina ainda não deve ser a mesma que a masculina, medida aqui sobretudo na liberdade sexual, mas que tampouco deve corresponder à fragilidade extrema. A oposição a “homem” não é “mulher”, mas sim formas distintas de feminilidade. Entre elas, a puta parece estar mais próxima à conduta sexualmente livre dos homens. A “mulherzinha”, ao contrário, parece estar associada a uma visão de feminino cuja fragilidade está associada a um universo infantilizado, a um sujeito não-autônomo, fraco, submisso, controlado, incapaz de tomar as próprias decisões. A “mulherzinha” é um simulacro de mulher: tão pequena na sua autonomia que foi denominada pelo diminutivo. O que emerge nos estúdios de tatuagem, contudo, ainda é uma visão de mulher segundo o modelo “mulherzinha”. Os “desenhos femininos” são aqueles que expressam delicadeza e fragilidade. Sem adentrar, aqui, em discussões mais profundas sobre a identidade feminina atual, pode-se indicar diferentes modelos operando no imaginário feminino. Lipovetsky (2000) aponta a construção de três modelos de mulher no imaginário ocidental que podem ser úteis para a presente análise. A “primeira mulher” é aquela que constitui o estereótipo da bruxa, diabolizada e desprezada. A “segunda mulher”, ao contrário, relaciona-se à idéia de uma maternidade ou virgindade idealizadas e sacralizadas. A “terceira mulher”, contemporânea, é autônoma e livre para escolher seu próprio destino, sem as amarras destas construções tradicionais. Estas visões do feminino se confundem com visões da beleza feminina: por um lado destruidora e por outro virginal. A antítese se resolve, segundo o autor, numa relação dialética que cria a pin up, cujas expressões principais são Brigitte Bardot e Marilyn Monroe. Na pin up, a beleza adolescente e juvenil é erotizada, mas não se torna destruidora. Estes modelos descritos por Lipovetsky (2000) parecem os mesmos modelos em uso no universo da tatuagem. A puta/mulher vulgar confunde-se com a “primeira mulher”, possuindo um tipo de beleza vamp, conforme terminologia do autor. A tatuagem da mulher vamp é aquela que atrai atenção para os atributos femininos corporais de beleza e erotismo, supervalorizando aquilo que já é foco de atenção normalmente e, por isso, criando a idéia

122 de vulgaridade. A tatuagem da “segunda mulher”, se é que se pode imaginá-la tatuada, é a tatuagem da “mulherzinha”, infantil, pequena, doce e sem erotismo. A “terceira mulher”, a que não tem nome mas constitui o modelo de equilíbrio, tatua-se buscando a beleza dialética da pin up, erótica sem jamais se considerar vulgar, abusando do jogo de olhares que é utilizado na dinâmica entre revelar e esconder a marca. 3. O ethos guerreiro Se a classificação “desenhos masculinos” não existe, isto não significa que não haja desenhos elaborados para os homens. Estes desenhos encerram uma idéia de agressividade e destruição. Estas características estão de acordo com o que chamo aqui de ethos guerreiro, um aspecto de um determinado modelo de masculinidade que valoriza a força física, a tolerância à dor, a agressividade (física ou simbólica46), a mulher como objeto, o descontrole. Cecchetto (2004), em estudo sobre modelos de masculinidade e sua relação com a violência na cidade do Rio de Janeiro, observou tais características em grupos de funqueiros e de lutadores de jiu-jitsu, com ligeiras alterações ente um e outro. Entre os charmeiros, também estudados pela autora, o modelo de masculinidade era distinto. Há, portanto, diferentes modelos de masculinidade em ação. Para o presente estudo, agrupei as características encontradas entre ambos funqueiros e lutadores como se formassem um conjunto único, pois são semelhantes. Os desenhos tatuados pelos homens que pesquisei podem envolver um ou mais dos aspectos de que a autora trata como características de um ethos guerreiro (ELIAS, 1996). Utilizo a idéia de um ethos guerreiro, e unifico as características observadas em diferentes grupos num único bloco, porque ele pode permear mais de um modelo de masculinidade e não foi possível no universo da tatuagem determinar quais modelos estavam em ação, visto que os tatuados não compõem um grupo social da mesma forma que lutadores ou funqueiros. Pode ser encontrado, é certo, mais de um modelo de masculinidade entre os clientes do estúdio, mas esse não era o objetivo da pesquisa. Chamo

46

Sobretudo no caso da tatuagem, onde os desenhos comunicam mensagens, há que se ver tais desenhos como simbolicamente agressivos.

123 a atenção, aqui, para a freqüência em que o ethos guerreiro pode ser observado naquilo que é considerado masculino no mundo da tatuagem. Como existem formas múltiplas de masculinidade que remetem a este ethos, existem também clientes que não remetem a ele. Neste sentido, Cecchetto (2004) demonstra, a partir do estudo de bailes charme do subúrbio carioca, que existem modelos de masculinidade que se referem a outros tipos de ethos. Creio que o modelo mais característico do ethos guerreiro que encontrei em campo foi João, cliente do estúdio da Tijuca, um dos raros homens com quem consegui conversar, pois via de regra são menos abertos do que as mulheres. João, de 46 anos, é policial civil, está em seu segundo casamento (com uma colega de profissão) e é pai de uma moça de 19 anos, com sua primeira esposa. Branco, alto, musculoso, cabelos brancos, praticante de capoeira e jiu-jitsu47, ficou amigo do proprietário do estúdio após ter sido tatuado lá. Durante a conversa com o amigo, em minha presença, na sala de espera, João contou um pouco de sua vida. Para meu espanto, confidenciou que naquele exato momento portava uma submetralhadora escondida nas roupas – o que comprovou levantando ligeiramente a camisa – e dizia se tratar de uma necessidade para sua segurança. Havia ido ao estúdio para uma nova tatuagem. Possuía cinco e a última havia sido executada quinze dias antes, naquele mesmo estúdio. O novo desenho seria uma rosa em negro, com um motivo tribal ao fundo, acima de dois fuzis cruzados e uma flâmula com os dizeres: “o prêmio da guerra é morrer como homem”. Ao longo da tarde, contudo, desistira de tatuar os fuzis. Folheava os álbuns de desenho em busca da rosa negra que havia gostado. João demonstra um tipo de masculinidade relacionado intrinsecamente à idéia de guerra e combate. Uma identidade de gênero tão forte que havia sido desenhada pelo corpo e constantemente reforçada por novos desenhos. O epíteto dessa masculinidade seria inscrito em sua pele, evocando a guerra, a morte e a virilidade. Embora a guerra não traga prêmios materiais – e no caso de João menos ainda, pois sua guerra é ao crime, sobretudo ao narcotráfico, conforme relatou –, ela traz um prêmio que não pode ser medido materialmente: ser um verdadeiro homem, traduzido na noção de “morrer como homem”.

47

Como CECCHETTO (2004) aponta, os jogos, especialmente os jogos de combate, são espaços regrados para o ethos guerreiro, onde a disputa e a destruição tomam lugar de forma civilizada.

124 Não há aí nenhuma apologia à guerra em si, mas à atividade guerreira como uma atividade eminentemente masculina. Os outros desenhos que tinha pelo corpo estavam todos dentro de seu ethos guerreiro. A primeira tatuagem de sua vida, adquirida dez anos antes e localizada no peito, era um cavalo junto a um berimbau, pois praticava capoeira e fora apelidado de “cavalo”, animal forte e ágil, sempre associado aos homens e raramente às mulheres, pois encerra características relacionadas tradicionalmente ao masculino. Além desta, possuía outras nos braços: um ideograma chinês e abaixo deste um samurai em preto, tatuagem que pretendia aumentar, desenhando uma paisagem de fundo para o guerreiro. No outro braço, apresentava um esqueleto vestido com um capuz e manta negros, segurando uma foice. Era acima desta que pretendia localizar o novo desenho. Nas costas, a última tatuagem: um anjo com capuz, sentado em uma ruína, com braços abertos e asas semi-abertas. Contou que queria tatuar um anjo, mas não encontrava um desenho que lhe agradasse, até que se deparou com este em uma camiseta exposta numa loja de rock. Tratava-se da reprodução da capa de um CD de uma banda de heavy metal. João comprou o CD e foi ao estúdio ser tatuado. Segundo ele, “os anjos simbolizam força e garra”. A princípio, achei que o anjo e a rosa destoavam dos outros desenhos, tão bem arranjados sobre um único tema: o da força e da capacidade de destruição. Contudo, quando João falou sobre o que os anjos representavam, percebi que o desenho não estava fora das idéias representadas na iconografia sobre sua pele. Se o anjo é força, pois representa a figura de um guerreiro celeste, então está plenamente de acordo com toda a iconografia de João. A rosa, por sua vez, negra e lúgubre, diferente das rosas vermelhas que as mulheres costumam tatuar, posicionada acima de uma flâmula representando o pensamento do guerreiro, parecia uma espécie de homenagem aos mortos, como as flores que se depositam nas lápides. Sobre a postura masculina com relação à tatuagem, gostaria de apresentar um outro caso. Um rapaz de 28 anos, com o escudo do Flamengo tatuado na parte interna de um dos braços, queria tatuar um índio norte-americano na parte interna do outro braço. O trabalho custou R$450,00. O rapaz foi deitado na maca para facilitar ao tatuador o acesso à região a ser marcada. Perguntei porque tatuava um índio. “Sei lá, eu me identifico, tem a ver comigo, acho maneiro” e, mostrando o escudo do Flamengo, completou: “essa aqui nem

125 precisa perguntar por que, né?”. “Já está pronta?”, perguntei sobre o índio. “Não”, parecia ofendido, “falta toda essa parte de cima aqui, esse preto vai até aqui”, falou, apontando para o cocar. “Tatuagem nessa região tem que ser grande, sei lá, tem que tomar o espaço inteiro. Se for pequena...”, o silêncio durou cerca de três segundos, “...pequena é coisa de mulher, sabe? De mulherzinha”, concluiu. Mesmo que não haja dados sobre a atividades deste cliente, a iconografia escolhida por ele está de acordo com aquele que relaciono ao ethos guerreiro. O pertencimento a torcidas organizadas de futebol, embora não esteja claro se o cliente fazia parte de uma delas ou não, é uma das formas em que a masculinidade guerreira emerge (CECCHETTO, 2004), onde a briga aberta entre torcidas de times diferentes ou de um mesmo time fornece espaço para a realização do ato fundante desse tipo de masculinidade: o exercício da guerra. O índio, por sua vez, se apresenta como um guerreiro, da mesma forma que o samurai. Seja ele um jovem a cavalo ou um ancião com cocar de chefe, há aí uma qualidade de exercício de poder típica do masculino. O tatuador havia dado uma pausa que, uma vez cessada, ganhou reclamações do cliente. Não gostava da posição em que tinha de permanecer para ser tatuado. Ficava torto na maca, com um dos braços esticados. Perguntei-lhe se estava doendo. “Não, aqui não dói muito não. É a posição que me incomoda”. Reforcei a pergunta: “Aí não dói não?”. “Não é que não dói, toda tatuagem dói, mas é suportável”. Conforme será visto adiante, a idéia de suportar a dor é crucial no processo de ser tatuado entre os homens.

As mulheres

demonstram abertamente quando a operação é dolorosa, pois nem sempre o é, enquanto eles silenciam o que sentem. O encobrimento da sensação de dor é mais uma característica da masculinidade guerreira. Os embates físicos dos quais os homens afinados com esse tipo de modelo participam envolvem, muitas vezes, danos físicos bem maiores do que o de uma tatuagem, como cortes profundos, fraturas e hematomas. Esta é uma forma de masculinidade em que a insensibilidade à dor e ao sofrimento deve ser demonstrada tanto com relação ao outro quanto com relação a si mesmo. Cecchetto (2004) demonstra como, entre os lutadores de jiu-jitsu, a tolerância à dor é parte do próprio treinamento da arte marcial. Entre os funqueiros, por sua vez, os corredores onde Lado A e Lado B se enfrentam nos bailes são o espaço de demonstração tanto de força física quanto de resistência aos ataques das galeras

126 inimigas. Quando machucados, os funqueiros apelam para as improvisadas enfermarias dos bailes, apenas para tomar fôlego e retornar ao embate. Ainda sobre representações masculinas da tatuagem, um terceiro caso revela que as cores utilizadas podem ser um problema. Um dos tatuadores da casa retocava uma fênix que fizera na parte superior da coxa de um rapaz branco, magro, aparentando 22 anos, acompanhado da namorada, aparentando a mesma idade. A tatuagem fora colorida em rosa, azul e amarelo. O cliente confessou que não havia gostado da idéia do rosa na tatuagem, mas convencido pelo tatuador e pela namorada, aceitara, estando satisfeito com o resultado final. O proprietário do estúdio elogiou o trabalho e brincou com o tatuador dizendo que ele adorava colorir de rosa as tatuagens que executava. A namorada do cliente não deixou a brincadeira passar em branco e disse ao tatuador que lhe faria uma bolsa rosa de tricô, como a que usava na ocasião. “Me traz mesmo! Você vai ver como a sua tatuagem vai sair barata e sem dor”, respondeu rindo, pois a moça desejava retocar uma tatuagem nas costas. Como em outros âmbitos de nossa sociedade, no universo da tatuagem o rosa não é cor para homens. Sabino (2004), descrevendo tatuagens em freqüentadores assíduos de academias de ginástica e musculação localizadas nas Zonas Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro, aponta para uma construção de masculinidade semelhante. Entre estes marombeiros, cuja finalidade última do exercício físico é a obtenção de tônus muscular, entendido como boa forma, as tatuagens são uma maneira de chamar a atenção para o corpo exercitado, já compreendido aqui como um corpo construído, também, para o olhar alheio. Entre 310 entrevistados (200 homens e 110 mulheres), em faixa etária de 16 a 55 anos, o autor aponta a existência de tatuagens em um terço destes, em proporção similar à observada no estúdio pesquisado na Tijuca: 70% em mulheres e 30% em homens. Nos homens, os desenhos mais encontrados foram os animais selvagens, enquanto entre mulheres foram borboletas, anjos, fadas, beija-flores, rosas, lua, localizados nas mesmas regiões observadas no estúdio pesquisado, conforme será indicado abaixo. Entre os homens, o cachorro da raça pitbull emergiu, especialmente, como símbolo de agressividade e violência, espécie de emblema do ethos guerreiro. Segundo um dos entrevistados (SABINO, 2004, p. 268-9 ):

127 “A tattoo dessa fera aqui, no braço..., nesse braço aqui, é do meu pitbull...eu me identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer acabar com eles, já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e tal... mas não vão conseguir, a gente que luta, que malha, que gosta de esporte radical, a gente se amarra nesse bicho... vamos continuar criando... ele é nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de uma tonelada de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada de pressão...” (João. 28 anos. Comerciante).

A fera, animal violento e agressivo, torna-se símbolo de uma masculinidade que deseja se impor desta mesma forma: agressiva e violenta, através da força física, do soco de uma tonelada, da submissão do mais fraco. A prevalência deste tipo de desenho tanto entre marombeiros quanto entre os clientes masculinos em geral do estúdio pesquisado na Tijuca denota um determinado modelo de masculinidade que perpassa toda a sociedade carioca, talvez mesmo a brasileira, onde o masculino é sinônimo de força física, agressividade, violência, descontrole e destruição. 4. Os desenhos mais tatuados A partir da análise das fichas de cadastro dos clientes da Tijuca, foi possível construir uma tabela com os desenhos mais procurados, segundo o gênero, conforme pode ser visto abaixo. Os meses analisados foram setembro e dezembro de 2003 e janeiro de 2004. A tabela não traz a discriminação dos desenhos mais procurados a cada mês, pois não há variações relevantes.

128 Tabela n. 3 – Desenhos tatuados, segundo o gênero. Motivos/ estilos

Corpos celestes

Religiosas

Desenhos

Homens

Mulheres

Total

Estrela Sol Lua Estrela e sol Sol e lua Lua e estrela S. Jorge Buda Pergaminho Anjo Crucifixo

3 (2.3%) 3 (2.3%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%)

45 (12.9%) 12 (3.4%) 1 (0.3%)

48 (10%) 15 (3.1%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 6 (1.2%) 5 (1%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 10 (2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 39 (8.1%) 19 (3.95%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 32 (6.6%) 1 (0.2%) 7 (1.4%) 1 (0.2%)

Jesus Cristo Japonesas/ Orientais Indianas Egípcias Indígenas

Tribais Étnicas

Mitológicas

Sorte

Letra japonesa Dragão Samurai Indiano Mandala Om Ankh Olho de Hórus Índio Índia Totem Pena de índio Tribal Lagarto tribal Rosa ou flor tribal Celta Bruxa Mago Sereia Fada Fênix Centauro Duende Cupido Trevo de 4 folhas Letra

Alfabeto Realistas

Escrita/frase Nome Fotografias Homenagem

5 (1.4%) 5 (1.4%)

1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 10 (2.9%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 19 (14.4%) 11 (8.3%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 2 (1.5%) 1 (0.75%) 15 (11.4%) 1 (0.75%) 1 (0.75%) 1 (0.75%)

20 (5.7%) 8 (2.3%)

1 (0.3%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 17 (4.9%) 6 (1.7%) 2 (0.6%)

2 (1.5%) 1 (0.75%) 1 (0.75%)

2 (0.6%) 7 (2%) 2 (0.6%) 2 (0.6%) 1 (0.3%)

1 (0.75%) 14 (10.6%) 3 (2.3%) 4 (3%)

8 (2.3%) 12 (3.4%) 2 (0.6%) 1 (0.3%)

2 (0.4%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 7 (1.4%) 3 (0.6%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 22 (4.6%) 12 (2.5%) 5 (1%) 4 (0.8%) 1 (0.2%)

129

Símbolos

Animais marinhos

Pássaros Animais domésticos ou domesticados Animais selvagens

Insetos ou animais peçonhentos

Flores

Música Cartoon Infantis

Outros

Paz e amor Símbolo (inespecífico) Escudo do Flamengo Escudo do Fluminense Signo de Virgem Pentagrama Golfinho Peixe Cavalo-marinho Tubarão Boto Peixe-espada Beija-flor Pomba Águia Cachorro Cavalo Tigre Onça Leão Urso panda Tartaruga Lagarto Escorpião Borboleta Salamandra Grilo Aranha Abelha Flor Rosa Orquídea Ramo Notas musicais Clave de sol Iron Maiden Mangá Hello Kitty Betty Boop Boneca Roupa de papel Coração Asa com fogo Bracelete Língua Espiral

3 (2.3%)

1 (0.3%) 4 (1.1%)

1 (0.2%) 1 (0.2%)

1 (0.75%) 1 (0.75%)

2 (1.5%) 2 (1.5%)

1 (0.3%) 1 (0.3%) 12 (3.4%) 3 (0.8%) 1 (0.3%)

6 (4.5%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 9 (2.6%) 1 (0.3%) 1 (0.75%) 1 (0.75%)

1 (0.3%) 1 (0.3%)

5 (3.8%) 1 (0.75%) 2 (1.5%) 1 (0.75%) 3 (2.3%)

2 (0.6%) 2 (0.6%) 1 (0.3%) 5 (1.4%) 48 (13.7%) 1 (0.3%) 1 (0.3%)

1 (0.75%) 1 (0.75%)

1 (0.2%) 7 (1.4%)

1 (0.3%) 40 (11.5%) 15 (4.3%) 2 (0.6%) 2 (0.6%) 1 (0.3%) 2 (0.6%)

1 (0.75%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 1 (0.3%) 12 (3.4%) 1 (0.75%) 2 (1.5%) 1 (0.75%) 1 (0.3%)

1 (0.2%) 1 (0.2%) 14 (2.9%) 5 (1%) 1 (0.2%) 6 (1.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 9 (1.9%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 5 (1%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 8 (1.6%) 48 (10%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 41 (8.5%) 15 (3.1%) 2 (0.4%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 1 (0.2%) 12 (2.5%) 1 (0.2%) 2 (0.4%) 1 (0.2%) 1 (0.2%)

130 88 categorias de desenhos

TOTAL

132 (100%)

349 (100%)

481 (100%)

Dados referentes à análise dos cadastros de clientes dos meses de setembro e dezembro de 2003 e janeiro de 2004. A coluna “desenho” refere-se a categorias dos próprios clientes, organizadas por mim em categorias mais amplas na coluna “motivos/estilos”.

A tabela acima foi construída a partir da análise das fichas preenchidas pelos clientes do estúdio. Embora cada ficha represente um cliente, nem sempre representa apenas uma tatuagem. Presume-se que todos os clientes tenham preenchido a ficha. O número de mulheres é sensivelmente superior ao de homens, conforme amplamente observado em campo e por outros pesquisadores (LEITÃO, 2002). Nos três meses analisados, há um total de 431 mulheres para 173 homens, ou seja, mais que o dobro. Como nem todos os clientes especificam o desenho tatuado, as respostas contabilizadas na tabela acima somam 349 mulheres e 132 homens, em um total de 481 respostas. Gráfico n. 9 – Maiores percentuais de desenhos entre homens e mulheres.

16 14 12 10 8 6 4 2 0

14,4

13,7

12,9

11,5

11,4

5,7 2,3 0 Estrela

Borboleta

Homens Mulheres

4,9 2,3

0,75 Flores

10,6

Letra japonesa

Tribal

Letra

As categorias de desenhos especificadas acima foram construídas pelos próprios clientes. Eu as agrupei em categorias mais amplas (na coluna “motivos/estilos”) que não necessariamente correspondem às categorias utilizadas no universo da tatuagem, conforme indicado anteriormente. 4.1. Corpos celestes em outros corpos Estrelas, sol e lua, bem como suas possíveis combinações, foram agrupadas sob a categoria “corpos celestes” (ver Figura 11 e Figura 13) . Planetas, estrelas cadentes,

131 cometas ou quaisquer outros elementos espaciais não foram encontrados entre o repertório de desenhos tatuados. Estes motivos são mais populares entre mulheres do que entre homens, compondo parte do que se designa como “desenhos femininos”. Le Breton (2002) indica que o que chamei de “corpos celestes” é um motivo iconográfico tipicamente feminino. Nos anos recentes, a estrela tem sido um desenho favorito das mulheres, agrupada em conjuntos de três ou mais, com cinco pontas e coloridas por dentro em tons como azul, vermelho, laranja ou amarelo, normalmente cada uma apresentando uma cor diferente. As “estrelinhas”, como são chamadas, se tornaram mais populares, em processo chamado por Mauss (1994) de imitação prestigiosa, depois que a atriz Mel Lisboa, em début na televisão, deixou aparentes suas estrelas tatuadas por trás da orelha. Associado a uma pessoa considerada modelo a ser seguido, o desenho foi copiado, embora a parte do corpo tatuada não, podendo-se observar as “estrelinhas” em várias regiões distintas como nuca, costas, pulso, barriga ou pé. O sol, por outro lado, parece gozar também de alguma popularidade, embora não tão grande quanto a das estrelas. Sol e lua, bem como lua e estrela, aparecem também como desenhos tipicamente femininos, embora menos procurados. Normalmente são desenhos que envolvem uma aura mística, possivelmente escolhidos por indivíduos envolvidos neste universo ou interessados nele. Em várias vertentes da Nova Era, os corpos celestes desempenham papel crucial, como na astrologia, por exemplo, mas também em suas vertentes religiosas, como cultos neopagãos. Enquanto 19.4% de mulheres buscam este motivo, apenas 6.85% de homens se interessam por ele, sendo três vezes mais popular entre elas do que eles, graças às estrelas. Em termos gerais, computando-se ambos homens e mulheres, este motivo apresenta 15.9% da preferência do público. É interessante notar que, entre os corpos celestes, o sol é o único desenho procurado na mesma proporção (2.3%) por homens e mulheres (3.4%). Apresentando popularmente características masculinas (fogo, vigor, força, luz, razão), enquanto a lua apresentaria características femininas (sonho, magia, loucura, emoção) o sol é visto pelos homens como o mais apropriado dos corpos celestes para seus corpos humanos.

132 4.2. Religiosas, indianas, egípcias e celtas As tatuagens que classifiquei como “religiosas” envolvem elementos de religiosidades distintas. 3.75% dos homens e 2.9% das mulheres escolheram este motivo. Não se pode dizer, pela pequena diferença, que eles sejam mais religiosos ou mais interessados em expressar sua religiosidade por meio de tatuagens do que elas. Indianas, egípcias e étnicas (celtas) apresentam apenas 0.6%,

0.4% e 0.2% da preferência do

público, respectivamente. De fato, as tatuagens religiosas nem sempre exprimem a espiritualidade de seus portadores. No estúdio de Copacabana, observei um cliente cuja maioria das tatuagens relacionava-s ao tema. Tinha um coração de Cristo em estilo new school, rodeado por duas estrelas, em preto, na parte interna do braço esquerdo. No mesmo braço, na parte externa, portava uma cruz em preto. No braço direito, tatuava uma Virgem Maria. Nas costas, uma mulher com asas e uma coroa abaixo dela, também em preto, lembrava um anjo. Apenas uma tatuagem, no tornozelo, não se relacionava a este universo: um esqueleto fumando e bebendo, logomarca de uma banda de rock. Perguntei ao rapaz porque a preferência e respondeu que era “uma questão de estilo”, não representando nenhum processo de espiritualidade. Do escopo de influência do cristianismo, observa-se o anjo, o crucifixo e o próprio Cristo. O anjo, como os dados indicam, é uma tatuagem tipicamente feminina, embora no estúdio eu tenha observado alguns homens tatuarem anjos. Os anjos masculinos, por assim dizer, apresentam uma característica que chamarei bíblica, referindo-se visivelmente à religião cristão, por portarem trombetas ou estarem junto a elementos cristãos como a cruz. Os anjos femininos, por outro lado, costumam apresentar aspecto infantil, não apenas no traço e paisagem do desenho, mas o próprio anjo muitas vezes é uma criança, confundindose com a figura do Cupido, outra tatuagem tipicamente feminina. Conforme visto, os “desenhos femininos” se caracterizam, também, por traços infantis. O pergaminho é um desenho difícil de ser analisado, pois pode se referir a uma série distinta de expressões religiosas. O São Jorge, de igual maneira, pode estar ligado à religiosidade cristã católica bem como aos cultos afro-brasileiros. Um dos santos mais populares do país, tão popular na cidade do Rio de Janeiro que sua data consiste em feriado

133 municipal, seria estranho não encontrá-lo entre os desenhos tatuados. Na primeira visita que fiz a um estúdio de Copacabana, observei outro São Jorge ser tatuado nas costas de um cliente. Do Oriente, perpassando ainda a influência da Nova Era sobre camadas urbanas brasileiras, observa-se o Buda, símbolos indianos, egípcios e celtas. A cultura celta tem sido base para uma série de religiosidades estrangeiras, que chegaram ao país dentro do escopo da Nova Era, como o druidismo e a wicca, por exemplo, dentro do que se considera como neopaganismo. Best-sellers sobre o lendário rei Artur, incluindo a famosa obra de Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon, ajudaram a popularizar a cultura celta entre determinadas camadas médias urbanas. Elementos egípcios, por outro lado, podem ser encontrados em outras vertentes da Nova Era, como ordens maçônicas e a ordem RosaCruz. Misticismos diversos são, ainda, popularmente ligados ao Egito e constantemente explorados em filmes de cinema, por exemplo. Nesse sentido, o ankh e o olho de Hórus são os símbolos egípcios mais populares. Os motivos indianos, por sua vez, apareceram apenas recentemente na tatuagem, na última década. Consistem em desenhos com divindades indianas, ou símbolos vinculados a fragmentos da cultura indiana, como a prática da ioga. O om, som nasal, corresponde a uma palavra em sânscrito. Poderia estar sob a categoria “alfabeto”, mas não creio que seja pensada como uma palavra mais do que como um símbolo. A mandala, por outro lado, parece ter conquistado vida própria na Nova Era, sendo utilizada em diversos tipos de práticas terapêuticas, embora seja um elemento da cultura indiana. Creio que a aparição de todos estes elementos deve-se à influência da Nova Era no cotidiano urbano. Não é possível afirmar que estes desenhos signifiquem o alinhamento do tatuado a tais práticas, mas esta parece a alternativa mais provável. Estes elementos estão disseminados por um âmbito grande de manifestações culturais, religiosas ou terapêuticas, impossibilitando uma generalização, pois são elementos de fácil acesso, não estando restritos a grupos específicos.

134 4.3. Oriente-se As tatuagens orientais, sobretudo de inspiração japonesa, são comuns e mesmo tradicionais no universo ocidental da tatuagem. Desde o século XIX, o Ocidente tem contato com motivos iconográficos japoneses (GILBERT, 2000), que são popularmente chamados de orientais, às vezes envolvendo iconografia chinesa. Contudo, só um especialista saberia diferenciar o que é chinês do que é japonês, sendo utilizada a categoria mais genérica oriental para designar ambos. Entre as tatuagens orientais procuradas nos meses pesquisados estão o samurai, o dragão e o kanji, conhecido como letra japonesa, embora não se trate de letra, mas de ideograma. Nos estúdios de tatuagem, é comum haver uma seleção de ideogramas, japoneses e/ou chineses, concernentes a idéias como “amor”, “força”, “beleza”, “riqueza”, entre outros. Infelizmente, as fichas analisadas não trazem o significado o ideograma tatuado. Alguns estúdios, ainda, escrevem o nome do cliente em ideogramas orientais. Entre as mulheres, são o quarto tipo de desenho mais popular, perdendo apenas para as flores, borboletas e estrelas. Entre os homens, é o desenho mais procurado. Neste sentido, é necessária uma reflexão maior. 23.45% dos homens optaram por este motivo contra 8% das mulheres. Observe-se que é um dos motivos mais populares, contabilizando, entre homens e mulheres, 12.25% da preferência do público. Creio que este motivo é mais procurado pelos homens porque enseja relações com atividades guerreiras, como as artes marciais, constituindo-se uma marca do ethos guerreiro, como ele é observado no universo da tatuagem. Gráfico n. 10 – Os desenhos masculinos em percentuais. 35,00% 30,00% 25,00% 20,00% 15,00% 10,00% 5,00% 0,00%

Ideograma

Tribal

Letra

desenhos associados a agressividade

135 A maior parte dos desenhos “masculinos” envolve algum tipo de elemento de agressividade, seja na escolha por animais selvagens ou por desenhos associados a um imaginário guerreiro, como caveiras – que não aparecem nos dados levantados, mas foram observadas em campo –, samurais, índios e o próprio dragão. O significativo número de ideogramas poderia sugerir a expressão de uma masculinidade menos agressiva, menos pautada em símbolos de violência. Contudo, se somados, os desenhos relacionados a alguma forma de agressividade são a maioria, pois estão disseminados em categorias e elementos distintos. Poder-se-ia incluir neste grupo: dragão, samurai, índio, centauro, escudos de time de futebol, tubarão, águia, cachorro, tigre, onça, leão, escorpião, aranha e asa com fogo. Somados estes desenhos apresentam um total de 37 indivíduos em 132 homens, ou seja, 28%. O dragão, raramente especificado como chinês ou japonês, pode apresentar outras fontes de inspiração, como a Europa medieval. O dragão mais comumente tatuado é oriental. Muitas vezes, contudo, tatua-se o dragão em estilo tribal, ou seja, todo em negro, sem utilização de outras cores. O dragão oriental costuma ser colorido em verde com vermelho ou vermelho com amarelo e azul. Pode apresentar um fundo tipicamente japonês ou não. Como é uma tatuagem tradicional, encontra-se em quase igual quantidade entre homens e mulheres, com uma ligeira predominância deles. Para alguns, o dragão é um símbolo de força. 4.4. Ameríndios de norte a sul Os desenhos de inspiração indígena são buscados, sobretudo, por homens. São apenas 1.2% da preferência do público total. Também parte do escopo iconográfico tradicional da tatuagem ocidental, envolve normalmente a representação de índios norteamericanos, a cavalo, com armas na mão, ou de chefes indígenas, mais velhos, portando vistosos cocares. As índias, por sua vez, são representadas com tranças, tatuando-se somente seu rosto. O totem e a pena, da mesma forma, fazem menção a culturas indígenas não-brasileiras. Nos últimos tempos, contudo, têm surgido representações de índios brasileiros.

136 Tatuar um índio norte-americano é, sem dúvida, um traço da influência cultural norte-americana tanto na tatuagem brasileira, quanto na cultura brasileira contemporânea, dada a magnitude do escopo de influência norte-americana em todo o mundo, sobretudo de sua indústria cultural. Pode-se tratar, também, neste aspecto, de uma influência dos filmes de cinema do tipo faroeste. O movimento Nova Era, por sua vez, trouxe a religiosidade destes indígenas a um público mais diversificado, por meio da divulgação de práticas de xamanismo. Neste contexto, tatuar um índio brasileiro pode ser uma mensagem política, de crítica à influência norte-americana tanto quanto de exaltação da cultura brasileira. As índias, por outro lado, são apenas mais uma variação de um antigo tema da tatuagem ocidental: as mulheres. Na tatuagem tradicional, elas aparecem como um dos vícios do homem (junto à bebida e aos jogos de azar), como amantes ou como objetos de desejo (formas abundantes, muitas vezes nuas), algumas vezes beirando ao fetichismo (vestidas de enfermeiras ou de marinheiras, por exemplo). 4.5. A febre tribal A tatuagem tribal foi muito popular na década de 1990, e parece manter sua popularidade, embora não seja a mais procurada atualmente. Atinge um público tanto feminino quanto masculino, mas proporcionalmente tem havido uma preferência maior masculina. São 12.9% das escolhas masculinas e 6.6% das femininas, quase a metade. Agrupando-se ambos os gêneros, são 8.2% da escolha do público. Menos procuradas, portanto, que japonesas/orientais, insetos e os corpos celestes. A preferência masculina por essa tatuagem se deve, a meu ver, à preponderância de traços negros, com espirais e retas pontiagudas. As retas, na forma de espinhos, dão ao desenho uma agressividade buscada pelos homens na tatuagem. Como a coloração é neutra e as formas são abstratas, pode ser utilizada igualmente pelos dois sexos. As tribais se tornaram tão populares que foram misturadas a diversos outros desenhos. No estúdio pesquisado, há muitas flores, devidamente coloridas, com traços tribais em negro perpassando o fundo do desenho. Em alguns casos, a mistura se dá com elementos celtas, chineses ou de quaisquer outras origens. A criatividade levou os

137 tatuadores a desenvolverem também desenhos menos abstratos com traços tribais, como rosas negras com traços pontiagudos. O sucesso da tribal não foi apenas carioca. Le Breton (2002) indica que na França o motivo foi também popular e sugere que as revistas americanas de tatuagem, como a pioneira Tattootime, lançaram a moda em todo o mundo. Na França, o autor associa a popularidade das tribais, bem como a disseminação de certas práticas de modificação corporal, como a tatuagem e o piercing, entre outras, à emergência do que chama de “primitivos modernos”. Estes são indivíduos que criticam a sociedade ocidental, incorporando formas de adorno corporal e mesmo estilos de vida que julgam contrários a esta sociedade, tomando culturas tradicionais longínquas, que classificam como “primitivas”, como fonte de inspiração. Estas culturas são vistas como mais espiritualizadas, mais conectadas com os corpos. Apesar da crítica, diz o autor, os “primitivos modernos” não têm a intenção de abandonar o Ocidente e desfrutam de todas as comodidades que este pode produzir. Creio que o sucesso da tribal aqui se deve ao seu uso em países modernos. Trata-se de mais uma forma de importação cultural, copiando-se o que se faz fora do país, em sociedades que se tornam de alguma forma modelos para o país, inclusive em nossas manifestações culturais, mesmo no universo da tatuagem. 4.6. Lendas, feitiços e mitologia O grupo de desenhos que denominei “mitológico” envolve elementos lendários, como a sereia, a fada, a fênix, o centauro, o duende e o cupido, ou vinculados à idéia de magia, como a bruxa e o mago. São tatuagens sobretudo femininas, à exceção do mago e do centauro. Contudo, durante a observação de campo, pude perceber que o centauro é igualmente procurado por mulheres. As sereias, que compõem parte do repertório tradicional, e antes adornavam corpos masculinos, são hoje procuradas também por mulheres. Os desenhos “mitológicos” são 3% das escolhas masculinas e 4.7% das femininas, uma diferença devida à popularidade das fadas entre elas. A fênix é o único desenho que apresenta uma mesma procura por homens (0.75%) e mulheres (0.6%). No total, os “mitológicos” são escolhidas por 4% do público.

