O gênero mitológico: uma abordagem bakhtiniana do monomito

May 24, 2017 | Autor: Carolina Falcão | Categoria: Mythology, Genre studies
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Jornalista, mestranda em Comunicação pelo PPGCOM-UFPE
O mytho é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus. É um mytho brilhante e mudo - O corpo morto de Deus. Vivo e desnudo/Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo. E nos creou/ Assim a lenda se escorre. A entrar na realidade, E a fecunda-la decorre. Em baixo, a vida, metade. De nada, morre. (Ulysses, publicado no livro Mensagem, de 1934).
Neste trabalho trataremos como sinônimos ao monomito as expressões jornada do herói
Iniciados
O texto data de 1992 e era uma publicação endereçada para o departamento de roteiros da Disney.
Graças ao modelo embasado no Paradigma Disney, o estúdio pôde, a partir de 1993, ampliar sua produção cinematográfica de um filme a cada dois anos para um a cada ano.
Em português, Guerra nas Estrelas, franquia com sete filmes. O primeiro título (Uma nova esperança) foi lançado em 1977, o último (A guerra dos clones, em 2008),


O gênero mitológico:
uma abordagem bakhtiniana do monomito
Carolina Cavalcanti Falcão

Resumo
O presente trabalho busca identificar a narração do mito na atualidade, abordando-o através da linguagem. Partindo dos conceitos bakhtinianos de gêneros discursivos, pretende-se incluir nessa categoria um modo específico de narrar o mito (o monomito). Assim, a ideia é discutir a validade desse gênero como modo de narrar uma experiência de transformação (associada aos rituais de iniciação antigos), na contemporaneidade.
Palavras-chave: mitologia; monomito; gêneros discursivos
Introdução
O primeiro verso do poema Ulysses, de Fernando Pessoa, exprime uma síntese bastante significativa do papel do mito numa sociedade: "O mito é o nada que é tudo". Assim, o famoso poeta português mostrava que, mesmo sendo apenas uma história falsa, um conto (ou seja, nada), o mito possui uma força capaz de motivar comportamentos sociais fundamentais para a consolidação de uma ideia de Nação (tudo). No referido poema, o autor resgata o lendário personagem da Odisséia e reforça através de contradições (por não ter vindo foi vindo) a ideia vinculada a uma tradição portuguesa de que Ulisses é o fundador mítico de Lisboa.
Mesmo não tendo por objetivo tratar de questões de identidade nacional neste trabalho, o poema de Pessoa é válido para mostrar a abrangência do mito. Pois, se por um lado ele contempla, o nada, ou seja, uma conotação rudimentar e enganosa. Por outro, percebemos um entendimento poderosamente simbólico, o tudo. É dessa síntese, uma história associada a experiências arcaicas, situadas fora da atuação da ciência, mas que possui valor simbólico e narrativo inegáveis, que pretendemos problematizar uma narrativa mitológica em específico: o monomito.
Dessa forma, pretende-se trabalhar com o monomito como uma das formas privilegiadas de narrar o mito, dentre as disponíveis na mitologia, além de evidenciar sua presença como referencial em vários aspectos da vida moderna. Nesse sentido, o trabalho de Mircea Eliade (1972) sobre o mito enquanto narrativa e de Joseph Campbell (2007) sobre o herói são fundamentais. A partir de então, seguiremos as contribuições de Bakhtin (2006; 2011) sobre a constituição social e histórica da linguagem e o conceito de gênero discursivo. Pretende-se, então, argumentar que o paradigma do herói se constitui num gênero secundário, que articula enunciados fundados nos ritos e celebrações típicas das sociedades arcaicas, válido para narrar experiências de transformação na contemporaneidade.
Mito enquanto discurso
Ter o discurso como ponto de partida é estabelecer, antes de qualquer coisa, uma relação entre língua e fala. Nesse sentido, é Bakhtin (2006) quem traz uma significativa elaboração do tema. Se, por um lado, ao autor não deixa de considerar a língua em seu aspecto sassureano (algo social, fundado na necessidade de comunicação) se opõe a ele ao considera-la também como resultante da contribuição individual do falante, enfatizando a fala.
