O Gênero: sensações, contruções e identidade

June 19, 2017 | Autor: Márcia Rocha | Categoria: Gender Studies, Gender Identity, Women and Gender Studies, Crossdressing, Travesti, Gender Expression
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CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO
Campus Pio XI
Márcia Rocha
(Marcos Cesar Fazzini da Rocha)






O GÊNERO: Sensações, construções e identidade













São Paulo
2015
Marcos Cesar Fazzini da Rocha
(Nome social: Márcia Rocha)





O GÊNERO: Sensações, construções e identidade





Trabalho apresentado para avaliação parcial na disciplina de Metodologia Científica do curso de pós-graduação Lato Sensu em Educação Sexual do Centro Universitário Salesiano de São Paulo.
Orientador: Prof. Henrique Kopke Filho.




















SÃO PAULO
2015

RESUMO


Este trabalho é uma análise aprofundada sobre gênero, baseado em pesquisas de campo publicadas, dados científicos e experiências pessoais, buscando esclarecer o que é o chamado gênero, suas manifestações sociais, influências coletivas e como se origina em todos os indivíduos, baseando-se em estudos sobre pessoas transgêneras. Para tal, faz uma comparação entre grupos considerados distintos, com foco em travestis e crossdressers, avaliando dados subjetivos e de observação colhidos de indivíduos pertencentes a esses coletivos para esclarecer questões ainda obscuras sobre identidade, sensações de identificação e expressões de gênero. Este trabalho também tenta demonstrar como operam forças de opressão e controle social.

Palavras-chave: Gênero. Identidade. Expressões. Controle social.






























ABSTRTACT

This is an in depth gender analysis based on published field research, scientific data and personal experience. It aims to clarify what is generally referred to as gender, its social manifestations, collective influence, how it starts and operates in each person, based on transgender people studies. To reach this goal, it makes a comparison between groups previously viewed as distinctive, focusing on transvestites and crossdressers, evaluating subjective and observational data, collected from subjects belonging to these groups to clarify still unknown issues relating to identity, sense of gender identifications and gender expressions. This paper also tries to show how social control and oppressive forces operate.
 
Key-words: Gender, Identity, Expression, social control.
 


























O GÊNERO

GÊNERO: DEFINIÇÃO, EXPLICAÇÃO E EXEMPLOS

Primeiramente, é essencial para o desenvolvimento do presente trabalho, a compreensão daquilo que chamamos "gênero", em diversas áreas científicas. Para tal, tentaremos esclarecer tais conceitos, determinando aquele com o qual trabalharemos.

Definições

Dicionário Houaiss - 13 soc construção cultural das diferenças sexuais entre homens e mulheres
Dicionário Aurélio - 13 Conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente em relação ao sexo dos indivíduos.
2. b. Os aspectos sociais ou comportamentais da identidade sexual: Estudos de gênero (tradução nossa)
Disponível em: http://www.thefreedictionary.com/gender Acesso em: nov. 2015.

Como exemplo de pensamento contrário aos estudos de gênero, aponto Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, o qual afirma que:
A palavra "gênero", em seu sentido ordinário, é apenas uma forma delicada de expressar o "sexo" biológico das pessoas. Para o movimento feminista, no entanto, a palavra tem outra conotação: a novilíngua inventada pelo Gender Establishment fixa o termo gênero como um papel socialmente construído, algo não dado biologicamente e cuja "identidade" cada um é responsável por forjar. Tratar-se-ia, portanto, de uma coisa distinta do que comumente se chama "sexo".
Disponível em: https://padrepauloricardo.org/episodios/sexo-ou-genero Acesso em: nov. 2015.