138 Como os desenhos sob a categoria “corpos celestes”, os “mitológicos” envolvem uma idéia de misticismo ou magia, de seres encantados como fadas e duendes, seres que podem atuar sobre a vontade alheia, como magos, bruxas e o cupido, ou ainda de seres fantásticos, como a fênix, a sereia e o centauro. É um universo lúdico, onde o sonho predomina sobre a realidade. Torna-se, desta forma, um universo infantil, o que caracteriza muitos dos “desenhos femininos”. Quando adornam corpos masculinos, sãos os atributos masculinos aqueles visados pelos clientes nestes desenhos: a força da fênix, que jamais morre; o aspecto guerreiro do centauro, metade humano, metade animal; a sedução feminina da sereia, outra forma tradicional de representação das mulheres como tema na tatuagem. 4.7. Símbolos e signos Sob a categoria “símbolos” agrupei uma série de desenhos de significados distintos. Apresentam 3.8% da preferência masculina e 2% da feminina. São 2.4% da preferência do público total. Escudos de time de futebol indicam não apenas um pertencimento a tal grupo mas uma paixão tão grande a ponto de ser tatuada. Escudos ou insígnias de grandes times de futebol podem ser comumente encontrados no repertório iconográfico da tatuagem. Podem estar adornados por águias ou outros elementos. O signo zodiacal de Virgem e o pentagrama, por sua vez, entram dentro do que tenho chamado de escopo de influência da Nova Era. Signos do zodíaco ou seus animais correspondentes, como o leão e o escorpião, principalmente, são freqüentemente tatuados pelas mulheres. O pentagrama, por outro lado, pode estar vinculado a uma série de religiosidades diversas. O conhecido símbolo hippie do “paz e amor”,

muitos anos após o auge do

movimento, parece ainda encontrar espaço entre os corpos contemporâneos. O trevo de quatro folhas, símbolo de boa sorte, também pode ser encontrado, talvez como uma espécie de talismã. Como outros desenhos populares analisados aqui, não é possível estabelecer uma relação direta entre o trevo e a decisão reflexiva de tatuá-lo em

139 busca de boa sorte, pois muitos desenhos populares sofrem um esvaziamento de significado. 4.8. Registrar, escrever, tatuar Escrever na pele, ao invés de desenhar, não é fenômeno recente (GILBERT, 2000). Nomes de amantes, de lugares visitados, de eventos considerados importantes, de lemas pessoais faziam parte do universo da tatuagem ocidental entre os séculos XIX e XX, e marcavam, sobretudo, prisioneiros. Hoje, a escrita sobre a pele toma uma conotação ligeiramente diferente. Se o século XIX produziu tatuagens como fatalité, pas de chance, sans patrie, vaincu non dompté, vengeance, entre outros, o que se escreve sobre a pele hoje é muito diferente. Não há registro, nas fichas levantadas, de quais palavras foram tatuadas. Em campo, percebeu-se que palavras em inglês e português são as mais utilizadas, como no caso de uma cliente que tatuou love no pulso ou no caso do fã de música reggae que tatuou positive vibrations nas costas. As frases, ao que tudo indica, são hoje de cunho mais pessoal, não havendo uma expressão freqüentemente observada. Entre as formas de tatuagem escrita mais populares, encontra-se, ainda, o nome ou iniciais da pessoa amada. Letras dizem respeito, normalmente, a iniciais de nomes. Eu chamo essas tatuagens de tatuagens de amor. Elas serão mais profundamente analisadas adiante. Letras e nomes também podem se referir a filhos. Considero como tatuagem de amor apenas aquelas que dizem respeito a relacionamentos afetivo-sexuais. Homenagens a pais ou filhos são freqüentemente encontradas, também, na forma de fotografias, no estilo realista de tatuar. Essa é uma forma mais cara de se prestar homenagens, e costuma envolver pais já falecidos ou filhos pequenos. A título de comparação, observe-se que as letras somam 22 casos, enquanto nomes são apenas 5, e homenagens realistas contam igualmente 5 casos. São preferidas por 12.9% dos homens e 6.3% das mulheres, metade do público masculino. No total, 8.1% dos clientes opta pelo motivo escrito, número próximo ao de clientes que optam pelas tribais.

140 4.9. Outros bichos Separei os animais que são tatuados em grupos distintos: domésticos ou domesticados, selvagens, marinhos, pássaros e insetos ou animais peçonhentos. Os animais considerados mais dóceis e menos agressivos são, via de regra, preferidos por mulheres, enquanto os demais são preferidos pelos homens. O tubarão e o tigre apareceram como preferidos dos homens, enquanto a borboleta tem sido a última moda entre as mulheres. Animais marinhos contam com a preferência de 7.5% dos homens e 5.1% das mulheres. No total, 5.7% dos clientes optam por este tipo de desenho. Os pássaros representam apenas 0.75% das escolhas masculinas, enquanto são 2.9% das femininas. No total, 2.3% dos clientes optam por este tipo de desenho. Os animais domésticos ou domesticados são 0.75% da escolha deles e 0.6% da escolha delas. No total, apenas 0.6% dos clientes optam por este tipo de desenho. Os animais selvagens contam a preferência de 6.8% dos homens e 1.5% das mulheres. Representa 2.8% das escolhas totais. Os insetos ou animais peçonhentos formam 3.05% da preferência masculina contra 16% da feminina, devido à popularidade das borboletas entre elas. No total, forma 12.4% da preferência dos clientes, consistindo no segundo motivo mais popular, juntamente com as flores, atrás apenas dos corpos celestes. Durante a pesquisa de campo, observei diferentes tipos de borboleta serem tatuados: daquelas com traços infantis e cores claras àquelas de traço realista, imitando uma borboleta real pousada sobre a pele. Aparentemente, não há uma explicação para tamanha popularidade do inseto, que de fato vem povoando o repertório de “desenhos femininos” há muitos anos. É o desenho mais procurado entre as mulheres. A borboleta, como as flores e o beija-flor, remete à idéia de delicadeza e fragilidade, que vinculamos, em nossa sociedade, às mulheres. Os insetos parecem, de um modo geral, agradar mais às mulheres do que aos homens. Insetos como o escorpião, contudo, vistos em nossa cultura como agressivos, são mais procurados por eles. A popularidade do escorpião tem, a meu ver, certas motivações: primeiro, é um signo do zodíaco; segundo, em função da interpretação astrológica, foi associado à sexualidade; terceiro, foi uma tatuagem popularizada pelo filme Assassinos por Natureza (Natural Born Killers), de Oliver Stone, de 1994, em que a protagonista

141 apresentava um escorpião tatuado na barriga. Na época, lembro que uma amiga tatuou um escorpião no mesmo lugar em função do filme. Não creio que hoje ele seja motivação para tanto, pois se passaram dez anos, mas o escorpião entrou para o escopo de tatuagens femininas. O beija-flor e o golfinho são os animais mais populares após a borboleta. Segundo Marques (1997), o beija-flor viveu o auge de sua popularidade na década de 1980. O golfinho teve, também nesta época, o seu momento. De fato, os “bichos” são parte da moda, que trabalha principalmente com as peles animais e o grafismo natural de onças, tigres e zebras. Nas tatuagens, os bichos são outros, mas a idéia de moda, em que um sucede ao outro, está presente. Entre os animais domésticos, segundo observação de campo, o cachorro é o mais popular, embora gatos sejam também procurados. O cachorro é utilizado na forma de tatuagem chamada cover-up, devido à possibilidade de utilização de cores escuras. Nem sempre o bicho tatuado é uma reprodução do animal de estimação. 4.10. O jardim encantado Enquanto apenas 0.75% dos homens optam por tatuar flores, este motivo representa 11.5% das escolhas femininas. No total, representam 8.5% das escolhas dos clientes. Embora a borboleta seja o desenho mais procurado (13.7% das mulheres), se somarmos todos os elementos vegetais que agrupei sob a categoria “flores”, como “motivo/estilo”, tem-se um total de 17% das escolhas femininas, superando, portanto, a popularidade das borboletas. Se nos encontros amorosos o imaginário apresenta as mulheres como aquelas que gostam de ser presenteadas com rosas vermelhas, no universo da tatuagem elas parecem preferir outras flores, que elas mesmas escolhem e que carregam para sempre em seus corpos. A orquídea, flor frágil e sofisticada, apresenta apenas dois casos: não é uma flor popular. A flor é um tema considerado tão feminino, que a minoria masculina que opta por este tipo de desenho pode ser alvo de chacotas. Durante observação no estúdio pesquisado em Copacabana, um cliente confidenciou que foi alvo das brincadeiras dos amigos por

142 conta das suas duas sakuras48 tatuadas no braço, abaixo de seu dragão vermelho, apenas um dos três que têm tatuados no corpo. As tatuagens orientais costumam fazer largo uso de flores, como crisântemos, peônias e as sakuras. Mesmo se tratando de um elemento constituinte de um desenho maior, envolvendo um tema tipicamente masculino (o dragão oriental), a presença de flores foi suficiente para permitir a dúvida sobre a masculinidade do cliente, mesmo que apenas em tom jocoso em seu círculo de amizade. Este é mais um exemplo da estrita repartição entre temas femininos e masculinos no universo da tatuagem. 4.11. Som e fúria Se o universo musical é peça chave em muitas culturas jovens, como o punk, o funk e o hip-hop, seria de se esperar que referências à música estivessem presentes no repertório da tatuagem. Contudo, estas têm sido bastante escassas. Apresentando apenas 4 casos, o grupo que denominei “música” envolve notas musicais e claves de sol, elementos constituintes da teoria musical, utilizados para se escrever música. Trata-se, portanto, de escrever a paixão pela música na pele. Da mesma forma, Iron Maiden, conforme foi escrito em uma ficha de cadastro de clientes, refere-se a uma banda popular de heavy metal. O fã decidiu imortalizar sua admiração no próprio corpo. É um estilo escolhido por 0.75% dos homens e 0.9% das mulheres. Representa apenas 0.8% da escolha do público. 4.12. Desenhos de criança A categoria cartoon, também conhecida no universo da tatuagem como comics, refere-se a desenhos animados ou de quadrinhos. Muitos são os personagens que podem ser encontrados tatuados nos corpos cariocas: o Coyote, o Papa-léguas, as Meninas Superpoderosas, entre outros. No levantamento efetuado, foram registrados Betty Boop, Hello Kitty e a noção genérica de mangá, que se refere aos gibis japoneses, mas pode-se referir também aos desenhos animados, conhecidos como anime. Escolhido por 0.9% das

48

Sakura é uma palavra japonesa que designa um tipo de flor utilizada nas tatuagens japonesas.

143 mulheres, sem nenhuma incidência masculina. Representa apenas 0.6% da escolha do público. Os cartoons são um tipo de tatuagem em que a variação quanto ao que ser tatuado é grande. Cada novo desenho de sucesso pode levar clientes aos estúdios, como uma extensão do fenômeno de consumo. No estúdio pesquisado em Copacabana, um rapaz contava que o amigo havia tatuado o personagem Geléia, fantasma verde do filme Os Caça-Fantasmas, que posteriormente se tornou desenho animado. Tatuagem que depois foi devidamente coberta por outra porque, segundo o rapaz, tratava-se de um “modismo”. O tatuador concordou: “Ih, essas meninas moderninhas aí, tudo tatuando Meninas Superpoderosas e Hello Kitty. Daqui a 10 anos ninguém sabe o que é isso!”. O problema dos “modismo” é a relação contraditória entre a fugacidade do sucesso de um produto de consumo de massa e a permanência da tatuagem. Os desenhos que classifiquei como infantis apresentam elementos desse universo de crianças. São, portanto, elementos do universo feminino, como a Hello Kitty, personagem infantil, ao contrário de Betty Boop, mais adulta e que pode ser encontrada em novas versões que não a original, vestida de forma mais contemporânea, conforme iconografia apresentada por Mifflin (1997). Escolhido por 0.6% das mulheres, sem nenhuma incidência masculina, representa apenas 0.4% da escolha do público. 4.13. Os outros Desenhos que não pude dispor em nenhuma outra categoria foram agrupados sob a noção genérica de “outros”. Formam 3% das escolhas deles e 3.7% delas. Representa 3.5% da escolha do público. Aqui, o coração é o desenho mais popular, registrando-se 12 casos, todos entre mulheres. Presumo tratar-se, portanto, de corações apaixonados, embora o coração de Cristo seja uma tatuagem religiosa encontrada em revistas específicas da área, mas freqüentemente vista em homens. Ainda na anatomia humana, há o registro de uma língua. Em alguns casos, refere-se à boca vermelha com a língua de fora, símbolo ligado à banda de rock Rolling Stones. Se for este o caso, a tatuagem deve ser classificada no grupo “música”.

144 O bracelete é um tipo de tatuagem que envolve a parte superior do braço, como a jóia que lhe dá nome. É uma tatuagem caracteristicamente masculina. Como será visto adiante, o braço é uma região tipicamente masculina em se tratando de tatuagens. 4.14. Comparando desenhos em homens e mulheres As tatuagens mais populares entre as mulheres são a borboleta (13.7%), a estrela (12.9%) e a flor (11.5%). Nenhum outro desenho aproxima-se da casa dos 10%. Os desenhos mais populares somados formam um contingente de 38.1%, quase a metade dos desenhos escolhidos por elas. Estes são desenhos que evocam idéias de feminilidade: frágeis, delicadas, pequenas. As flores, agrupadas em todos os desenhos encontrados, representam 17% das escolhas femininas, enquanto os insetos agrupados representam 16%. Desta forma, as flores se tornam mais populares do que as borboletas. As tatuagens mais populares entre os homens são os ideogramas japoneses (14.4%), as tribais (11.4%) e as letras (10.6%). Os desenhos orientais agrupados formam 23.45% das escolhas. Os desenhos tribais agrupados e as letras, frases e escritas formam 12.9% das escolhas cada um. Isto torna as tatuagens orientais as mais procuradas pelos homens. As letras, normalmente, referem-se a iniciais de nomes, mas como a classificação utilizada foi a dos próprios tatuados, pode-se tratar de frases cujo conteúdo é desconhecido. Os ideogramas, por sua vez, só podem ser decodificados com o auxílio do próprio tatuado. Sua mensagem fica, para nós, também desconhecida. As tribais, por outro lado, têm sido uma tatuagem popular desde a década de 1990, quando surgiram. Suas linhas “farpadas”, protuberantes em “espinhos”, podem ser associadas a elementos simbólicos de agressividade. Os ideogramas, por sua vez, podem ser associados ao universo das artes marciais. Nestes dois casos, mantém-se a predominância de elementos de um ethos guerreiro como os mais procurados entre os homens. É interessante observar que ambos os motivos são tatuados predominantemente em preto, cor sóbria.

145 Gráfico n. 11 – Tatuagens mais populares entre os homens, em percentuais.

0% 36%

44%

Orientais Letras, frases e escrita ethos guerreiro

20%

Os desenhos mais diretamente associados ao ethos guerreiro – aqueles relacionados a animais selvagens/agressivos e guerreiros: dragão, samurai, índio, índia, totem, centauro, brasões de clubes de futebol, tubarão, cachorro, tigre, onça, leão, escorpião, aranha – formam 28.65% dos desenhos escolhidos por homens. Ou seja, os desenhos relacionados a temas de agressividade, morte e destruição são os mais procurados por eles. Contabilizando-se o total de homens e mulheres juntos, as tatuagens mais populares, sem distinção entre os gêneros, são: a estrela (10%) e a borboleta (10%), graças à sua popularidade entre as mulheres; a flor (8.5%), também mais popular entre as mulheres; e os ideogramas japoneses (8.1%), quase três vezes mais populares entre homens (14.4%) do que mulheres (5.7%). Agrupados os desenhos em motivos/estilos, conforme disposto na coluna 1 da tabela, observa-se que os corpos celestes são os mais populares, contabilizando 15.9% da preferência do público, seguidos pelos insetos e flores, cada um com 12.4%. Logo atrás estão as japonesas/orientais, com 12.25% da preferência.

146 Gráfico n. 12 – Desenhos mais populares sem distinção por gênero, em percentuais.

22%

28% Estrela Borboleta Flor Ideogramas

23% 27%

Gráfico n. 13 – Estilos/motivos de tatuagens mais populares, sem distinção de gênero, em percentuais.

23%

31% Corpos celestes Insetos Flores Orientais

23%

23%

5. Desenhos e subjetividade Todo tatuado ou aspirante a tatuado enfrenta alguns dilemas ao optar pela marca: qual desenho tatuar e em que parte do corpo? Esconder ou mostrar a tatuagem? Para alguns, a escolha do desenho pode ser muitíssimo criteriosa, envolvendo anos de pesquisa e busca por algo que se considere ideal. Para outros, a escolha é rápida, como se a marca fosse mais importante do que o desenho. Em outros casos, ainda, o fascínio e a sedução que a tatuagem exerce é grande o bastante para que o “tema” seja escolhido anteriormente e o desenho em si decidido de forma rápida. Para cada uma destas opções, apresentarei um caso.

147 Em janeiro de 2005, fui convidada por uma amiga, Fátima, para acompanhá-la a um estúdio. Faria sua primeira tatuagem. Enquanto um dos tatuadores preparava-se para tatuar, eu conversava com o outro, proprietário do estúdio, localizado também na Tijuca. Ele contou-me dois casos opostos. Abriu seu portfolio e me mostrou uma tatuagem de um pássaro em negro, dizendo: “Esse sujeito aqui demorou seis anos para encontrar esse desenho. Ele procurou até encontrar exatamente o que ele queria. Agora você vê, teve uma moça que veio aqui se tatuar e ela já tinha um escorpião na barriga. Eu perguntei se era o signo dela, mas ela disse que era Áries. Contou que fez a tatuagem com 14 anos e o pai dela estava com pressa, então disse para ela escolher logo qualquer desenho e ela escolheu um escorpião.” (Tatuador de estúdio visitado na Tijuca)

Entrar em um estúdio e escolher rapidamente um desenho é um fato bastante comum. Há alguns anos, observei colegas indo à residência de um tatuador, onde trabalhava. Uma das moças escolheu rapidamente seu desenho, uma forma abstrata em negro, como um desenho tribal. Durante pesquisa no estúdio de Copacabana, observei um caso análogo, em conversa de uma cliente com o proprietário, em que ela descrevia como havia escolhido sua primeira tatuagem, um sol tribal abaixo da nuca. O tatuador comentava que o desenho precisava de um retoque, ao que a cliente informou que o havia tatuado há sete anos: “Eu entrei no estúdio, folheei os álbuns e vi esse [desenho]. Pensei ‘ah, esse é bonitinho’, e escolhi assim, rápido”. (Cliente do estúdio pesquisado em Copacabana)

A primeira citação apresenta dois casos opostos. Fátima, por sua vez, constitui o terceiro caso. Jamais havia me dito que desejava se tatuar. Enquanto caminhávamos pela rua em direção ao estúdio, eu questionava sua fascinação repentina pela marca. “É, eu nunca quis... mas é engraçado, quase todo mundo que eu conheço está fazendo ou querendo fazer uma. Impressionante!” (Fátima)

148 Ela me listou o nome de quem havia se tatuado há pouco tempo ou havia lhe confidenciado o desejo por uma tatuagem. A lista envolvia cinco pessoas, pelo menos. Uma delas havia lhe indicado o estúdio, em função principalmente do preço. Fátima pensava em tatuar uma cobra ou uma fada, na nuca, no pé ou na lombar, mas queria um desenho pequeno. Quando chegamos ao estúdio, o tatuador desenhava uma fada para ela. Não havia nenhuma nos álbuns de desenhos, mas as revistas de tatuagem disponíveis no estúdio apresentavam pelo menos uma cada. Ela ficou encantada com o “desenho personalizado”, conforme suas próprias palavras, e nem folheou as revistas para saber se desejava algo diferente. Escolheu a cor do cabelo e perguntou minha opinião sobre a cor do vestido. Queria que as asas fossem bem coloridas e sugeri algumas cores. Não pediu nenhuma alteração e ficou satisfeitíssima de chegar ao estúdio e encontrar o tatuador desenhando sua fada (uma amiga havia dito ao profissional que ela desejava tatuar uma fada). Queria levar o desenho consigo para que ninguém mais o tatuasse, pensando que seria só seu, mas, cedendo aos pedidos do proprietário, permitiu que uma foto do trabalho já concluído fosse disponibilizada na Internet, na homepage do estúdio. “Eu me sinto uma fada. Eu não quero uma borboleta, beija-flor, nada disso. Eu acho que eu sou uma fada, sabe? É um desenho comum, muita gente tem. Eu penso nisso. Mas essa [fada] aqui expressa o que eu estou sentindo agora. Ela está voando, em movimento, e eu estou também. Eu quero coisas melhores, eu quero mudar. Esse ano [2005] vai ser muito bom.” (Fátima)

A fada, portanto, representava um momento de vida pelo qual estava passando. Esse momento de vida necessitava, do seu ponto de vista, de uma marca que fosse visível externamente. Em nenhum momento, ela se referiu à vontade de embelezar seu corpo, embora suas preocupações com o tamanho e a localização do desenho expressassem, além das representações costumeiras sobre o que uma mulher pode ou deve tatuar, uma preocupação estética que estava em grande parte, é verdade, permeada por essas representações de gênero. Ao contrário de tantos casos que presenciei nos estúdios pesquisados, Fátima não estava preocupada em esconder a marca. Como professora de

149 dança, seu corpo está normalmente à mostra. Seguia a lógica de localização dos desenhos nos corpos femininos, onde nuca, pé e lombar são áreas bastante procuradas. Como minha amiga, Fábio, um senhor aposentado, cabelos brancos, projetava no desenho tatuado uma íntima relação com seu momento de vida. O próprio desenho foi escolhido em função de sua significação mística. Morador de Brasília, estava no Rio de Janeiro para visitar o filho, um integrante de uma banda de rock de sucesso e cliente do estúdio de Copacabana. Sob a influência do filho, Fábio decidiu se tatuar. Contou-me que seu filho costumava fazer uma nova tatuagem para representar cada novo momento de vida. Quando o proprietário do estúdio tatuou uma estrela no rapaz, a banda começou a fazer sucesso. Fábio disse que a tatuagem não apenas marcava a nova etapa de vida, como aposentado, como lhe traria felicidade nessa nova etapa. Para tanto, escolheu uma cobra, cuja cor foi discutida com o tatuador, que a desenhou na hora. Foi feita sobre o braço, como um bracelete, em verde e coral. “A cobra simboliza a vida, os recomeços. Por isso ela está naquele emblema da medicina. Eu pesquisei isso, porque eu queria um símbolo para essa minha nova vida.” (Fábio)

Não há como imaginar que os desenhos escolhidos por cada sujeito não representem, de alguma forma, valores individuais, preferências, aspirações, como no caso de Fátima e Fábio, ou marcos de vida, como no caso de Fábio e, segundo ele, também de seu filho. Para a moça que escolheu o escorpião com pressa, talvez apenas a marca fosse importante e não o desenho, no sentido de que não necessitava de uma reflexão longa e uma busca pelo desenho ideal, como o cliente que procurou por seis anos o pássaro negro que gostaria de tatuar. Contudo, creio que em muitos casos a tatuagem não está relacionada diretamente às características mais evidentes de uma pessoa. Fátima, professora de dança, não tatuou nada que lembrasse seu ofício. Neste sentido, gostaria de apresentar o caso de seu Nelson. Conheci uma dupla de videomakers que tinha realizado um documentário sobre tatuagem no estúdio pesquisado em Copacabana. Eles me chamaram a atenção para seu Nelson, 62 anos, pai-de-santo, presente não apenas no documentário mas também no seu pôster promocional. Seu Nelson, segundo as fotografias disponíveis na homepage do documentário, tem algumas tatuagens relacionadas ao seu ofício, como o nome de um

150 orixá, palavras em nagô e búzios. As palavras em nagô, no entanto, foram escritas em letras góticas, ou seja, oriundas de uma esfera cultural outra. Em suas costas, há um painel japonês, em preto, com elementos como a carpa, água e flores. O que Fátima, Fábio e seu Nelson têm em comum? Eles demonstram que aquilo que a tatuagem representa é um interesse estritamente pessoal, influenciado por uma gama quase ilimitada de fatores, expressando não apenas o que se pensa que é, o que se faz (ofício, profissão, hobby), um momento de vida, mas também o apreço estético, a preferência por um determinado tipo ou estilo de tatuagem. Francisco, cliente do estúdio de Copacabana, procurava manter um mesmo estilo de tatuagem, preocupado com a estética corporal. Ao mesmo tempo, como prefere o estilo oriental e, dentro dele, os dragões, disse: “Eu pesquisei muito, sabe? Eu fui saber que têm vários tipos de dragões, como se fossem raças diferentes: do ar, do fogo, e tal. E eu só faço dragão oriental. Eu não quero cobrir, sabe? Meus amigos, eu vejo, se arrependem e têm que cobrir. Tem um camarada meu que tatuou um Geléia dos Caça-Fantasmas no peito, assim todo verde! Pô cara... Geléia!? Qual o sentido disso? Agora quer cobrir!” (Francisco)

É interessante notar aqui o julgamento sobre o que é apropriado e o que não é em termos de tatuagem. Francisco pensa a tatuagem como algo que representa algum gosto pessoal, de preferência vinculado a algum significado conhecido, como demonstra ao contar que pesquisou sobre os dragões antes de se tatuar. Ele também contou que gosta de fazer suas tatuagens aos poucos, acrescentando novos elementos ou aumentando os elementos de fundo, de forma a torná-la maior, mas apenas após um processo de reflexão. Para Francisco, trata-se de um processo de constante racionalização, calculando-se – muitas vezes contra a sugestão do tatuador – o quão grande um desenho pode ser, em que região tatuar, quais cores, quais significados os desenhos têm, quais desenhos combinam entre si, quais regiões do corpo quer deixar livres. Francisco sabia que sua tatuagem do braço só poderia ir até onde a manga de camisa a escondesse. Escolhe cores quentes, especialmente o vermelho, porque gosta mais delas. Só tatua dragões também em função de uma preferência pessoal. O novo dragão que fazia fora deixado só no traço, sem cores, para que

151 ele pudesse refletir sem pressa sobre os tons mais apropriados. Ao mesmo tempo, dizia gostar de ver a nova tatuagem no espelho e assim pensar em como torná-la mais bonita. Ao contrário da grande maioria dos tatuados que optam por mais de uma sessão em função da extensão do desenho e da dor implicada no processo, ou do preço a ser parcelado, Francisco marcava suas sessões para que houvesse tempo tanto para a apreciação do desenho quanto para uma reflexão sobre como torná-lo exatamente o que ele desejava. Descobrir o que se deseja pode ser um processo demorado. A busca e a pesquisa pelo desenho ideal são o reflexo da dificuldade muitas vezes encontrada em traduzir sentimentos em um desenho ou simplesmente encontrar algo que agrade esteticamente. 6. Originalidade e modismos: formas de distinção e pertencimento O discurso de Francisco apresenta uma preocupação constante no universo da tatuagem: a originalidade. Na linguagem dos estúdios, existem os desenhos de catálogo e aqueles “individualizados”. Estes são feitos especificamente para um cliente, como no caso de Fátima e sua fada, a partir de um desenho de catálogo servindo como base, mas não igual. Esta diferenciação apresenta, a meu ver, um sentido dado pelos tatuados à marca: ela se torna sinônimo não apenas de distinção, mas também de autonomia. Para ilustrar esta preocupação, apresento alguns casos. Em uma tarde no estúdio de Copacabana, observei um surfista à procura de uma tatuagem de onda. Foi sugerido a ele que procurasse algo que o agradasse na Internet e então levasse ao tatuador para que fosse feito um desenho individualizado para ele. O rapaz reclamava que não encontrava nada que gostasse na Internet e queria ver alguns desenhos no estúdio. Viu, então, um desenho de Netuno em um quadro na parede e comentou: “Uma coisa assim, podia ser, um Netuno. Mas esse aqui mó galera tem. Eu não quero, vou ficar igual a todo mundo.” (Cliente do estúdio pesquisado em Copacabana)

No mesmo estúdio, presenciei uma conversa entre Francisco e o tatuador, em que este questionava tatuagens ligadas a desenhos animados da moda. Produtos de um consumo efêmero, a seu ver não serviam como temas para serem tatuados, como as Meninas Superpoderosas ou a Hello Kitty.

152 Aqui, não se trata de ter o mesmo desenho que outros, mas de ter tatuado algo cujo significado individual é questionável, pois está vinculado a um fenômeno de consumo de massa, que, imagina-se, dará lugar a outro. É o mesmo tipo de pensamento de uma das mães entrevistadas pela Revista Vida, em que o piercing aparecia como uma moda, um consumo fadado a se extinguir em pouco tempo, cujo significado pessoal é nulo e que se dissemina em um processo de imitação que é pensado como o oposto da originalidade e da individualidade. Muitos tatuadores, quando copiam desenhos dos álbuns à disposição dos clientes nos estúdios, tentam modificar ligeiramente os desenhos para que não fiquem exatamente iguais. Outros, frente à disponibilidade dos clientes em ter tatuagens já popularizadas, como a tribal na lombar entre as mulheres, tentam demovê-los da idéia e fazer com que busquem outros desenhos. O segundo tatuador do estúdio de Copacabana disse agir desta forma. A procura por um tipo popular de desenho é, para ele, um “modismo”, onde o papel de amigos e conhecidos é fundamental na escolha pelo desenho, que é “copiado”, ou seja, influenciado por tatuagens que eles têm. Quando

o

tatuador

fala

em

modismo,

constrói

uma

oposição

entre

originalidade/individualidade e cópia, estabelecendo, inclusive, uma hierarquia em que a cópia é de menor valor. O sentido da palavra modismo aqui é o de algo uniforme, é a cópia de outro, a imitação, que revela um sujeito incapaz de pensar por si e ter opiniões e gostos próprios. Esta associação entre a tatuagem e a individualidade, em seu sentido de originalidade, sugere que a marca não tem apenas um uso estético, mas é também um signo de aceitação, uniformizando a aparência, ou de distinção, criando uma hierarquia onde quem tem tatuagem é “mais” do que quem não tem, porque é uma pessoa mais individualizada, que expressa sua autonomia na própria pele, na aparência, instância imediata de comunicação de si ao mundo. A tatuagem serve, na sua qualidade de signo de distinção, como signo de individualidade. Estabelece-se, novamente, uma hierarquia entre a uniformização e a individualização em que a última emerge como mais valorizada. A idéia do tatuador em nada difere da noção da tatuagem como instrumento de posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002), ferramenta que demonstra ao mundo a autonomia do sujeito tatuado. Isso se expressa tanto nas preferências da juventude quanto no recorte de gênero e agora na própria escolha por locais e desenhos a serem tatuados.