Assim, Bakhtin coloca no fenômeno social da interação verbal a realidade fundamental da língua. O aspecto social da linguagem leva, portanto, a uma questão primordial no trabalho do autor: compreender e explicar a comunicação verbal a partir de seus vínculos com a situação concreta. O argumento principal é o de que a comunicação verbal
entrelaça-se inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno comum da situação de produção. Não se pode, evidentemente, isolar a comunicação verbal dessa comunicação global em perpétua evolução. Graças a esse vínculo concreto com a situação, a comunicação verbal é sempre acompanhada por atos sociais de caráter não verbal (gestos do trabalho, atos simbólicos de um ritual, cerimônias, etc.), dos quais ela é muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar. (BAKHTIN, 2006, p. 126).
Essa articulação do linguístico com o social leva à compreensão do ideológico como aspecto definidor do signo. Como Bakhtin argumenta, "Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia" (BAKHTIN, 2006, p. 29). Considerando esse aspecto, a compreensão da linguagem se desloca da relação línguaXfala e passa a considerar uma instância que detém de fato, uma materialidade formal, porém perpassada por elementos e contribuições subjetivos e sociais. Essa instância é o discurso.
Ao comentar a contribuição de Bakhtin para o deslocamento da linguagem enquanto oposição línguaXfala para o discurso, Brandão (2004) argumenta que não se trata de "um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural" (BRANDÃO, 2004, p. 11). Levando em consideração essa abordagem, é possível afirmar que o discurso é marcado pelo seu tempo, pois, como argumenta Bakhtin (2006), "todo signo ideológico e, portanto, também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e por um grupo social determinados" (p. 43).
Identificada comumente aos estudos sobre religiões e história antiga, a mitologia também pode ser entendida enquanto discurso. Para isso, no entanto, é preciso tomarmos o mito, uma realidade extremamente complexa, a partir de seu aspecto narrativo. Nessa perspectiva, a do mito-narrativa, o mito é entendido aqui como uma história sagrada, verídica e verificável que remete a um tempo primordial, o tempo da origem do homem.
Nesse aspecto, tomaremos a reflexão de Vernant (1999), que entendia que, ao refletir sobre o mito, a cultura helênica criava um discurso sobre ele. Para o autor, o mito se constituía como
um sistema simbólico institucionalizado, uma conduta verbal codificada, veiculando, como a língua, maneiras de classificar, de coordenar, de agrupar e contrapor os fatos, de sentir ao mesmo tempo semelhanças e dessemelhanças; em suma, de organizar experiências. No e pelo mito, como em e por uma língua, o pensamento se modela exprimindo-se simbolicamente, ele se coloca ao mesmo tempo em que se impõe (VERNANT, 1999, p. 206).

Também contribui nesse entendimento do mito-narrativa, o trabalho de Eliade (1972), para quem o mito conta a história de como uma realidade (seja ela total, como o cosmo; seja ela específica, como a existência de um determinado vegetal) passou a existir. Assim, o mito é uma história sagrada, pois revela a influência dos Entes Sobrenaturais sobre o mundo; verdadeira, pois sempre se refere a uma determinada realidade e verificável, uma vez que a existência do mundo pode comprová-la (por exemplo: o mito da morte é verificável dada à mortalidade do homem). De acordo com Eliade (1972), "a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação ou o casamento, quanto o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria" (ELIADE, 1972, p. 10).
É importante destacar que o termo arcaico, proposto por Eliade, não inclui exemplos da cultura clássica (foco do trabalho de Vernant). No entanto, é notório na obra do primeiro que o termo se refere muito menos a uma questão espaço-temporal e mais a exemplos de sociedades em que o mito era tido como um "valor fundamental", assumindo uma posição de modelo. Assim, no que se refere ao mito enquanto narrativa, tanto Vernant (1999) quanto Eliade (1972) apresentam aspectos convergentes no entendimento sobre a mitologia.
Narrando o mito
Existem várias formas de narrar o mito. Nas sociedades arcaicas o modelo primário era o cosmogônico. Neles, era possível elucidar a criação do mundo e a intervenção dos Entes Sobrenaturais no curso da existência. O mito cosmogônico falava da origem e, segundo Eliade (1972),
Reviver esse tempo, reintegra-lo o mais frequentemente possível, assistir novamente ao espetáculo das obras divinas, reencontras os Entes Sobrenaturais e reaprender a sua lição criadora é o desejo que se pode ler como em filigrana em todas as reiterações rituais dos mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar (ELIADE, 1972, p. 18).