Entretanto, segundo Marcos Benedetti:
As diferenças qualitativas entre o masculino e o feminino, "ser homem" e "ser mulher", há muito têm sido objeto de estudo da antropologia [...] que versavam sobre as características sociais e culturais dos homens e das mulheres bem como sobre os processos de aprendizagem dessas características [...] As várias reflexões e comparações realizadas pela antropologia em diferentes sociedades procuravam demonstrar o caráter cultural e social das concepções e práticas relacionadas ao masculino e feminino, em contraposição aos paradigmas biologizantes e naturalizantes. (Benedetti, 2005, p. 90).
O gênero deve ser compreendido então como uma lógica social que institui significado a corpos, práticas, relações, crenças e valores. Ainda que seja variável e diverso culturalmente, parece fazer pare de um princípio que confere sentido à realidade em que vivemos. Mais do que um fator cultural de diferenciação, deve ser entendido como as próprias condições de produção da lógica que institui as diferenças entre o masculino e o feminino. O Gênero faz parte da própria cultura e não é somente instituído por ela, assim como o corpo não é instituído pela cultura, mas, antes, produz e dá sentido à cultura. (Benedetti, 2005, p. 94).

Tentemos de forma simples e geral, compreender essa distinção de conceitos: Do ponto de vista biológico, em todas as culturas e épocas, as mulheres em geral apresentam características comuns como menstruar e engravidar, o que seriam aspectos biológicos da fêmea humana enquanto homens têm, na média, uma estrutura física, óssea e muscular mais avantajada. No entanto, há comportamentos nitidamente distintos entendidos como sendo femininos ou masculinos em diversas culturas e épocas, como usar sapatos de salto alto, saias ou brincos por exemplo. Enquanto que a exposição pública dos seios pelas mulheres era considerada algo aceito por muitas civilizações e ainda o é em algumas culturas atuais, em outras tal atitude seria severamente punida. Para ilustrar até onde o "gênero" culturalmente entendido enquanto masculino ou feminino, é determinante de comportamentos e valores sociais que afetam diretamente a vida cotidiana das pessoas, citamos como exemplo o caso de Malala Yousafzai, prêmio Nobel da Paz, que descreve no livro Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo Talibã, Editora Schwarcz S.A (Companhia das Letras), 2013, como levou um tiro no rosto por defender o direito de meninas estudarem no Paquistão, o que é condenado por grupos religiosos.
Outro exemplo pode ser retirado da matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, no dia 30 de outubro de 2015, p A13 religião, onde no segundo parágrafo lê-se que:
Na verdade, a Arábia Saudita aprova o fundamentalismo, a discriminação religiosa, a intolerância e a opressão das mulheres. As sauditas não só estão proibidas de conduzir um veículo, mas segundo alguns clérigos não devem nem usar cinto de segurança nos carros porque contornos de seus corpos podem ficar à mostra.

Dessa forma, percebemos com clareza como nesse caso, valores religiosos, morais e de gênero colocam-se como mais importantes do que a própria vida da mulher, que deve esconder o corpo a qualquer custo naquela cultura, mesmo que isso possa colocar em risco sua própria vida.

Em outro exemplo mais próximo a nós, trazemos a matéria publicada em 03 de Novembro de 2015 no Jornal A Folha de São Paulo por Juliana Coissi com o título Mulheres têm partes do corpo mutiladas por ex-companheiros, que nos traz:
A catarinenseMaria de Fátima, 49, não respira pelo nariz, não vê e não sorri. A paranaense Kelly, 20, mal ouve. A gaúcha Gisele, 22 está sem andar. A alagoana Jane, 31, quase não consegue comer ou escovar os dentes sozinha.
Essas brasileiras estão unidas por uma tragédia em comum: tiveram decepados mãos, pés, dedos, seios ou orelhas, a pele rasgada por facão ou o rosto desfigurado por namorados e ex-maridos.
Os castigos extremos no Brasil, que remetem a ataques registrados na Índia, no Afeganistão e em países do Oriente Médio, são, segundo especialistas, tentativas simbólicas de punição à mulher que contrariou o homem.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/11/1701372-mulheres-tem-partes-do-corpo-mutiladas-por-ex-companheiros.shtml Acesso em: nov. 2015.
Aprofundando-nos um pouco na questão, percebemos ações mais sutis dos valores sociais de gênero sobre a vida das brasileiras, como na matéria publicada em 26 de outubro de 2015 no jornal O Estado de São Paulo com o título Por que as mulheres evitam as carreiras em tecnologia, traduzida por Anna Capovilla do texto original de autoria de Eileen Pollack, publicado no jornal The New York Times:

As empresas de tecnologia estão conscientes do problema de gênero e, enfim, estão adotando medidas para resolvê-lo. Mas de onde sairão novos funcionários se as mulheres não escolhem carreiras em ciências da computação ou engenharia? ... Fiquei fascinada, mas não surpresa, em saber que muitas jovens evitam esses cursos porque temem não se encaixar na carreira após conseguirem se formar.