153 Talvez por isso também a tatuagem de amor seja mal-vista pelos tatuadores, que ainda assim não tentam convencer os clientes a deixarem de fazê-la. Quadro n. 2 - Oposição modismo/ originalidade Modismo • • • • •

Imita outras pessoas Exibir-se (para o olhar alheio) Pertencimento Processo de influência da sociedade no indivíduo Uniformidade ⇓ menor valor

Originalidade • • • • •

Tem gosto próprio Para si mesmo Autonomia Individualismo (resistência ao processo de influência do coletivo) Distinção ⇓ maior valor

Esta associação da tatuagem com uma postura individualista, da marca com um processo de distinção, pode explicar por que, em alguns casos, o desenho não é tão relevante quanto a própria marca. Portá-la é, por si só, um sinal de distinção, que se converte numa afirmação de individualidade e autonomia, uma afirmação de si. Conforme pode ser visto no quadro acima, uma das formas que a oposição originalidade/modismo toma é a oposição pertencimento/distinção. A primeira citação, do rapaz em busca de um desenho de onda, representa este tipo de pertencimento. Surfista, todos os colegas de praia ostentavam tatuagens relacionadas ao mar e ele buscava a sua também. Contudo, muitos deles tatuaram Netuno, desenho que o rapaz rechaçou imediatamente, pois até o pertencimento deve manter algum grau de distinção. Sabino (2004, p. 265-7) apresenta alguns exemplos entre seus entrevistados: “Mandei esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem na academia, e no tatame, os caras mais ‘feras’ têm as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei esse dragão no braço... agora quero fazer um Pitbull aqui nas costas.” (Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiu-jitsu) “Esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’ [fumando maconha], tá vendo? E aqui no esquerdo eu tenho a planta [vira mostrando um desenho de uma folha de cannabis], fiz as duas quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu gosto de punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá da banda fuma de vez em quando, eu não podia ser diferente...” (Rafael. 28 anos. Economista) “Ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá do curso tinha, aqui na academia as garotas todas têm tattoo e piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu

154 mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu comecei a vender uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz.” (Tatiana. 18 anos. Estudante) “Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí, minhas amigas todas fizeram e os namorados acharam ‘manero’; aí juntei dinheiro e fui na Banzai e fiz essa flor aqui na virilha [vira abaixando um pouco a bermuda de lycra e mostrando a tatuagem]. Doeu muito, cara, uma dor horrível, mas valeu a pena.” (Carol. 24 anos. Advogada)

O pertencimento toma a forma, como observa o autor, da identificação com um grupo determinado em que as tatuagens são parte do repertório corporal. Não se busca apenas a marca, mas também desenhos associados ao grupo ao qual se quer estar identificado: a onda para os surfistas, o dragão e o pitbull para os lutadores, por exemplo. Entre as mulheres, contudo, estes símbolos parecem menos associados a grupos urbanos, aqui definidos pela prática de um esporte (surfistas e lutadores) ou pela preferência por um estilo de música, do que a uma rede de amizades que fornece as bases de uma sociabilidade cotidiana: o curso, a academia de ginástica, as amigas, os namorados das amigas. A idéia presente nos relatos acima é a de identificação, de indistinção frente ao grupo de pertencimento. Não se pode e não se deseja ser diferente. Pelo contrário, a tatuagem tornou-se um meio de identificar visualmente, entre outros elementos, quem pertence e quem não pertence ao grupo, um pertencimento tão forte e ativo no cotidiano destes sujeitos que pode ser inscrito a sangue no corpo. Este é um processo oposto àquele de Fátima, por exemplo, em que a fada tatuada, embora desenho comum entre mulheres, ganhou um significado pessoal. Processo também distinto foi o de Fábio, em busca de um desenho que representasse suas aspirações pessoais para a nova fase de vida que ele via se descortinar. O oposto do pertencimento não é apenas a distinção, vista aqui como parte da individualização, mas também o significado pessoal que é dado à marca e ao desenho na pele. 7. Mapeando o corpo tatuado As regiões do corpo tatuadas diferem segundo o gênero. Conforme foi dito em campo por uma tatuadora, as mulheres preocupam-se em não apresentar tatuagens que considerem masculinas, tanto em relação aos desenhos tatuados quanto à sua localização no

155 corpo. Elas consideram o braço como uma região masculina. Creio que os homens operam esta distinção da mesma forma que elas, fugindo de desenhos considerados femininos e localizando as tatuagens em regiões que não sejam igualmente consideradas típicas das mulheres. A partir da análise das fichas de cadastro de clientes do estúdio pesquisado na Tijuca, referentes aos meses de setembro e dezembro de 2003 e janeiro de 2004, foi possível elaborar a tabela abaixo, que apresenta as regiões do corpo escolhidas para serem tatuadas, divididas segundo o gênero. Gráfico n. 14 – Regiões do corpo mais freqüentemente tatuadas por homens e mulheres, em termos percentuais.

0,7

61,70%

0,6 0,5

Homem Mulher

0,4 0,3

23,60%

0,2 0

14,10%

9,50%

0,1 0

pé/calcanhar

26,40%

2,20%

2% pecoço/nuca

costas

braço

Tabela n. 4 – Regiões do corpo tatuadas, segundo gênero. REGIÕES TATUADAS Costas

HOMENS

MULHERES

TOTAL

21 (14.1%)

97 (26.4%)

118

Braço

92 (61.7%)

8 (2.2%)

100

Pescoço/nuca

3 (2%)

87 (23.6%)

90

Lombar/cóccix

-

22 (6%)

22

Tornozelo

-

15 (4%)

15

Calcanhar/pé

-

35 (9.5%)

35

Punho/pulso

-

6 (1.6%)

6

Virilha

4 (2.7%)

11 (3%)

15

Perna

10 (6.7%)

20 (5.4%)

30

Abdome/barriga

3 (2%)

26 (7%)

29

Ombro

6 (4%)

23 (6.2%)

29

156 Dedo

2 (1.3%)

2 (0.5%)

4

Peito

4 (2.7%)

2 (0.5%)

6

Quadril/pelve

-

4 (1%)

4

Costela

4 (2.7%)

3 (0.8%)

7

Cintura

-

4 (1%)

4

Orelha/ Atrás da orelha TOTAL

-

3 (0.8%)

3

149 (100%)

368 (100%)

A região mais tatuada pelas mulheres é a das costas (26.4%), seguida pelo pescoço/nuca (23.6%), e pelo calcanhar/pé (9.5%). Observe-se que as costas e o pescoço/nuca correspondem à metade das tatuagens femininas (50%). As costas são a segunda região corporal mais procurada pelos homens para a tatuagem (14.1%). Constituise, assim, em uma das regiões prediletas para tatuar, contabilizando um total de 118 ocorrências. É importante observar, neste aspecto, que é a região corporal mais extensa, onde se pode executar tatuagens maiores, como os painéis, típicos da tatuagem japonesa, que tomam toda a extensão das costas. No entanto, os painéis são raramente procurados, pois o investimento financeiro necessário é muito alto e a tatuagem é demorada, necessitando-se de várias sessões. Apesar das costas serem mais procuradas por mulheres (26.4%) do que homens (14.1%), não creio que se trate de uma região feminina, na medida em que os homens a tatuam em larga escala. A região preferida por eles, no entanto, é o braço. As costas ficam em segundo lugar na preferência deles. O braço é o local masculino por excelência (61.7%), apresentando uma porcentagem de incidências superior à das costas e pescoço/nuca juntas nas mulheres (50%). Contudo, algumas mulheres optaram por tal região a ser tatuada. Essa incidência pequena de mulheres que tatuaram o braço é, não obstante, superior à incidência de mulheres que tatuaram outras regiões do corpo, sem incidência de tatuagens em homens, como a cintura, a orelha ou o quadril. O total de casos de tatuagem no braço, tanto masculinos quanto femininos, é de 100, apresentando-se, assim, como o segundo lugar preferencial para se tatuar o corpo. A região denominada aqui como braço envolve, ainda, o antebraço, mas não o pulso. O antebraço é mais raramente tatuado, uma vez que as camisas de mangas curtas o deixam à mostra. O braço, por sua vez, enseja uma idéia de força. Sabino (2000) observa

157 que, entre praticantes de musculação em academias de ginástica na cidade do Rio de Janeiro, o braço musculoso, torneado em aparelhos e séries de exercícios físicos, é muitas vezes adornado com tatuagens, especialmente aquelas que tragam alguma idéia de agressividade, como animais selvagens. A região do pescoço/nuca está em segundo lugar na preferência das mulheres (23.6%), apresentando uma incidência baixa de casos masculinos (2%). Outros autores, como Almeida (2001), já haviam apontado a região como tipicamente feminina. Segundo a autora, as mulheres optam pela região pela facilidade em usar os cabelos longos como uma forma de esconder a marca – creio que como um véu que revela ou esconde o desenho, segundo as necessidades e intenções do sujeito. Conforme observei muitas vezes em campo, os tatuados em geral apresentam uma forte preocupação em esconder a marca, devido à crença de que o mercado de trabalho não está apto a lidar com a tatuagem, ainda vista como sinal de marginalidade e má conduta, como um estigma (GOFFMAN, 1975). Os homens, sem a predominância dos cabelos longos, não têm a mesma facilidade de esconder a marca nesta região. O pescoço ou a nuca tatuados em um homem ficam, se os cabelos são curtos, sempre visíveis. Eu sugeriria que a nuca e o pescoço se tornaram áreas femininas por outras razões, além da possibilidade de se esconder a marca. Por um lado, como a região é pouco extensa, permite tatuagens menores, tipicamente femininas, muito embora as costas sejam uma região extensa e bastante procurada por elas. Por outro lado, a possibilidade de revelar/esconder a marca utilizando o véu formado pelos cabelos longos faz com que apenas poucas pessoas tenham acesso à visão da tatuagem, o que a torna um elemento mais valorizado, de difícil acesso. Sendo, normalmente, pequena a marca nessa região, a visão só é permitida – ou, melhor dizendo, o desenho só é identificado – de perto. Isto significa que, para ter contato visual com marca, o indivíduo deve estar fisicamente próximo à região do pescoço, ou seja, ao rosto da pessoa, o que, por sua vez, indica que está próximo à pessoa em si, e não apenas ao seu corpo, numa interação mais íntima. Não se trata, portanto, de chamar a atenção para a região tatuada, mas de revelar, num possível jogo de sedução e na abertura da intimidade a um outro sujeito, elementos sobre si que ficam, de outro modo, resguardados. A marca no

158 pescoço é um elemento de sedução secundário, pois só é realmente percebido depois de uma aproximação, e só é revelado se for intenção da tatuada. A feminilidade é, ainda hoje no Ocidente, resguardada, protegida de toques e olhares. Conforme Sabino (2000) aponta, as tatuagens femininas não apenas são pequenas em tamanho, mas se localizam em regiões do corpo onde podem ser escondidas, operando como uma metáfora da própria feminilidade. Neste sentido, o pescoço e a nuca são regiões privilegiadas para esta metáfora. A região do calcanhar/pé é a terceira mais procurada pelas mulheres (9.5%). Durante a observação de campo, tive a impressão de que esta era uma das áreas mais procuradas, pois sempre havia alguma cliente para tatuar o pé. De fato, jamais observei um homem tatuando tal região. Devidos às sandálias abertas, muito usadas por elas, os pés femininos ficam mais à mostra do que os masculinos, embora possam ser cobertos/escondidos quando convier. Conversei com uma cliente do estúdio, advogada, casada, mãe de dois filhos, aparentando ter mais de quarenta anos, cujos dois pés eram extensamente tatuados. Perguntei se não dificultava seu exercício profissional, ao que me respondeu que cobria os pés com sapatos fechados e calças compridas. Contudo, no momento de nossa conversa, as tatuagens de seus pés estavam aparentes, apesar dos sapatos fechados – que não cobriam inteiramente os pés – e das calças compridas. A partir desta observação, creio que é menos questão de esconder os pés, do que de mostrá-los, o que inverte a situação anteriormente apresentada a respeito da nuca. Isto pode explicar porque o pescoço/nuca, bem como as costas, apresentam mais que o dobro de casos do que as tatuagens nos pés. Existem mais mulheres interessadas na possibilidade de esconder suas tatuagens, e mostrá-las em situações sob seu controle, do que de revelá-las sempre. Por outro lado, os pés são parte das regiões corporais fetichizadas. Revistas masculinas, que apresentam mulheres nuas, normalmente incluem entre as fotografias publicadas alguma que apresente apenas os pés das modelos. Tatuar os pés é chamar a atenção para a área tatuada, suscitando, eventualmente, o desejo de algum fetichista. Abdome/barriga (7%), ombro (6.2%), lombar/cóccix (6%) e perna (5.4%) apresentam também números relevantes em se tratando das mulheres. A barriga é uma área que tem ficado exposta devido às roupas de cintura baixa, que deixam o umbigo à mostra.

159 A região das costas denominada lombar, no extremo inferior da coluna, também designada pelos tatuados como cóccix, é análoga à barriga, e fica igualmente à mostra. Contudo, esta última região é predominantemente feminina, enquanto a barriga apresenta alguma incidência como local tatuado pelos homens. Conforme Seeger (1980) indica, qualquer adorno corporal chama a atenção para as áreas adornadas. No caso destas duas regiões, tatuagens na barriga, se abaixo do umbigo, chamam a atenção para os genitais, enquanto tatuagens na lombar chamam a atenção para as nádegas. Em nossa cultura, são as nádegas femininas, mais do que as masculinas, as valorizadas. Entende-se, assim, que a região seja predominantemente feminina. Mesmo as nádegas apresentando-se como uma zona altamente erotizada na cultura brasileira, a barriga apresenta uma incidência de tatuagens maior entre as mulheres. A perna apresenta um número duas vezes maior de casos entre mulheres do que entre homens, contudo, esta incidência não é proporcional ao reduzido número de homens que têm buscado a tatuagem contemporaneamente. Trata-se, a meu ver, de uma região neutra em termos de gênero, como as costas: não é nem masculina nem feminina. A diferenciação se deve mais, na perna, ao desenho tatuado e à sua extensão: os desenhos tatuados por mulheres costumam ser menores e estar dentro daquilo que é considerado feminino. A categoria perna envolve a coxa e a canela, ou panturrilha. Algumas fichas de cadastro traziam a diferenciação entre ambas as áreas, outras indicam apenas a categoria genérica “perna”, de forma que englobei todas as respostas em uma única categoria. Creio que a região mais comumente tatuada é a da panturrilha, especialmente nas laterais externas, onde a marca se torna mais visível. A parte frontal da canela, por se tratar de região sem musculatura, é uma região dolorosa e poucas vezes tatuada. A coxa, por outro lado, é uma área menos à mostra do que a panturrilha. Observe-se aqui que há uma relação entre revelar e esconder na escolha da tatuagem que envolve, muitas vezes, uma espécie de cálculo: nem tão escondida, nem tão à mostra. O tornozelo, entre o pé e a perna, apresenta 4% das tatuagens, menos do que as regiões circunvizinhas. É um local sem casos de tatuagem masculina. O tornozelo é mais uma região que apresenta uma relativa flexibilidade do processo de revelar/esconder. Calças compridas cobrem facilmente a marca, ao passo que outras vestimentas a deixam à

160 mostra. A tatuagem no tornozelo apresenta, ainda, a qualidade de chamar a atenção para pernas e pés, pois está entre as duas regiões. A virilha apresenta uma procura quase igual entre mulheres (3%) e homens (2.7%). Visível apenas em encontros de maior intimidade ou em roupas de banho, a marca posicionada nesta região chama a atenção para os genitais, cumprindo o papel de erotizá-la ainda mais. Embora não haja incidência de tatuagens nos órgãos genitais, esse tipo de tatuagem existiu (ou existe) sobretudo entre os homens, conforme aponta Gilbert (2000). Creio que os piercings, atualmente, têm sido mais utilizados nesta região genital do que a tatuagem. A virilha cumpre hoje, de certa forma, o papel de adornar a genitália, que já foi ela própria, no passado, tatuada. O pulso, algumas vezes designado pelos tatuados como punho, é outra região tipicamente feminina. A tatuagem no pulso requer bastante habilidade da parte do tatuador, devido à quantidade de vasos sanguíneos na região. A agulha não pode perfurar a pele em profundidade. Nesta região, a marca fica constantemente visível e funciona, em sua qualidade de adorno, como uma espécie de jóia, da mesma forma como se utilizam pulseiras ou relógios para adornar a região. Não estou dizendo, com isso, que o pulso seja tatuado em sua parte interna e externa. Existem tatuagens nesta região que circundam todo o punho, tomando efetivamente a forma de uma pulseira, mas há outras que tomam apenas a parte interna. Conforme uma cliente do estúdio me contou, tentava esconder o pequeno pássaro tatuado em seu punho com pulseiras grandes e relógios. A tentativa era feita em função de sua atuação profissional. Tatuagens nos dedos são raras. Nestes casos podem tomar também a forma de uma jóia, como um anel. Algumas vezes letras são tatuadas nos dedos, para que se leiam palavras de quatro ou cinco letras. Em outros casos, pequenos desenhos dão a impressão de que seu portador usa um anel. Neste caso específico, a marca fica apenas parcialmente visível, pois é necessário um olhar mais atento para se distinguir a tatuagem da jóia. Como no caso das tatuagens no pulso, um anel verdadeiro pode ser utilizado para encobrir a marca. Embora a mão não tenha aparecido no escopo de regiões tatuadas entre os meses analisados, é possível encontrar pessoas com tatuagens nas mãos, normalmente na sua parte superior, próximo ao polegar. Em visita a um outro estúdio da Tijuca, vi a fotografia de

161 uma tatuagem executada na palma da mão. Constitui uma parcela pequena das regiões tatuadas por estar demasiadamente à mostra. A orelha e a extensão de pele que fica atrás da mesma, recobrindo o crânio abaixo dos cabelos, são áreas que apenas as mulheres tatuam. Como a tatuagem na nuca ou pescoço, sua visibilidade fica a critério do sujeito, que encobrir a marca com os cabelos. Opera-se a mesma metáfora de feminilidade em jogo no pescoço/nuca, observando que os cabelos curtos dos homens deixariam a tatuagem à mostra. Esta é uma tatuagem quase invisível, ainda mais escondida que a da nuca. Tatuagens no peito, quadril, cintura e costela referem-se a porções do tórax outras que a barriga. Quadril e cintura são áreas análogas à barriga e à lombar, tipicamente femininas, pois as roupas de cintura baixa as deixam à mostra. Barriga, cintura e quadris associam-se, ainda, à região do ventre. São elementos femininos por excelência, que ressaltam o ventre, hoje à mostra devido à moda. A cintura fina, os quadris largos e a barriga reta são, no Brasil, parte do modelo de beleza atual. Tatuar uma dessas regiões é chamar a atenção para a mesma, valorizando o portador da marca se as formas corporais estiverem de acordo com os padrões de beleza vigentes. De outra forma, a marca funcionaria de modo negativo, chamando a atenção para o desvio do modelo de beleza. Costela e peito, embora com alguma incidência em mulheres, aparecem no levantamento como zonas preferencialmente masculinas. A costela é uma região dolorosa para se tatuar, pois não há músculo ou carne, apenas pele e osso, onde o tatuador deve ter uma grande habilidade, pois, conforme fui informada em campo, é uma região de pele elástica. Deve-se fazer um cálculo visual sobre o tamanho desejado para o desenho. A tatuagem é executada com o cliente mantendo seu braço erguido, o que torna o desenho aparentemente maior. Contudo, quando o braço é abaixado, o desenho “encolhe”, pois a pele estava esticada. Torna-se uma tatuagem cara, também, em função destas dificuldades. Os desenhos masculinos nas costelas, como é regra geral, costumam ser maiores do que os femininos. O peito, por sua vez, pode abranger a área dos seios tanto quanto o colo, região superior a estes. É, igualmente, uma área onde a sensibilidade é maior, causando mais desconforto ao ser tatuada. O seio já foi, conforme Marques (1997) aponta, um local preferencial para a tatuagem em mulheres. Nos homens, o tórax musculoso pode ser

162 adornado com uma tatuagem no peito. Esta região, normalmente coberta por roupas, se torna mais visível nos homens do que nas mulheres, dada a convenção social que permite a eles a nudez desta parte superior do corpo, enquanto veta a mesma às mulheres. 7.1. O melhor lugar para um desenho Conforme mencionado anteriormente, a técnica do desenho é bastante valorizada entre tatuadores. Um desenho para tatuagem, contudo, tem suas peculiaridades: deve ser proporcional como qualquer desenho, mas não há uma total liberdade de cores, em função dos diferentes tons de pele. Outra particularidade do desenho na pele é a adequação ao local do corpo escolhido. No universo da tatuagem, não é qualquer desenho que pode ser tatuado em qualquer lugar, como muitas vezes o domínio da técnica pode sugerir. Aconselha-se ao cliente o melhor lugar para um desenho ou o melhor desenho para um lugar. O corpo é visto como uma tela, cuja proporção deve ser levada em consideração ao se escolher o local a ser tatuado e o desenho. Esta preocupação é mais visível nos profissionais do que nos clientes: estes pensam em termos de região do corpo, aqueles visualizam o corpo inteiro do cliente. Quando visitava estúdios em busca de um local para a pesquisa de campo, observei que os critérios são, muitas vezes, rígidos. Entrei em um outro estúdio na Zona Norte carioca, passei-me por cliente e escolhi um desenho qualquer, arredondado e colorido. Perguntei à recepcionista o valor. Antes de dar o preço, era necessário saber em que local seria feita a tatuagem. “Nas costas”, respondi, “sobre a coluna, centralizado”. A moça orientou-me que um desenho arredondado como aquele não deveria ser tatuado nesta região, mas nas laterais, pois era mais apropriado. Durante a observação de campo, contudo, perguntei-me se estas regras não seriam simplesmente percepções estéticas pessoais e distintas. Como exemplo, posso citar o caso de uma cliente que queria tatuar uma fada, desenho grande, da parte inferior das costas até o meio. Queria centralizada, enquanto o tatuador lhe dizia que o melhor seria dispor o desenho ao lado e não em cima do osso da coluna. Como a cliente e a amiga que a acompanhava preferiam a tatuagem centralizada, o tatuador não insistiu, deixando a ela a liberdade de decidir onde colocaria o desenho.

163 Em outra ocasião, observei um cliente querendo tatuar um dragão nas costas. Pedia um orçamento. O proprietário o atendeu. Em virtude do preço, pensava já em um desenho menor, mais barato. O tatuador foi enfático: “Nas costas não pode ser pequeno”. O cliente pensara em um desenho de um palmo, que foi considerado inadequado, visto a extensão das costas e a riqueza de detalhes de um dragão. 8. Revelar e esconder A princípio, imagina-se que, dada sua qualidade estética, o portador da marca – o tatuado – queira, ou tenha a intenção, de mostrá-la. Neste caso, deveria estar localizada em regiões visíveis do corpo. Se a intenção fosse escondê-la, tornando-a visível apenas no desnudamento, deveria estar localizada em regiões do corpo que estão constantemente cobertas. No entanto, a pesquisa de campo demonstra que a tatuagem contemporânea tem feito uso de um processo diferente, que chamo de dinâmica de revelar/esconder. Dificil é o caso, entre os tatuados, de esconder ou mostrar sistematicamente as marcas. Procuram-se, ao contrário, regiões do corpo em que se possa tanto mostrá-las quanto escondê-las. A díade revelar/esconder pode ser correlacionada a outros pares binários de oposição, cujos sentidos, em se tratando de tatuagens, assemelham-se. Assim, revelar a marca é torná-la visível para o mundo e para outros sujeitos, é colocá-la para fora, na parte externa. Ao contrário, esconder a marca é torná-la apenas do próprio sujeito, do Eu, como uma faceta interna do indivíduo que é invisível aos demais.

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Quadro n. 3 – Correlações na dinâmica revelar/esconder Revelar • Esconder Externo • Interno Fora • Dentro Visível • Invisível Mundo/Outro • Eu/sujeito

O processo de revelar/esconder, a meu ver, envolve o próprio aspecto técnico da tatuagem, se observado a partir da díade interno/externo, que pode ser também utilizada com o sentido dentro/fora. A tatuagem é uma marca aparente no exterior do corpo, embora o pigmento que forma o desenho tenha sido inserido dentro do corpo, nas camadas profundas da pele. Os locais do corpo escolhidos para serem tatuados parecem seguir,

164 igualmente, um jogo entre revelar/esconder. As partes mais visíveis do corpo são as extremidades: rosto, pescoço, pés, mãos, antebraços. Estas são áreas raramente tatuadas, à exceção dos pés e da parte posterior do pescoço – a nuca – nas mulheres. Ainda assim, observe-se que são áreas nas quais o encobrimento da marca não é difícil. O rosto, cujo encobrimento em nossa sociedade é inviável, é um local raramente tatuado, mais raramente do que qualquer outra região do corpo. O rosto e as mãos são, segundo Steward (1990), áreas tabus para tatuadores. Os próprios tatuadores apenas muito raramente apresentam os rostos tatuados. No estúdio pesquisado em Copacabana, o proprietário comentou, certa vez, que pensava em tatuar o rosto com uma tinta branca fluorescente especial, que brilha apenas quando exposta à luz negra e se torna invisível em quaisquer outras situações. Segundo ele, em conversa com um cliente sobre o assunto, “tatuar o rosto é coisa de gente que não trabalha”, ao que o cliente concordou, dizendo que “não pode trabalhar. Vai trabalhar aonde?”. O mercado de trabalho, conforme será visto, é um dos principais mecanismos de controle das áreas tatuadas e sua exposição. Tatuagens nas mãos, ao que pude verificar, são raras. Os pés recebem desenhos pequenos. Zona de fetiche sexual, está constantemente recoberto por calçados que permitem este jogo entre revelar/esconder. O pescoço é tatuado mais freqüentemente por mulheres, na região da nuca, onde os cabelos compridos e as roupas escondem a marca e os cabelos presos ou curtos revelam. Quanto aos antebraços, raramente são tatuados, uma vez que as mangas de camisa do clima tropical brasileiro não escondem esta parte do corpo. Na última década, as mulheres passaram a vestir as chamadas calças de cintura baixa, onde o umbigo fica à mostra, bem como parte do quadril, junto com blusas mais curtas, que deixam a barriga à mostra. Automaticamente, a tatuagem desceu até a região lombar, nas costas, agora incluída neste jogo de revelar/esconder. A barriga feminina entrou no mapa da tatuagem, sobretudo abaixo do umbigo, freqüentemente adornado com um body piercing. Note-se que a exposição do corpo é acompanhada do adorno e não o contrário, adorno este que chama a atenção do olhar para as áreas descobertas. Como qualquer adorno corporal, a tatuagem nestas regiões específicas parece seguir uma lógica de valorização da área tatuada. No caso da lombar e da barriga abaixo do umbigo, tipicamente femininas, são

165 as áreas genital e anal que estão em questão, ainda dentro do jogo revelar/esconder. Este tipo de tatuagem não chama a atenção do olhar apenas para a área tatuada, mas mostra a existência da zona erógena e sexual situada logo abaixo dela, e devidamente coberta. Se o desenho tatuado apresenta alguma significação para o sujeito, então a díade interno/externo está em operação novamente. O desenho representa, neste caso, um processo subjetivo interno do indivíduo. Mas está gravado na parte externa de seu corpo, possivelmente em região passível de exposição. Assim, o que é interno, subjetivo e individual se torna aparente, externo, comunicacional. Se o desenho tatuado apresentar alguma ligação com questões de identidade para o tatuado, então a pele, a tatuagem e o externo estarão traduzindo o que a pessoa é (pensa ser ou sente ser). Sobre esta ligação entre aparência e identidade, a sociologia do corpo tem-na observado a partir da ligação entre corpo e consumo (FEATHERSTONE, 1991) em função da idéia de que a aparência cria identidades (GOFFMANN, 1975; 1999). Sobre a qualidade comunicacional da tatuagem, posso mencionar um dos entrevistados de Sabino (2004, p. 273). “Mandei escrever Culturismo no antebraço para todas as pessoas verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a razão do meu viver; tudo que tenho consegui por intermédio do que faço... então mandei escrever isso aí, p’ra todo mundo ver... ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe nas costas, ela p’ra mim é mulher mais importante da minha vida.” (Pedro, 30 anos. Instrutor de musculação)

Neste caso específico, a tatuagem tem a exata função de comunicar uma mensagem ao mundo. É a mesma função que os desenhos masculinos, em sua maioria exalando agressividade, têm: eles são símbolos a serem comunicados ao mundo, indicando o que seu portador é ou deseja ser. Em situações de uso da tatuagem por grupos bem definidos, tais como gangues juvenis, grupos de sociabilidade/amigos ou tribos urbanas, a marca serve como indicação do pertencimento ao grupo, de que se está dentro de um conjunto maior. Em grupos socialmente marginalizados, a tatuagem serve como indicação de exclusão social, de que se está fora do conjunto da sociedade e dentro de um grupo de exclusão específico. Esta é uma outra forma de apresentação da díade dentro/fora.

166 O revelar/esconder incide, ainda, sobre um imaginário da tatuagem: os desenhos expressam aquilo que a pessoa é. Conforme apontei, nem sempre essa expressão é tão direta quanto se costuma imaginar. Ter desenhos religiosos não significa ser fiel àquela determinada religião. Pode ser uma questão de estilo, pois há, claramente, um elemento estético em se fazer tatuar. De fato, há uma gama variada de motivações que dificilmente poderiam ser elencadas. Estando dentro da pele, a tatuagem é vista como algo interno, como a expressão do interior subjetivo que aflora à superfície. A famosa pergunta: “porque você tatuou isto?”, ou sua variação, “qual o significado disto para você?” indicam que o interlocutor imagina que há um significado oculto no desenho escolhido. É pensado como oculto porque é pensado como a expressão do interior do sujeito, limite inalcançável, governado por leis psicológicas. De fato, há uma relação entre o desenho escolhido e as aspirações ou gostos pessoais, mas esta relação não é tão direta e simples como se costuma imaginar. Assim, a dinâmica revelar/esconder toma a forma de revelar/esconder o próprio sujeito. Quando a família e o mercado de trabalho impõem ao indivíduo, tantas vezes, que esconda a marca, é o próprio indivíduo que está sendo induzido a esconder-se, pois não será aceito como tatuado. Assim, o tatuado é um sujeito marcado, que deve ocultar-se, disfarçarse e maquiar-se para que a sua identidade não seja revelada. Em contraposição a este processo, a técnica da tatuagem, a injeção de pigmentos na pele, pode ser interpretada pelo viés oposto. Pode-se observá-la como a injeção de elementos externos ao sujeito em seu interior. Pode funcionar como um amuleto mágico ou amuleto protetor, uso descrito por diversos autores (DO RIO, 1997; GILBERT, 2000). Neste uso, o sujeito marcado ganha uma qualidade que não possuía antes, que lhe é externa, e que só é alcançada por esse processo. O contato com o sangue é, nesse caso, um forte marcador simbólico do aspecto interno e de internalização de símbolos por meio da tatuagem. É neste sentido que penso que a tatuagem mantém uma associação estreita com processos de memória. A memória é uma característica interna, no sentido de que os marcos de lembrança e esquecimento são normalmente vistos como individuais, por vezes mesmo psicológicos. Esses marcos são oriundos do exterior e alocados no interior do sujeito. Este é um processo para o qual a tatuagem é mais uma vez a metáfora. Pode-se

167 percebê-la, assim, duplamente, tanto como instrumento que torna o momento inesquecível quanto como fruto de um momento inesquecível. Ela é tanto a memória que se externaliza, quanto o evento marcante que gera a memória. A memória, oculta no interior do sujeito, floresce também pela marca, comunicando ao mundo elementos do Eu. Em Sabino (2004, p. 273) há um caso exemplar. Uma de suas entrevistadas, veterana de uma academia de musculação pesquisada na cidade do Rio de Janeiro, afirma: “Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: a palavra Deus em inglês... tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o que tenho, saúde p’ra correr atrás do que preciso, por isso tatuei no pulso... também p’ra todo mundo ver que me protejo, sei lá é meio amuleto também... um poder superior que você carrega no seu corpo.” (Carol. 18 anos. Estudante)

A visibilidade, neste caso, se tornou peça fundamental, pois não apenas a tatuagem apresenta uma função mnemônica como uma função mágica de amuleto protetor. Quanto à função mnemônica da tatuagem, ela emerge de várias formas. Uma delas é esta descrita acima, em que a tatuagem serve para lembrar algo que não pode ser esquecido, algo externo ao sujeito, como a própria divindade, inscrita na pele e no corpo para ser inscrita no próprio sujeito, de forma a fazer parte dele. No ato de tatuar-se, portanto, está agrupada uma série de elementos que se confundem, de tão estreitamente relacionados. Junto às noções de memória, interno, externo, revelar e esconder, gostaria de acrescentar a idéia de expressão de sentimentos. Estes, tipicamente vistos como da alçado do interno, também tomam a superfície pela tatuagem. A marca é, portanto, uma forma de comunicação, uma passagem aberta entre o Eu e o Mundo, uma porta em que se entra e se sai, continua e incessantemente. Alguns processos relacionados a sentimentos e memória serão tratados no último capítulo. 9. O gênero da tatuagem Conforme já foi observado, o consumo de tatuagens no Rio de Janeiro está veiculado a um público feminino. A princípio, pode-se tentar ver neste processo um caminho similar ao do consumo de moda, voltado sobretudo às mulheres. Não creio que

168 este seja o caso. Enquanto a moda tem sido a alguns séculos um elemento constituinte do universo de consumo feminino, e vendido como tal, a tatuagem não tem esta tradição. É uma novidade que o público atual da prática seja composto por mulheres. Pode-se, também, ver neste consumo feminino uma das facetas do atual culto ao corpo, que atinge tanto homens quanto mulheres. Cuidado do corpo e cuidado de si se confundem nesta visão, um levando ao outro. Neste âmbito, cirurgias plásticas e muita malhação têm prefigurado o caminho da beleza e da saúde. A tatuagem, adorno corporal que chama a atenção para as formas esculpidas, torna-se, nesse escopo, um elemento de valorização do corpo belo. Não por acaso Sabino (2004) observou o vasto uso de tatuagens entre marombeiros, os veteranos das academias de musculação e na mesma proporção que observei em campo, com uma predominância deste uso entre mulheres. O autor indica, ainda, como as tatuagens masculinas estão relacionadas à constituição de um determinado modelo de masculinidade agressiva, que foi observado por ele em campo. Se as tatuagens masculinas, conforme indiquei, estão relacionadas a um determinado tipo de masculinidade, as femininas parecem estar igualmente relacionadas a uma identidade feminina inversa à masculina. Nesta oposição, o masculino emerge como: agressivo, grande, forte, corajoso, mortal. O feminino, seu oposto, aparece como: delicado, frágil, pequeno, infantil. O que é considerado masculino, portanto, não deve ser utilizado por mulheres e vice-versa. Os desenhos e os locais do corpo tatuados estão, ambos, presos nesta lógica intrincada de diferenciação de gênero. Mesmo quando as mulheres buscam desenhos normalmente utilizados pelos homens, estes são redesenhados de forma a se extirpar suas características masculinizantes. O desenho, junto ao local tatuado, indica, assim, o grau de feminilidade/masculinidade presentes nos sujeitos. Uma mulher com um dragão tatuado no braço é vista como uma mulher masculina. Um homem com uma flor tatuada na nuca não é visto como homem. São elementos femilizantes ou masculinizantes em si, que têm o poder de tornar feminino ou masculino quem os porta e, portanto, afirmar ou negar identidades sexualmente constituídas. A tatuagem é, portanto, uma forma de operar esta afirmação, ou construção, das identidades de gênero. No próximo capítulo, pretendo expor outros elementos relacionados ao universo da tatuagem que contribuem, tanto quanto os desenhos e locais do corpo escolhidos, para

169 operar esta afirmação das identidades de gênero. A dor é, neste âmbito, elemento fundamental, pois homens e mulheres reagem diferencialmente a ela. Se a tatuagem em mulheres está relacionada a um cuidado de si, ou cuidado com o corpo, de forma a tornar-se mais bela e atraente, gostaria de empreender a partir desta idéia uma análise em busca de elementos não tão visíveis. Conforme Bourdieu (2003) aponta, a beleza feminina é apenas uma faceta da objetificação de seu ser e de seu corpo. Por trás das diferenças de superfície, visíveis à flor da pele, como locais tatuados e desenhos distintos, se escondem, em camadas mais profundas, diferenciações quanto às expectativas de comportamento para homens e mulheres e reações a estas expectativas. Por trás da busca pelo corpo belo esconde-se, portanto, um corpo-objeto, um corpo para o outro, um corpo sem autonomia que se quer dar ao olhar para ser desejado, para ser tomado e ganhar sentido. Paradoxalmente, o processo de ser tatuado, conforme observado entre as mulheres, apontou para a emergência de um caminho distinto. Na construção do que parecia ser um corpo para o outro, descobri a construção de um corpo para si. A resistência da família à marca, conforme será visto no próximo capítulo, tanto quanto a liberdade em revelar e esconder a mesma segundo seu desejo, excetuando-se o ambiente de trabalho, demonstram a emergência de uma consciência do corpo, de suas partes, divididas entre marcadas/escondidas e não-marcadas/à mostra. A tatuagem imprime ao corpo uma realidade diferente, operando uma verdadeira política quanto ao limite da autonomia sobre si, sobre os próprios desejos, sobre a convivência em sociedade, sobre o grau de liberdade possível.