A função do mito cosmogônico é, portanto, garantir uma espécie de perpetuação, assegurar que aquele acontecimento, dado num tempo primordial, seja conhecido. Assim, é a partir da narração do mito cosmogônico que outros mitos vão sendo narrados. Eliade (1972) cita o exemplo dos mitos sobre as doenças. Nas sociedades arcaicas, conhecer uma doença era, antes de qualquer coisa, saber sobre sua origem. E qualquer narrativa sobre a origem não teria validade se não se remetesse à cosmogonia.
Porém, é importante ressaltar que os mitos não podiam ser narrados para qualquer um. Mulheres e crianças não estavam autorizadas a participarem das cerimônias de celebração do mito e até os jovens só poderiam fazê-lo após um ritual de iniciação. Mais uma vez, é Eliade (1972) quem explica:
Quando os jovens passam pelas diversas cerimônias de iniciação, celebra-se diante deles uma série de cerimônias que, embora representadas exatamente como as do culto propriamente dito — com exceção de certas particularidades características — destinam-se apenas a mostrar a maneira de celebrar esses cultos àqueles que estão para ser elevados, ou que acabam de ser elevados, à categoria dos homens. (ELIADE, 1972, p. 15)
É nesse momento que percebemos a emergência de um segundo modelo de narração do mito: o monomito.
Apresentando o monomito

O primeiro aspecto a ser considerado sobre o monomito é a sua função, pois ele narra um momento fundamental na vida do ser humano: o de sua transformação, de seu amadurecimento e, consequentemente, aceitação pela comunidade que o cerca como um par, um igual. Foi o mitólogo Joseph Campbell quem desenvolveu grandes contribuições acerca do estudo sobre o monomito. Segundo o autor:
Os chamados ritos (ou rituais) de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva [...] têm como características a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou pra trás. Segue-se a esses exercícios um intervalo de isolamento mais ou menos prolongado [...] que quando finalmente tiver chegado o momento de seu retorno ao mundo normal, o iniciado esteja tão bem como se tivesse renascido. (CAMPBELL, 2007, p 9)
Todo o trabalho do autor sobre o monomito encontra guarida nos estudos de Carl Van Jung sobre arquétipos enquanto imagens primordiais. Para Jung (apud Campbell, 2007), tais imagens são repetidas de tal maneira constante e regular que atravessam gerações e formam a estrutura de um arquétipo. Assim, o sujeito que passa pela iniciação está diante de uma jornada, estruturada em três fases: partida, iniciação e retorno. Esse sujeito assume uma determinação, ele é o herói. É por isso que o monomito também é tratado em Campbell como a "Jornada do Herói". Dessa forma, chegamos ao segundo aspecto relevante do herói mitológico: ele é alguém que só se constitui como tal a partir da experiência de uma jornada. A ideia defendida por Campbell para definir o herói não se baseia no caráter (o herói como alguém essencialmente bom) ou no triunfo (alguém que vence algo: o mal, um inimigo), mas sim em termos de empreendimento de uma trajetória, uma aventura que acarreta numa transmutação.
A ideia de mudança que o monomito engendra serve com muita pertinência à proposta de Edouard Delreuelle (2004) sobre as metamorfoses enquanto processos de subjetivação. O autor ressalta o papel da iniciação como um dos constituintes do sujeito nas sociedades tradicionais. Para ele, a iniciação é uma espécie de "segundo nascimento, já não físico, mas simbólico, no termo do qual o indivíduo conquista, verdadeiramente, o estatuto de sujeito" (DELREUELLE, 2004, p. 33).
Retomando Campbell (2007), a jornada no herói está dividida em três estágios. Em cada um deles, estão inseridos personagens e ações que conduzem o processo de transformação de que trata a iniciação. Essas três fases, argumenta o autor, compõem a síntese da experiência mesma da iniciação, vivenciada pelos neófitos nas sociedades primitivas. Primeiro, há a partida, a separação do mundo conhecido do sujeito (a separação da mãe, do convívio feminino). Em seguida a iniciação propriamente dita, que se refere a uma espécie de retiro, de exílio, afastamento do conhecido e contato com algo totalmente novo, impensado (o contato com o pai). Por fim, o herói (que já se reconhece como tal) retorna ao lugar de onde partiu trazendo consigo uma mensagem, uma ideia de redenção.
