O GÊNERO MÚSICA COMO PRÁTICA SOCIAL: UMA PROPOSTA DE LETRAMENTOS MÚLTIPLOS EM SALA DE AULA

May 28, 2017 | Autor: Mauricio Souza Neto | Categoria: Gêneros Textuais, Ensino Língua Portuguesa, Letramento Crítico
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II Seminário Nacional em Estudos da Linguagem: Diversidade, Ensino e Linguagem

06 a 08 de outubro de 2010 UNIOESTE - Cascavel / PR

O GÊNERO MÚSICA COMO PRÁTICA SOCIAL: UMA PROPOSTA DE LETRAMENTOS MÚLTIPLOS EM SALA DE AULA

SOUZA NETO, Mauricio José de. (UFBA) G1 MENDES, Edleise. (UFBA)2 RESUMO: Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da língua portuguesa, define-se escola como “estabelecimento público ou privado destinado a ensino coletivo”. Na maioria das vezes, a escola visa apenas a ensinar a cultura dominante e, com isso, forma cidadãos reprodutores do discurso que muitas vezes os oprime. É preciso entender a escola como um lugar social de circulação de discursos e sujeitos heterogêneos em interação. Concordamos com Heath (1983) em considerar o professor como etnógrafo, que parte do reconhecimento da bagagem cultural diversificada e da observação dos seus alunos, e de suas práticas sociais, para poder diagnosticar e planejar a melhor abordagem a ser utilizada em sua sala de aula. Assim, entendemos o discurso como capaz de estabelecer relações sociais, (re)produzir valores e criar, reforçar ou (re)afirmar identidades. Por isso, baseamo-nos na noção bakhtiniana de gêneros do discurso, nos conceitos de letramento (SOARES, 1999); de letramentos multissemióticos e dos letramentos críticos e protagonistas (MOITA- LOPES & ROJO, 2004); também dos letramentos múltiplos (KLEIMAN, 1998) ou multiletramentos (ROJO, 2009) para analisar discursivamente letras de duas músicas de pagode baiano. Com isso, pretendemos refletir sobre como o uso de músicas desse gênero pode auxiliar no processo de letramento de alunos de escola pública de Salvador, no nível fundamental, que apresentam dificuldades de desempenho nas práticas de leitura e de escrita. Entre outros aspectos, buscaremos sugerir práticas para a sala de aula que valorizem a cultura local dos aprendizes, ao mesmo tempo em que põem em discussão as representações culturais e identitárias presentes nessas músicas. PALAVRAS-CHAVE: Ensino de língua materna. Gêneros discursivos. Letramentos Múltiplos. Identidade.

1 - Para começar

1

Graduando do curso de Letras Vernáculas com Língua Es trangeira Moderna da Universidade Federal da Bahia (UFBA). 2

Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora de Língua Portuguesa da Universidade Federal da Bahia (UFBA). ISSN 2178-8200

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O interesse principal, a priori, em trabalhar com os gêneros discursivos3 em sala de aula foi o de possibilitar contribuições nos processos de leitura e escrita dos aprendizes. No entanto, o trabalho com gêneros possibilita e exige mais. Essa possibilidade e exigência se dão devido não apenas à abundância dos gêneros existentes, bem como à complexidade dos mesmos. Apesar dessa abundância, o que se tem observado no trabalho com os gêneros discursivos é que a escola tende a privilegiar alguns gêneros e, quase que, esquecer de outros. Também é sabido que devido à confusão entre gênero e tipo alguns professores trabalham com tipo textual como se fossem gêneros4 . Os gêneros discursivos são, segundo Marcuschi (2008, p.155), textos materializados em situações comunicativas recorrentes. [...]São os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas.