170 CAPÍTULO VI - EXPERIÊNCIAS, DILEMAS, DOR: tatuados nos estúdios

“O corpo é meu, o dinheiro é meu e ninguém tem nada a ver com isso.” Clientes mulheres do estúdio pesquisado na Tijuca.

As experiências que os tatuados vivem dentro dos estúdios também podem diferir segundo o gênero. A forma de se lidar com a dor, por exemplo, é diferente entre homens e mulheres: eles calados, numa forma de prova de virilidade (LE BRETON, 2002); elas falando, reclamando, se apoiando mutuamente. A dor, ou o medo da dor, faz com que algumas delas peçam a namorados, mães ou amigas que as acompanhem ao estúdio, fato raramente observado entre eles. Para eles, a dor emerge como parte de um ritual de masculinidade. Para elas, expressar a dor é uma forma de construir uma rede de solidariedade no próprio momento em que estão sendo tatuadas. Entre elas, ainda, a liberdade de tatuar o próprio corpo muitas vezes se vê restringida pela pressão contrária de familiares, situação que jamais observei entre os homens. É comum que, ao se escolher o lugar a ser tatuado, o sujeito opere um cálculo segundo a lógica do revelar/esconder. Imagina-se que o mercado de trabalho não vê com bons olhos o indivíduo tatuado, que deve, portanto, esconder as marcas. O mercado de trabalho, junto com a família, demonstraram ser as principais instâncias contrárias ao uso de tatuagens, quando se observa os estúdios. 1. A experiência das mulheres Durante a observação de campo pude perceber que a predominância das mulheres como público da tatuagem gera situações que são vividas apenas por elas, nunca observadas entre os homens. Entre estas situações, estão o desnudamento, a companhia da mãe e o controle do cônjuge. Após o estúdio pesquisado na Tijuca ter sofrido uma reforma, criou-se uma sala reservada para tatuar, diferente das baias abertas. A idéia que norteou a criação do que chamavam de box foi a de ter um espaço para tatuagens em locais mais íntimos do corpo.

171 No cotidiano do estúdio, percebi que nem sempre a sala era utilizada para estes fins. Primeiro, porque a grande quantidade de tatuadores e a procura pelos seus serviços levava a uma falta de espaço, que era solucionada com o uso do espaço normalmente vago do box, que estava aparelhado com o necessário para o exercício de tatuar. Segundo, nem sempre o cliente considerava que o local escolhido para tatuar deveria ser escondido dos olhares curiosos. Neste sentido, é preciso lembrar que a sala de tatuar é constantemente invadida por amigos ou antigos clientes dos tatuadores, havendo uma circulação de pessoas que não apenas aquelas que estão sendo tatuadas. Esta é uma dinâmica do estúdio pesquisado, que pode não estar presente em outros estúdios. Restringir o acesso de outras pessoas à sala de tatuar, ou tatuar um cliente de cada vez, é a solução mais comum para se resguardar de olhares indesejados durante a operação. Esta solução não poderia ser utilizada no estúdio pesquisado, pois lá trabalham cinco ou mais tatuadores simultaneamente. A criação de uma sala isolada foi a solução mais fácil para o problema. O que é considerado um local íntimo ou de exposição indesejada do corpo a olhares que não o de amigos, parentes ou do próprio profissional é bastante subjetivo. Por três vezes, quando estava observando os clientes serem tatuados, vi casos parecidos em que a sala poderia ser utilizada e não foi. Na primeira vez, uma jovem submetia-se a uma tatuagem nas costas, do alto da coluna a sua parte inferior, com o intuito de cobrir a cicatriz de uma cirurgia. Para que a tatuagem fosse desenhada49, as costas tinham que estar livres. A moça tinha que segurar a blusa na parte da frente de seu corpo para cobrir os seios. Estava despida, mas coberta. Em outra situação, outra jovem cliente tatuava um dragão tribal na região superior à dos seios, entre o pescoço e o seio esquerdo. Havia ido ao estúdio com uma blusa de mangas, que deixava a região coberta. Por não ter vestido uma roupa adequada, como uma blusa ou bustiê tomara-que-caia, teve de torcer a blusa, abaixando uma das mangas, para não ficar vestida apenas com o sutiã. Um terceiro caso que presenciei foi mais interessante. Uma moça foi ao estúdio tatuar a virilha. É costume, nesses casos, conforme presenciei algumas vezes, que se vista um biquíni e uma saia que possa ser suspensa ou abaixada. Mesmo usando o biquíni, reparei que é comum que os clientes homens presentes observem uma tatuagem na virilha 49

Optou-se pelo free hand, para que a cicatriz fosse devidamente coberta.

172 ser executada com uma atenção maior que outras tatuagens em mulheres ou homens. Neste caso, o tatuador ofereceu à moça uma sala no estúdio de piercing, onde praticamente só há mulheres, pois o box estava sendo utilizado. A moça disse-lhe que não tinha “essas frescuras” e que não se incomodava em ser tatuada entre as baias. O tatuador abriu a maca e ela se deitou. Normalmente, este tipo de tatuagem é feito com a cliente recostada em um banco alto, quase de pé. Ao deitar-se na maca, a moça suspendeu a saia e pude notar que usava uma calcinha preta transparente que permitia a qualquer um ver sua genitália. Este último caso representa o quanto noções de pudor podem ser subjetivas, ao menos dentro do estúdio. O tatuador é como um médico: profissional que, presume-se, não olha o corpo com intenções sexuais. Contudo, se a sala de tatuar não está ocupada apenas pelo cliente e pelo tatuador, não há garantias de que outros clientes ou mesmo outros tatuadores não lancem olhares ao corpo exposto. Neste sentido, paqueras e flertes podem ocorrer. Enquanto a cliente que queria cobrir suas cicatrizes era tatuada, um antigo cliente da casa, que voltara para retocar as tatuagens nos braços, flertava com ela, conversando e trazendo revistas para distraí-la (ou chamar sua atenção), que folheava sentado a seu lado. Ao perceber o possível incômodo que o rapaz poderia estar causando à moça, os tatuadores começaram uma brincadeira, pedindo a ele, em tom jocoso, que parasse de flertar com ela e sugerindo que era um sedutor. A linha que separa a exposição controlada dos corpos da exposição que suscita o olhar sexualizado é tênue. São os tatuadores que exercem esse controle sobre possíveis situações de flerte mais aberto, que vão além de um olhar. O controle do olhar, contudo, não é possível neste estúdio, uma vez que pode haver mais de oito pessoas na sala e que esta é decorada com espelhos em várias paredes, o que permite a observação de vários ângulos a partir de um mesmo ponto fixo. O controle e a exposição dos corpos femininos nas sociedades de dominação masculina foram analisados por Bourdieu (2003). Uma das formas de controlar os corpos femininos que pode ser observada de dentro do estúdio de tatuagem é a companhia materna no momento de se tatuar. Enquanto observava os clientes e interessados na recepção do estúdio, não raro vi moças irem acompanhadas de suas mães. Observando o estúdio apenas na sala de tatuar, é mais difícil perceber quem está acompanhada e quem não está, uma vez que as mães são constantemente deixadas esperando na recepção. Segundo fui informada

173 pelo recepcionista, alguns pais também acompanham filhos e filhas desejosos de adquirirem uma tatuagem. A moça que tatuava o dragão tribal, por exemplo, fora ao estúdio acompanhada da mãe e da irmã, que também se tatuava. Desde o primeiro dia de trabalho de campo fiquei impressionada com a quantidade de mães acompanhando as filhas, lançando a hipótese de que a tatuagem está se tornando parte do aparato de embelezamento feminino, como uma ida ao salão de cabeleireiros. Leitão (2002) apresenta diversos relatos de entrevistadas em que a tatuagem aparece como mais um elemento de embelezamento do corpo, tendo em vista que embelezá-lo é uma preocupação constante de suas entrevistadas, quase uma obrigação. Não há como negar que há, na tatuagem, um forte apelo estético, mas pretendo apontar razões para seu uso que se distanciam do simples embelezamento corporal, embora esteja claro que beleza é um fator em jogo. Espécie de ritual de feminilidade, as moças mais jovens são acompanhadas pelas mães, que emitem opiniões, reforçando a idéia de uma mulher mais velha aconselhando os rituais de beleza de uma mulher mais nova. No segundo dia de observação, perguntei a um dos tatuadores da casa sobre o fenômeno: “Vêm muitas mulheres com as mães aqui?”. “Mãe e pai”, respondeu, explicando que, mesmo não sendo menores de idade, gostavam de ser acompanhados (ou os pais gostavam de acompanhá-los), pois menores não são tatuados sem a companhia dos pais. A companhia materna serve de apoio emocional. Muitas vezes esta companhia e este apoio podem vir do namorado, de uma amiga ou da própria filha, conforme foi observado em campo. Em todas estas situações, os clientes eram mulheres. Os homens raramente buscam este tipo de apoio, mas podem ir ao estúdio acompanhados de amigos, que não entram na sala de tatuar, ou esposas. Em duas ocasiões, vi clientes acompanhados da esposa ou namorada, mas em uma destas a moça também iria ser tatuada. A menor incidência de uma companhia durante a tatuagem entre os homens parece estar relacionada a ideais de masculinidade que envolvem, sobretudo, a idéia de suportar a dor sozinho. A solidão dos homens sendo tatuados no estúdio só é quebrada na relação com o próprio tatuador. As mulheres reclamam da dor e conversam sobre sua vida com tatuadores e outros clientes – e graças a isto pude recolher muito mais informações sobre as mulheres clientes do estúdio do que sobre os homens – ao passo que os homens raramente

174 conversam entre si, apenas com os tatuadores ou com pessoas conhecidas que estejam no estúdio, sem jamais iniciar uma conversa com outros clientes durante o processo. É como se a intimidade masculina fosse, de fato, mais resguardada do que a feminina. O que ocorre, no entanto, analisando-se a situação à luz do pensamento de Bourdieu (2003), é que a constante prova de masculinidade que os homens devem dar a si mesmos e ao mundo de um modo geral requer esta auto-conservação da intimidade em situações em que ela está sendo posta à prova, como no momento de suportar a dor física ao ser tatuado. O controle sobre os corpos femininos se torna visível a partir do universo da tatuagem ainda de uma outra forma: nas censuras de maridos sobre o desejo de suas mulheres pela tatuagem. 2. Esse corpo que não te pertence Leitão (2002) chama a atenção para a idéia de autonomia e liberdade de ação sobre o próprio corpo presente nas falas de algumas de suas entrevistadas: “o corpo é meu e faço com ele o que quero” e “cada um tem liberdade de escolher o que faz com seu corpo”. Ouvi palavras semelhantes no estúdio pesquisado. Em minhas observações de campo, ouvi relatos de mulheres cujos maridos não gostavam de tatuagens, ou que estavam no estúdio para a primeira tatuagem sem terem avisado seus maridos. O argumento apresentado foi sempre o mesmo: “o corpo é meu”. Jamais ouvi algum homem falar que a esposa não gostava de tatuagens, como jamais vi algum explicar a sua esposa que o corpo é dele e que pode fazer com o seu corpo o que quiser. Esta diferença quanto à autonomia individual e de ação sobre o próprio corpo está relacionada às diferenças de gênero. Célia, cliente do estúdio da Tijuca, contou-me sobre uma amiga que havia feito sua primeira tatuagem há poucas semanas. O marido da amiga não gostou e desejava que ela retirasse o desenho. A amiga se dividia entre fazer uma nova tatuagem e retirar a primeira com laser. Perguntei qual a profissão do marido da amiga de Célia. Ela disse que era um empresário que costumava viajar. Cátia, outra cliente, protestou dizendo que era um absurdo a amiga de Célia tirar a tatuagem por causa do marido. Célia contou que o marido da amiga dissera à esposa, na frente da própria Célia, que uma mulher com tatuagem era

175 uma mulher à toa. Célia não gostou e passou a influenciar a amiga no sentido de que um homem que não está em casa deve ter outras mulheres. Célia concluiu: “Meu marido também não gosta de tatuagem. Eu disse para ele ‘vou fazer outra’. Ele não é contra, mas sempre me diz que, por ele, eu não faria nenhuma. Mas eu faço. O corpo é meu, o dinheiro é meu e ninguém tem nada a ver com isso”. (Célia, 28 anos, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Em outra ocasião, no mesmo estúdio, escutei conflito semelhante se desenrolar por telefone. O marido de Cândida ligou para o seu celular enquanto ela aguardava dentro do estúdio. “Estou fazendo uma tatuagem”, avisou. O marido não gostou e a ligação foi interrompida. “Ele desligou na minha cara!”, disse. Ela ligou de volta perguntando se havia desligado, mas ele negou. Ela questionou porque não aprovava sua tatuagem e argumentou que era algo que ela gostava, da mesma forma que havia coisas que ele gostava. Depois de falar com o marido, Cândida recebeu um telefonema do pai, tentando desencorajá-la. “Seu marido não gostou?”, perguntei-lhe. Respondeu que “Não, mas eu não quero nem saber. O corpo é meu, o dinheiro é meu, ninguém tem nada a ver com isso. Agora você vê... eu tenho 38 anos e não posso tomar minhas próprias decisões.” (Cândida, 38 anos, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Cândida não havia avisado ao marido que havia tomado a decisão e que iria ser tatuada naquele dia. Ele tomou conhecimento da situação pelo telefone. Nas situações acima, o marido aparece como alguém que pode gerar conflitos na opção de se tatuar. A família é a instância que critica ou apóia uma decisão individual: ao que tudo indica, os maridos criticando e as mães apoiando, o que sugere uma relação mais profunda da tatuagem com o universo feminino, como se ela já fizesse parte de uma cultura feminina, em que as mulheres se apóiam mutuamente. Mas porque os maridos são contrários à tatuagem em suas esposas? Segundo Bourdieu (2003), sendo as mulheres e seus corpos objetificados pela dominação masculina, tornados objetos de uma economia de bens simbólicos, seu principal local de troca diz respeito ao mercado matrimonial. A intervenção da família na vida das mulheres opera não apenas quanto à salvaguarda de um

176 objeto valioso para a reprodução da própria família como quanto à idéia de que as mulheres devem ser dirigidas por seus homens (pai, irmão, marido). No caso de Célia, ela informou ao marido sua decisão, mas não levou em consideração suas críticas ou gosto pessoal, argumentando que o gosto a ser levado em consideração era o dela, uma vez que o corpo a ser adornado era o dela. O fato de seu marido não gostar de tatuagens não apenas não a incomodava, como não a inibia de fazer mais algumas (fazia sua terceira marca). Só pensava em retirar a mais antiga, pois aquela incomodava a ela mesma. Incômodo que não se originava no fato de estar envelhecida, feia e desbotada, mas no fato de lhe causar transtornos no mundo do trabalho. A tatuagem nova que adquiria na nuca não lhe causaria transtornos, pois poderia escondê-la com os cabelos, conforme contou. Já Cândida não parecia preocupada em revelar ou esconder sua tatuagem. Antes disso, precisou lidar com a insatisfação de sua família. Mas há uma diferença entre Cândida e Célia: uma avisou ao marido o que estava pretendendo fazer, e a outra não. Em observação no estúdio de Copacabana, uma cliente, Carla, desistiu da tatuagem que desejava fazer em função da proibição do namorado. Havia marcado hora para tatuar uma tulipa na virilha, mas aproveitou a sessão para retocar um sol em preto que havia tatuado há algumas semanas nas costas. Mantivemos o seguinte diálogo: Carla - Meu namorado não quer de jeito nenhum [que eu tatue a virilha]. Como é início de namoro, a gente finge que obedece. Pesquisadora – Ele acha vulgar? C - Não, ele fica perguntando aonde o tatuador vai se apoiar! P - Então você deveria ter dito que era uma mulher que iria te tatuar. C - Minhas amigas me disseram a mesma coisa, que eu deveria ter dito que era uma mulher, mas eu não sei mentir, eu ia rir e estragar tudo!

A proibição não fora gerada pela tatuagem em si, mas pela localização escolhida. O receio do rapaz era a exposição do corpo da namorada ao toque de outro homem, mais do que ao olhar. Carla se submetia às restrições geradas pelo ciúme do namorado pensando em fortalecer o namoro. Pensava que enfrentá-lo naquele momento poderia abalar a relação. Esperava que estivesse fortalecida para fazer valer suas opiniões e desejos sobre o próprio corpo. Nem cogitou mentir para o namorado, tão preocupada estava com o relacionamento.

177 Quando se trata das tatuagens de amor, a reflexão sobre a quem, de fato, pertence o corpo feminino – se à própria mulher ou ao seu marido ou namorado – se torna mais evidente. Pretendo desenvolver este tema em outro capítulo, mas é importante mencionar, aqui, que há situações contrárias, em que o marido ou namorado pede para que seu nome ou as iniciais de seu nome sejam tatuados. Trata-se de uma tatuagem de amor na forma de uma marca de propriedade sobre o outro. Cláudia entrou no estúdio da Tijuca logo após Cândida viver seu episódio familiar. Pareciam ter a mesma idade. O tatuador desenhou uma série de três querubins segurando um coração. “Eu sofri uma parada cardíaca há três semanas. Morri e voltei. Eu quero marcar isso.” (Cláudia, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Pensava em tatuá-los no tornozelo, mas não queria que ficassem expostos, pois no trabalho tinha “mais ou menos” problema. Depois chegou à conclusão de que, se alguém visse o desenho, não se importava. Cláudia trabalhava como curadora de exposições. Esta iria ser sua primeira tatuagem, mas também faria uma pomba na nuca naquele mesmo dia. Cláudia me confidenciara que ninguém em sua família sabia que estava para se tatuar. A experiência de doença que levara ao desejo de se tatuar havia sido tão forte que não quisera compartilhar a decisão. Tatuava-se, segundo ela, apenas em função da experiência ocorrida, marcando na pele algo que a alma não seria capaz de apagar. Não se preocupava com a reação ou o conhecimento prévio da família. Queria apenas se tatuar em regiões do corpo que pudessem ser escondidas no mundo do trabalho. Gostaria de tomar estes casos como ponto de partida para uma reflexão. A família, especialmente o marido e também o namorado, aparece em todos como uma instância controladora. Sendo membro de uma família, o corpo do indivíduo fica sujeito às pressões familiares. Não levando em consideração a opinião da família, o que o indivíduo demonstra é que seu corpo é propriedade e responsabilidade exclusivamente suas e qualquer decisão por ele tomada, nesse sentido, é expressão de seu desejo pessoal. Há, na relação do indivíduo com a família, algo que permite a manifestação dessas vontades individuais. No universo do trabalho, contudo, a pressão exercida é sentida de forma muito maior.

178

3. Restrições no mercado de trabalho É parte do imaginário dos tatuados a idéia de que o mundo do trabalho é hostil à tatuagem. Neste sentido, sentem que são potenciais alvos de represálias e restrições. Para não se tornarem vítimas do que costumam designar como “preconceito contra o tatuado”, ou contra a tatuagem, a solução é optar por áreas do corpo que são pensadas como menos expostas ao olhar. Nem sempre, contudo, a tatuagem está totalmente escondida. Observase, então, o aparecimento de uma espécie de jogo entre a tatuagem percebida pelo tatuado como um potencial problema em sua vida, o desejo de ser tatuado ou fazer novas tatuagens, e a solução para esse conflito, que é manter os desenhos escondidos na esfera profissional. Em uma tarde de observação na Tijuca, ouvi a história de Célia, 28 anos, casada, mãe de dois filhos, micro-empresária. Estava fazendo sua terceira tatuagem. A primeira, contou, fizera aos 13 anos. Já estava desgastada e pensava em retirá-la com laser. Não queria retocá-la nem cobrí-la com outro desenho, pois achava a região tatuada exposta, à mostra com certos tipos de roupa. A tatuagem localizava-se nas costas, perto do ombro. Segundo disse, esteve em um evento com clientes de sua empresa e, sentindo calor, retirou o casaco. O vestido que usava deixava a tatuagem à mostra, o que foi observado por algumas pessoas e automaticamente se transformou em assunto entre elas. O comentário que recebeu e reproduziu para mim foi o seguinte: “Nossa, você tem tatuagem? Mas nem parece!”. A tatuagem executada sobre a adolescente de 13 anos passou a ser vista como um transtorno quinze anos depois, em função das exigências do mercado de trabalho. O ato de tatuar-se, contudo, não causou nenhum arrependimento, visto que Célia fez mais duas tatuagens. A diferença era, apenas, na escolha da região do corpo: tatuava-se em regiões em que pudesse esconder a marca. Cláudia, que se tatuava em função da experiência de quase-morte provocada por uma para cardíaca, fora ao estúdio da Tijuca sem o conhecimento de sua família. Preocupava-a menos a reação desta do que a do mercado de trabalho. Queria se tatuar em regiões do corpo que pudessem ser escondidas. Optou, então, pela nuca e pelo tornozelo, ainda pensando se o último não era exposto demais. Na dúvida, exclamou: “ah, se não

179 gostarem também que se dane”. No universo do trabalho, a pressão é sentida de forma muito maior do que no âmbito familiar. Há um cálculo, como demonstra Cláudia, sobre o quanto este universo aceitará ou não o desejo individual. Em outro dia, conversei com Cora, cliente assídua do estúdio da Tijuca. Já a havia visto por lá em outras ocasiões. Cora tem 45 anos, é advogada, casada, mãe de dois filhos. Segundo contou, tem oito tatuagens pelo corpo e inúmeros piercings nas duas orelhas. Perguntei se as tatuagens e piercings não lhe atrapalhavam em questões profissionais. A orelha, contou, cobria com o cabelo. As tatuagens dos pés se tornavam invisíveis com calçados fechados, bem como as do corpo, cobertas pelas roupas. A tatuagem do pulso era escondida com o relógio. Enquanto conversávamos, a tatuadora formava opinião distinta daquela de Cora, dizendo que “no trabalho não pega tanto assim”, mas Cora discordou e disse que “pegava sim”. Havia sido tatuada recentemente: um desenho estilo comics de um homem com duas crianças, que ela dizia ser o marido e os filhos, localizado nas costas, logo abaixo da nuca. Seu marido também é tatuado e gostou da homenagem, bem como os filhos. Ela estava no estúdio naquele dia para colorir um dragão que tatuou subindo do pé até o meio da canela direita. Embora Cora diga que utiliza o vestuário para esconder suas tatuagens, muitas permaneciam visíveis. Os sapatos não encobriam os desenhos dos pés tampouco as pulseiras e relógios o do pulso. Esta observação me levou a questionar o quanto o medo de preconceito e retaliações no mundo profissional é real e o quanto ele é parte do imaginário sobre a tatuagem em nossa sociedade. Se o preconceito fosse tão forte quanto é pensado pelos

tatuados,

eles

provavelmente

não

alimentariam

a

atual

proliferação

e

profissionalização dos estúdios e seus tatuadores. Parece que o medo quanto ao mercado de trabalho é alimentado por uma associação ainda presente no senso-comum, conforme visto sobre os piercings, entre marginalidade e tatuagem. Em outra ocasião, observei duas irmãs sendo tatuadas no mesmo dia, acompanhadas pela mãe. Carmem, de 20 anos, tatuou um dragão pequeno, em preto, estilo tribal, entre o ombro e o pescoço, um pouco acima do seio. Pensei que esta seria considerada uma região bem aparente, mas Carmem havia escolhido o local segundo a lógica do revelar/esconder.

180 “Aqui eu mostro quando eu quiser. Se não quiser, não mostro, ninguém vê. Eu me preocupo com o meu trabalho, que é uma coisa que eu quero fazer também”. (Carmem, 20 anos, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Não era a sua primeira tatuagem, que foi retocada no mesmo dia: uma minúscula meia-lua com uma estrela atrás da orelha esquerda. O grau de preocupação com os transtornos que uma tatuagem pode oferecer no mundo do trabalho parece ser mais subjetivo do que objetivo. A nuca, escondida pelo cabelo de Célia e Cláudia, não é um problema. A orelha de Cora, cheia de piercings, e a orelha tatuada de Carmem tampouco as preocupavam. Cora, de fato, não parecia preocupada em absoluto, embora pensasse que o universo do trabalho não a aceitaria como advogada sendo uma mulher tatuada. O universo policial onde Carmem queria ingressar, segundo ela, tampouco a aceitaria se as tatuagens fossem aparentes. É no mundo do trabalho que se deve sempre esconder as tatuagens. Logo, o local escolhido para as mesmas deve permitir que, nestes ambientes, elas sejam ocultadas, enquanto em outros elas possam ser reveladas. O mundo do trabalho é visto como lócus de controle sobre os sujeitos e seus corpos. Possuindo tal qualidade, é um universo onde a expressão do Eu só é possível de forma limitada. Neste campo, o sujeito deve esconder sinais que indiquem que ele não é o que se espera que seja. A tatuagem é vista como uma forma de estigma (GOFFMAN, 1975) que deve ser encoberta, pois pode alterar a percepção sobre os sujeitos que possuem a marca. Em reportagem para o caderno Boa Chance do jornal O Globo de 1o de maio de 2005, Calaza (2005) ouviu a opinião de certos segmentos do mercado para entender até que ponto ter uma tatuagem e um piercing podem ser prejudiciais à carreira ou ao emprego. De fato, áreas mais tradicionais como o setor de saúde e o comércio são contra a visibilidade de tatuagens para funcionários, em grande parte por receio da reação do público. Em áreas mais inovadoras, como a publicidade, ambos os adornos não são mal-vistos. Reproduzo, a seguir, os comentários publicados na reportagem. Estes foram divididos por áreas de atuação: comércio, saúde, construção civil, administração estatal e propaganda. O primeiro deles é de João Carlos de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS):

181 “Funcionários que lidam com o consumidor têm de ter apresentação adequada. A tatuagem se enquadra aí: se for visível, pode agredir algumas pessoas. Quem quer trabalhar no comércio tem de se enquadrar. Se quiser ter tatuagem ou piercing, que o faça num local em que não apareça.” (João Carlos de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Supermercados - ABRAS)

Para o presidente da ABRAS, a grande restrição recai sobre aqueles que lidam com o público. A tatuagem é vista como um estigma: ela “pode agredir” quem a vê. Para evitar essa agressão, deve ser escondida. Não julga, ainda, que tatuagem e boa apresentação, boa aparência, caminhem juntas. Fica claro, na fala acima, que o mercado de trabalho tem o poder de “enquadrar”, controlar, dissuadir e punir aqueles que não correspondem às expectativas de perfil para preenchimento de funções e cargos. O comentário mais forte, contudo, foi o de João Pantoja, coordenador do Hospital Copa D’Or. Ele não apenas associa a tatuagem a um estigma como incorpora na marca uma preocupação de saúde pública: tatuados podem ser pessoas doentes: “A tatuagem exagerada ou aparente denota padrões de comportamento sujeitos a riscos de doenças, como hepatite B e C. Além disso, o piercing e a tatuagem exagerada podem afetar a confiança do paciente.” (João Pantoja, coordenador do Hospital Copa D’Or)

Além de possivelmente doente, inapto ao trabalho, o tatuado é identificado como alguém sobre quem recai uma eterna desconfiança: não da parte dos colegas profissionais, mas da parte dos pacientes. É também pessoa cujo comportamento pode ser moralmente reprovado. É comum que o discurso médico esteja eivado, no caso da tatuagem, de um discurso moral. Entra em cena aqui, ainda, a idéia de exagero, que não é definida, mas que está em íntima relação com a aparência, na forma “tatuagem exagerada ou aparente”, como se um termo pudesse ser substituído pelo outro. Como na citação anterior, deve-se esconder as marcas, pois assim cessam os possíveis problemas gerados no trabalho. A questão é perguntar quem se sente agredido ou desconfiado, pois há sempre um sujeito sem-nome, um grupo ou pessoa sem rosto ou identidade, para quem a tatuagem é signo de má apresentação, trabalho mal feito e doença.

182 Na área da construção civil, pontos comuns emergem nas falas dos atores entrevistados. O primeiro é Sérgio Goldberg, construtor do projeto da Vila do Pan, destinada aos atletas dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a serem realizados na cidade do Rio de Janeiro. O segundo é Rubem Vasconcelos, presidente da empresa de construção civil Patrimóvel. “O importante é a capacidade profissional. Mas pessoas que lidam com o público, tatuadas, podem gerar preconceito.” (Sérgio Goldberg, construtor do projeto da Vila do Pan, destinada aos atletas dos Jogos Pan-Americanos de 2007) “Acho normal. Antigamente, tatuagem era tida como coisa de bandido, mas hoje nossos filhos fazem. Não choca mais. Desde que não seja agressiva, no corpo inteiro.” (Rubem Vasconcelos, presidente da empresa de construção civil Patrimóvel)

Na primeira fala, o mérito emerge como fator mais importante para a contratação ou manutenção de um profissional. Contudo, o público, novamente, ente difuso e sem-rosto, é o grande vilão. O público não aceita ser atendido por pessoas tatuadas. Na segunda fala, a tatuagem é vista como normal em comparação com seu status no passado. Sendo normal, ela não choca mais. Mas normal significa restrita. A tatuagem de corpo inteiro é vista como agressiva, mesmo termo utilizado na fala de João Carlos de Oliveira, da ABRAS. Aponta-se, ainda, para o novo status da marca, o de normal, como o produto da apropriação que uma nova geração fez dela: “nossos filhos”. De fato, ver o filho tatuado, saber que a tatuagem não alterou seu bom caráter, pode ser um dos caminhos para a transformação desse difuso e nada preciso “preconceito”. A popularização da tatuagem torna-se, então, um meio de extinguir as restrições a quem utiliza o adorno. As falas mais liberais quanto aos tatuados vêm das áreas da propaganda e da administração estatal que, a princípio, poderia ser um campo restritivo, dada a formalidade da burocracia. Contudo, como esta é baseada no mérito e no comprometimento com a execução de funções (WEBER, 1971), diluindo o ocupante do cargo em uma impessoalidade, inverte-se o esperado, e a administração estatal se apresenta como um ambiente mais liberal.

183 Washington Olivetto, diretor da agência publicitária W/Brasil, uma das mais famosas do país, afirmou que: “Tanto para a W/Brasil como para mim, o que importa numa pessoa é sua cabeça e não o que ela tem no seu corpo. Um funcionário talentoso, de bom caráter e com muita vontade de trabalhar pode usar o que quiser. Até entendo que existam restrições para alguns setores. Mas nosso ambiente é de pura informalidade.” (Washington Olivetto, diretor da agência publicitária W/Brasil)

O campo da publicidade, campo de criação, beneficia o mérito. Neste sentido, a criatividade é qualidade mais importante no profissional da propaganda do que a aparência. O ambiente da propaganda é informal: ele requer liberdade para criar. Mas, alerta o publicitário, em outros ambientes profissionais as restrições são reais e mesmo compreensíveis. Cai-se novamente na idéia de que há funções que não devem ser exercidas por tatuados. Ivan Moreira, presidente da Câmara dos Vereadores do Município do Rio de Janeiro, disse que: “Não vejo problema em servidor usar tatuagem ou piercing, mesmo em partes visíveis. Não interfere no desempenho profissional.” (Ivan Moreira, presidente da Câmara dos Vereadores do Município do Rio de Janeiro)

Falando apenas pelos servidores municipais, seu discurso é o mais liberal de todos. Aqui o mérito é o único critério de avaliação do profissional, sem restrição alguma àqueles que trabalham no atendimento ao público, como em outros setores do mercado. O discurso do vereador está plenamente de acordo, é importante notar, com a prática estatal do concurso público como forma de avaliação do mérito. Não importa a aparência, como em outros setores do mercado de trabalho, mas apenas a competência para o desempenho da função. A partir destas opiniões de contratantes, é possível observar que há, de fato, restrições ao uso de tatuagens em diversas áreas do mercado de trabalho. Contudo, a maior parte das restrições diz respeito à visibilidade das tatuagens. Desta forma, conclui-se que a estratégia de esconder as tatuagens, localizando-as em zonas do corpo que possam ser

184 cobertas pelo vestuário, é uma forma de sobrevivência. Por outro lado, o que emerge em todas as falas é a idéia de que a tatuagem constrói um visual estigmatizado, associado à desconfiança, à doença, à má aparência e, como conseqüência, ao trabalho mal feito. Poderia concluir, ainda, apontando para um imaginário que pensa sempre em uma reação negativa ao encontro visual de uma tatuagem. A visibilidade da marca gera um processo de estigmatização: ela não combina com trabalho, competência, confiança, mérito. Mas para quem? Os empregadores jamais assumem a responsabilidade, jamais apontam os tatuados como inadequados. Ao contrário, eles dizem estar lidando com uma reação do público, cujo perfil nunca é definido. Sem saber quem impõe a restrição aos empregadores, só resta aos tatuados imputar a estes as restrições que encontram para modificar o próprio corpo, criando estratégias para manter a soberania sobre os próprios desejos sem ter de se afastar do mercado. 4. Beleza e sedução Leitão (2002) chama a atenção para a tatuagem feminina em sua função de elemento de sedução. Não apenas a marca se torna mais uma do repertório de embelezamento feminino e masculino, como este embelezamento é pensado em termos de sedução do outro. Neste sentido, a coqueteria feminina segundo Bourdieu (2003) é uma forma de atrair o olhar, reificando a posição de um corpo dominado, um corpo para o outro. Dois trechos me parecem interessantes para pensar a questão (LEITÃO, 2002, p. 114-115): “Pra homem eu acho que no braço é o mais bonito, porque essa parte do braço é uma coisa tão masculina sabe... musculosa, bonita, forte, se ele tem uma tatuagem bonita assim... só acrescenta.” (Carla) “Pra mulher eu acho lindo no peito...Ai no seio é lindo, tu usa um decote e fica coisa mais linda, super sensual, bem mulher fatal... e no pescoço... Aí prende o cabelo, deixa cair aqueles fiapinhos... ai, e aquela tatuagem linda...” (Carla)

Sabino (2004) tem reflexão semelhante, não apenas com relação à tatuagem feminina, mas a toda a construção física dos marombeiros. O vigor muscular, adornado ou

185 não por tatuagens, visa também a sedução. A localização das tatuagens é, neste sentido, uma forma de valorizar determinadas regiões do corpo. Conforme uma das entrevistadas de Sabino (2004, p. 270 ): “...a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... é claro, né? São lugares de mulher fazer tattoo... por quê? Porque dá um tchan, um destaque naquela parte que você acha que você tem de legal, que atrai os caras e deixa as mulheres com inveja, que te dá aquele charme... entende? Se a mulher tem uma cintura bonita, fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal no cóccix, se ela tem um peitão bacana manda uma no peito, e aí vai... sacou? Muita mina diz que faz na nuca, no cóccix que é p’ra não enjoar da tattoo, porque ali ela não fica vendo o desenho o tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas é muito mais p’ra dar um destaque naquela parte do corpo que ela acha legal.” (Juliana. 20 anos. Estudante).