Estamos diante, portanto, de uma narrativa situada a partir de duas perspectivas. A primeira é a do conteúdo da experiência, a história da transformação. A segunda é da própria estrutura como reflexo do ritual: três fases que se completam e que são interdependentes. Se enquanto experiência, é possível atestar que os rituais de iniciação se converteram, na atualidade, em meras formalidades (o casamento é um exemplo disso, não há na cerimônia matrimonial o sentido de revelação de uma verdade profunda), a narrativa que se refere ao herói ainda se faz presente, sobretudo quando catalisada pela mídia. Para Janet Murray (2003), contar histórias de amor, de heróis ou de grandes façanhas é algo tão legítimo para o homem contemporâneo, em frente à TV, quanto o foi para os vários grupos que se reuniam em torno da fogueira. Para a autora, "Nós nos compreendemos mutuamente através dessas histórias e, muitas vezes, vivemos ou morremos pela força delas" (MURRAY, 2003, pg. 39).
É preciso alertar que não se trata, no entanto, de forjar um conteúdo mítico-primitivo no contexto moderno. O que move o presente trabalho é problematizar o monomito como uma narrativa válida (um gênero discursivo), na atualidade, para contar a história de uma experiência de transformação. Barthes (1977) argumenta sobre a necessidade do estudo do mito na atualidade, a partir de uma perspectiva da linguagem. Segundo o autor, o mito deve ser inserido numa teoria geral da linguagem, baseada em conhecimentos multidisciplinares (etnologia, psicanálise, semiologia e análise ideológica). Dessa forma, essa teoria
deve alargar o seu objeto até as frases; entendo assim, que o mítico está presente em toda parte onde se faz frases, onde se conta histórias (em todos os sentidos das duas expressões): da linguagem interior à conversação, do artigo de jornal ao sermão político, do romance [...] à imagem publicitária (BARTHES, 1977, p. 14)

Tentando cumprir a proposta barthesiana de abordagem do mito pela linguagem, é Bakhtin (2006), no estudo sobre a filosofia da linguagem quem traz um ponto de partida interessante. Para o autor, existe uma "unidade orgânica" entre a forma de enunciação, a forma de comunicação e o tema a ser comunicado. Tema e forma estariam ligados de tal maneira, que só poderiam se separar num campo abstrato. Isso porque são as mesmas forças e condições matérias que viabilizam o tema e a forma num dado contexto.
Assim, os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa. Este processo de integração da realidade na ideologia, o nascimento dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra (BAKHTIN, 2006, p. 45).

É na articulação dessas questões que Bakhtin vai desenvolver, mais à frente, a noção de gênero discursivo, conteúdo de fundamental importância no avanço deste estudo e do qual trataremos a seguir.
Gêneros Discursivos em Bakhtin
Qualquer campo da atividade humana está ligado ao uso da linguagem. Assim, diante da complexidade e variedade de tais ações, temos também uma amplitude de utilizações da língua, que se manifesta através dos enunciados. Os enunciados, argumenta Bakhtin (2011), refletem condições e finalidades específicas de cada uma dessas atividades através de três aspectos: (i) conteúdo temático; (ii) estilo da linguagem e, por fim, (iii) construção composicional. É no uso relativamente estável de grupos de enunciados (associados a um campo específico) que se manifestam os gêneros do discurso.
Comentando o conceito desenvolvido por Bakhtin, Sobral (2009) atenta para o fato de que o gênero não é uma categoria textual, mas sim discursiva. Argumenta:
Não se trata de uma forma fixa, mas forma sujeita a alterações as mais diversas, com graus maiores e menores de 'liberdade' do sujeito, entendido como mediador entre o socialmente possível e o efetivamente realizado e cujo agir varia conjunturalmente, isto é, nos termos de suas circunstâncias específicas (SOBRAL, 2009, p. 173).
Bakhtin (2011) também utiliza a noção de projeto enunciativo, que revela que a formação e o uso dos gêneros estão na realidade em que surgem os enunciados, ou seja, o intercâmbio social. Assim, no modo da comunicação cotidiana (direto), há os gêneros primários. Já no âmbito da comunicação mais elaborada (mediadas), há os gêneros secundários. Na distinção entre ambos, Bakhtin (2011), argumenta que não se trata de uma diferença funcional.
Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos etc) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata. (BAKHTIN, 2011, p. 263).