A concepção adotada por Marcuschi, que acabamos de mostrar, ancora-se em Bakhtin (1992[1952-53/1979], p. 277-326), para quem os gêneros são vistos como formas verbais de ação social relativamente estáveis materializadas em textos situados

em

comunidades de práticas sociais contextualizadas. Sendo assim, um ensino que se diz ser baseado nos gêneros, mas que, na verdade, visa somente a trabalhá-los de forma a apenas propiciar uma leitura ou uma produção textual superficial, sem com isso levar o aluno a um posicionamento crítico e reflexivo em relação àquilo que lhe está sendo mostrado, não se sustenta mais. A partir de “forças históricas” (op cit) podemos inferir que os gêneros também refletem as relações de poder, já que essas são parte da esfera da atividade humana. Tanto é assim que não é qualquer pessoa que pode proferir uma palestra, não é qualquer pessoa que pode emitir um diploma, e assim por diante. No intuito de formar um aluno mais crítico e reflexivo, é preciso entender a escola como um lugar social de circulação de discursos e sujeitos heterogêneos em interação. Para isso, precisamos também considerar o professor como etnógrafo (Heath, 3

Utilizamos aqui “gêneros discursivos”, segundo a conceituação proposta por Bakhtin (1992[195253/1979], p. 277-326). Não é pertinente, nem produtivo, para este trabalho, a discussão do uso dos termos “gêneros discursivos” e “gêneros textuais”. Assim como Marcuschi (2008, p.154), adotamos “a p osição de que todas essas expressões podem ser usadas intercambiavelmente, salvo naqueles momentos em que se pretende, de modo explícito e claro, identificar algum fenômeno específico.” 4

A esse respeito ver Mendes (2008b, p.167-180) e Marcuschi (2008, p. 154-161) ISSN 2178-8200

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1983), que parte do reconhecimento da bagagem cultural diversificada e da observação dos seus alunos, e de suas práticas sociais, para poder diagnosticar e planejar a melhor abordagem a ser utilizada em sua sala de aula. Outrossim, corroboramos com Mendes (2008a, p.63), pois “é necesário incentivar os aprendizes a reconhecer a língua em suas especificidades não só formais, mas, sobretudo, culturais e contextuais, e também reconhecer-se nela, como sujeito histórico e encaixado em experiência de ser e agir através da língua”. Acreditamos que para esse trabalho ter êxito, para as aulas de língua portuguesa, devemos trabalhar na perspectiva dos gêneros discursivos, já que os gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos que formamos e as comunicações através das quais interagimos. Gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não-familiar.

(BAZERMAN, 2006, p. 23) Não apenas pelo prazer estético proporcionado, bem como pela diversidade de gêneros, orais e escritos, que podem ser produzidos a partir da música, argumentaremos a favor do uso deste gênero em sala de aula. Mais especificamente, nos aproveitaremos do pagode soteropolitano5 , haja vista seu grande alcance, “o que possibilita uma „massificação‟ deste discurso [presente nessas músicas] que pode, por sua vez, provocar (ou incentivar) mudanças nas estruturas sociais” (LUID, 2008, p. 146) e, no caso deste trabalho, devido às suas letras. Pretendemos refletir sobre como o uso de músicas desse gênero pode auxiliar no processo de letramento de alunos de escola pública de Salvador, no nível fundamental, que apresentam dificuldades de desempenho nas práticas de leitura e de escrita. Entre outros aspectos, buscaremos sugerir práticas para a sala de aula que valorizem a cultura local dos aprendizes, ao mesmo tempo em que põem em discussão as representações culturais e identitárias presentes nessas músicas.

5

Fazemos essa distinção aqui porque há uma diferenciação do que se denomina pagode em diferentes lugares do Brasil. “O pagode soteropolitano contemporâneo é um estilo musical híbrido, resultante de um processo que entrelaça diversas esferas culturais e sociais. Ele pode ter sua herança no Samba, mas é claramente influenciado pela Axé Music e, mais recentemente, pelo Hip Hop e pelo Funk . Possui em sua estrutura rítmica e melódica a inclusão de instrumentos percussivos como a bateria, instrumentos d e sopro, instrumentos eletrificados como a guitarra, contrabaixo e teclado, além da influência dos samplers” (LEME, 2003; RODRIGUES, 2006; BARBOSA FILHO, 2009, apud LUID, 2010). ISSN 2178-8200

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2 - Referencial teórico

Para cumprir com os objetivos do ensino fundamental, propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), de capacitar os alunos a:

compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas; . conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país; conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais; perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente; desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania; conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva; utilizar as diferentes linguagens . verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e corporal . como meio para produzir, expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação; saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos; questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação. (BRASIL, 1998, p. 7-8)

o ensino de língua portuguesa teve que cambiar o enfoque na gramática normativa (leiase nomenclaturas e conceitos vagos) para um enfoque no texto, com uma metodologia ISSN 2178-8200