Percebe-se que os locais a serem valorizados no corpo feminino são locais erotizados, por isto sedutores: a cintura (fina) e o quadril (largo), tanto quanto as nádegas (firmes) e os seios (fartos), mas também a nuca (exposta). Esta valorização se dá por meio da atração do olhar para a região do corpo. Neste sentido, a marca é utilizada com uma função muito própria e determinada: ela é um mecanismo de atração do olhar para aquelas regiões do corpo que, em nossa cultura, se tornaram a própria definição do corpo feminino, sobretudo a sua parte inferior. Se o corpo feminino foi reduzido a seios e nádegas, o corpo masculino parece ter sido reduzido a braços. Quero indicar aqui relação análoga à feminina, pois não são apenas as mulheres a fazerem uso de tatuagens para atrair o olhar. No caso dos homens, a região preferencial para ser tatuada é o braço. Não necessariamente um braço musculoso. O braço masculino se tornou epíteto da própria masculinidade, pois é um símbolo de força, que por sua vez se tornou a definição do masculino conforme observado no presente trabalho. 5. Lidando com a dor: o frouxo e o carniceiro A forma como o tatuado lida com a dor causada pelo processo da tatuagem pode ser bem diferente segundo o gênero. Como aponta Le Breton (1995), os meninos são criados, tanto na família quanto na escola, para se fecharem à dor, negando-a ou não a

186 demonstrando, enquanto as meninas são encorajadas a demonstrarem seus sentimentos. Para eles, esse é parte do aprendizado de “ser um verdadeiro homem”. Embora eu tenha recolhido relatos de tatuados, em conversas informais, que me garantiam que o ato não é doloroso, outros afirmam que o processo envolve sua porção de sacrifício. Os que negam a dor afirmam que existe uma sensação de queimação ou ardido enquanto a agulha deposita os pigmentos abaixo da pele. Importa menos medir o grau de resistência à dor de cada indivíduo do que os discursos relativos a ela: porque é negada e porque é reificada. Entre povos que se tatuam ou se tatuaram, a dor parece ter servido como elemento que demonstra a coragem daquele que se submete ao processo. Esteja o tatuado em silêncio ou aos berros (GILBERT, 2000), a sua atitude demonstra que ele é corajoso o suficiente para submeter-se a um processo doloroso. A dor não é negada, nestes casos, mas sim parte do ritual. Há que se esclarecer, contudo, que a técnica contemporânea tem sido recorrentemente descrita (GILBERT, 2000; SCHIFFMACHER, 2001) como menos dolorosa do que a tradicional. A tatuagem tradicional, ou artesanal, é realizada com instrumentos de poucas agulhas. A partir da invenção da máquina de tatuar elétrica no final do século XIX, o processo se tornou mais rápido e por isso menos doloroso. As agulhas são soldadas juntas e acopladas à máquina. Desta forma, uma extensão de pele pode ser coberta de pigmento de forma mais rápida, pela velocidade da máquina e pela quantidade de agulhas utilizadas. A mão do tatuador pode oferecer sensações distintas de dor. Vulgarmente descrita como mão leve ou mão pesada, a técnica do tatuador pode fazer o tatuado sentir mais ou menos dor. A diferença está na pressão exercida sobre a máquina, a profundidade em que as agulhas perfuram a pele. Quanto mais profundo, mais doloroso. A técnica tradicional japonesa envolvia, segundo Gilbert (2000), três posições de mão. A posição considerada melhor era aquela que provocava a menor dor, mas apenas os tatuadores mais experientes conseguiam mantê-la. Como a tatuagem é um processo que envolve algum desconforto físico – se não a dor, ao menos o ardido –, poder-se-ia supor que masoquistas e adeptos de sadomasoquismo se interessassem pela prática. Na literatura da área, apenas um autor mencionou o fato. Steward (1990), que foi tatuador, menciona poucos sadomasoquistas que foram seus

187 clientes. Aparentemente, o prazer na dor de ser tatuado não lhes atrai, uma vez que não há uma interação sexual ou erótica com o tatuador. Entre os entrevistados por Leitão (2002), há mesmo os que dizem que querem uma tatuagem mas não querem sentir dor. De fato, a tatuagem como é praticada contemporaneamente, pode ser dissociada, na visão de alguns tatuados, da dor. Uma não tem que ser, necessariamente, sinônimo da outra. Mais recentemente, outras práticas de modificação corporal têm procurado diretamente a experiência da dor. Em reportagem disponível em março de 2003, o site IG (JORDÃO, 2003) mostra o exercício da “suspensão”, quando o indivíduo é erguido do chão por ganchos colocados diretamente na carne, em perfurações mais profundas que as utilizadas na técnica do piercing. A prática é descrita juntamente com outras práticas de modificação corporal por corte ou queimadura, incluindo a tatuagem. Segundo uma entrevistada, a dor não é uma busca, mas uma conseqüência da necessidade de expressão pessoal através do corpo. A autora da reportagem afirma que para outros praticantes a dor é um desafio a ser superado. Buscada ou não, a dor é um elemento de inúmeras práticas corporais atuais. Pareceme que ela é negada em certas situações e supervalorizada em outras. O esforço físico da musculação pode resultar em uma dor que se prolonga por horas. A dor da tatuagem é sentida apenas no momento da operação. A dor do piercing pode se manter por alguns dias. Em qualquer caso, a dor é uma experiência pessoal subjetiva que não pode ser medida, mas seus significados sociais podem ser analisados. Entre os tatuados e os candidatos à tatuagem, percebi que a dor é sempre um ponto de preocupação, surgindo ao longo das conversas que presenciei nos estúdios. Durante o trabalho de campo, ouvi a pergunta “dói?” diversas vezes. A resposta depende da região do corpo a ser tatuada. Os tatuadores que observei jamais negaram que a tatuagem causasse pelo menos algum desconforto. Respostas como “é suportável”, “não muito” ou “aí dói” são as mais comuns. Não se diz simplesmente “sim” ou “não”, mas prepara-se o cliente, seja na forma de um incentivo ao minimizar a possibilidade de dor, seja na forma de um alerta quanto à região escolhida. Algumas regiões do corpo são consideradas (mais) dolorosas, como pescoço, coluna, pés, cotovelos, canelas, peito e costelas. Como regra geral, pode-se dizer que as regiões “ossudas” ou “sem carne” são as mais dolorosas.

188 Como exemplo da sensação de ardido, há o caso de uma cliente do estúdio, de 18 anos prestes a fazer sua primeira tatuagem, que perguntou ao tatuador já na sala de tatuar, antes de iniciada a tatuagem, se era um processo doloroso. Ele respondeu que não e que faria a tatuagem bem leve para que ela não sentisse nada. Quando começou o contorno, feito com pigmento preto, perguntou a ela se “estava tudo bem”, como é costume fazer. Ela informou que sim. O namorado, que a acompanhava, perguntou se ela sentia dor. “É mais um choquinho... não é dor”, respondeu. Quando o tatuador trocou as agulhas para colorir o desenho, ela perguntou se colorir doía mais. “É a mesma coisa”, ele respondeu. Depois de algum tempo, ela sentiu dor. Não pediu para parar o processo nem reclamou, mas mordia o dedo e curvava o corpo para frente. Perguntei-lhe se doía, e ela disse que sim. Uma outra cliente, também de 18 anos, fora até lá para sua primeira tatuagem, acompanhada de uma amiga que já possuía algumas. Escolheu as costas, por trás do ombro, para tatuá-lo. Estava preocupada com a dor que sentiria, mas a amiga lhe incentivava, dizendo que doía, mas que se ela queria a marca teria de passar por isto e que valia a pena. A moça fez caretas e reclamou da dor que sentia, mas seguiu em frente com a tatuagem. No quadro abaixo, apresento as reações e possíveis conseqüências destas quando o tatuado vivencia e/ou representa o processo da tatuagem como doloroso ou não-doloroso. Os processos de não-dor não significam, de forma alguma, insensibilidade ante às agulhas da máquina de tatuar, mas sensações que são descritas com palavras outras que “dor”, como ardência,

queimação,

cosquinha

e

choque.

Todas

são

consideradas

sensações

desagradáveis. Contudo, as quatro últimas seriam consideradas como sensações não tão ruins quanto a dor. Trata-se, portanto, de uma forma de minimizar a sensação desagradável vivida no ato de ser tatuado. Quadro n. 4 – Tatuagem como processo doloroso ou não-doloroso Choque/Ardência/Queimação/Cosquinha • • •

Minimiza a sensação desagradável. • Não demonstra desagrado fisicamente • (conversa, canta, assobia, lê revista, etc). Suportável. •

Dor Maximiza a sensação desagradável. Demonstra desagrado fisicamente (faz caretas, faz reclamações, pede pausas). Sacrifício.

189 Quando os tatuados dizem “não dói”, o que querem dizer, de fato, é que não se trata de dor, mas de outras sensações. Neste sentido, retomo o relato de um cliente do estúdio pesquisado na Tijuca, discurso colhido enquanto tinha a parte interna do braço tatuada: Pesquisadora – Aí dói? Cliente - Não, aqui não dói muito não. É a posição que me incomoda. P – Aí não dói não? C - Não é que não dói, toda tatuagem dói, mas é suportável.

No relato acima, a dor existe, mas ela é minimizada e tratada como suportável. Quando se utilizam termos como ardência, choquinho, cosquinha e queimação o que se está fazendo, de fato, é minimizar a dor e representar o processo como de um incômodo físico suportável. Le Breton (1995), em livro sobre a dor, distingue a “dor aguda” da “dor crônica”. Esta, incessante, sobrevivendo às medicações e tratamentos, é aquela que perturba o sujeito a ponto de lhe roubar a própria identidade, jogando-o em um rodamoinho existencial que envolve estados de depressão e sofrimento. Não é o caso da dor como observada na tatuagem. Para alguns tatuados, ela nem mesmo poderia ser considerada dor. Decorre disto que a postura esperada no estúdio, seja de homens ou de mulheres, é o silêncio. Dá-se às mulheres, contudo, o privilégio de uma demonstração pública da sensação de dor, enquanto esta é negada aos homens. É possível observar que este silêncio é, muitas vezes, acompanhado de posturas corporais, indicando algum grau de tensão em função do desconforto do procedimento. Entre a dor e a não-dor teríamos, portanto, o silêncio. Em alguns casos, os clientes parecem não sentir absolutamente nada. Em uma tarde de observação, a tatuadora da casa recebeu um cliente para completar um desenho no peito. Colocou o fundo azul num tubarão em preto e cinza e um pouco de sangue na boca do animal. Ela e o cliente também conversaram sobre dor. O rapaz mostrou outro lugar do corpo que pretendia tatuar ainda e ela respondeu: “ai dói, mas onde você fez dói também”. “É, parece que eu só escolho mal”, ele respondeu. Mas de todos ali era o único que não demonstrava nada. Este caso indica que não há necessariamente um cálculo da parte do tatuado sobre a dor, o que poderia levar alguns a não optarem pelas regiões reconhecidas como mais

190 dolorosas. Em alguns casos esse cálculo é possível, mas uma vez que a maioria dos clientes que observei escolhia o desenho e o local a ser tatuado antes de perguntar se o processo de tatuar ou a região a ser marcada eram dolorosos, penso que o principal cálculo, se pode ser chamado assim, é de fundo estético, escolhendo-se um local no corpo onde o desenho e o próprio corpo fiquem bonitos. Não é raro o tatuador informar ao cliente que o local escolhido é doloroso e, no início do processo, o cliente avisar que não está sentindo dor. Além do caso acima relatado, observei, em outra ocasião, uma moça que queria tatuar o desenho de um gato abaixo do rim esquerdo. A primeira coisa que perguntou foi se o local era doloroso. “Aí dói um pouquinho”, a tatuadora respondeu. Começou a tatuar e perguntou se doía muito. “Nada... é como uma cosquinha”, disse. E, de fato, não parecia sentir dor: sorria e até cantava. Interessante notar que não era sua primeira tatuagem, mas a terceira, e a idéia de dor ainda a afligia de certo modo, caso contrário não teria perguntado a esse respeito. O que pesa neste caso parece ser a localização e não o processo em si. Pode-se supor que após a primeira tatuagem, a intensidade da dor causada no processo se torna conhecida, temendose menos a agulhas e restando a idéia de dor relacionada a áreas específicas do corpo. Neste caso, seria de se supor que os indivíduos calculassem, sob um processo reflexivo, as áreas a serem tatuadas. Tal não parece acontecer, visto os exemplos anteriores. A tatuagem é escolhida para determinadas regiões do corpo por processos outros que não a fuga da dor. Nos estúdios de tatuagem, a dor pode fazer um elo momentâneo entre os tatuados. Sentir dor e expressá-la é uma maneira de conseguir apoio moral e verbal, mas apenas entre mulheres. Uma cliente, em conversa informal, disse ter sentido muita dor em sua segunda tatuagem (tatuava o terceiro desenho), localizada no pé. Recordava-se de que, na época, um outro cliente a incentivava. Ele fazia um desenho grande em outra região do corpo, enquanto ela escolhera um desenho pequeno, e supunha-se que a comparação na extensão e no tempo da tatuagem fizesse com que ela se sentisse mais confortável. Mesmo assim, disse-me que sentiu muita dor. Observei uma outra cliente sendo tatuada no pé e toda a expressão corporal da moça demonstrava o quanto a tatuagem era dolorosa. Ela segurava a mão do namorado com tanta força que ele reclamou. Contorcia o rosto em inúmeras caretas, mas não pediu nenhuma pausa ao tatuador, nem tampouco reclamou.

191 As pessoas que sentem dor e a expressam pedem mais pausas ao tatuador do que ele gostaria de lhes dar, pois isto alonga o tempo do processo. Estas pessoas, em sua maioria mulheres, também costumam dizer o quanto a tatuagem está sendo dolorosa. Eventualmente, alguns homens expressam dor, mas jamais com a mesma intensidade que as mulheres, que fazem caretas, torcem o corpo e pedem pausas. Em uma tarde no estúdio pesquisado na Tijuca, observei um rapaz de menos de 30 anos que chegava para colorir uma tatuagem na parte da frente da canela, região considerada dolorosa. Ele havia tatuado um elefante em preto, com sombras em cinza, e voltara para que o tatuador colorisse o animal com um tom de rosa envelhecido e colorisse a água do lago em que ele estava de pé. Em determinado momento, o rapaz reclamou que “isso não doía assim”. O tatuador fez uma pausa por conta própria, para fumar um cigarro, embora o rapaz quisesse continuar. 5.1. A pomada anestésica A dor pode ser minimizada com o uso de uma pomada anestésica, raramente indicada pelos tatuadores no estúdio da Tijuca mas freqüentemente utilizada no estúdio de Copacabana. Clientes aparentemente apavorados quanto à possibilidade de dor, utilizam a pomada. Testemunhei um caso destes quando surgiu no estúdio da Tijuca uma moça que queria tatuar uma estrela de cinco pontas abaixo do pescoço. Estava bem nervosa e o tatuador parecia irritado com seu nervosismo50. Disse-me que sempre quis uma tatuagem, mas não tinha coragem. Depois que a irmã mais nova fez a sua segunda tatuagem naquele mesmo estúdio, na semana anterior, ela se decidiu. Ao iniciar o processo, a moça se acalmou, comentando que não estava sentido dor alguma. Em apenas uma ocasião no estúdio pesquisado na Tijuca vi um tatuador prescrever a pomada anestésica (normalmente é o cliente que pergunta sobre ela): o cliente queria tatuar a região da costela, considerada dolorosa, com um dragão de cerca de um palmo. Este é um desenho demorado, cheio de detalhes, e extenso. Quando o cliente retornou à loja para ser tatuado, não havia aplicado a pomada. Em casos como este, creio que a dor é pensada como condição do processo de tatuagem: aqui, especificamente, relacionada à idéia do ethos 50

LEITÃO (2002) descreve a mesma reação em um tatuador de Porto Alegre, que se referiu à sensibilidade de uma cliente como “frescura” e se referia à sensibilidade à dor da tatuagem, de um modo geral, como “coisa de mulherzinha”.

192 guerreiro. Não há porque não utilizar a pomada anestésica quando o próprio tatuador recomenda seu uso (baseado, provavelmente, na idéia de que se a dor for por demais intensa, o trabalho terá de ser pausado e reiniciado em uma nova sessão). Levando-se em consideração que os tatuadores só prescrevem a pomada em casos específicos, se o conselho não é seguido, então a dor é elemento crucial, constituindo-se o processo em algo muito maior do que simplesmente um desenho encravado na pele. A pomada é receitada porque o conforto do cliente é fundamental, pois implica a continuidade do trabalho. A dor é um impedimento à execução mais rápida, pois faz com que os tatuados queiram pausas na operação. Certa tarde chegou ao estúdio da Tijuca uma moça branca, bronzeada, cabelos compridos. Queria cobrir um desenho antigo de flores nas costas, feito há 10 anos, próximo ao ombro esquerdo. Optou por um beija-flor e novas flores foram aplicadas em free hand. Ela se olhava muitas vezes no espelho, acompanhando o processo. Sentia muita dor. No início, enquanto o profissional fazia o contorno do desenho em negro, reclamou e pediu para parar. Chamou o tatuador para fumar fora do estúdio e ele foi. Fizeram isso duas vezes. “Eu sou chata... eu sinto muita dor”, falou para ele. Fazia muitas caretas e pediu mais duas pausas, mesmo quando o trabalho estava praticamente pronto, num total de quatro pausas para um desenho considerado de tamanho pequeno. Em se tratando de uma mulher, não houve comentários sobre covardia. Pareceume que o tatuador se incomodava em não concluir o trabalho logo, mas não fez comentários, nem mesmo depois que ela saiu. Mesmo os tatuadores sentem dor no processo, pois não existe uma técnica para suportá-la melhor. Tive a oportunidade de observar um dos tatuadores da Tijuca sendo tatuado por um de seus colegas. Cobria desenhos antigos no antebraço esquerdo com uma tatuagem oriental. Estes desenhos costumam ser ricos em detalhes, dificultando sua execução e tomando um tempo maior. Perguntei-lhe porque cobria os antigos. Ele disse que estavam velhos, desbotados e feios. Perguntou-me se eu iria tatuar. Neguei, explicando que estava lá para uma pesquisa. Perguntou:

193 “Você escreveu aí que essa porra dói para caralho?51 Quando chega no osso, dói para caralho.” (Tatuador do estúdio pesquisado na Tijuca)

Foi impressionante ver um tatuador reclamar de dor. Ao longo da tarde, enquanto o desenho era colorido em vermelho, ele falou sobre isso várias vezes. Outro tatuador perguntou se não estava inchando o braço. “Está inchado já... daqui a pouco vou ter que parar”, respondeu. “Mas foda mesmo foi aqui” e mostrou o cotovelo colorido de preto. Pode-se questionar por que o tatuador não fez uso da pomada anestésica. Parece que tal recurso não funciona bem em áreas ossudas. Uma cliente que estava colorindo um dragão, que ia de seu pé até a metade de sua canela, reclamava, em certa tarde neste mesmo estúdio, que passara a pomada, mas que não estava sentindo nenhum alívio. Fazia muitas caretas e falava sobre a dor que sentia. Quando as agulhas atingiram a pele que cobre o osso do tornozelo, ela parou de falar, alegando que sentia tamanha dor que não conseguia falar. O proprietário do estúdio pesquisado em Copacabana, contudo, não apenas já fez uso da pomada como acha que ela serve justamente para as regiões mais dolorosas. “Já usei sim... vou sentir dor à toa? Eu não! Mas é mais para região dolorosa mesmo, tipo coluna e canela. Braço assim por fora, não tem necessidade. Não é que não dói... cara, tatuagem dói, entende? Não tem o que fazer. Mas têm regiões em que é tranqüilo, você vai.” (proprietário do estúdio pesquisado em Copacabana)

Segundo ele, a pomada é utilizada há menos de 10 anos. Ela não retira totalmente a sensação dolorosa das áreas mais sensíveis, mas alivia. Utilizando a pomada, a dor some ou é minimizada. Mas o que o tatuador indica é que essa dissociação não é possível, pois o procedimento é doloroso. A questão posta, então, é não sentir dor “a toa”, sem necessidade, dissociando a tatuagem e a dor decorrente de sua aplicação de um eventual significado para a dor. Não obstante, tenho indicado que se a dor não tem significado em si, ela ganha sentido na postura adotada para se lidar com ela. Em outras palavras, não se busca a tatuagem para sentir dor, mas lidar com a dor é peça fundamental no processo,

51

Um cliente de Copacabana, um senhor aposentado fazendo sua primeira tatuagem, localizada no braço, teve a mesmo reação que o tatuador ao saber que eu estava no estúdio realizando uma pesquisa. Disse: “escreve que isso dói, viu?”.

194 especialmente para os homens. No lidar com a dor a masculinidade se torna alvo de observação e teste. A pomada anestésica faz parte da gama de novos medicamentos criados para o combate à dor. Conforme aponta Le Breton (1995), uma das principais preocupações médicas é a diminuição da dor dos enfermos. A utilização de anestésicos cresceu, também, em função da diminuição na tolerância individual à dor. Observa-se a dor hoje, segundo o autor, como algo sem sentido, uma espécie de tortura. O mesmo ocorre nos estúdios de tatuagem. Contudo, é necessário observar que a resistência à dor apresenta um elemento de classe. Entre as camadas mais baixas da população, ela é mais bem tolerada do que entre as camadas altas. O uso extensivo da pomada no estúdio de Copacabana, ainda que muitos dos clientes desconhecessem totalmente o medicamento, ao contrário de seu uso pouco existente no estúdio da Tijuca, indicam um componente de classe operando no universo dos estúdios de tatuagem. 5.2. Coragem “Coragem” é um termo comumente utilizado por clientes que fazem a primeira tatuagem. Dizem que não tinham tido coragem antes ou não querem esperar quando o estúdio está movimentado para não perderem a coragem. Em certa ocasião, observei uma cliente da loja ansiosa em vencer o medo. Ela e a amiga queriam tatuagens e escolhiam entre os desenhos menores. A amiga queria um “sol tribal” com a primeira letra de seu nome no meio do círculo, para ser tatuado nas costas. O profissional que as atendia perguntou se esperaria uma outra cliente ser tatuada, pois ela havia se decidido antes. Respondeu: “Ah não, se não for hoje eu perco a coragem.” (Cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Em outra ocasião, uma cliente de 45 anos, tatuava no pé uma homenagem à filha, moça de 17 anos que a acompanhava no estúdio: “amor eterno, Andrezza...”. Era sua primeira tatuagem. Ao comentar que sempre desejara ter uma, perguntei-lhe porque demorou tanto tempo para satisfazer seu desejo. Respondeu:

195

“Me faltou coragem. Se não doesse, faria uma outra.” (Cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Mas sentia muita dor, o que a desencorajava. Ainda assim, disse que talvez fizesse outra no ano seguinte. É interessante que os relatos sobre ter ou não ter coragem são sempre de mulheres. Está implícito aqui uma variável de gênero que seria constitutiva da própria masculinidade: a coragem é um atributo masculino. Ela pode faltar às mulheres, mas jamais aos homens. Mesmo quando o tatuador alerta que a região do corpo é dolorosa – como observei no estúdio quando um rapaz desejava tatuar a costela e foi recomendado que utilizasse uma pomada anestésica –, jamais um homem remete à sua falta de coragem. A pomada, conforme visto, não é receitada normalmente na Tijuca, ao contrário do que observei em Copacabana. O rapaz em questão, ao retornar ao estúdio para a tatuagem, não havia feito uso da pomada. Conforme será visto a seguir, reclamações masculinas sobre a dor do procedimento, quando consideradas pelo tatuador como excessivas, são sinônimos de covardia, de fraqueza, de falta de masculinidade. Entre povos que se tatuam ou se tatuaram, a dor parece ter servido como elemento que demonstra a coragem daquele que se submete à operação. Esteja o tatuado em silêncio ou aos berros (GILBERT, 2000), a sua atitude demonstra que ele é corajoso o suficiente para submeter-se a um processo doloroso. A dor não é negada, nestes casos, mas sim parte do ritual. Há que se esclarecer, contudo, que a técnica contemporânea tem sido recorrentemente descrita (GILBERT, 2000; SCHIFFMACHER, 2001) como menos dolorosa do que a tradicional. Como será visto adiante, essa ritualística parece ter sido mantida pelos homens tatuados nos estúdios observados. 5.3. Dor e masculinidade Se a dor for muito intensa, é comum que se opte por várias sessões. Contudo, o cliente pode deixar a tatuagem inacabada ou demorar anos para terminá-la. Conheci um cliente que queria finalizar um desenho feito naquele mesmo estúdio há anos atrás: uma onça mordendo o cabo de uma guitarra. O tatuador proprietário do estúdio comentou que o

196 desenho estava ruim, com os traços de contorno se tornando mais grossos por não ter sido finalizado e que teria de refazer certas partes. Achou melhor não colorir o desenho e o cliente também. Ele não havia terminado a tatuagem em função da dor. Disse-me que na época estava em jejum e a dor fez com que sua pressão arterial abaixasse. Disse, ainda, que por ser gordinho sentia mais dor e que quando a agulha picava a gordura doía muito. Dessa vez, comentou, havia passado a pomada anestésica. O desenho localizava-se no bíceps direito, local que não é considerado doloroso. Este cliente, um homem moreno, gordo, alto, cerca de 40 anos, é músico profissional. Em sua banda, contou, todos são tatuados e ele, dizendose vaidoso, resolveu fazer a sua. Como não terminou, foi motivo de piada. A chacota quanto à dor é comum entre os clientes homens. Vale ainda a máxima de que “homem não chora”, traduzida no mundo da tatuagem para a idéia de que os homens não devem reclamar da dor. Comentários masculinos sobre a dor são comuns, mas reclamações em excesso geram impaciência nos tatuadores. Pude presenciar a reação dos tatuadores às diferentes condutas numa mesma tarde de observação na Tijuca. Um dos tatuadores da casa atendeu um cliente: um rapaz magro e alto, branco. Tinha um painel nas costas, que começara há dois anos: uma mulher lutando contra um dragão, imagem retirada da capa de um livro. Havia passado a pomada anestésica e falou que não suportava a dor. Havia tatuado um Demônio da Tasmânia, personagem de desenho animado, na parte interna do braço esquerdo há 10 anos e não sentira dor. O diálogo entre cliente e tatuador tomou a seguinte forma: Tatuador - Você é um frouxo! O cara mais frouxo que eu já vi! Cliente - Você que é um carniceiro! Eu não quero sentir dor. Sou capaz de desmaiar aqui. Minhas mãos estão molhadas. Eu estou suando frio! T - Se você desmaiar, aí eu termino [a tatuagem]!

Normalmente os tatuadores são cuidadosos quanto à dor e perguntam aos clientes se “está tudo bem” várias vezes, como vi outros tatuadores fazerem naquela mesma tarde. A intimidade foi o que permitiu a brincadeira. Embora realizada entre velhos conhecidos, ficou clara a expectativa que se tem quanto à dor: ela deve ser suportada pelos clientes para

197 que o tatuador possa exercer seu trabalho. Nos homens, é uma demonstração de masculinidade. No universo masculino, a brincadeira parece ser a forma de atenuar tensões de modo não-violento. Quando se diz a um homem que ele é frouxo, o que se está apontando, de fato, é a sua precária masculinidade. Em outras palavras, diz-se que não é homem. O cliente, para defender-se de tal acusação, rebate a pilhéria chamando o tatuador de carniceiro, o que na profissão é ofensa. Um segundo cliente interveio na conversa. Havia se tatuado mais cedo, retocando um desenho antigo e fazendo um novo. Ao ser tatuado, reclamava eventualmente da dor e mexia constantemente os pés, demonstrando o desconforto. “Se me perguntarem se dói, eu falo ‘dói’. Não vou dizer outra coisa. Tem gente que diz que não... Eu reclamo, faço cara feia mesmo... não vai sair daqui! Não tem problema, ninguém vai ficar sabendo mesmo!”. (Cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)

Enquanto isto, o rapaz que tatuava as costas se contorcia, alegando que a pomada havia perdido o efeito. De fato, parece que o efeito anestésico passa duas a três horas após sua aplicação. Segurava-se na cadeira, mordia o encosto e pedia uma pausa a todo o momento. Pode-se observar como a dor é encarada de formas diferentes. Cuida-se de que não seja insuportável, mas não se gosta de clientes sensíveis. Estes são “frouxos”. A idéia não é fazer sentir dor, mas ela existe e tem que ser tolerada para que o trabalho seja finalizado. Suportar a dor é “macheza”, mas, desde que ninguém saiba, não é fraqueza demonstrá-la. Contudo, observe-se o que o segundo cliente disse. Ele declarava sua dor para pessoas que não o viram ser tatuado, embora dissesse que o importante era que não soubessem de sua “fraqueza”, que ele também não tolerava a dor. Mas ele mesmo contava a respeito, de onde se pode concluir que seu discurso sobre a dor é do tipo que a afirma para demonstrar força. Houve um episódio interessante no mesmo dia. Este último cliente contou aos presentes que seu amigo, prestes a ser tatuado, estudava fisioterapia. Cliente 1 - Você [referindo-se ao cliente 2] vai ter clientes aqui. Tendinite é doença de tatuador

198 Tatuador - [Um dos profissionais mostrou os pulsos para o rapaz] O que eu tenho aqui? Cliente 2 – É um calo ósseo. Você sente dor? T – Não. C2 - Mas é melhor tirar T - E isso dói? C2 - Menos que uma tatuagem!

O comentário fez todos gargalharem: primeiro, porque o cliente deste tatuador era o que mais reclamava; segundo, porque se observava ali uma inversão de posições. O não uso de pomadas anestésicas por parte dos homens, incorre, a meu ver, na idéia do ethos guerreiro, da mesma forma que silenciar sobre a dor é uma forma de demonstrar força e coragem, sinônimos de virilidade. Para Le Breton (2002), a dor envolvida no processo já foi parte, em determinados grupos (marinheiros, oficiais, criminosos), de uma forma de prova de virilidade. Embora o autor pense que esta característica da tatuagem não existe mais contemporaneamente, eu sugeriria que a prova de virilidade não se extinguiu enquanto tal. O processo parece ser decodificado como uma prova não apenas entre os tatuados mas também entre os tatuadores, que observam a intolerância à dor como uma forma de fraqueza, como se o tatuado não houvesse passado em sua prova de virilidade e, portanto, não merecesse respeito. Esta é uma prova levada a cabo dentro de um universo masculino, onde só a outros homens cabe demonstrar que se é macho. O cerne da prova é o silêncio quanto à dor. Sacrifica-se a própria carne em uma espécie de rito de sangue que só vale como rito de masculinidade na medida em que o tatuado mantém suas emoções sob controle e consegue finalizar o processo. Caso contrário, ele será motivo de riso dentro e fora do estúdio. Le Breton (2000) evoca, no lugar da prova de virilidade, um imaginário dos tatuados sobre a tatuagem como um universo de força interior e indiferença quanto ao julgamento exterior, relacionado à idéia de um certo preconceito contra os tatuados, um universo onde se prova a si mesmo coragem e resistência. Eu não creio que esta seja a realidade da tatuagem carioca. Não me parece que a escolha pela marca seja oriunda de uma vontade de provar a si mesmo coragem, resistência ou força interior, mas eventualmente a outros. Nem todos os casos, contudo, comportam este tipo de prova. As idéias de força, coragem e resistência são, como mencionado, vinculadas a uma identidade

199 masculina. Para as mulheres, maioria nos estúdios, não faz sentido essa prova a si mesma. Ao contrário, elas parecem querer demonstrar aos outros a sua autonomia, sua auto-gestão do próprio corpo e da própria vida, conforme observado anteriormente. É fato, como observa o autor, que a dor acompanha muitos processos de embelezamento, sobretudo os femininos. Desta forma, a dor da tatuagem está, para elas, relacionada a uma gama de incômodos que permeia vários outros processos de embelezamento, como a depilação, por exemplo. No caso dos homens, ao contrário, não é a beleza que está em voga quando se lida com a dor. Para eles, a dor não é apenas parte do processo de tatuagem, mas parte do próprio processo de fabricação da virilidade. 6. Pensando as diferenças de gênero nos estúdios A partir dos dados levantados, foi possível observar que os desenhos tatuados e as regiões do corpo que apresentam tais desenhos seguem uma lógica de diferenciação de gênero análoga àquela encontrada na sociedade brasileira de um modo geral. Os desenhos femininos remetem a noções de fragilidade e delicadeza, enquanto os desenhos mais procurados pelos homens, ao contrário, remetem a noções de violência e força. Esta distinção presente no universo da tatuagem carioca corresponde a representações de gênero da própria sociedade onde o masculino é sinônimo de força e o feminino de fraqueza, reificando uma ordem masculina em que o feminino é submetido e subjugado. Estas diferenças são percebidas conscientemente pelos clientes dos estúdios, tanto quanto pelos tatuadores, que buscam manter tais distinções. Assim, animais agressivos e potencialmente vistos como masculinos, como o leão e o tubarão, adornam os corpos femininos após passar por uma transformação em que são retirados os traços de agressividade. As mulheres, zelosas de sua feminilidade tanto quanto os homens de sua masculinidade, não gostam de desenhos considerados masculinos e fogem, via de regra, de regiões do corpo consideradas como típicas dos homens. As regiões do corpo tatuadas, também classificadas como femininas e masculinas, apontam para esta mesma noção do masculino como sinônimo de força e do feminino como sinônimo de fragilidade e delicadeza. Assim, eles tatuam os braços com desenhos considerados grandes, “coisa de homem”, enquanto elas escondem desenhos pequenos em

200 regiões discretas como a nuca, por exemplo. Esta discrição não encobre, contudo, uma determinada visão do feminino como algo menor, encolhido, que não deve estar à mostra ou à vista, a não ser quando da sua função de sedução, de elemento que embeleza e agrega valor ao corpo feminino. Se uma tatuagem pode transformar o homem, agregando-lhe masculinidade, os desenhos femininos agregam beleza e capacidade de sedução, direcionando o olhar para áreas estratégicas do corpo. Torna-se mais homem no estúdio, isto é, adquire-se mais masculinidade, pois, como indicado, submeter-se à tatuagem é submeter-se a um ato de sacrifício em que a dor deve ser suportada de forma a servir como prova de virilidade. Por outro lado, se às mulheres não se impõem a prática como prova de coragem e força, não deixa de ser necessária alguma determinação, não apenas no enfrentamento da dor, mas sobretudo no enfrentamento de posições contrárias à marca da parte do marido e da família. Emerge, assim, o ato de ser tatuado, para elas, como espaço de decisão individual sobre o próprio corpo e o próprio destino, ambos submetidos à opinião e desejos de terceiros, a todo momento dispostos a cercear suas preferências pessoais. O corpo controlado da mulher é seu destino controlado. Neste sentido, tomar a decisão de tatuar-se é tomar as rédeas de seu próprio destino, expresso no símbolo de autonomia em que se transforma a própria tatuagem.