Ao estabelecer uma relação mútua entre gêneros primários e secundários, Bakhtin enfatiza, na verdade, a necessidade de se estudar ou compreender o enunciado a partir de ambas as modalidades. Assim, abordar um determinado grupo de enunciados de um dado gênero secundário requer, também, considerar os gêneros primários que o formaram. Essa mutualidade é fundamental na problematização do monomito, um gênero inicialmente primário e localizado nas sociedades arcaicas, mas que, como veremos, se manifesta através de enunciados secundários tão contemporâneos quanto alguns gêneros de diversos produtos da cultura de massa (tais como cinema, publicidade ou jornalismo).
É importante salientar, também, que a comunicação, estabelecida através dos gêneros, revela duas questões importantes. A primeira, argumenta Sobral (2009) é sobre a sua permanência no fluxo da mudança, ou, noutro ponto de vista, sua mutabilidade no âmbito da estabilidade. Dessa forma, a escolha de determinado gênero, devido a sua estabilidade, opera inevitavelmente uma mudança sutil no mesmo. "Assim, formas de subjetivação e apropriação do mundo, dependentes das relações sociais no âmbito de cada esfera de atividade, os gêneros se alteram a cada uso seu, ainda que mantenham um núcleo que os definem como tais" (SOBRAL, 2009, p. 175).
A segunda questão revela que é na escolha de um certo gênero do discurso que se manifesta a vontade discursiva do falante. Bakhtin (2011) explica:
Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em forma de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume, uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala (BAKHTIN, 2011, p. 283).
A perspectiva da onipresença do gênero nas formas de comunicação considera, é preciso ressaltar, o papel do outro nesse processo. Isso porque o enunciado de um falante não passa impune à compreensão, sempre responsiva, de seu interlocutor. Por compreensão responsiva, Bakhtin (2011) considera o processo pelo qual o ouvinte se posiciona a partir da percepção e compreensão do significado de um determinado enunciado. Nessa posição responsiva, ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, rejeita-o, imita-o, etc. Nem sempre, ressalta-se, a compreensão responsiva é imediatamente expressa, em voz alta ou através de uma atitude. Mas o fato de não terem sido expressas imediatamente ao final do enunciado não excluem sua existência. Para o autor, os gêneros secundários "na maioria dos casos, foram concebidos precisamente para essa compreensão ativamente responsiva de efeito retardado" (BAKHTIN, 2011, p. 272). É fácil perceber, assim, como se opera a síntese do gênero na relação aparentemente contraditória de mutabilidade e permanência, gerando uma circulação narrativa.
Monomito: de rituais de iniciação ao conceito de gênero
É na rota dessa circulação que se pode achar o caminho pelo qual o monomito, enquanto gênero primário baseado no ritual de iniciação, se transmutou em gênero secundário. É esse aspecto de permanência mutável tão próprio aos gêneros que o paradigma do herói se utiliza e faz com que hoje, possa ser verificado em enunciados tão diversos quanto no relato de um paciente de psicanálise ou num roteiro de cinema.
Como já vimos anteriormente, a jornada do herói é a estrutura narrativa que conta a história de uma transformação, de um rito de iniciação, efetivando a passagem para a vida adulta (separada da mãe e próxima ao pai) nas sociedades arcaicas. Mas, como falar em iniciação na contemporaneidade, argumenta Campbell (2007), se há um pathos em nossa sociedade cujo principal objetivo não é envelhecer, e sim permanecer sempre jovem? O resultado disso, argumenta o autor, é uma crescente ocorrência de neuroses e fixações associadas às "imagens não exorcizadas da infância". Relatos psicanalíticos de Freud e Jung foram selecionados por Campbell (2007) para ilustrar como, no processo de emancipação do paciente, o simbolismo da iniciação é produzido nos sonhos. "Ao que parece, há nessas imagens iniciatórias algo que, de tão necessário para a psique, se não for fornecido a partir do exterior, do mito e do ritual, terá de ser anunciado outra vez, através do sonho, a partir do interior" (CAMPBELL, 2007, p. 22).