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enunciativa-discursiva, que levasse em consideração as condições de produção desse texto, as diferentes formas de leitura, bem como, em maior instância, a bagagem cultural dos alunos. Interagir através da linguagem é falar algo a alguém, de algum modo, por algum motivo, em um determinado momento, em algum lugar. E as escolhas linguísticas (estilo, léxico, sintaxe, etc.) que são feitas nesse processo não são fortuitas. Elas decorrem da condição de produção do discurso que está se realizando (onde esse discurso está sendo realizado, quem são os interlocutores; suas posições sociais, o grau de conhecimento sobre o assunto abordado que um interlocutor acredita ter e o que acredita que o outro tenha etc.). Assim fica evidente que nenhuma interação se dá no vazio. Não existe palavra “morta”, porque: toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor (BAKHTIN, 2002, p.113)

O ensino de uma determinada língua é uma interação, um diálogo, entre culturas. E o ensino de língua materna não é diferente disso, haja vista essa língua unir culturas diferentes, num mesmo território nacional. E uma vez que estamos falando de culturas diferentes, teremos maneiras diferentes de ser e agir através dessa mesma língua; se tivermos maneiras diferentes de ser e agir significa que nós, enquanto professores, teremos que ter maneiras diferenciadas de ensinar essa língua. A professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, em uma conversa em sala de aula, nos contou que a sua filha, um dia, ao saber que ela era professora de português, pergunta: por que a senhora ensina uma coisa que todo mundo já sabe? Se elaborarmos uma análise, ou possível resposta, a essa pergunta podemos encontrar uma saída simples, mas não simplista: estamos ensinando a mesma língua, mas não a mesma linguagem. Mas como alcançar esses alunos, heterogêneos e híbridos, através da linguagem? Mais uma vez, uma resposta simples, mas não simplista: falando a sua linguagem.

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Isso significa que devo falar as mesmas gírias, expressões e me comportar como eles? Não. Significa que temos que “adentrar” nos seus mundos, ao mesmo tempo em que os inserimos em outros, sem com isso deixarmos de ter nossas identidades, nem eles a deles. De que forma posso alcançar esse objetivo? Há vários caminhos para se chegar nele. O que defendemos aqui se baseia na concepção dos letramentos múltiplos, partindo da perspectiva dos gêneros discursivos.

3 - Uma proposta de letramentos múltiplos

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário fazer emergir alguns conceitos. O primeiro deles é o de letramento. Utilizamos aqui a concepção de Magda Soares (1999, p. 47) de letramento como sendo “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita”. Ora, se temos diferentes pessoas de diferentes culturas, como faremos o diálogo entre essas pessoas e essas culturas, com o letramento, no singular? O reconhecimento da heterogeneidade deu origem a noção de letramentos. Nessa perspectiva, partimos para os letramentos múltiplos que, segundo Rojo (2009, p.107), fazem com que a escola deixe “de ignorar ou apagar os letramentos das culturas locais de seus agentes (professores, alunos, comunidade escolar), colocando-os em contato com os letramentos valorizados, universais e institucionais”, como podemos ver no esquema elaborado pela autora:

(ROJO, 2009, p.115) Assim, seguimos com a nossa proposta de letramentos múltiplos e também multissemióticos, uma vez que esse gênero é o “resultado da conjugação entre a ISSN 2178-8200

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materialidade verbal e a materialidade musical (rítmica e melódica)” (COSTA, 2003, p. 18). A música talvez seja o gênero que tenha maior alcance entre os alunos, como podemos perceber quando perguntamos qual o passatempo favorito deles, cuja resposta quase sempre é ouvir música. Sendo assim, devemos unir o útil ao agradável. A escolha do estilo musical pagode se dá devido ao seu grande alcance, sobretudo entre os mais jovens, e é visto pelo senso comum como pertencente aos negros e pobres. Talvez isso explique o porquê das letras dessas músicas, embora não todas, abarquem esses temas. Se for assim, nossa escolha está justificada, sendo os alunos provenientes da rede pública, cuja grande maioria pertence aos níveis sociais e hierárquicos desprivilegiados da sociedade.