201 CAPÍTULO VII

- SENTIMENTOS, LEMBRANÇAS E ESQUECIMENTOS: a

tatuagem como expressão de um momento na história de vida “Não só quem nos odeia ou nos inveja Nos limita e oprime; quem nos ama Não menos nos limita” Ricardo Reis [Fernando Pessoa] Tenho utilizado como argumentos as noções de dentro/fora, exclusão/inclusão e controle/autonomia, vistas a partir de um pano de fundo teórico da tensão entre indivíduo e sociedade. As tatuagens de amor formam mais um caso desta tensão, onde as díades conceituais acima emergem. A singularidade das tatuagens de amor, que fez com que eu as dispusesse em capítulo próprio, repousa na sua qualidade explícita de marca de propriedade, não como posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002), mas como uma doação de si ao outro, ou uma requisição de posse sobre o outro. Assim, estas marcas de amor indicam que a dinâmica das relações amorosas está perpassada por uma disputa de poder, onde as relações de gênero mais uma vez são elemento crucial. Enquanto apresento a tatuagem em todo o presente estudo como uma forma de construção de um determinado modelo de individualismo, onde o papel da distinção é fundamental, relacionando-se ainda à percepção de uma falta de autonomia dos sujeitos em nossa sociedade, as tatuagens de amor, na contramão desta construção de autonomia sobre si e resistência ao controle, apresentam um discurso da desistência da autonomia em prol de uma unidade vista no casal. Em outras palavras, e fugindo às possíveis polêmicas sobre o interesse pessoal nas relações amorosas, a marca de amor se torna um laço que ao mesmo tempo em que submete quem o porta, retira a autonomia também do outro, daquele a quem a marca é dada como espécie de prova de amor. Novamente aqui parece se tratar de trazer para dentro de si algo do mundo exterior, injetando junto com as tintas uma relação amorosa na própria carne, eternizada na marca sobre a pele. A dinâmica interno/externo, ou dentro/fora, opera aqui em seu ápice, uma vez que se trata de expressar sentimentos e, ao mesmo tempo, uma relação social. As motivações da tatuagem de amor não diferem, a meu ver, das motivações para qualquer

202 outra tatuagem, apenas ela toma uma forma que parece direcionar-se para longe da construção de uma autonomia ou resistência. Nesse sentido, a experiência da tatuagem de amor não é a da construção ou percepção de um espaço de autonomia pessoal, mas sim da sua falta, na forma de uma recusa a esta autonomia em prol de uma relação que é pensada como mais importante do que a unidade individual, e portanto mais valorizada. Enquanto a tatuagem parece operar a partir de um processo de ganho de autonomia pessoal, as tatuagens de amor funcionam ao contrário: o apaixonado exprime a perda de autonomia pessoal na marca de propriedade sobre seu corpo. 1. As tatuagens de amor: sentimento à flor da pele As tatuagens de amor são um caso paradigmático para a discussão que levanto no presente trabalho. Trata-se de uma situação em que a idéia de pertencimento é levada ao extremo e não está associada a um grupo social, mas a um outro indivíduo, relacionando-se, ainda, à idéia de indistinção. Contudo, não é o caso de tomar o pertencimento como oposto ao significado pessoal que se dá à marca. Nas tatuagens de amor, todas as conclusões anteriores parecem ser postas em xeque, apenas porque a dinâmica que orienta esse tipo de marca é totalmente sui generis no universo da tatuagem, quando em comparação com outros tipos de tatuagens. Existem vários estilos de tatuagens, determinados pelas técnicas empregadas, cores, tipos de desenhos. Entre os mais conhecidos estão: tribais (curvas e espinhos em negro), orientais (japonesas), old school (desenhos tradicionais), new school (cores vibrantes com influência do grafite), realistas (reprodução de retratos), entre outros. Além dos estilos, o universo da tatuagem opera outras classificações, muitas vezes transversais. A “homenagem”, por exemplo, não é um estilo gráfico, mas constitui uma forma de tatuagem que, como o nome diz, presta homenagem a entes queridos. Pode tomar a forma de escrita (nome, iniciais, frases) ou de fotografia (retrato). Destaquei, dentro do que seria considerado como “homenagem”, um tipo especial de tatuagem que chamo “tatuagem de amor” (Figura 16). Ao contrário das “homenagens”, que são prestadas mais freqüentemente a pais e filhos, mas eventualmente também a animais de estimação, as tatuagens de amor são direcionadas exclusivamente ao namorado(a), marido/esposa, companheiro(a).

203 As tatuagens de amor não são a forma mais popular de tatuagem, nem entre homens nem entre mulheres. Não foi possível, nos estúdios, obter dados quantitativos sobre a freqüência de tal prática. Como as tatuagens de amor referem-se tanto a fotografias (estilo realista) quanto a iniciais e nomes, torna-se difícil a análise dos dados, uma vez que jamais é indicado que o tipo de tatuagem executado foi “de amor”. As fotografias e tatuagens realistas podem se referir a uma gama variada de temas, enquanto as “escritas” ou “letras”, como são classificados os nomes e iniciais, podem se referir ainda a frases ou palavras que nada tenham a ver com provas de amor. Por outro lado, o nome da pessoa amada pode não ser escrito em nosso alfabeto, mas em ideogramas chineses ou japoneses. Pretendo discutir aqui como este tipo de tatuagem se relaciona a concepções sobre as relações amorosas como sendo eternas e como, muitas vezes, a marca de amor toma a forma de uma marca de propriedade. Para tanto, serão analisados casos observados durante a pesquisa de campo. Em um deles, duas mulheres se submetiam à marca de amor: uma a pedido do namorado, a outra como um presente a seu marido. No outro estúdio, um casal recém-casado decidira tatuar o nome um do outro, enquanto um rapaz tatuava o rosto da companheira a seu pedido. A permanência do procedimento, em conjugação com a idéia de um amor para sempre, parece ser uma das razões que levam a este tipo de tatuagem. Por outro lado, parece estar em jogo também uma noção de que a relação afetiva é composta por dois sujeitos, mas baseada em uma unidade indivisível entre eles, o que permite que o nome ou retrato do Outro seja marcado no Eu. Quando a relação termina, o estúdio é novamente buscado para que se cubra a tatuagem de amor com outro desenho. No estúdio de Copacabana, observei alguns casos: um rapaz desejava desenhar sobre o nome da ex-namorada o animal que era o seu apelido (Rato); uma mulher separada pensava em cobrir o nome do ex-marido; um homem tatuava o nome da atual namorada, mas recusava-se a apagar o de sua ex, por quem ainda nutria fortes sentimentos; uma viúva que fora obrigada a ser tatuada pelo marido, após descobrir que ele tivera duas amantes durante o casamento, esperava um novo amor que lhe pedisse para retirar a marca. Um outro caso surgiu, ainda, em conversa com um tatuador do estúdio: um cliente que decidiu não cobrir os nomes das ex-namoradas, mas riscá-los com uma linha horizontal, mantendo-os visíveis porém indicando o final das relações.

204 No grupo que optou pela tatuagem de amor estão: Jorge, Joaquim, José, Joana, Júlia e Joyce. Destes, três estavam casados: Jorge, Joana e Joyce. Nenhum deles obteve prova de amor igual de seus cônjuges, ou seja, uma tatuagem de amor, enquanto fiz a observação nos estúdios. Joaquim mantinha relação clandestina com Roberta, ao passo que José e Júlia estavam namorando quando fizeram as tatuagens de amor. José possuía já o nome de uma antiga companheira tatuado no mesmo braço em que dispôs o nome de sua atual namorada. Joaquim e Júlia, por sua vez, tatuavam-se a pedido de seus parceiros. Enquanto Júlia se questionava sobre a validade da prova de amor, Joaquim teve a tatuagem paga pela parceira, Roberta. Foram nomeados com a letra R os parceiros presentes nos estúdios, mas que não optaram, em contrapartida, por submeterem-se a tatuagens de amor. São eles: Roberta, que mantinha relacionamento com Joaquim; e Rosa, esposa de Jorge. Entre aqueles que pensavam em cobrir a marca estão Paula, Pedro e Patrícia. Paula estava separada de seu marido, mas morava na mesma casa com ele e as filhas. Pedro estava separado de sua namorada. Patrícia era viúva e descobrira, após a morte do marido, que ele tinha duas amantes, as quais também fez tatuar com as iniciais de seu nome. As motivações para cobrir a marca foram as mesmas: o fim da relação. O grau de decisão e indecisão quanto à nova tatuagem, contudo, é diferente para cada um deles. As mulheres pareciam mais indecisas do que Pedro, mas não creio que esteja em jogo aqui uma questão de gênero, e sim a natureza da relação, pois Pedro era o único não casado. Quando a relação termina, pode-se optar, ainda, por não apagar a marca. Foi o caso de José. Ele tatuava o nome da atual parceira, mas não pretendia apagar o nome de sua antiga companheira. Apagar a marca, portanto, não é inevitável. A partir desta constatação, torna-se um pouco mais clara a indecisão que rondava Paula e Patrícia. Resgatar a relação, de igual modo, nem sempre é a melhor explicação para esta indecisão, uma vez que o parceiro de Patrícia estava morto. Há, nesta decisão, uma complexa relação entre a memória do que foi vivido, o tipo de relação que foi mantida, com diferentes graus de compromisso, o sentimento nutrido pelo ex-parceiro e as aspirações para os futuros relacionamentos. Pode-se observar, então, preliminarmente, que existem algumas motivações para a prova de amor: dominar/conquistar, aqui quase sinônimos, o parceiro, o que tornam claras

205 as relações de poder em jogo na relação afetiva, mas, por outro lado, pode haver uma resistência a este poder exercido, conforme será observado no caso de Joaquim. Outras motivações são, conforme apresentarei, a vontade de doação de si, que é parte da compreensão sobre a própria dinâmica da relação afetiva. 2. Relações de gênero como relações de poder Antes de apresentar os casos observados, é importante, ainda, reconhecer que a tatuagem de amor é uma espécie de marca de propriedade, fruto de uma concepção sobre a própria relação afetiva observada como permeada por relações de poder. Estas relações de poder estão associadas, por sua vez, às relações de gênero. Em nossa sociedade, as posições de maior poder têm sido, desde há muito, ocupadas pelos homens. Bourdieu (2003) referese a esta situação como dominação masculina. Como o autor aponta, o corpo feminino é objetificado pela visão androcêntrica e pela dominação masculina, tornando-se objeto na economia de trocas simbólicas, sobretudo no mercado matrimonial. Entende-se, a partir daí, como o corpo feminino pode ser marcado como propriedade de outro. Steward (1990), que tatuou entre a década de 1950 e 1960 nos Estados Unidos, quando o público da tatuagem estava ainda restrito fundamentalmente a marinheiros, criminosos e prostitutas, narra casos em que a tatuagem era um voto de amor. Entre seus clientes, os rapazes costumavam levar suas namoradas para que seu nome fosse gravado em algum lugar escondido do corpo, como o seio ou a coxa. Mifflin (1997) e Steward (1990) afirmam que entre os motoqueiros Hell’s Angels a tatuagem de amor tomava uma forma especial: as mulheres eram tatuadas com a expressão “propriedade de...”, completada pelo nome do companheiro e mais raramente pelo nome da gangue. Em ambos os casos, namorados e motoqueiros tatuando seu nome no corpo de suas parceiras/namoradas, observa-se que a relação afetiva está permeada por relações de poder. Estas relações de poder se apresentam na dominação exercida por estes homens sobre o corpo de suas mulheres, marcados com os seus nomes como se a tatuagem fosse uma etiqueta indicativa de posse ou propriedade sobre um indivíduo tornado objeto. De um modo geral, observa-se que grande parte da dominação masculina é exercida justamente na regulação e no controle do corpo feminino, como aponta Bourdieu (2003). Segundo ele, as

206 mulheres, por sua vez, submetem-se a estas práticas pois também operam dentro da lógica da dominação masculina, tratando seus corpos, muitas vezes, como objetos frente aos homens, sobretudo nas práticas de embelezamento, quando o olhar alheio é fundamental. O local escolhido, aparente ou não, revela outros aspectos da dominação masculina. Quando a marca está aparente, então a relação é posta em público, ganha visibilidade. Seja ela socialmente aceita ou não, para as duas partes da relação esta é legítima e vivida desta forma. Se o local tatuado está próximo de zonas erotizadas do corpo, como é o caso dos seios e coxas, ou ainda quadris e nádegas, entre outros, então a marca de amor indica não apenas uma relação de poder mas esta relação ganha um cunho de privilégio sexual, pois marca regiões sexualizadas do corpo com o nome do parceiro. Steward (1990) aponta como, algumas vezes, o rapaz ou a moça apresentava-se sozinho ao tatuador para ter o nome da pessoa amada tatuado, havendo uma relação já estabelecida ou não. Nestes casos, a prova de amor é utilizada como uma estratégia de conquista, pois exprime no corpo uma relação desejada e ainda não obtida. Observe-se que o nome tatuado inicia a relação, associando o casal, mesmo que não haja envolvimento amoroso a princípio. No caso das relações afetivas já estabelecidas, apresentar-se sozinho no estúdio pode apontar tanto para a surpresa, a tatuagem de amor como uma prenda dada ao ser amado, quanto para a doação de si. No caso em que os casais comparecem juntos, a marca de amor pode ser vista como uma estratégia de manutenção da relação. No material iconográfico apresentado por Mifflin (1997), há tatuagens de amor entre lésbicas. Estas são compostas pelo nome de uma no corpo da outra e vice-versa. Como ambas são tatuadas, ao contrário dos casais observados em campo, sugere-se a hipótese de que as relações entre mulheres sejam permeadas por uma situação maior de igualdade, por um equilíbrio das relações de poder. Não se pode concluir que as relações lésbicas não contenham dominação ou exercício de poder, mas a marca conjunta exprime, ao seu modo, que o poder está sendo compartilhado, sem o seu exercício unilateral, em que há dominação/submissão, aqui visto na forma da marca de propriedade. Bourdieu (2003) apresenta duas formas de amor: um amor fati, entendido como amar aquilo que se apresenta como o destino socialmente demarcado para o sujeito, onde a dominação é aceita e não é percebida como tal; e um “amor puro”, onde haveria uma suspensão da luta simbólica, o reconhecimento de si no outro e vice-versa e uma noção de

207 fusão ou comunhão entre as partes envolvidas. Segundo ele, o amor pode romper a ordem comum instaurada, mas não de uma só vez e sim por um esforço contínuo, onde os seguintes “milagres” podem ser operados: não-violência, reciprocidade, abandono e retomada de si mesmo, reconhecimento mútuo, justificação do próprio existir, desinteresse. Estas características são o oposto das relações de dominação, o que leva o autor a falar em “milagres” suscitados pelo amor. No que se refere às tatuagens de amor, os dados levantados em campo têm indicado justamente o contrário. Marcar o corpo para um outro, ou por um outro, tem sido, muitas vezes, um ato interessado, que quer a marca de propriedade sobre o outro ou a marca de uma relação. Quando esta marca é imposta ou requisitada, a dominação fica explícita. Ainda sobre o amor, Costa (1998) alerta que sua versão romântica, um ideal vivido até o presente no mundo ocidental, em que pese a sua realidade para os apaixonados, é uma criação histórica. “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida, alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado”, conclui o autor (COSTA, 1998, p. 12). É a partir desta noção de que o amor romântico é uma crença, ou uma ideologia, que apresento a análise dos casos em que ele parece estar por trás da tatuagem de amor como forma de prova de amor, dada ou requisitada. Costa (1998) oferece uma visão do amor como marcada pelo amor fati, principalmente quando aponta a presença de uma racionalidade constituída no meio social a determinar estas relações, enquanto relega o “amor puro” a uma idealização. Não cabe aqui, contudo, discutir a natureza do amor, mas tomar as características do amor romântico e da crença no “amor puro” como fundantes para explicar a prática das tatuagens de amor. A tatuagem de amor apresenta, ainda, uma faceta que não está diretamente relacionada à marca de propriedade, mas à memória como fundamental à manutenção da relação e a incorporação de uma das partes da relação pela outra, mas não no sentido de uma dominação/submissão. Bradley (2000, p. 150), sobre tatuagens de iniciais de membros da família entre condenados transportados do Reino Unido para a Austrália, diz: “(...) tatuagens representam um laço entre o corpo do indivíduo e o objeto pelo qual as emoções do indivíduo estão expressas. (...) Isto mais comumente envolvia outras pessoas. Aqui as tatuagens agem simbolicamente como significantes emocionais, indicando a força da união [relacionamento] e um símbolo contra a ausência. Estes significantes

208 produziram, por sua vez, dois diferentes efeitos. Em primeira instância, a tatuagem era às vezes uma demonstração pública de união, outras vezes uma demonstração encoberta, apontando, sob um sacrifício de sangue, que a relação penetrou sob a pele – o limite corporal com o mundo mais amplo. Em uma segunda instância, era como se o indivíduo tatuado estivesse se protegendo contra a separação: se esta ocorresse, então a tatuagem agiria como uma presença física falsificada do outro ausente”52. [grifo meu]

Embora o contexto seja diferente, creio que a idéia permanece a mesma. Observese, contudo, que a separação da qual o autor fala não é voluntária, mas ocasionada pelo encarceramento prisional. No caso de separações voluntárias de casais, o mais comum é que se cubra a tatuagem de amor com outra tatuagem, apagando a marca. O autor aponta a tatuagem como um significante emocional, que simboliza a força de uma união. Um casamento de muitos anos, como o que será visto no caso de Joana, consagrado pelo nascimento de três crianças, foi a força motriz da “homenagem” ao marido. Em outros casos, contudo, conforme relato de Steward (1990), nem sempre a união estável é pré-requisito para a tatuagem de amor. Ao contrário, o autor pode observar como esta era utilizada com fins de assegurar esta própria relação, no processo de conquista e sedução do amado, sobretudo entre mulheres. Bradley (2000) aponta, ainda, como a tatuagem se torna, neste contexto, uma espécie de sacrifício de sangue que se faz em prol deste relacionamento já constituído. O local do sacrifício, a pele, como vários autores recordam (GELL, 1990; BOREL, 1992), é a camada mais externa do corpo, representando simbolicamente as relações mantidas entre o interior (o Eu) e o exterior (o mundo). Desta forma, marcar a pele com insígnias de amor significa comunicar ao mundo um sentimento individual. O relacionamento que penetra “sob a pele” é, na verdade, a marca de um Outro que penetra tão fundo que pode ser indelevelmente exposta na própria carne. Em outras palavras, se trata de trazer em si simbolicamente um Outro, de pensar neste relacionamento como formado por duas partes 52

“(...) the tattoos represent a bond between the body of the individual and the object towards which the individual’s emotions were expressed. (...) it most commonly involved other people. Here tattoos acted as symbolically as emotional signifiers implying a strength of attachmnt and a token against absence. These signifiers produced in turn two different effects. In the first instance, the tattoo was a sometimes public, cometimes covert, display of connection, demonstrating through a blood sacrifice that a relationship penetrated beneath the skin – the body’s boundary with the wider world. In the second instance, it was as if the tattooed individual was protecting him- or herself against a separation: should separation occur the tattoo then acted as a vicarious physical presence for the absent other.”

209 que jamais devem estar separadas, o Eu e o Outro, devendo-se, portanto, marcar o Outro em si, ou seja, no Eu. O casal, os dois elementos em relação, é pensado como uma totalidade. O autor indica também que “as tatuagens providenciavam um substituto para as jóias ou outras posses materiais: um meio de articular a emoção, operando ligações entre o corpo, o Eu e os outros” (BRADLEY, 2000, p. 151). Na qualidade de prova de amor, a tatuagem de amor não poderia ser substituída por uma jóia ou qualquer outro objeto porque o vínculo entre os sujeitos, elaborado sob a mediação do corpo, não seria completo. Jóias ou outros objetos podem ser perdidos ou abandonados, enquanto a tatuagem não. Esta possibilita ainda uma marca no próprio Eu, o que um objeto não possibilita. Gostaria de chamar a atenção para a questão da permanência da tatuagem no corpo, como um elemento mnemônico, e para a fragilidade das relações que ela representa. Os próprios tatuadores sabem, conforme observado em campo, que os relacionamentos representados pela tatuagem são fugazes e terminam. Uma tatuadora do estúdio pesquisado na Tijuca disse que muitas pessoas procuram por tatuagens de amor. “Mas esses relacionamentos não vão durar para sempre”, comentei. “Às vezes duram”, ela respondeu. Todos querem que seus relacionamentos durem e que se tornem permanentes, mesmo em um tempo em que um relacionamento dá lugar a outro e assim sucessivamente. A questão não é se eles duram ou não, mas o desejo que durem. Depreende-se daí uma dinâmica entre transitoriedade e permanência53 que permeia a própria prática da tatuagem, tanto na oposição modismo/originalidade, conforme será analisado a seguir, quanto na tatuagem de amor, pois os amores, ou os relacionamentos, têm se mostrado muitas vezes transitórios. Uma pergunta, então, pode ser formulada: quanto mais nossa sociedade permite relações sucessivas, embora monogâmicas, mais fugazes têm sido estas relações? Esta pergunta desenrola-se em outra: em que medida a sensação de fugacidade nas relações está relacionada ao atual uso das tatuagens de amor? Embora casamentos e namoros possam ter fim, a tatuagem permanece, indicando a propriedade do corpo por alguém que não está mais, de fato, de posse do indivíduo tatuado. Nestes casos, a tatuagem ou é removida ou é coberta por outra, na técnica chamada cover

53

Agradeço à Professora Mirian Goldenberg pela indicação deste caminho na análise sobre os usos contemporâneos da tatuagem.

210 up. O mito do amor romântico parece estar presente nos relacionamentos atuais, levando ainda os casais aos tatuadores, como se uma tatuagem os pudesse manter unidos, quando nem os ritos religiosos, nem os documentos civis nem os filhos conseguem. Em um momento em que o divórcio, o concubinato e a coabitação são a realidade dos relacionamentos ocidentais, permanece o ideal do “amor eterno”. Surge então uma hipótese: quanto mais a realidade dos relacionamentos ocidentais é a de não permanência, mais surge seu contraponto, isto é, a necessidade de permanência. 3. Expressando sentimentos A tatuagem do nome do(a) amante (marido/namorado, esposa/namorada) é vista como um ato de expressão dos sentimentos: paixão ou amor. As tatuagens de vingança, como Do Rio (1997) descreve entre as prostitutas cariocas – em que o nome do ex-amante era tatuado no calcanhar para ser pisado e enlameado – , ou tatuagens que consistem de palavras como “ódio” ou “vingança” retratam, da mesma forma, a expressão de determinados sentimentos. Os sentimentos são vistos, tradicionalmente, como da alçada do interior, da subjetividade, do Eu. A pele, camada intermediária entre o Eu e o mundo, entendido como o exterior ou externo é, tanto quanto o próprio corpo e a aparência, local de comunicação entre o Eu e o mundo. As tatuagens de amor funcionam, assim, como forma de expressar os sentimentos, não apenas para si próprio, mas para o mundo e, dentro dele, para o ser amado. No caso específico das tatuagens de amor, pode-se compreendê-las, ainda, sob a idéia de habitus (BOURDIEU & WACQUANT, 1992). Este conceito refere-se a um sistema socialmente constituído de disposições estruturadas e estruturantes que é obtido pela prática e constantemente orientado para as funções práticas. O habitus, conceito correlato (mas não sinônimo, como alerta o próprio autor) aos de ethos ou hexis, toma o indivíduo como produto do meio social também em sua subjetividade. Trata-se de um sistema durável de esquemas de percepções, de apreciações e ações resultantes da instituição do social no corpo. O habitus é o produto de um processo de incorporação, é o social que toma corpo.

211 Trata-se, portanto, de analisar o uso de tatuagens de amor como um reflexo, sobre o corpo, de uma estrutura social que ensina e reproduz a crença no amor romântico, uma crença que é tornada corpo, entre outras formas, na marca de amor, no nome do Outro encravado na carne do Eu, na idéia de posse e, também, nas relações de poder que permeiam as relações de gênero e as relações afetivas. Como apontou Mauss (1994), o corpo é fruto de um constante trabalho de ensino e aprendizagem do social. O corpo emerge como um depositário da sociedade e suas regras, devendo adequar-se e sendo adequado por elas. Desta forma, pode-se observar as tatuagens de amor como fruto da crença no amor romântico que, como aponta Costa (1998), mantém um ideário o qual nem sempre está de acordo com a experiência prática das pessoas, sobretudo na duração das relações afetivas. Esta ideologia é incorporada, tornada parte do corpo, na idéia de habitus. Nas tatuagens de amor, é a crença no amor romântico, no amor para sempre, verdadeiro e eterno, que está sendo tornado corpo na forma da marca sobre a pele. 4. No mundo das celebridades Nas últimas décadas do século XX e início do XXI, a tatuagem de amor parece ter atingido um grupo específico que popularizou o seu uso: estrelas populares, como cantores e atores. O ator Johnny Depp, por exemplo, quando namorava a atriz Winona Rider, tatuou o primeiro nome dela em seu braço. Quando a relação terminou, a tatuagem foi modificada. A atriz Melanie Griffith, esposa do ator espanhol Antonio Banderas, tatuou o primeiro nome dele dentro de um coração, na parte superior do braço. A atriz Angelina Jolie tatuou o nome do então marido, Billy Bob Tornton, também ator, no braço, tatuagem posteriormente retirada quando da separação do casal. No Brasil, a cantora Kelly Key se tornou alvo de polêmica quando, em meio a uma briga com o ex-marido e cantor Latino, descobriu-se que o rosto dele tatuado em sua perna estava sendo removido a laser. Kelly Key e seu novo namorado, agora marido, tatuaram-se em conjunto: no pescoço dele está escrito “vou te beijar...”, frase que é completada no pescoço dela com “... então beija”. Embora a jura de amor tenha se tornado menos pessoal

212 do que o rosto do ex-marido, a cantora ainda tatuou um pequeno símbolo no pulso, que afirmou na imprensa se tratar do nome do atual marido. A tatuagem de Latino em Kelly Key se tornou alvo de polêmica porque, na época, se publicava na imprensa uma briga entre o casal. Com uma filha em comum, a briga de casal se tornou matéria de revistas e cadernos de jornais dedicados à vida das celebridades. Ao apagar o rosto do ex-companheiro, e mostrar o processo frente aos flashes e câmeras de televisão, a cantora deu provas públicas do fim definitivo da relação. Acreditando ainda no amor eterno, verdadeiro ou romântico, aqui utilizados como sinônimos, Kelly Key mais uma vez submeteu-se à prova de amor, marcando no corpo as juras trocadas com o então namorado. De fato, não é possível medir, pelos relatos de imprensa, o grau de compromisso presente em uma relação amorosa. O surpreendente em Kelly Key não foi apagar a marca da relação passada, mas jogar-se novamente na aventura da prova de amor, mesmo sabendo, por experiência própria, que as relações não duram para sempre. Como será visto em um caso observado em estúdio, a cantora não é a única a agir desta forma. A atriz Débora Secco teve o pé tatuado com a frase “Falcão, amor verdadeiro amor eterno”, em homenagem ao namorado, cantor da banda O Rappa. A frase escolhida pela atriz retrata o sentimento que parece mover os apaixonados a realizarem tal prova de amor: a noção de que o amor verdadeiro é eterno. Débora Secco esteve envolvida, durante anos, na imprensa, em polêmicas cercando sua vida afetivo-sexual. Era constantemente criticada pela fugacidade de suas relações, às quais tratava sempre como suscitadas pelo amor e com profundo grau de compromisso. As críticas se iniciaram logo após a sua separação do ex-marido para o início de uma relação amorosa com o então colega de trabalho e ator Maurício Mattar. As críticas à atriz cessaram a partir da demonstração de uma certa estabilidade em sua relação com o atual namorado. A marca de amor, contudo, suscitou nova crítica, uma vez que suas relações pareciam fugazes. Em um estúdio visitado na Tijuca, observei fotografias de cinco clientes que optaram por copiar a tatuagem de Débora Secco, mudando apenas o nome do homenageado. Destas cinco, duas foram executadas sobre o pé, mesmo local tatuado pela atriz, duas nos antebraços e uma nas costas. A tatuagem de Débora Secco não foi a única

213 copiada. As celebridades são propagandas-vivas de modismos e estilos de vida, entre eles as tatuagens. Trata-se do processo que Mauss (1994) chamou de imitação prestigiosa. Mais recentemente, foi a relação que resultou no chamado “casamento-relâmpago” entre o jogador de futebol Ronaldo e a modelo e apresentadora de televisão Daniela Cicarelli que agitou a imprensa interessada nas celebridades. Ronaldo havia tatuado as iniciais dos nomes de ambos no pulso, junto a um coração. A tatuagem serviu, inclusive, como parte da campanha publicitária de uma grande empresa de telefonia celular. Após a separação, restou a dúvida do público: Ronaldo apagará a tatuagem ou não? Sem desviar para as fofocas criadas em torno da relação, é interessante observar que antes do namoro, Ronaldo tornara-se conhecido como mulherengo, enquanto após o início da relação, Daniela esteve sempre sob a suspeita de estar interessada no dinheiro do jogador. A tatuagem de Ronaldo emerge, então, potencialmente como uma resposta às suspeitas e dúvidas: de um lado, sobre seu comprometimento, e de outro, sobre a idoneidade da moça. Embora as suspeitas mais fortemente recaíssem sobre um virtual interesse financeiro de Daniela, é em Ronaldo que está a resposta, encravada na carne, exposta aos olhos de todos, vendida em comerciais e publicidade, demonstrando que a relação valia o sacrifício de sangue. Apagar a marca tem se mostrado constantemente o caminho seguido após o fim das relações que dão origem a ela. Note-se que, como no caso de Kelly Key, uma relação que deu origem a um casamento impulsionou, antes dos laços matrimoniais, a busca pela prova de amor. Também como no caso da cantora, Ronaldo já havia passado pelo fim de um casamento, o que deveria demonstrar o quanto os amores são difíceis de serem mantidos, tanto quanto as relações a que dão origem. 5. O que os tatuadores pensam sobre as tatuagens de amor Há que se observar que existe uma cultura da tatuagem que é comum aos profissionais do ramo. A tatuagem constitui um universo, ou um campo, como diriam Bourdieu e Wacquant (1992), cujas regras aproximam-se das do campo da arte, uma vez que os tatuadores consideram-se artistas. Neste sentido, organizam regras de inclusão/exclusão de membros ao campo, operando uma distinção entre profissionais e

214 amadores. As regras do campo são regras de pertencimento, por isso compartilhadas por aqueles que desejam adquirir ou manter status de profissionais. No estúdio de tatuagem, o tatuador é uma espécie de juiz-sacerdote. Embora esteja prestando um serviço remunerado, é ele quem determina o encaminhamento dos procedimentos. Por exemplo, é a opinião do tatuador que normalmente prevalece quanto às melhores regiões do corpo para o desenho escolhido, o seu tamanho e as cores adequadas segundo a cor da pele. O seu conhecimento, embora técnico, contém elementos desta cultura comum. Faz parte desta cultura dos tatuadores uma certa visão da prática que, muitas vezes, é contrária às marcas de amor. Steward (1990) indica como tentou demover os clientes das tatuagens de amor. Os romances normalmente fugazes que davam origem a estas tatuagens terminavam por levar os mesmos clientes a ele para que o nome tatuado fosse coberto por outro desenho. Entre os exemplos que o autor fornece contra a tatuagem de amor está o de uma moça que não namorava o rapaz cujo nome tatuou, mas que pretendia conquistá-lo com o gesto. Há o caso de uma mulher casada que tatuou o nome do amante em meio a uma bebedeira, e cujo marido foi à loja de Steward pedir-lhe satisfações. Em um dos estúdios pesquisados, ficou claro como o tatuador e proprietário é contra tais marcas. Com o corpo repleto de tatuagens, mantendo relação de coabitação com a namorada, que trabalha como recepcionista do estúdio, nenhum de seus desenhos, contudo, é uma prova de amor. Tampouco sua companheira apresentava tal tipo de marca. Embora não tente demover seus clientes da opção, quando algum pedia a alteração da marca, pontos de vista contrários à prática surgiam. Assim, quando Pedro entrou no estúdio para cobrir o nome da namorada, o proprietário perguntou: “Mas por que vocês fazem isso? Nome de filho ainda vai. Faz um filho! É mais barato!” (Tatuador proprietário do estúdio pesquisado em Copacabana)

A sugestão era de que o rapaz desse à filha o nome de sua ex-namorada. Sem perceber a contradição, pois manter o nome da moça e ainda dá-lo a uma futura prole fortaleceria os laços rompidos ao invés de apagá-los, o que o tatuador desejava indicar era que a única relação afetiva duradoura e eterna, digna de ser tatuada sem posterior arrependimento e retorno ao estúdio para modificações, é a relação entre pais e filhos.