Ora, ao verificarmos como as regras sociais divergem sobre os papeis que homens e mulheres exercem em diferentes culturas, os estudos de gênero partiram dessas diferenças culturais mais evidentes para se aprofundarem em outras questões menos óbvias, porém não menos relevantes, buscando compreender até mesmo os significados culturalmente construídos do que é "ser homem" ou "ser mulher":
Simone de Beauvoir escreveu que "Ninguém nasce mulher: Torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade". (Beauvoir, S. O segundo sexo Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980).
Judith Buthler, em sua obra Problemas de Gênero, analisando tal afirmação, interpreta que:
Para Beauvoir, nunca se pode tornar-se mulher em definitivo, como se houvesse um telos a governar o processo de aculturação e construção. O gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. (Butler, 2015, p. 69).

Mais adiante, a mesma autora afirma que:

como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com consequências punitivas. Os gêneros distintos são parte do que "humaniza" os indivíduos na cultura contemporânea; de fato habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. (Butler, 2015, p. 241)

E vai além e descreve a mesma autora que:

"Embora existam corpos individuais que encenam essas significações estilizando-se em formas do gênero, essa "ação" é uma ação pública... a performance é realizada com o objetivo estratégico de manter o gênero em sua estrutura binária – um objetivo que não pode ser atribuído a um sujeito, devendo, ao invés disso, ser compreendido como fundador e consolidador do sujeito". (Butler, 2015, p. 242)


Realmente, até esse ponto das notáveis afirmações da autora, não há o que duvidar, como verificamos nos exemplos reais acima descritos.
O foco principal do presente trabalho, no entanto, é justamente buscar compreender e demonstrar como acontece essa construção do "eu" do indivíduo com relação ao gênero, questionando a autora quanto às afirmações:

Significantemente, se o gênero é instituído mediante atos internamente descontínuos, então a aparência de substância é precisamente isso, uma identidade construída, uma realização performativa em que a plateia social mundana, incluindo os próprios atores, passa a acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença. O gênero também é uma norma que nunca pode ser completamente internalizada: "o interno" é uma significação de superfície, e as normas do gênero são afinal fantasísticas, impossíveis de incorporar. Se a base da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos ao longo do tempo, e não uma identidade aparentemente sem suturas, então a metáfora espacial de uma "base" é deslocada e se revela como uma configuração estilizada... Entretanto, se os atributos de gênero não são expressivos mas performativos, então constituem efetivamente a identidade que pretensamente expressariam ou revelariam. A distinção entre expressão e performatividade é crucial. Se os atributos e atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade preexistente pela qual um ato ou atributo possa ser medido; não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou distorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora. (Butler, 2015, pg. 242).
(grifos nossos)

Percebemos que aquela autora coloca um condicionamento das próprias afirmações com vários "se", grifados pela presente autora, exatamente o que buscaremos provar de forma científica, para verificar os fundamentos de outra afirmação feita:

Não há eu que seja anterior à convergência ou que mantenha uma "integridade" anterior à sua entrada nesse campo cultural conflituoso. Há apenas um pegar as ferramentas onde elas estão, sendo esse próprio "pegar" facultado pela ferramenta que ali está. (Butler, 2015, pg. 251).