3.1 - Da escolha das músicas

Escolhemos as músicas que seguem pelos temas abordados em suas letras. Esses temas são o que as aproxima da realidade vivida pela maioria dos alunos da rede pública. a) Ser negão é massa Rapaz, se olhe no espelho, repare o cabelo, compare o nariz: sua origem é África, mesmo que não queira, todo mundo diz. Se assuma, ser negão é massa! Se assuma, ser negão é raça! Olha que eu gosto do negro porque o negro me lembra você (2x). Rapaz, se olhe no espelho, repare o cabelo, compare o nariz: sua origem é África, mesmo que não queira, todo mundo diz. Se assuma, ser negão é massa! Se assuma, ser negão é raça! Passe lá no Ilê: tem um bocado igual a você. Passe lá no Olodum: tem um bocado igual a você. Filhos de Ghandy: tem um bocado igual a você. No Badauê: tem um bocado igual a você. Se assuma, ser negão é massa! Se assuma, ser negão é raça!

b) Firme e forte Na encosta da favela "tá" difícil de viver, e além de ter o drama de não ter o que comer. Com a força da natureza a gente não pode brigar, o que resta pra esse povo é somente ajoelhar, e na volta do trabalho a gente pode assistir, em minutos fracionados, a nossa casa sumir. Tantos anos de batalha junto com o barro descendo e ali quase morrer e continuar vivendo. Êee chuá chuá, ê chuá chuá, Temporal que leva tudo, mas minha fé não vai levar. Êee chuá chuá, ê chuá chuá, ô meu Deus dai-me força pra outra casa levantar. Eu "tô" firme, forte nessa batalha. Eu "tô" firme, forte. Não fujo da raia.

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O que podemos observar em ambas as letras é a riqueza da cultura local dos aprendizes, aquilo que lhes é próximo. A realidade deles vista não de forma pejorativa, como faz o senso comum, nem de forma sensacionalista, como fazem alguns programas televisivos.

3.1.1 - A questão da representação

Regina Dalcastagnè (2005, p. 43), ao abordar o tema da representação dos marginalizados na literatura brasileira contemporânea, afirma que ela pode ser concebida a partir de duas visões: uma de dentro e uma de fora; sendo que a visão de fora pode ser subdividida entre a visão exótica e crítica. Das duas músicas escolhidas para esse trabalho, a segunda, Firme e forte, da banda Psirico, claramente aponta que estamos diante de uma visão de dentro, ou seja, a voz que elabora o discurso por trás da música é uma pessoa “da favela, do gueto”, enquanto que a primeira, Ser negão é massa, da banda SAM HOP, não nos mostra isso claramente 6 . Para além de ficar apenas no campo teórico, essas dúvidas, imprecisões de pensamento, devem ser trabalhadas em sala, em interação com o aluno. Observar a representação do outro ou de si mesmo é de extrema importância para a capacitação desse aluno como cidadão, como sugerem os PCNs, porque a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos [...]. A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais podem falar.

(WOODWARD, 2000, p.17) Woodward toca em um ponto importante: a identidade. Estamos aqui falando das “identidades coletivas”. Essas identidades aqui são postas como representações culturais. Sendo a escola um local onde essas identidades (não só coletivas como 6

Para uma análise mais detalhada ver Luid (2010). ISSN 2178-8200

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individuais) são formadas, cabe ao professor elaborar seqüências didáticas que visem a estudar/investigar essas representações (identidades), de forma que levem o aluno não apenas a descobrir se aquilo que está sendo narrado está de acordo com a sua realidade, mas também a colaborar para a sua formação/afirmação identitária.

3.1.2 - Os temas abordados

Podemos ver que em Ser negão é massa são abordados temas relativos à etnicidade, bem como à afirmação de identidades; não precisa ser europeu nem norteamericano para ser massa, não adianta pintar nem alisar o cabelo, pois a origem é África. Em Firme e forte é a realidade do povo que mora nas encostas das favelas, a sua capacidade de superação/ resistência, que estão sendo narradas. A seguir, baseados na nossa própria proposta de letramentos múltiplos, elaboramos uma seqüência didática que visa não só à produção textual, mas também aos letramentos críticos e protagonistas (MOITA- LOPES & ROJO, 2004, letramentos esses que, segundo os autores, possibilitam trabalhar em sala de aula com uma visão de linguagem que fornece artifícios para os alunos aprenderem, na prática escolar, a fazer escolhas éticas entre os discursos em que circulam. Isso possibilita aprender a problematizar o discurso hegemônico da globalização e os significados antiéticos que desrespeitem a diferença. (p. 37-38)