Nos roteiros de cinema, a presença do herói é ainda mais eloquente. Uma prova disso foi o trabalho desenvolvido pelo roteirista Cristopher Vogler, que na década de 1990 escreveu, inspirado na obra de Joseph Campbell, A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas. O documento, de cerca de 20 páginas, tinha por objetivo orientar jovens roteiristas iniciantes nos estúdios Disney. A fórmula, completamente estruturada no monomito, foi tão bem-sucedida que a indústria cinematográfica passou a chama-la de Paradigma Disney. Também na sétima arte, a saga Star Wars é tributária do paradigma do herói. George Lucas, roteirista e diretor da série, foi aluno de Campbell e buscou na estrutura mítica a base da história do personagem principal: Lucas Skywalker. O próprio Campbell reconhece essa influência, quando afirma que o filme "O retorno de Jedi" trata de uma situação típica do monomito: a reconciliação. Nesse caso, do personagem principal com seu pai, até então somente conhecido por ser seu arquinimigo, Darth Vader (CAMPBELL, 2008, p. 142).
Retornamos a Bakhtin (2011) para compreender o processo pelo qual, mesmo separados por tempo e espaço tão amplos, um relato psicanalítico ou um roteiro de desenho animado guardam semelhanças e sintonias tão sutis quanto diferenças tão perceptíveis entre si e com relatos de iniciação de neófitos em tribos Persas, cuja tradição data de séculos, quiçá milênios, por exemplo. Para o autor,
A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto é, sobre um determinado gênero do discurso, guia-nos no processo do nosso discurso. A ideia do nosso enunciado em seu conjunto pode, é verdade, exigir para sua realização apenas uma oração, mas pode exigi-las em grande número. O gênero escolhido nos sugere os tipos e os seus vínculos composicionais (BAKHTIN, 2011, p. 286).
Se tomarmos o monomito como um gênero secundário, composto como todo gênero secundário o é, por um gênero primário inicial (os rituais de iniciação), é possível perceber a delimitação que o paradigma do herói cria ao oferecer situações típicas. É bom lembra que numa estrutura monomítica, há fases e personagens que se sucedem de forma a conduzir o herói por sua jornada. O mesmo ocorre com o gênero, uma forma típica de enunciado. Nele, a palavra ganha também uma expressão típica. "Os gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas" (Bakhtin, 2011, p. 293).
Considerações Finais
Diante das discussões apresentadas no curso deste trabalho, algumas considerações podem ser estabelecidas. A primeira delas diz respeito à viabilidade da abordagem do mito pela linguagem, uma vez que se pode falar de um discurso mitológico. Apoiada num campo multidisciplinar, essa abordagem teórica tem como pressuposto a ideia de que o mítico se revela onde se contam histórias. A segunda consideração trata especificamente do monomito como uma forma privilegiada, na atualidade, de narrar o mito. Se, nas sociedades arcaicas, eram os mitos cosmogônicos que se faziam recorrentes, é a história do herói, hoje, que encontra guarida nos diversos aspectos da vida contemporânea (da psicanálise á cultura de massas).
O terceiro ponto a ser considerado é a identificação do monomito como um gênero discursivo e, como tal, constituído por enunciados primários, que remetem aos ritos de passagem e iniciação. Nessa perspectiva, o monomito se enquadraria no gênero de tipo secundário (próprio de culturas mais complexas, amplamente mediadas) e segue um ritmo que sintetiza permanência e mutabilidade. Ou seja, ao mesmo tempo em que possui estabilidade para se valer como forma de comunicação possível, está aberto á contribuição individual não só do falante, em seu projeto discursivo, mas também do interlocutor, em sua atitude responsiva.
Por fim, é preciso destacar a capacidade do mito de elaborar contradições: nada X tudo; mudança X permanência; sagrado X profano; verdade X mentira, etc. Essa capacidade de síntese dá ao mito um lugar privilegiado para problematizar questões fundamentais para a sociedade contemporânea, questões como a linguagem, a psicanálise, a ideologia e a mídia, entre outros.
Referências Bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: HUCITEC, 2006.
BARTHES, Roland. Mudar o próprio objeto In: LUCCIONI, Gennie; BARTHES, Roland; ROMNOUX, Clemence et al. Atualidade do Mito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977.
BRANDÃO, Helena H Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Editora Unicamp, 2004.
CAMPBELL, Joseph. Mito e Transformação. São Paulo: Editora Ágapa, 2008.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Editora Cultrix/Pensamento, 2007.
DELREUELLE, Edouard. Metamorfoses do Sujeito. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
SOBRAL, Aldail. Estética da Criação Verbal In: BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito & Pensamento entre os gregos. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999.



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