Como prova viva de que há fundamento nas teorias de gênero, as pessoas transgêneras por sua própria existência e experiência, denunciam essa realidade ainda que não intencionalmente, por gravarem em seus próprios corpos essas marcas do gênero de forma aparentemente contrária ao que seria natural. Procuraremos investigar e demonstrar adiante, de forma não apenas empírica, mas totalmente científica, que não se trata de querer negar os aspectos biológicos dos seres humanos machos e fêmeas, os quais existem e devem ser levados em conta, mas justamente de apontar como toda a construção do indivíduo socializado enquanto "homem" ou "mulher" acontece, se é ou não é determinada por esses aspectos biológicos, e em que medida, bem como apontar a razão que leva as pessoas transgêneras a serem punidas de forma injusta, exatamente por trazerem em si mesmas essas denúncias, possíveis desestabilizadoras de estruturas hierárquicas de poder, inclusive para as pessoas cisgêneras.

Antes de prosseguir, é preciso esclarecer que estaremos tratando de grupos com nomenclaturas ou "identidades políticas", em especial travestis e crossdressers, mas consideramos essas identidades ou nomenclaturas meramente como um agrupamento de características comuns de certos indivíduos, sendo importante ressaltar que uma identidade ou "rótulo" não define um indivíduo na totalidade de seus atributos. Assim, ao utilizarmos os termos "travesti", "transexual" ou "crossdresser" no presente trabalho, nos referimos a indivíduos que tem em comum uma determinada característica semelhante, geralmente subjetiva, que de forma alguma serve como instrumento linguístico para definição de qualquer pessoa.
Ainda, para efeitos do presente, utilizamos o termo "transgênero" como "guarda-chuva", ou termo genérico, sempre que nossa intenção for de agrupar todas as pessoas gênero divergentes, em razão da existência de inúmeras identidades e nomenclaturas ao redor do mundo, como será demonstrado. Consideraremos que o termo "Transgênero" refere-se à condição onde a expressão de gênero e/ou identidade de gênero de uma pessoa é diferente daquelas atribuídas socialmente ao gênero designado no nascimento, coadunando com a definição da American Psychological Association (APA), segundo a qual:
Transgênero é um termo "guarda chuva" para pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero ou comportamento não está em conformidade com aqueles tipicamente associados com o sexo que lhes foi atribuído ao nascimento. Identidade de gênero se refere à sensação interna que uma pessoa tem de ser masculino, feminino ou algo diverso; expressão de gênero se refere ao modo como a pessoa expõe essa identidade de gênero aos outros através de comportamentos, roupas, estilos de cabelo, voz ou características físicas. "Trans" é, por vezes, usada como forma reduzida para "transgênero". Ainda que transgênero é geralmente um bom termo a ser usado, nem todas as pessoas cuja aparência ou comportamento é gênero discordante irá se identificar como uma pessoa transgênera. As formas como as pessoas transgêneras são tratadas pela cultura popular, academia e ciência, estão em constante mudança, particularmente na medida em que aumentam a consciência, o conhecimento e a abertura sobre pessoas transgêneras e suas experiências.
(Tradução nossa)
Texto original disponível em: http://www.apa.org/topics/lgbt/transgender.aspx Acesso em: nov. 2015.

Conforme descrito por Marcos Benedetti, há varias nomenclaturas para o fenômeno transgênero em diversas culturas:

As transformações de gênero firmam-se cada vez mais como um tema/campo consolidado no interior da antropologia. As Berdaches da América do norte [...] eram indivíduos que, nascidos homens, passavam a adotar vestimentas e comportamentos femininos".
Continuando ainda na página seguinte:
De fato, pessoas que [...] Foram documentadas por antropólogos em várias sociedades primitivas [...] como exemplos: O caso das mahu do Taiti[...] o das xanith de Omã[...] o das fa'afafine de Samoa[...] o das panema entre os guaiaqui. (Benedetti, 2005, p 21-22).
Aproveitamos para apontar como outros exemplos de pessoas transgêneras nos dias de hoje e dentro do conceito acima, as chamadas "Ladyboys" da Thailândia, Muxes do México, Hijras da Índia, travestis, transexuais e crossdressers em diversos países do mundo, incluindo o Brasil. Ainda podemos considerar como transgêneros, grupos que recentemente se denominam "Gender Queer" e "gender fucker" considerando-se inadequados às identidades de gênero descritas.
Embora possamos vir a mencionar outras "identidades" no presente trabalho, dentre todas abarcadas pelo termo "transgênero", iremos focar primordialmente nos grupos denominados "travestis" e "crossdressers", raramente mencionando indivíduos denominados transexuais. A razão para tal é justamente o fato de que transexuais em geral têm um sentimento de adequação maior ao binarismo "masculino" e "feminino", o que torna esse grupo menos qualificado para nossos objetivos, embora nossas demonstrações e conclusões os incluam completamente. Apenas para demonstrar essa distinção desse grupo de todas as demais que serão apresentadas nesse trabalho, transcrevo o relato de João W. Nery em seu livro Viagem Solitária: memórias de um transexual trinta anos depois, Editora Leya, 2011, p 32:
O que realmente gostava nunca podia ser claramente expresso. Numa espécie de revolta, cansado de dissimular, andava sujo, com roupas largas e despencadas. Quando podia, não penteava os cabelos nem escovava os dentes. Era um ser sem vaidade. Só me sentia bem quando de shorts e sem camisa. Não compreendia bem o fato de ser obrigado, nas refeições, a colocar a camisa para sentar à mesa, enquanto papai estava livre para fazer tal opção. "Será porque era o dono da casa?" Preferi pensar assim. Meu sentimento em relação a papai era ambivalente. Eu o adorava, mas, ao mesmo tempo, ficava decepcionado porque não me incentivava a imitá-lo em nada. No dia em que lhe contei que gostaria de ser piloto, ele respondeu:
-Aeromoça é uma péssima profissão.
Não conseguia entender por que me tratavam como se fosse uma menina!Faziam questão de me ver como nunca fui. Sabiam que não gostava disso! Por que insistiam em me entristecer, em me ridicularizar? Algo estava errado. Restava saber se com eles ou comigo.

Definições de transexualidade e travestilidade

Definições segundo a medicina:

CID-10 - Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

F64 Transtornos da identidade Sexual

F64.0 Transexualismo
Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.
F64.1 Travestismo bivalente
Este termo designa o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma parte de sua existência, de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais permanente ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta não se acompanha de excitação sexual.
Transtorno de identidade sexual no adulto ou adolescente, tipo não-transexual
Exclui:
travestismo fetichista (F65.1)
(Kogut, 2006, p. 169)

Cabe ainda abordar outro ponto: as classificações psiquiátricas do DSM-IV e CID-10. Estas consideram o travestismo como um "distúrbio de identidade de gênero" e trazem sub-categorias quanto aos tipos de travestismo (fetichista e intermitente) que parecem pouco adequadas ao fenômeno. Diversos autores entre os quais se destacam Vern e Bonnie Bullough vêm, há algum tempo, propondo tal revisão. Talvez, tal qual, a homossexualidade foi retirada da categoria de patologia, também o crossdressing deveria sê-lo. Igualmente, o uso do termo fetichista nem sempre parece adequado.
(Kogut, 2006, p 148)
(Na versão mais atual, o DSM-V deixou de considerar um transtorno, passando à ser considerada Disforia de gênero – Nota nossa)

Definições de Crossdresser

De forma rápida, poder-se-ia dizer que são homens que se vestem de mulher, ou que efetivam o desejo de se vestir com roupas e acessórios femininos, embora o crossdressing seja algo um tanto mais complexo que isso. (Vencatto, 2009, pg 2).

O travestismo foi cunhado pelo médico alemão Mangus Hirschfeld em 1910, para designar aqueles que, independentemente de suas inclinações sexuais, têm prazer em vestir roupas do sexo oposto. Ao longo do tempo, contudo, o termo passou a agregar significados pejorativos até tornar-se associado à prostituição e eventualmente a comportamentos anti-sociais. Assim, procurando se desvincular do estigma do termo, muitos (sic) travestis preferem, atualmente, se autodenominar pelo termo crossdresser [...] advertindo ao leitor que ambos os termos são equivalentes. (Kogut, 2006, pg. 9).