215 Um outro ponto que auxilia a compreensão deste mal-estar dos tatuadores com relação às tatuagens de amor baseia-se na oposição originalidade/moda, compreendida como imitação. Observe-se que atualmente a tatuagem de amor vem se tornando, para utilizar o termo dele, um “modismo”, na medida em que várias celebridades adotaram a prática. 6. Prova de amor e compromisso Nos estúdios de tatuagem não é raro encontrar-se fotografias de trabalhos executados pelos tatuadores que consistem na reprodução do rosto da namorada/esposa ou namorado/marido, embora tenha percebido, a princípio, maior quantidade destas tatuagens em homens. Se as mulheres tatuam o nome de seus parceiros, parece que eles preferem o rosto de suas mulheres. Este tipo de tatuagem, classificada pelos tatuadores como realista, pois reproduz na pele uma fotografia, também é encontrada homenageando pais, mães e filhos. Observei um caso destes no estúdio pesquisado na Tijuca. Jorge, 35 anos, havia tatuado o rosto da esposa, Rosa, 30 anos, mãe de sua filha de 3 anos, no peito à esquerda. A localização dispõe a fotografia sobre o coração, indicando um aspecto duplo na prova de amor: a própria marca, mas também a sua localização. Naquele momento, a tatuagem estava em processo de cicatrização. Tinha outras tatuagens no corpo. Jorge contou que mostrara o desenho à criança, quando sozinho com ela, que respondeu: “é a minha mãe”. O tatuador comentou, como uma forma de valorizar o próprio trabalho: “se ela reconheceu, significa que está bom, né?”. Naquele dia, Jorge levara sua esposa para ser tatuada. Ela já possuía uma tatuagem, um pequeno unicórnio nas costas, e faria uma fada, desenhos tipicamente femininos – não uma tatuagem de amor. O casal foi ao estúdio acompanhado por uma amiga, que também apresentava uma tatuagem nas costas. Como a filha havia ficado em casa sem nenhum dos pais presentes, Rosa estava aflita quanto à segurança da menina e Jorge foi vê-la enquanto a amiga fez companhia a Rosa no estúdio. A menina era, claramente, a prioridade do casal, e não o processo de tatuagem. Ainda assim, a tatuagem de fada não foi realizada sem uma troca de idéias entre Rosa, o marido e a amiga. Tinham que decidir o desenho e a localização: se centralizado nas costas ou na lateral. O tatuador tentava eximir-se de dar opiniões, preocupado em não influenciar a escolha de Rosa, para que a tatuagem resultasse

216 naquilo que ela realmente desejava. Ao final, Jorge alertou a esposa que a parte central das costas, sobre a coluna, é uma parte dolorosa: “mas não é nada que você não agüente”, disse, encorajando-a. Rosa optou por esta localização para sua fada. A amiga também achava que centralizado o desenho ficaria mais bonito. Quando o processo de tatuar foi iniciado, Jorge não estava mais lá. Observe-se que, quanto a Rosa e Jorge, a prova de amor dele não demandou a mesma atitude da parte dela. Neste sentido, Jorge provava seu amor pela esposa não apenas na tatuagem, mas no cuidado com a filha, cuidado pelo qual Rosa abriu mão da companhia do marido no momento de ser efetivamente tatuada, embora ele tenha participado do processo de escolha e encorajamento, que muitas vezes é crucial. Assim, pode-se observar que a tatuagem de amor apresenta uma característica de doação. Ela é um presente que se dá ao outro, embora marcado no próprio corpo. Outra cliente deste mesmo estúdio apresentou-se com um caso similar. Joana desejava tatuar o nome do marido nas costas, abaixo da nuca, acompanhado de uma borboleta, tatuagem caracteristicamente feminina, bastante popular no momento da pesquisa de campo. “A borboleta faz assim [gesticulou], dá leveza ao desenho. Uma flor ia ficar muito achatado, sem movimento”, disse. Tinha uma tribal na barriga, que parecia cobrir uma cicatriz de cesariana, e outra borboleta no tornozelo. Mesmo assim, não pensara em ser tatuada naquele dia, pois estava receosa de que o local escolhido fosse doloroso. Isaura, cliente assídua que visitava o estúdio no momento, ofereceu-lhe palavras de apoio: “Faz logo! Aí não dói nada”. Quando descobriu que a moça tinha outros desenhos tatuados pelo corpo, exclamou: “Você toda tatuada e está aí com medo? Fala sério!”. Joana tomou coragem e decidiu ser tatuada. Disse que seria uma surpresa para o marido, que não sabia que ela planejava a homenagem. “É alguma data especial?”, perguntei. Respondeu que “Não, a pessoa é especial. Ele é pai dos meus filhos.” (Joana)

Tinha uma filha de 12 anos, um garoto de 2 anos e um bebê. Desejava ainda mais um filho. Joana parece relacionar a qualidade de ser especial do marido não com os anos de casamento, como poderia sugerir a hipótese apresentada aqui sobre a dinâmica da

217 transitoriedade e da permanência inerente à prática da tatuagem, mas ao fato de ser pai de seus filhos, fato corroborado pela afirmação de seu desejo de ter ainda uma quarta criança com o mesmo homem. O compromisso do casamento não é o ponto-chave, o que indica que não é esta noção de compromisso como um remédio à fugacidade das relações que move a tatuagem de amor. Em outros termos, sugiro que as tatuagens de amor são executadas por pessoas casadas ou não-casadas em função do sentimento e da necessidade de expressão deste sentimento, e não em função do grau de compromisso mantido na relação, que não está sendo medido aqui pela oficialização/legitimidade da união em casamento ou mesmo coabitação. O que moveu Joana não foi o casamento, a relação afetiva, mas o sentimento de que seu marido era uma pessoa especial em função da importância que tem em sua vida: esta importância é, para ela, medida no fato de ser pai de seus filhos. É comum que as mulheres optem por se tatuarem sem comentar a decisão com seus maridos, conforme observado em campo. No caso de Joana, o silêncio quanto à marca era fruto do desejo de surpreender o marido com o que considerava um presente: o nome dele em seu corpo. Desta forma, a mensagem implícita ao ato era a doação de si. Observe-se ainda que, mesmo tatuada, hesitou em realizar a marca naquele momento. Embora o ato não possa ser considerado impulsivo, pois fora pensado, não havia marcado hora, como a maior parte dos clientes. A decisão foi rápida, mas não sem alguma dúvida, gerada pelo medo da dor. A coragem veio do apoio recebido de Isaura, do desejo pela marca e da reflexão sobre um processo já conhecido, visto que não seria sua primeira tatuagem. Para além da idéia de objetificação do corpo, quando Joana pensa na tatuagem como um presente, estão em jogo várias questões: o auto-sacrifício em nome de um amor/relação afetiva; o próprio corpo como um presente, doado a quem se ama; a idéia de relacionamento como a posse de um indivíduo pelo outro; a idéia de que a tatuagem é um presente valioso a ser dado a quem se ama. O presente, de fato, é símbolo de uma doação maior, uma doação voluntária de si ao Outro. Essa doação passa pelo sacrifício e pela visão de si mesmo e de seu corpo como valores grandes o suficiente para serem doados numa prova de amor. O sacrifício de sangue, como aponta Bradley (2000), traduz a interiorização da relação para um limite profundo no Eu, indicando ainda o quão forte a relação está sendo vista por aquele que opta pela prova de amor. A idéia de força aqui, é preciso alertar,

218 nada tem a ver com compromisso, mas com o sentimento e a percepção de sua intensidade. Esta intensidade do sentimento é uma das características do amor romântico, pensado como mais forte do que qualquer outro, por isto eterno e verdadeiro (COSTA, 1998). Ao observar outra cliente, Júlia, sendo tatuada com as iniciais de seu namorado e um pequeno coração, pode-se perceber a contradição entre a fugacidade do amor e a permanência da marca. Era uma mulher de 45 anos, o físico torneado pelas academias de ginástica, bronzeada, mãe de um rapaz de 15 anos fruto de seu casamento. Havia ido ao estúdio acompanhada de uma amiga, que a incentivava a seguir com os planos de se tatuar, ao mesmo tempo em que a aconselhava sobre a melhor posição para o desenho. Tatuava duas letras na virilha, correspondentes ao nome do namorado, porque ele havia lhe pedido. A amiga conhecia o namorado de Júlia e parecia entender que a marca era importante para ele. Mas a própria Júlia questionava a validade de tal ato, comentando que “Depois vou ter que cobrir as letras com outro desenho mesmo, quando [a relação] acabar.” (Júlia)

Uma outra cliente, presente no estúdio, comentou que não deveria cobrir a tatuagem, pois ter se relacionado com tal homem fazia parte de sua história. Júlia e a cliente aparecem com pontos de vista opostos. Em ambos os discursos, contudo, percebe-se que a permanência emerge como algo valorizado, mesmo sabendo-se que só é eterna enquanto dura. Após o fim do relacionamento, Júlia pensa que a marca deve ser substituída ou apagada. A cliente, por sua vez, discorda. Se a relação terminou, a memória desta não terminará jamais, pois o passado não pode ser apagado. Apagar a tatuagem é apagar a própria relação, a marca servindo como uma lembrança, a memória do que se viveu. O passado, para Júlia, deve ser apagado, deixando espaço para o presente e o futuro, na forma de outras relações que virão. Para a cliente, o passado deve ser guardado, como se fosse um tesouro precioso, pois não se joga fora a própria estória de vida, a própria estória vivida, por uma relação que terminou. São concepções diferentes sobre como lidar com as relações que terminam e que permitem compreender melhor porque se mantém ou se apaga uma tatuagem de amor. Gostaria, agora, de efetuar uma comparação entre Joana e Júlia, pois elas apresentam posturas diferentes, quase opostas, frente à marca de amor. Júlia, mais velha,

219 mãe de um filho cujo pai não é seu atual namorado, sendo tatuada por um pedido deste namorado, faz o que ele lhe pede, dá a prova de amor, marcada a sangue, mas a prova é para ele. Ela mesma tem dúvidas de que seu relacionamento engendre uma relação mais duradoura, de um compromisso mais profundo. Não está dando ao namorado um presente, mas cumprindo o papel feminino tradicional de se subjugar às determinações de seu companheiro. Ela não espera reciprocidade. Joana, por outro lado, casada e mãe de três filhos de seu marido, desejando ainda mais um filho, em comparação com Júlia, percebe sua relação afetiva como duradoura, construída sobre um compromisso profundo, que tornou seu marido “uma pessoa especial”. Essa especificidade de seu marido foi o que a levou a marcar voluntariamente o corpo, como uma maneira de dizer a ele o quanto é especial e o quanto ela também é, pois não são todos os casais, mesmo aqueles que compartilham o gosto pelas tatuagens, que desenvolvem esta preferência pelas marcas de amor. São perfis diferentes de relacionamentos que levam a atitudes distintas por parte das duas clientes. Uma crê no futuro da relação (há tempo e amor para mais um filho), a outra sabe que a marca em seu corpo nada mais é do que a propriedade exercida por um homem. Talvez por isso, os locais escolhidos tenham sido tão diferentes. Júlia tatuava a virilha, onde as pequenas iniciais ficariam escondidas a maior parte do tempo. Próxima à região genital, sua tatuagem atesta o privilégio sexual do namorado. Joana, por outro lado, tatuava as costas, abaixo da nuca, local de mais fácil exposição, dada a estabilidade de seu relacionamento. Durante a observação no estúdio pesquisado em Copacabana, um terceiro caso apareceu. Joyce, mencionada em outro capítulo, que havia feito sua primeira tatuagem neste mesmo estúdio em janeiro de 2005, retornou para mais duas: o nome de seu marido no pé e uma representação de São Judas Tadeu. Devota do santo, Joyce havia tatuado seu nome na nuca, esperando para tatuar sua imagem em outra ocasião. Na época de sua primeira tatuagem, ainda não estava casada. Morava com a mãe, contrária aos desenhos permanentes no corpo, e afligia-se em ter que esconder a marca. Uma vez fora da casa da mãe, Joyce não via mais porque se preocupar. A tatuagem fora localizada na nuca devido à flexibilidade do local em ser encoberto pelos longos cabelos da moça, de modo que a mãe não tomasse ciência da marca. A representação do santo foi localizada nas costas, abaixo da

220 nuca, em região mais visível uma vez que Joyce não se sentia mais constrangida pela crítica materna. O pé, talvez a área mais visível de todas as três tatuadas por ela, indica como Joyce estava alheia à opinião da mãe. A esse respeito, o tatuador perguntou-lhe: “E a sua mãe? Ela vai ver”. Ao que Joyce respondeu: “Agora não importa mais. Eu não estou mais morando com ela.” (Joyce)

A respeito deste ponto, o conflito de gostos entre mãe e filha, é necessária uma observação. Enquanto estava na casa materna, Joyce se via em uma posição onde não desejava deixar de obter a marca em seu corpo, ao mesmo tempo em que não desejava sofrer críticas da mãe. O respeito ou o medo da mãe não a impediram de exercer sobre seu corpo uma certa autonomia, embora não completa, pois não pôde escolher livremente o local de sua tatuagem, temendo o constrangimento materno. Mas, uma vez casada, ou melhor, uma vez fora da casa de sua mãe, Joyce se viu munida de uma autonomia mais completa, sem se preocupar com as opiniões maternas. Os locais escolhidos para as novas tatuagens, embora mais visíveis do que a nuca, podem ser convenientemente encobertos caso ache necessário. Há um cálculo, ainda, por parte de Joyce, mas o que chama a atenção é a mudança de status que ela apresenta após o casamento. Joyce deixou de ser filha para se tornar esposa. Em termos de ganho de autonomia, deixou de estar subordinada à mãe para exercer mais livremente seu direito de escolha sobre o próprio corpo. Retornando ao estúdio, Joyce esperava que seu marido também tatuasse seu nome no pé, mas o rapaz não teve coragem de se submeter ao processo. O tatuador que os atendeu contou que, como um teste, passou a máquina de tatuar, sem tinta, no pé do rapaz, para que ele sentisse a intensidade do processo. Achando doloroso, desistiu. O tatuador, contudo, levantou uma outra hipótese, que não apenas a covardia, para a resistência do marido: “Medrou. Não quis fazer não. Ou então não tava a fim de se comprometer, né.” (Tatuador proprietário do estúdio de Copacabana)

Neste episódio, o marido medroso pode ter usado a covardia como uma forma de escapar da prova de amor pela qual sua mulher prestara-se a passar, e que esperava que ele

221 passasse também. Observe-se que foi apenas depois do casamento e da saída da casa materna que decidiu pela tatuagem de amor, como se a mudança de status (o casamento) devesse ser marcada não apenas nas festividades e mudança de moradia, mas no próprio corpo. Joyce deixou de pertencer à mãe para pertencer ao marido, gravando na pele o nome dele. Ao mesmo tempo, o casamento parece ter providenciado o compromisso necessário a ela para a marca permanente. Como no caso de Jorge, Joyce demonstra que a prova de amor não demanda contrapartida. Não desistiu da marca em função da desistência do marido em fazê-la. A tatuagem de amor não consiste numa troca explícita, mas numa espécie de doação que encobre relações mais complexas entre as partes envolvidas. Entre estas relações, estão a necessidade de estar associado a alguém, a objetificação de si e de outro, a necessidade de uma marca de propriedade que ateste a associação. Também no estúdio de Copacabana, Joaquim tatuava nas costas o rosto da moça que o acompanhava, Roberta, a pedido dela. O que parecia uma tatuagem de amor revelouse, ao longo da tarde, uma trama envolvendo interesse financeiro e uma relação clandestina. Embora o casal visivelmente mantivesse uma relação amorosa, pois se abraçavam e se beijavam, alguns indícios apontavam para uma relação extra-oficial, uma espécie de caso oculto. Entre os indícios, estava a fotografia na qual a tatuagem foi baseada, que trazia Roberta vestida de noiva ao lado de um rapaz que não era Joaquim. Ao final da sessão, ela lhe pediu que não mostrasse a tatuagem para qualquer pessoa. Ele, residente em Governador Valadares, Minas Gerais, estava no Rio para vê-la. Ela, residente na cidade, passava temporadas em Londres, na Inglaterra. Quem pagou pela tatuagem foi ela. De fato, tratou-se de um acordo entre os dois: ela desejava que ele não apenas tatuasse seu rosto como também seu nome junto à expressão “amor eterno”. Além de pagar pelo serviço do tatuador, havia se disposto a dar presentes ao rapaz em troca da “prova de amor”. Pela fotografia tatuada, prometeu um videogame do tipo play station. Pelo nome, a ser tatuado no antebraço, área extremamente visível, havia prometido uma motocicleta. Não por acaso, a segunda tatuagem seria comprada por um valor mais alto: seria mais visível e mais pessoal, pois o rosto pode ser modificado, enquanto um nome só pode ser apagado. Ao final da sessão, depois de pagar

222 pela tatuagem o valor de R$450, deu a Joaquim R$250 em dinheiro, dizendo “isso aqui é para você”. Foi interessante observar como este episódio deixou os tatuadores do estúdio em questão constrangidos. O proprietário comentou longe do casal: “Pois é, é um ‘faz a foto que eu te dou uma moto’”. Ocorre que, mesmo não sendo exatamente favoráveis às tatuagens de amor, o mito do amor romântico não escapa aos tatuadores, como será visto adiante em um comentário de um deles. Uma tatuagem de amor que não é movida pelo amor causa um constrangimento profundo que não pode ser silenciado. Explicitamente, trata-se de uma atitude que foi vista como reprovável. A natureza da relação entre Joaquim e Roberta despertou constrangimentos não por sua aparente clandestinidade, mas pela dificuldade em identificar ali traços do amor romântico que leva clientes aos estúdios para as marcas de amor. Não era a primeira tatuagem dele. Possuía mais duas no braço e duas nas costas. O tatuador, em conversa com o rapaz durante uma pausa para o cigarro, descobriu que já pensava em converter a tatuagem de amor em um desenho menos íntimo. Segundo contou, o rapaz planejava transformar o retrato em uma índia, acrescentando-lhe um cocar. Nesta situação, a tatuagem de amor emerge como marca de propriedade. Da parte dela, o dinheiro servia como fator de exercício de um controle sobre ele, marcando a sangue no corpo do rapaz o seu domínio, um domínio ao qual ele escapava, pois não pensava no retrato sobre a pele como um ato de amor e sim como um ato de interesse. Pensar em transformar a tatuagem recém-adquirida em outro desenho – e mais além, comentar sua intenção com o próprio tatuador quando ainda nem havia terminado a sessão – significa, nesta situação, fugir ao controle exercido pela moça sobre ele. É como dizer ao mundo que ele não está sob o jugo dela, ainda que se submeta aos seus desejos em troca de retorno financeiro. Por outro lado, esta também pode consistir em uma estratégia de Joaquim para conservar a idéia de que quem manda na relação é ele, isto é, manter a lógica da dominação masculina, que opera também a partir do poder econômico. Longe de tentar subverter este tipo de dominação de gênero, a atitude de Roberta demonstra a fragilidade da relação entre os dois, em que a tão sonhada prova de amor tem que ser comprada. Enquanto um homem é capaz de “obrigar” em atos e palavras sua esposa a ser tatuada com seu nome, conforme

223 será visto a seguir, ela teve que recorrer ao poder econômico como força para fazer valer seu desejo de controle sobre o corpo alheio. Marcar o corpo de um amante, além de apresentar um claro desejo de domínio e posse, indica também um desejo de permanência, de tornar mais palpável e permanente uma relação que pode ter fim a qualquer momento e que é vivida a distância. 7. Só será eterno enquanto dure? Se os casos acima indicam possíveis motivações para as tatuagens de amor, os casos abaixo poderiam servir como outros exemplos. Trata-se de quatro indivíduos que tatuaram os nomes de seus parceiros, mas seus relacionamentos não foram tão duradouros quanto suas tatuagens. Um deles optou por cobrir a marca com outro desenho, outro ainda pensava em cobrí-la, o terceiro decidiu não cobrir. Um quarto indivíduo encontrou uma solução original, riscando os nomes tatuados e levando aqueles que conhecem sua história a uma reflexão mais profunda sobre as tatuagens de amor. Estes casos mostram a crença no ideal do “amor eterno” e indicam, ainda, o que ocorre quando a relação marcada na pele não existe mais no cotidiano. Todos foram observados no estúdio de Copacabana. Paula, funcionária do estabelecimento, 33 anos, separada, mãe de duas filhas, comentava que pensava em apagar o nome do ex-marido, tatuado em sua virilha, com uma nova tatuagem: queria uma orquídea. Primeiro, havia pensado em tatuar a flor na costela, mas teve medo da região conhecida como extremamente dolorosa e passou a cogitar em unir o útil ao agradável: ter uma tatuagem nova que cobrisse a velha marca. Separada há mais de um ano, foi casada por 14 anos. A separação parece não ter sido tranqüila. Ao longo do trabalho de campo, ela me contava fragmentos de sua história. Foi o marido quem quis a separação, enquanto Paula ainda nutria esperanças de manter seu casamento. Quando suas esperanças se esgotaram, a situação se inverteu: hoje é ele quem tenta reconquistá-la. Apesar de se dizer separada, Paula mora na mesma casa que o exmarido, apenas não divide com ele o quarto de dormir. Casou-se aos 17 anos. Sua filha mais velha tem hoje 15 anos. Diversas vezes ouvi Paula dizer que jamais se casaria de novo, que o casamento é uma relação difícil de ser sustentada e que havia se separado porque ela e seu ex-marido

224 tinham “pensamentos” distintos – para ela, visões de mundo irreconciliáveis. “Apesar do quê”, disse certa vez, “eu me casei para ser para sempre, né”. Um dos tatuadores da casa, também separado, compartilhando de sua idéia de não se casar novamente, respondeu a ela: “Todo mundo se casa para sempre. Eu também. Ninguém se casa para acabar.” (Segundo tatuador do estúdio pesquisado de Copacabana)

O tatuador mantém hoje um namoro, mas Paula não. Sempre expressando uma amargura profunda devido à separação e especialmente ao tratamento que recebeu do marido quando lhe comunicou o desejo de se separar, Paula não tem namorado, não fala sobre o assunto nem expressa o desejo de conhecer uma outra pessoa e iniciar uma nova relação. Dorme no quarto das filhas e deixou o ex-marido no quarto que um dia foi de ambos. Dizia que ele não tinha condições, ainda, de sair da casa, referindo-se a questões financeiras. Por outro lado, o marido não parecia esforçar-se em fazê-lo uma vez que tentava reconquistar Paula, chegando a mandar-lhe flores no estúdio. Quando ligou para saber se ela as havia recebido e se havia gostado da surpresa, Paula lhe disse friamente que não, pois não desejava participar das estratégias de reconquista traçadas por ele. Sentira-se humilhada pelo marido quando se separaram, e por isto parecia nunca tê-lo perdoado. Se “todo mundo casa para sempre”, Paula parecia mais disposta do que outros a manter esta idéia. O casamento estava acabado, a vida conjugal, no entanto, havia apenas se modificado. A permanência do marido na casa de Paula expressa a permanência de um laço entre eles, mesmo que atualmente baseado no ressentimento e na dor. Não buscar alguém novo demonstra o quanto ela ainda está presa à relação. Dormir no quarto das filhas inviabiliza a intimidade com o ex-marido, mas de igual forma inviabiliza a intimidade com qualquer outro homem em sua casa. A idéia do “casamento para sempre” revela a idéia de casamento por amor, conjugados na idéia do amor romântico como um amor para sempre, único e verdadeiro. Neste sentido, Paula parece padecer dos males do amor romântico, ou melhor, das dores pelo fracasso de uma relação pensada como eterna. Quando o amor pensado como eterno acaba, o que fazer? Esta é a pergunta que a própria Paula não consegue responder. Talvez como conseqüência desta falta de resposta, e não como causa, ela se permita viver sob o

225 mesmo teto que o marido. Que outra referência existiria para a menina que se casou aos 17 anos acreditando que seria para sempre? O diálogo entre Paula e o tatuador foi suscitado no estúdio pela presença de Pedro, rapaz de cerca de 25 anos, que desejava cobrir o nome da ex-namorada tatuado em seu quadril. A decisão de apagar a tatuagem de amor é, na verdade, a decisão de retirar do corpo a marca de uma relação que não existe mais. Paula demorou mais de um ano para decidir cobrir o nome do ex-marido com outra tatuagem. Pedro demorou poucos meses. Ele decidiu cobrir o nome da moça com a figura de um rato, segundo contou, seu apelido entre os amigos de praia. O tatuador gostou da idéia e lhe mostrou fotografias de tatuagens japonesas do animal. Quando Pedro optou por cobrir o nome da ex-namorada com um rato, o que fez de fato foi cobrir o nome dela com seu próprio apelido. Mais do apagar uma lembrança, a marca de uma pessoa em seu corpo e sua vida, o que Pedro fez foi demonstrar que o que antes era pensado como um todo composto por dois elementos (ele e a namorada) quase inseparáveis, a ponto de este outro elemento ser inserido simbolicamente no próprio Pedro por meio da tatuagem, se tornara agora um todo composto por um único elemento individualizado: Pedro, ou Rato. A idéia da relação amorosa como composta por duas metades, ou seja, dois indivíduos que formam um só, pode explicar, em parte, a utilização de tatuagens de amor. Para além das questões relativas à dominação e à posse, Pedro/Rato demonstra que a tatuagem de amor também simboliza a crença de uma totalidade entre os membros da relação. Totalidade que é pensada como eterna, por isso pode ser disposta de modo permanente – na tatuagem – em Pedro, como foi em Paula. Ocorre que, da mesma forma que os amores são transitórios, a tatuagem de amor tem se tornado não permanente, suscetível de modificações. Nenhuma tatuagem é hoje para sempre, como nenhuma relação parece estar sendo tanto quanto as partes gostariam que fosse, embora seja necessário salientar que relações afetivas duradouras existem e não são de todo raras. Sobre o local da tatuagem de Pedro, não creio que expresse o mesmo sentido que tais locais quando tatuados em mulheres. Em Jorge, como foi visto, a localização da tatuagem no lado esquerdo do peito reflete uma necessidade de dupla expressão dos sentimentos. Entre as mulheres, a maior parte das tatuagens localiza-se próxima às regiões

226 erógenas, sobretudo às genitais, atestando um privilégio sexual. No que se refere a Pedro, contudo, creio que a localização escolhida servia menos de marca de privilégio sexual de sua namorada sobre ele do que em um cálculo sobre a possibilidade de esconder a marca. É inegável que há um fator sexual presente no local, mas entre os homens, segundo a lógica da dominação masculina, isto não é impedimento para a manutenção de outras relações simultâneas. Quando Pedro foi a estúdio, saído diretamente da praia, usava um bermudão típico dos surfistas, que cobria a maior parte da tatuagem. Mesmo as atuais sungas, que deixam as pernas à mostra, não revelariam a lateral tatuada do corpo do rapaz. Desta forma, Pedro calculou a escolha do local de forma que, mesmo com o corpo à mostra, a marca estivesse resguardada. Cabe perguntar, contudo, se a resguardava de olhares alheios ou do sol, que destrói a tinta e desbota a tatuagem. José, outro cliente do estúdio, ao contrário de Paula e Pedro, decidiu não apagar sua tatuagem de amor. Estava no estúdio para colorir uma tatuagem de dragão, junto à qual tatuou as duas primeiras letras do nome de sua atual namorada. Quando o tatuador perguntou-lhe se não apagaria o nome de uma antiga namorada, José respondeu que “Não adianta. Eu apago daqui [do braço] mas fica em outro lugar. Melhor deixar assim.” (José)

A sua decisão, portanto, está intimamente relacionada aos seus sentimentos. Se José tem esperanças de retomar a relação ou não, isto não é relevante, na medida em que seu atual namoro se mostra forte o suficiente para que o nome de sua atual namorada seja tatuado em seu corpo. Mas a relação antiga também se mostra forte e presente para ele, pois José deu indícios de que ainda é apaixonado pela antiga namorada, e é por isso que optou por não cobrir o seu nome. A lembrança do antigo amor é tão vívida que apagar a marca no corpo não apagaria a marca na alma. Situação inversa a daqueles que optaram por apagar tatuagens de amor, demonstra que a marca só é apagada quando o sentimento termina, levando ao fim da relação. Expressão de um sentimento inexistente, a marca perde sua razão de ser. Talvez por isso também Paula tenha demorado tanto a pensar em cobrir o nome de seu ex-marido. Habitando a mesma casa, mesmo que levando uma vida não-marital, ele se faz presente e apagar a tatuagem não retiraria sua presença. Contudo, em seu caso, cobrir a

227 marca pode servir como um aviso a ele, que tenta reconquistá-la, de que não há volta. Para Paula, não é exatamente o passado a ser apagado, mas o presente e, especialmente, o futuro sonhado com seu (ex-)marido. Livre da marca no corpo, Paula estaria simbolicamente liberta do marido, dos sonhos e planos, das dores e fracassos oriundos de uma relação que terminou. Patrícia, cujo falecido marido trabalhava com José, também pensava em cobrir a marca de amor. Quando a conheci, fora ao estúdio encontrar um outro amigo que estava sendo tatuado. Aproveitou a oportunidade para conversar com o tatuador sobre a nova tatuagem. Pensava em apagar o nome do marido localizado na lombar, mas parecia indecisa. Fantasiava com o futuro e dizia que queria que este fosse um pedido de seu próximo namorado: “Eu quero apagar, mas ao mesmo tempo me dá uma peninha... Acho que vou esperar eu me apaixonar de novo e meu namorado me pedir para tirar.” (Patrícia)

Aparentemente, tomava o pedido como uma “prova de amor”, movida pelo interesse nela e pelo ciúme decorrente deste. Patrícia imaginava uma cena entre os dois: “Eu vou primeiro deixar ele ver. Se ele falar alguma coisa, eu vou dizer ‘não olha’ e vou colocar um esparadrapo. Como não vai segurar, ele vai reclamar e pedir para eu tirar. Aí eu tiro. Dá para fazer uma tribal por cima? E eu queria aquele azul turquesa.” (Patrícia)

Como a tatuagem de Paula, a de Patrícia localiza-se próxima à região genital. Conforme indiquei sobre a tatuagem na virilha de Júlia, este tipo de marca serve, também, para atestar o privilégio sexual de determinado homem sobre o corpo feminino. No caso de Patrícia, ela mesma compreendia o teor sexualizado da marca, uma vez que imaginava uma cena em que um hipotético namorado ciumento criticaria a tatuagem, querendo retirar a marca deixada por outro homem, mesmo que falecido. Em um fantasiado jogo de relações de dominação, Patrícia desejava ceder à vontade de seu novo companheiro, mas não sem antes negá-lo apenas para demonstrar submissão ao final do processo. De fato, Patrícia exprime relações de dominação masculina, nas quais ela se submete de bom grado, compreendendo que estes são os papéis masculino e feminino.

228 A tatuagem havia sido feita a pedido do marido falecido. Patrícia disse que fora praticamente obrigada por ele a ser tatuada, que chegara ao estúdio chorando e pedia ao tatuador para não marcá-la. O nome do marido, rodeado por duas borboletas, foi posicionado na lombar. Em troca, o marido havia tatuado o nome dela em ideogramas japoneses. Foi no velório que Patrícia diz ter descoberto que o marido mantinha duas amantes, fato notório entre todos os amigos dele, mas desconhecido para ela. Descobriu ainda que as duas haviam sido tatuadas com as iniciais dele. Depois da revelação, passou a duvidar que fosse seu o nome tatuado em japonês e imaginava que ele dizia para as amantes tratar-se do nome delas. O controle que o marido exercia sobre Patrícia era tamanho, que não apenas a obrigou a fazer a tatuagem que ela não desejava como a proibiu de se submeter à cirurgia de implante de silicone nos seios. Patrícia contou que desejava profundamente aumentar o tamanho dos seios, mas o marido não permitia. Como não bastasse sua morte e a descoberta de suas amantes, ainda observou que ambas apresentavam seios fartos, o que a levou a concluir que ele permitira a operação nas amantes, mas não nela e, por outro lado, que mentia quando lhe dizia que gostava de seios pequenos. Um mês após o seu falecimento, e após a descoberta de sua vida dupla, decidiu enfrentar a cirurgia. Mais uma vez, a tatuagem de amor se torna marca de propriedade. O falecido marido e amante havia imposto seu nome e iniciais em todas as suas mulheres. Patrícia, submissa ao marido, não teve força suficiente para negar o pedido, embora não desejasse a tatuagem. Contudo, a ligação com o marido era ainda forte, pois embora desejasse apagar a marca, também “sentia pena”. Para livrar-se da lembrança desse amor passado, imaginava um amor futuro, como se apesar da morte do marido, a relação permanecesse e só perdesse seu significado, ou sua presença, a partir do início de outro relacionamento. Alguns pontos emergem aqui. Primeiro, Patrícia se posiciona como parte submissa em uma relação de dominação com seus companheiros, e explicitamente com o marido. Refletia esta mesma posição na sonhada relação ainda inexistente. Segundo, se Patrícia se submetia, era também submetida. O marido, exercendo poder de dominação sobre ela, não apenas a marcou como uma de suas mulheres, juntamente com as duas amantes, como determinou um estrito controle sobre seu corpo, que a seu ver não era tão rígido sobre o corpo das amantes.