4 - Uma sequência didática

Partindo para o primeiro objetivo do nosso trabalho, de refletir sobre como o uso de músicas desse gênero pode auxiliar no processo de letramento de alunos de escola pública de Salvador, no nível fundamental, que apresentam dificuldades de desempenho nas práticas de leitura e de escrita, utilizaremos o modelo de uma seqüência didática de Doltz, Noverraz e Schneuwly (2010, p.83). Os autores conceituam uma seqüência didática como “um conjunto de atividades escolares, organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (p. 82) e trazem um modelo: ISSN 2178-8200

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(DOLTZ et al., 2010, p.83) Seguindo esse modelo, a “apresentação da situação” pode ser subdividida em a) Apresentação de um problema de comunicação, onde teremos que apresentar um problema de comunicação que deve ser resolvido e também escolher o gênero discursivo que pretendemos trabalhar de forma a resolver esse problema, como uma crônica,

por exemplo.

Lembrando

que um texto,

com finalidade

comunicativa, é escrito de alguém para alguém, temos que endereçar essa crônica, aos leitores de um blog, por exemplo. Para sintetizar: os alunos precisam elaborar uma crônica, cada um, para ser postada em seus blogs. b) Preparação dos conteúdos dos textos a serem produzidos. Nesse momento, podemos nos valer primeiramente da música, como input, para utilizar um outro gênero

discursivo

que

ajude

na

interação,

na

construção/partilha

do

conhecimento, o debate, por exemplo, como in-output. Com a palavra input estamos pressupondo que haja uma leitura dessas músicas em sala de aula. A partir dessa leitura, o professor deverá trabalhar concepções sobre a negritude e sobre o gueto, abordar os temas concernentes à identidade, bem como explicar o próprio conceito da identidade, de forma clara e objetiva. Nesse debate devem ficar explícitos os temas gerais e específicos que eles poderão abordar em suas crônicas. Na “produção incial”, os alunos já devem ter organizado seus textos de forma a dar uma ideia do seu projeto final. É a partir daí que começa o trabalho com os “módulos”. É em cima dessa produção inicial que o professor vai trabalhar os problemas encontrados nela, de forma a levar o aluno a superá-los. O que nos leva à “produção final”, onde o aluno finaliza a sequência, pondo em prática aquilo que lhe foi

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discutido durante todo o processo. É nesse momento que cabe ao professor avaliar o aluno em seu progresso.

5 - Considerações finais

O presente trabalho teve como objetivo mostrar como o gênero música pode auxiliar os alunos nos processos de letramentos locais, mostrando para eles que onde eles vivem também há produção de cultura e essa cultura não é melhor nem pior que outra; também apresentou uma sequência didática que, tomando esse gênero como pano de fundo, pode ajudar tanto o aluno quanto o professor nas aulas que visem à leitura e produção de textos, formando assim leitores e escritores mais críticos e comprometidos com a sociedade. Para isso, nos valemos dos conceitos de gêneros discursivos, de letramento,

de

letramentos

múltiplos

ou

multiletramentos,

de

letramentos

multissemióticos e letramentos críticos e protagonistas, também nos baseamos no objetivo dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o aluno de ensino fundamental. Como o título sugere, estamos apresentando apenas uma proposta de letramentos múltiplos em sala de aula. Essa proposta surge a partir da observação da necessidade que há hodiernamente de trabalharmos a realidade do aluno, de forma a sermos cuturalmente sensíveis, também de trabalharmos com a língua não só em seu aspecto formal, mas também em seu aspecto cultural. Para finalizar, Nietzsche (2002, p. 15) nos ensina que “a palavra grega que designa „sábio‟ prende-se etimologicamente a sapio, eu saboreio”. Portanto, devemos encontrar práticas de linguagem que levem o aluno a saborear, cada vez mais, ser e agir através da língua.

Referências bibliográficas BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992[195253/1979]. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 10. Ed. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2002.

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