229 De fato, a esposa tem sempre um status privilegiado. Como constitui a relação oficial, onde a honra de um homem pode ser ganha ou perdida, o controle de seu corpo é mais intenso. Talvez por isto o falecido marido de Patrícia tenha marcado o corpo de suas amantes com tatuagens: menos que provas de amor, as marcas expressavam a necessidade de manter uma permanência em meio a instabilidade, que se conjuga também com a idéia de propriedade. A questão que emerge aqui é que a estabilidade parece se relacionar, em meio às relações de dominação, com uma faceta de posse ou propriedade sobre o outro, como se esta fosse a única garantia de continuidade e permanência, senão também de fidelidade, amor, cumplicidade, compromisso, entre outros. É importante observar que Patrícia não foi traída apenas pelo marido, mas também por todos os amigos dele que eram vistos por ela como seus amigos também. Todos conheciam as amantes do falecido, mas ninguém jamais disse a Patrícia nada que colocasse sua confiança no marido em risco. Humilhada em pleno velório por vivos e morto, ainda assim mantinha uma certa indecisão quanto a apagar ou não a marca, ou seja, o passado vivido com o marido. Por isto pensava no futuro, em alguém que lhe requisitasse a saída dessa relação passada em prol de uma nova estória de amor. 8. Obras de amor e de arte No mesmo dia em que Pedro foi ao estúdio, o tatuador que o atendeu lembrou-se de uma história que julgava curiosa envolvendo nomes de ex-namoradas tatuados no corpo. Contou que havia um cliente seu que fora ao estúdio para ter o nome de sua parceira tatuado. Ao fim da relação, retornou para ter o nome coberto por outra tatuagem. Algum tempo depois, estava o cliente no estúdio para tatuar o nome de sua nova parceira. Ao fim deste segundo relacionamento, decidiu adotar nova estratégia para lidar com a situação: pediu ao tatuador que riscasse o nome com uma única linha horizontal. E assim passou a, sucessivamente, namorada após namorada, tatuar nomes e riscá-los em seu braço. Este episódio lembrou aos presentes no estúdio uma obra de arte em que um marinheiro tem mais um nome de mulher, da extensa lista em seu braço, riscado. O que a história narra, de fato, não é apenas uma nova estratégia de se lidar com o desejo por relações duradouras e a frustração pelo seu fim, mas também a idéia de que a história de

230 vida, marcada na pele, quase uma biografia amorosa, pode se tornar mais que uma lista de nomes e amores passados, pode tornar o seu portador a cópia de uma obra de arte. Riscar os nomes é, sem dúvida, diferente de cobri-los. Mesmo riscados, eles ainda são visíveis. A lista extensa indica uma vida amorosa intensa, o que para um homem se converte numa espécie de prova de virilidade. Mas creio que não se trata apenas de uma questão de gênero. Tornar-se uma obra de arte (imagino, aqui, que o herói da história também tivesse conhecimento da pintura em questão) é converter a necessidade de apagar nomes de ex-amores, o que não é bem visto pelos tatuadores (de fato, embora tatuem este tipo de trabalho, muitos são contra), em algo valorizado. Da mesma forma, transforma-se o valor negativo do fim da relação em algo positivo: a modificação artística do corpo. Esta história apresenta um caminho único para se lidar com os ganhos e as perdas amorosas. Conserva-se a lembrança dos ex-amores, cujos nomes são visíveis, mas indica-se que são parte do passado pelo risco tatuado por cima deles. Torna-se a pele uma espécie de testemunho da vida amorosa, local da biografia. Da mesma forma que o passado não pode ser apagado, as tatuagens de amor são apenas riscadas e não cobertas por outros desenhos. Longe das discussões sobre o corpo como obra de arte e da função embelezadora e de sedução da tatuagem, gostaria aqui apenas de apontar como a memória das experiências passadas não precisa estar, necessariamente, encerrada no dilema apresentado sobre as tatuagens de amor entre apagar ou não a marca e, antes disto, fazê-la ou não. A marca de amor pode tomar outros significados, assim como a memória do passado pode ser mantida, resignificada sem ter que se entrar no plano do esquecimento. O que faz esses sentimentos serem marcados na forma de uma tatuagem, no próprio corpo, e carregados de maneira permanente? Como foi observado, a tatuagem marca a pele, camada de mediação entre o Eu e o mundo. É local para comunicar ao mundo sentimentos importantes, da esfera do privado ou interno, na relação do sujeito (Eu) com Outros, vistos como da esfera do social ou externo. Marcar na pele seus sentimentos é comunicar ao mundo que eles existem e quais são. No caso das tatuagens de amor, elas se tornam provas não apenas dos sentimentos como da relação existente. Para Joana e Joyce, o nome de seus maridos marcava o casamento, o compromisso profundo entre eles. Para José, o nome da atual namorada e o da anterior conviviam na pele da mesma forma que os sentimentos por ambas. Se a relação

231 anterior não existia mais, a lembrança jamais fora apagada da memória, e por isso também jamais apagada da pele. Se nem a relação nem o sentimento existem mais, então a marca de amor deve ser apagada. É o caso de Paula, Pedro e Patrícia, embora as mulheres apresentassem alguma insegurança quanto à decisão. Atender a um pedido para fazer uma marca de amor quando não se acredita no futuro da relação, ao contrário, é comunicar ao mundo que se está numa posição de subjugação. Júlia estava nesta situação tanto quanto Patrícia e Joaquim. Joaquim, contudo, soube transformar o exercício de poder de Roberta sobre ele aproveitando-se financeiramente da situação. Patrícia, por outro lado, mesmo tendo sido obrigada a ser tatuada por um marido infiel que tatuara também as amantes, ainda esperava por um outro homem que lhe pedisse a retirada da marca. Nesses três casos, a relação amorosa é uma espécie de jogo de dominar/ser dominado, possuir/ser possuído, em que as mulheres parecem, a princípio, aceitarem mais facilmente a posição de submissão. Retomo, então, a citação inicial, retirada de um poema de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa: o amor, sobretudo o amor romântico, que é pensado tantas vezes como uma forma de libertação, pode encobrir relações opostas, de submissão, opressão e limitação. Aqui estas relações foram vistas sob a ótica das relações de gênero. Mas é preciso ter em mente que a própria crença no amor romântico pode se tornar, por si só, uma forma de limitação. 9. Lembrar/esquecer/silenciar: formas de uma dermo-biografia Sant’anna (2001), escrevendo sobre a visão que as sociedades contemporâneas têm da pele, ressalta o valor dado ao liso. Os pêlos, as manchas, as rugas, as marcas, tudo deve ser removido em virtude do valor altamente positivo da pele lisa. Como ressalta a autora, uma pele lisa é uma pele sem história, uma pele que não “fala” sobre o Eu que recobre. Mas como mesmo o silêncio “diz” algo, a pele lisa fala sobre o valor da juventude, ideal a ser alcançado, e sobre o encobrimento das histórias pessoais, como se a vida devesse ser um eterno presente, sem passado e conseqüentemente sem futuro. Na pele lisa, é o momento que transparece e reina absoluto.

232 A argumentação da autora torna a questão da tatuagem mais complexa. A tatuagem é uma espécie de mancha que marca a pele, tirando dela o liso original. Embora a técnica tenha sido utilizada para encobrir cicatrizes (GILBERT, 2000; MIFFLIN, 1997), este não é seu uso preponderante no Ocidente. Pode-se sugerir, então, que a pele marcada com a tatuagem é uma pele marcada com uma história pessoal, que longe do desejo de ser apagada demonstra o desejo de permanência. Como em uma reação à vida baseada em momentos, a tatuagem fixa a história do sujeito na própria pele. Algumas observações devem ser feitas para que esta idéia não tome conseqüências demasiado amplas. Primeiro, a noção de que a tatuagem marca a pessoa leva à reflexão de que toda marca nos situa em algum momento de vida. Isto não quer dizer que o desenho tatuado provenha de uma reflexão profunda sobre este momento vivido ou que o momento de vida em que se faz a tatuagem seja escolhido por meio de reflexão. Almeida (2001) apresenta casos em que a tatuagem é efetuada por um desejo54 momentâneo, em oposição à idéia de um processo reflexivo. Se isso for verdadeiro, pode-se supor que é a tatuagem que marca o momento, tornando-o parte da história de vida da pessoa, momento este tornado importante no ato da tatuagem, pois, não fosse a permanência da marca, ele expiraria. Em outras palavras, o momento de se tatuar pode ser escolhido aleatoriamente, mas a tatuagem marca este momento para sempre. A fugacidade da vida contemporânea atingiu a permanência da tatuagem, transformando uma marca que é para sempre em um meio de marcar um momento que poderia ser perdido. Luta-se contra a fugacidade marcando-se o momento e luta-se contra a falta de história marcando a pele, mesmo que estas não sejam sempre escolhas reflexivas. Se a tatuagem pode expressar sentimentos, também expressa valores, gostos e aspirações pessoais. Neste sentido, além de comunicar aspectos da subjetividade, exprime também o que chamo aqui de dermo-biografia, uma parte da vida e das crenças pessoais que é marcada sobre a pele. Parto da idéia de que várias tatuagens, vistas em conjunto, podem ser tomadas como uma forma de biografia inscrita na pele. O caso de Fátima, cuja fada voando em suas costas representava, para ela, a idéia de colocar a própria vida em movimento, demonstra como o sujeito correlaciona elementos interiores, do Eu, ao desenho

54

Alguns entrevistados da autora utilizam a idéia de “fissura”.

233 escolhido. Seriam como marcos de momentos de vida que fazem recordar ou, ainda, expressam sentimentos, valores, gostos, pertencimentos e aspirações, entre outros. Sobre o corpo repousam inúmeras marcas, inscritas nele, que contam a história de uma pessoa: rugas, cicatrizes, sinais, entre tantos outros. A tatuagem é mais uma destas marcas, de escolha do sujeito, e que contam parte de sua história. Se o painel de seu Nelson não explicita sua opção religiosa, as menções aos orixás o fazem. Na canela direita, seu Nelson tem escrito “Safra 1943”, indicando o ano de seu nascimento. São marcas construídas pelo sujeito que comunicam ao mundo elementos considerados importantes para ele. Durante a observação de campo no estúdio pesquisado na Tijuca, conheci uma cliente que tatuava um coração e três querubins. Segundo ela, marcava na pele a parada cardíaca que quase a matara menos de um mês antes. Era importante para ela que o registro do evento não ficasse apenas na subjetividade e na memória do ocorrido. Era preciso expressá-lo por meio de um desenho que jamais se apagasse. Observa-se, assim, que os marcos de vida se tornam marcas na pele: não apenas as marcas do tempo vivido, como rugas ou cicatrizes, mas as marcas voluntariamente dispostas sobre o corpo, na forma de tatuagens. Estas marcas corporais, escolhidas pelo sujeito, expressam marcos de eventos vividos, marcos da subjetividade que devem ser tornados visíveis por intermédio das marcas corporais. O sentimento, o evento, a situação vivida não podem repousar apenas na lembrança imaterial, mas são dispostos sob a forma visível da tatuagem e material do próprio corpo, como se aflorassem à visão de todos. Trata-se de um processo no qual o que é subjetivo vêm à tona, à flor da pele, transpirando para o mundo exterior o que seria, de outro modo, conhecido apenas pelo próprio indivíduo. O liso do eterno presente sem história, conforme Sant’anna (2001), dá lugar à mancha marcada na pele, ao desenho – criteriosamente escolhido ou não – que expressa que há um passado vivido e, muitas vezes, como no caso de Fátima, também um futuro a se viver. São marcas que expressam momentos da história de vida dos indivíduos. Outras vezes, contudo, a marca involuntária é a expressão de uma dor, de uma tristeza relacionada a uma difícil situação vivida. Nestes casos, a sua permanência não é desejada pelo sujeito e a tatuagem é utilizada para cobrir as cicatrizes do corpo e da alma. Outra cliente que conheci no estúdio da Tijuca fazia uma série de tatuagens para cobrir as

234 cicatrizes de uma operação delicada na coluna, realizada aos 13 anos de idade. Esconder as cicatrizes era crucial para ela. Quando a tatuadora exprimiu a dificuldade de encontrar um desenho adequado, no mesmo ângulo da cicatriz, a cliente caiu em prantos, frustrada. A dificuldade foi contornada e a tatuagem realizada em três sessões, mas a expressão de sua angústia diante da impossibilidade de cobrir a marca da operação na coluna demonstra o quanto a memória expressa na cicatriz sobre a pele a incomodava, possivelmente não apenas quanto a sua estética. Cobrir uma cicatriz com uma tatuagem demonstra que há uma motivação estética, mas creio que se deseja também esquecer ou silenciar um evento do qual não se deseja que outros tomem conhecimento. Quando trato da tatuagem como um elemento que pode comunicar sentimentos, grupos de pertencimento, eventos pessoais marcantes, estou observando aspectos deste adorno corporal que vão além da relação entre aparência e identidade. Não é apenas a identidade pessoal ou social que a tatuagem pode expressar ou ajudar a compor. Ela tem uma gama de usos que podem ser criados e/ou ressignificados pelos sujeitos, como marca pessoal de mudança de status ou como parte de processos pessoais de “cura” emocional. No que diz respeito às tatuagens de amor, imagine-se uma pessoa que tenha tatuado as iniciais ou o nome de todos os namorados(as), amantes ou cônjuges: parte de sua vida amorosa estaria registrada sobre a pele. Pode-se cogitar, então, que certos relacionamentos, por diversos motivos, sejam mais marcantes, levando o indivíduo a optar pela tatuagem de amor. Apagar ou cobrir uma tatuagem de amor seria, então, apagar a memória de uma relação que chegou ao seu fim. De certa forma, é marcar também o fim do sentimento de estar apaixonado por determinada pessoa. A memória da relação amorosa é vista como algo que não deve permanecer no corpo desta forma, embora talvez jamais seja apagada da memória em termos abstratos. As tatuagens de amor, porém, não são as únicas a serem cobertas ou apagadas. Desenhos desbotados, envelhecidos, mal-feitos, em suma, desenhos considerados feios ou inapropriados são cobertos por outros. O desgaste pode ser contornado, ainda, com o retoque. Cobrir ou apagar a tatuagem com procedimentos a laser indicam que algo que era importante em um determinado momento de vida não é mais. A perda de importância de elementos cruciais o bastante para serem tatuados é mais visível quando se trata de tatuagens em adolescentes. Como ouvi o proprietário do estúdio pesquisado na Tijuca dizer

235 certa vez a uma menina de 16 anos: “Pensa bem no que você vai tatuar, algo do qual você não se arrependa depois. A cabeça muda com o tempo”. Apagar uma tatuagem, visto aqui como um ato de esquecimento ou silenciamento, faz emergir a reflexão sobre a permanência da tatuagem no corpo. Embora os procedimentos a laser sejam caros e demorados, nem sempre alcançando bons resultados, há um mercado para se apagar tatuagens. As cover-ups, por outro lado, formam parte do contingente de clientes dos tatuadores, demonstrando que a permanência de um desenho na pele, mesmo tatuado, é questão de opção, seguindo os ritmos de mudança dos sujeitos em questão.

236 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo pretendeu apresentar alguns dos usos contemporâneos relativos à tatuagem na cidade do Rio de Janeiro, a partir de situações observadas em campo. A observação participante em dois estúdios de tatuagem na cidade visava, nesse sentido, um contato maior com tatuados e tatuadores, compreendidos como atores principais do universo da tatuagem. Pude construir um perfil de tatuados e contrastá-lo com o imaginário corrente sobre eles. Ao mesmo tempo, pude perceber, de dentro dos estúdios, uma série de valores que tatuados e tatuadores constróem, e muitas vezes compartilham, acerca da tatuagem. A partir do perfil dos tatuados e destes valores, formulei uma interpretação sobre a prática que aponta para um uso relacionado às construções de gênero, de mudança de status, de expressão da subjetividade e de sentimentos, e da vivência da necessidade de autonomia, muitas vezes relacionada a idéias de originalidade e autenticidade, como contraponto a uma idéia de controle e dominação por parte de instâncias maiores que o indivíduo, como o Estado, a família ou o mercado de trabalho. A popularização da prática na cidade do Rio de Janeiro, medida em termos de uma nova dinâmica em que estúdios profissionais passaram a abrir filiais em outros bairros da cidade, chamou a atenção tanto para este crescimento do público quanto para a expansão desse tipo de empreendimento comercial. Dinâmica recente, a concorrência entre estúdios conhecidos do público em bairros onde antes não atuavam parece ter levado alguns estúdios a empreenderem estratégias de sobrevivência que incluem a prática de baixos preços, a proximidade física com outros estúdios e a propaganda em meios de comunicação. Embora não se possa dizer que o universo profissional da tatuagem foi alterado pela popularização da prática, a concorrência entre estúdios tem gerado efeitos como a necessidade de uma administração mais burocratizada. Em termos de público, tampouco creio que a concorrência tenha alterado seu perfil, marcado por outras variáveis. Quando o trabalho de campo foi iniciado, paralelamente a uma revisão sobre temas relacionados ao universo da tatuagem, imaginei um público masculino e jovem. Ao longo da pesquisa, esta visão foi alterada. Os dados quantitativos e qualitativos apontaram para

237 uma dificuldade em estabelecer o corte geracional, pois várias faixas etárias se faziam presentes nos estúdios, enquanto apontavam para uma maioria de mulheres entre os clientes. Havia uma questão: por que o público havia se alterado de uma clientela majoritariamente

jovem

e

masculina

para

esta

diversidade

de

faixas

etárias

majoritariamente femininas? A minha visão inicial de que o público seria jovem e masculino era originária, em grande parte, de leituras relativas ao passado da prática. A bibliografia específica sobre tatuagem recorrentemente mencionava um passado relacionado a homens e jovens. Contudo, estes homens e jovens que constituíam essa clientela do passado estavam normalmente em uma posição social de menor status ou sob impacto de fatores estigmatizantes. Prática tão antiga que suas origens foram perdidas no tempo, sua popularização inicia uma espiral ascendente em que diversos grupos são incorporados aos consumidores de tatuagens, em momentos históricos distintos e sob distintas influências. De um modo geral, os usuários de tatuagens no Ocidente têm em comum uma posição social de menor status. Exceção feita à nobreza européia. Mas, o uso de tatuagens entre os nobres não estava relacionado ao sangue azul e sim ao pertencimento às corporações militares. Além da posição de menor status, os usuários de tatuagens no Ocidente estão freqüentemente sob algum tipo de controle corporal, como militares, marinheiros e presidiários. A partir desta percepção de que as tatuagens estão relacionadas ao baixo status e/ou ao controle corporal, coube entender o por que de seu uso nestas situações. A marca autoinfligida – conquanto tatuada por outro indivíduo e não por si mesmo, mas por escolha própria – representa a marca de autopropriedade do próprio corpo, em um contexto de controle e dominação. É uma marca de resistência ao controle, que comunica – sobretudo ao controlador – que há um limite para este controle e que, mesmo sob dominação, há espaço para o exercício de uma autonomia. Esta autonomia é exercida nestas situações de controle sobre o corpo. Trata-se de uma relação dialética entre controle, resistência e autonomia, na qual o corpo se torna palco das representações sociais sobre o sujeito. Em termos de classe, portanto, é compreensível que a tatuagem tenha feito sucesso primeiro entre as camadas populares. Para uma análise do contexto contemporâneo,

238 contudo, e de acordo com o material de campo, utilizei outras categorias de usuários e outras classificações, sobretudo gênero e geração. Pensando-se analogamente a dialética do controle-resistência-autonomia relacionada à tatuagem em termos de geração, compreende-se que os jovens são o grupo sob controle. Este controle não é simplesmente exercido pelo que se poderia chamar de “mundo adulto”, mas está localizado particularmente na família. A família exerce controle sobre seus membros, expresso também na forma de um controle sobre seus corpos. Nega-se o piercing e a tatuagem aos menores de idade, àqueles a quem a lei permite as duas práticas desde que permitidas também pelo responsável. Tenta-se dissuadir o membro da família a fazê-los entre os maiores de idade Desestimula-se ambas as práticas, desencoraja-se, diz-se que é “vulgar”, de mau gosto, “feio”, que “gera problemas” (de saúde e no mercado de trabalho). A família desestimula os jovens e as mulheres, ambos com status inferior, ambos subjugados por uma ordem dominante que ainda dá aos adultos, particularmente aos homens, o direito do exercício de dominação sobre os membros da família e, conseqüentemente, sobre seus corpos. Os jovens, quando completam 18 anos, exercem o poder adquirido sobre si, a liberdade ganha, e vão aos estúdios marcarem os corpos com este signo de autonomia. Marcam a mudança de status. Se deixam a marca para mais tarde, é porque a censura familiar fez com que refletissem, se tornassem inseguros quanto ao desejo, e não tomassem de fato sua decisão, esboçada normalmente na tenra juventude. As mulheres vivenciam toda uma série de censuras na busca pelo exercício dessa livre modificação de seu corpo. Neste exercício, algumas são vencidas pela opinião contrária à tatuagem de familiares, cônjuges ou namorados. Desistem da marca. Outras resistem. É nesta situação de controle e resistência que percebem o quanto são tuteladas pela família e pelo cônjuge, ambos tentando diminuir sua liberdade, cercear sua autonomia, exercer uma dominação sobre as escolhas efetuadas por elas. A maior procura por tatuagens entre as mulheres parece correlacionar-se a este momento histórico em que se avançou a igualdade entre homens e mulheres, dando a elas a possibilidade de exercício de autonomia e liberdade individuais, tornando-as indivíduos, no sentido moderno da palavra. Conquanto o exercício dessa igualdade não seja pleno, é a

239 possibilidade desse exercício, a meu ver, a possibilidade de ser um indivíduo (livre) que fez subir o número de mulheres entre o público da tatuagem. Pensar que o aumento do público feminino está relacionado a uma estetização do cotidiano e a um culto ao corpo me parece inadequado. Na medida em que o feminino ainda é inferiorizado, que aquilo que é considerado feminino ainda é visto como de menor valor, tratar o que agora aparece como uma prática feminina apenas como um ritual de embelezamento entre tantos outros rituais femininos deste tipo é reproduzir esta ideologia que inferioriza o feminino, roubando-lhe a possibilidade de agência. Nos estúdios, permeados pela mesma lógica de diferenciação de gênero encontrada na sociedade brasileira, o que é feminino é inferior: são desenhos pequenos, infantis, com classificação própria, raramente considerados artísticos, executados por profissionais que são em sua maioria homens, em regiões pouco extensas do corpo (pé, nuca, pequenas áreas das costas), e a dor feminina é aceita porque é vista como sinal de sua fragilidade. Os desenhos masculinos, por outro lado, são grandes, tomam extensas áreas do corpo proporcionando a possibilidade de maior sofisticação artística, representando elementos agressivos que constituem o cerne da masculinidade guerreira, executados por outros homens a quem a performance frente à dor serve de medida do grau de virilidade. Se as mulheres são vistas no estúdio, pelo senso comum, como em um ritual fútil de embelezamento, os homens, em contrapartida, fazem do estúdio de tatuagem local de um ritual de virilidade, onde esta é posta a prova, construída e reconstruída em um universo ainda visto por eles como masculino. O tatuador, o sacerdote deste ritual, humilha os que não toleram a dor – a prova suprema da masculinidade – com piadas e chacotas. Coloca em xeque o caráter masculino daquele que é fraco, seja em frente ao cliente ou após sua saída do estúdio. Faz o mesmo com aqueles que não escolhem estes desenhos “de macho”, os que retratam a agressividade que parte da sociedade brasileira associa ao “ser homem”. Há, portanto, uma lógica que permite compreender quem é e quem não é tatuado: aqueles de menor status, aqueles em que um evento de vida os fez sentir em menor status, aqueles sob controle corporal – estes serão grupos propícios a se tatuarem. Os homens usam o autocontrole da dor, um controle corporal exercido pela sociedade sobre eles, como sinal de masculinidade. Não se libertam desse controle nem

240 tampouco de uma determinada visão de masculinidade. Ao contrário, apropriam-se do controle para competir entre si, provando quem é “macho” e quem não é. Assim também age a tatuagem de amor. Longe de promover uma autonomia ou ser o indicativo de uma resistência, ela é o abandono de si frente ao amor. Marca-se no corpo o “ser propriedade de outro”, o doar-se ao ser amado. A tatuagem de amor demonstra que nem sempre a tatuagem atua como uma forma de resistência. No amor romântico que embala essa prova de amor, o casal é visto como um todo, os dois sujeitos formando uma totalidade. O doar-se ao outro é, de um outro ângulo, o doar-se a esta nova constituição não mais como indivíduos autônomos, mas como um todo: o casal. A tatuagem de amor permite uma reflexão sobre a metáfora da tatuagem, constantemente presente: estar dentro e estar fora do corpo ao mesmo tempo. Ter a tatuagem do nome da pessoa amada é tê-la em si, em seu corpo. Ao mesmo tempo, é “colocar para fora” o amor por essa pessoa, externalizar o sentimento, que no Ocidente é visto como algo interno ao sujeito. A metáfora da tatuagem, esta relação dentro/fora, permeia vários de seus usos e permite explicar muitos deles. A própria relação entre status social e tatuagem associa-se a esta metáfora dentro/fora, uma vez que os de menor status, aqueles fora das posições de dominação, formam o maior contingente de tatuados. Esta metáfora, no Ocidente, toma um caráter interessante na medida em que se conjuga com crenças sobre a subjetividade como sendo algo interno e o corpo como sendo algo externo. Assim, a tatuagem tanto injeta elementos para dentro do sujeito quanto utiliza o mesmo veículo para externalizá-los. As idéias de tatuagem como indicativo de autenticidade e originalidade, de se representar o que se é em contraposição à idéia de moda, artigo de consumo externo ao sujeito, estão situadas no âmbito desta metáfora. Por exemplo, pensa-se usualmente que os desenhos têm significados próprios, quase que ocultos dado que são da esfera da subjetividade. Estes significados existem, e de fato nunca são tão óbvios quanto possam parecer. Mas nem sempre estão presentes. Há casos em que o desenho tatuado não tem significado algum para o sujeito, é apenas uma escolha esteticamente orientada. Quando esta estética é seguida por muitos, torna-se uma moda (ou modismo). Isto é malvisto no universo dos tatuadores uma vez que compartilham a idéia de que os desenhos devem ser individualizados, distintos para cada cliente: se não únicos, pois

241 nem sempre é possível, ao menos ligeiramente modificados daqueles que lhes servem de inspiração. O tatuado que segue modismos é visto como pessoa fraca, sem opinião própria. O tatuado que busca sempre desenhos originais e únicos é visto como autêntico e estes desenhos são correlacionados à sua subjetividade, como se fossem expressão desta. Observa-se, então, uma hierarquia entre originalidade e modismo, em termos do desenho tatuado, que representa, na verdade, uma hierarquia entre o sujeitos que têm opinião própria e a expressam ao mundo, o que é mais valorizado, e aqueles que não têm opinião própria ou não fazem valer suas opiniões, considerados fracos. Esta hierarquização é análoga à determinação de status do tatuado, da seguinte forma: se aquele que busca a tatuagem está, conforme indiquei, normalmente numa posição de menor status social, a tatuagem não apenas funciona como marcador de uma busca de autonomia como também constrói um status superior, ao menos no universo da tatuagem. Frente a outros tatuados, aquele que tem desenhos originais e únicos sobressai-se, elevando seu status. Instâncias sociais como a família e o mercado de trabalho exercem diferentes controles sobre os sujeitos e seus corpos, tentando cercear sua autonomia. Tatuando-se, sinônimo do exercício de autonomia e opinião própria, o sujeito resiste a esse controle, fortalecendo em maior ou menor grau o exercício de sua individualidade, de sua liberdade. Ele resiste a este controle e, nesta resistência, eleva seu status. Quando a tatuagem é socialmente malvista, então, é porque indica que o sujeito que a porta não está aceitando as regras sociais de dominação e controle como deveria. Não é mais, hoje, um desviante, dada a popularização da prática, mas é alguém em busca de autonomia. Esta popularização, contudo, é fruto de uma ordem social em mudança, na qual aqueles com status inferiores buscam formas de inclusão social. O corpo extensamente tatuado é visto no mercado de trabalho como agressivo e grotesco. Há, é claro, outros usos que não coincidem com este eixo analítico. A tatuagem como amuleto, vinculada a idéias de proteção mística, por exemplo, existe hoje, mesmo que em pequena escala. Este uso foi observado no recém-aposentado Fábio, que escolhera um sinal de recomeço para ser tatuado e acreditava na propriedade de boa sorte da tatuagem. Além do aspecto místico, há também um aspecto subjetivo na tatuagem, em que se apreciam os desenhos não apenas em termos estéticos, mas também como signos capazes

242 de comunicar preferências ao mundo e exprimir estados de espírito do tatuado, como, mais uma vez, no caso de Fábio e sua aspiração por um recomeço, ou Fátima e sua aspiração por mudanças positivas, entendidas como um estado de “manter-se em movimento”, como a fada voando em suas costas. Os eventos marcantes do passado e do presente, tanto quanto as aspirações para o futuro, se tornam marcos pessoais que levam alguns sujeitos aos estúdios. Afastando-me aqui da idéia de autonomia e status social, identifiquei usos da tatuagem que não se relacionam a esta tensão entre indivíduo e sociedade, mas que estão, de outro modo, localizados na história de vida de cada um. A marca na pele como expressão de um marco de vida se associa a um determinado tipo de memória que se quer ver materializada, visível, para a qual o corpo serve como suporte. Enseja, ainda, reflexões sobre a permanência como qualidade intrínseca da tatuagem. Marca indelével, os procedimentos para sua retirada são tão custosos e dolorosos quanto para sua realização. Mas sabendo-se que é eterna, e uma vez feita, por que retirá-la? Entre as respostas possíveis, a idéia de que a motivação para a marca não existe mais é sempre a mais tentadora, embora nem sempre a mais correta. De fato, apagam-se desenhos desbotados e borrados, feios, mas apagam-se também desenhos considerados como estando em locais inapropriados do corpo, visíveis. Quando um desenho é apagado, ele não apresenta mais a importância que tinha quando foi tatuado. Os desenhos desbotados podem ser retocados, e muitas vezes o são. Se esta não foi a opção, é porque expirou sua validade. As tatuagens de amor e as tatuagens em jovens foram casos privilegiados para se pensar a tensão provocada pela permanência da marca. O amor percebido como eterno, e assim marcado no corpo, muitas vezes termina, levando o tatuado a cobrir a prova de amor. A juventude, por sua vez, pensada como caótica e desregrada, sobretudo a adolescência, época de transição em que nada é pensado como fixo, provoca uma tensão com a tatuagem como marca permanente, sobretudo nos pais. A idéia de arrependimento, contudo, não emerge nos casos observados. Viveu-se o que se tinha para viver. Uma vez acabada a história, apaga-se a prova de amor. E, uma vez fora da juventude, apaga-se igualmente uma marca considerada feia ou imprópria, com o laser ou com outra tatuagem. Apagar se torna, então, sinônimo de esquecer, enquanto manter se torna sinônimo de lembrar, emergindo aí parte da qualidade mnemônica da tatuagem.

243 A permanência da marca se torna sinônimo de fixação. Marcar a mudança de status é, então, marcar o ingresso em outra posição. Tatuar eventos de vida marcantes é fixar na pele aquilo que a alma jamais esquecerá. É, também, injetar em si aquilo que se aspira que venha e jamais vá embora, tanto quanto externalizar a relação amorosa pensada como eterna. Em todas as situações analisadas, a qualidade de permanência da tatuagem é um elemento em jogo na escolha ou na dúvida frente a ter ou não a marca. Embora certos aspectos da tatuagem contemporânea analisados não sejam inéditos, tentei, nesta tese, construir um novo ângulo de visão que pudesse, sobre os temas já abordados, oferecer novas contribuições. Estas contribuições se assentam nesta visão de continuidade entre os grupos tatuados a partir da análise de seu status social e/ou das situações de controle corporal vivenciados por eles. Assenta-se, ainda, em análises sobre aspectos até então negligenciados no processo de tatuar e ser tatuado, como a dor e a importância da originalidade dos desenhos. Acrescentaria, ainda, como contribuição, a análise sobre as tatuagens de amor, terreno fértil para uma reflexão sobre diversos elementos que permeiam a cultura da tatuagem atual. Assim, espero não apenas ter apresentado um panorama sobre a prática da tatuagem contemporânea no país, a partir do Rio de Janeiro, mas construído uma análise que permita novas reflexões sobre gênero, geração, corporalidade, sentimentos, memória e tatuagens em meio urbano no Brasil. Os estudos antropológicos sobre o corpo têm crescido nos últimos anos, assim como os estudos sobre a tatuagem têm se diversificado. Analisar esta prática e compreender seus significados é uma forma de compreender como o corpo é marcado por classificações sociais, repletas de representações de gênero, geração e status. É também compreender como se dá a relação ocidental entre mente e corpo. No caso da tatuagem, uma relação marcada por fatores como tempo e permanência, que se tornam, face ao corpo e à memória, elementos com os quais os sujeitos têm que lidar em seu cotidiano, muitas vezes marcando assim sua história de vida. Se corpo e mente ainda são pensados como separados, o estudo antropológico da tatuagem permite refletir sobre a relação que mantém entre si: o corpo muitas vezes servindo como o mero suporte de signos da subjetividade; outras vezes determinando, por meio de suas curvas e cores, o que pode ou não ser tatuado; outras, ainda, construindo um diálogo com a história de vida pessoal. Mas creio que o diálogo mais interessante entre

244 mente e corpo, na tatuagem, é a percepção de como o processo técnico é permeado com estas representações hierarquizadas sobre corpo e mente: algumas vezes o desenho injetando qualidades no sujeito via corpo, outras deixando apenas transparecer o que vai pela mente inacessível. A pele é o limite entre essa mente intangível no interior do próprio corpo e o mundo externo ao sujeito. Ela se torna deslocada do sujeito e de seu corpo. Ganha vida própria, tornando-se uma intermediária, servindo de elemento de mediação. Assim, a tatuagem na pele não está nem no corpo, nem no sujeito, mas nesta zona intermediária entre o sujeito em seu corpo e o mundo exterior. É uma zona de passagem. Por isso é marcada quando uma “passagem” é efetuada: lacrando, abrindo ou simplesmente identificando o sujeito. Fixa, mas com múltiplos significados, pode ser recriada e re-significada a qualquer tempo. O próprio tempo passa, enquanto a tatuagem ali permanece, naquela falsa superfície que guarda, de fato, as marcas profundas de uma vida.

245

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251

ANEXO 1 ICONOGRAFIA DAS TATUAGENS CONTEMPORÂNEAS

Figura 1 – Exemplo de estilo old school.

Fonte: < http://www.originaltattoostudio.com.br/paulo_tattoo.htm em 10 dez 2005.

Figura 2 – Tribal feminina na lombar/cóccix.

Fonte: MARQUES, 1997.

252 Figura 3 – Exemplo do estilo comics.

Fonte: MARQUES, 1997.

Figura 4 – Exemplo do estilo realista.

Fonte: MARQUES, 1997.

253 Figura 5 – Exemplo de cover up com estilo comics feminino (Betty Boop), nas costas (por trás do ombro).

Fonte: em 10 dez 2005.

Figura 6– Exemplo de cover up com desenho old school, por cima de ideograma.

Fonte: < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/cover-1_01.htm > em 10 dez 2005.

254

Figura 7 – Exemplo de estilo étnico.

Fonte: < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-3_14.htm> em 10 dez 2005.

Figura 8 – Exemplo de estilo oriental: o guerreiro a cavalo e os ideogramas no peito, braço e costelas.

Fonte: MARQUES, 1997.

255 Figura 9 – Exemplo de estilo oriental: o painel de costas.

Fonte: MARQUES, 1997.

Figura 10 – Exemplo de “desenho feminino” com tendência infantil, no tornozelo.

Fonte: em 10 dez 2005.

256

Figura 11 – Exemplo de “desenho feminino”, por trás da orelha: as três estrelinhas coloridas.

Fonte: < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-2_13.htm> em 10 dez 2005.

Figura 12 – Exemplo de “desenho feminino, na canela: a borboleta.

Fonte: < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-2_06.htm> em 10 dez 2005.

257 Figura 13 – Exemplo de tatuagem de sol e lua, na panturrilha.

Fonte: http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-4_03.htm > em 10 dez 2005.

Figura 14 – Exemplo de tatuagem de “olho de Hórus”, na nuca.

Fonte : < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-4_05.htm> em 10 dez 2005.

258

Figura 15 – Exemplo de “tatuagem de amor”: iniciais na lombar/cóccix.

Fonte: < http://www.leonardonovaes.com.br/pages-tattoos/tattoo-4_10.htm > em 10 dez 2005.

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