O que nos levou a selecionar esses dois grupos pesquisados, travestis e crossdressers, foi justamente o fato de não se considerarem completamente nem homens nem mulheres, embora exista uma identificação primária com o feminino, cuja expressão é construída posteriormente, como veremos adiante. Tais grupos evidenciam claramente as construções de expressões de gênero em seus depoimentos, bem como as "sensações" de identificação que trazem em si. A exploração de tais evidências e distinções são exatamente os instrumentos que precisamos para o presente trabalho. Primeiramente, demonstrarei as principais características desses dois grupos, apontando suas diferenças e semelhanças, através de relatos de pesquisadores que os examinaram e depoimentos pessoais dos pesquisados. Minha intenção nesse momento é demonstrar que, embora ambos os grupos não se identifiquem completamente, possuem mais em comum do que pretendem assumir:
PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE TRAVESTIS E CROSSDRESSERS

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Pela própria característica do grupo, em sua quase totalidade, crosdresses levam uma vida dupla, não sendo assumidas publicamente como as travestis, permanecendo assim no "armário" a maior parte do tempo:

Como relatam os crossdressers o prazer obtido no crossdressing é em essência solitário, refere-se à visão da imagem de si mesmo (espelho) e se constitui em um prazer "garantido" e à prova de frustrações, pois não depende de um outro desejante. Mesmo quando mais adiante o crossdressing possa ser incrementado com a participação de outros ou se torna público e visa a interagir com outros olhares, o crossdresser, em caso de frustração, sempre pode recorrer a atividades solitárias ou recolher-se entre seus pares. (kogut, 2006, p 73).

A reversibilidade entre os papéis de "sapo" (masculino) e o feminino é necessária na medida em que ele deseja e/ou necessita viver sua vida de homem durante a semana e, se as mudanças fossem definitivas, correria o risco de perder a respeitabilidade que conquistou na sociedade e na família. (Kogut, 2006, p 74).

Embora exista rejeição ao termo travesti por parte da maior parte das crossdressers, foi-me relatado que o termo travesti secreto era utilizado para fazerem referência a si mesmos/as antes de entrarem em contato com o termo crossdresser. De qualquer modo, a palavra secreto adicionada ao termo travesti já funcionava para diferenciar o que faziam do que as travestis faziam (escândalo, prostituição, etc.) [...] Apesar de ser usado como referencial para explicarem o que fazem, aparentemente a rejeição ao termo travesti parece sublinhada, especialmente pela associação desta figura ao mundo da prostituição e de uma vida marcada por dificuldades como a falta de espaço no mercado de trabalho, privações materiais e sociais e grande exposição a violências e abandonos. Contudo, há aquelas que defendem que travestis e crossdressers seriam nomes diferentes para se falar da mesma coisa, embora levem em conta o preconceito associado à categoria travesti. (Vencato, 2009, p 65).

Há crossdressers que se montam e esperam que as outras pessoas as notem. Para algumas outras, se montar diz respeito à sua satisfação pessoal, pouco importando serem vistas ou notadas em público. (Vencato, 2009, p 178).

Em contraste, verifiquemos o que os pesquisadores descrevem sobre as travestis em relação a esse aspecto:

Quando as travestis "se assumem", o espaço doméstico da família, via de regra, se torna insustentável. Perde seu caráter de acolhimento e proteção, passa a ser ameaçador. São lugares-comuns as histórias de irmãos mais velhos que hostilizam e agridem fisicamente as travestis, ainda "viadinhos"; o pai que joga na rua o filho e seus pertences; a mãe que chora desolada perguntando onde teria errado, vigiando os passos do filho, procurando protegê-lo das pancadas do pai e dos risos dos vizinhos e, por vezes, ela mesma usando da força física para "corrigir" o que considera seu erro. (Pelúcio, 2007, p 71).

Visíveis por sua diferença, sem "armários" possíveis que lhes sirvam de proteção ou escape, as travestis têm sido historicamente vistas como desviantes. (Pelúcio, 2007, p 130).
O distanciamento da casa autoriza intervenções corporais mais duradouras, uma vez que a casa materna/paterna se coloca como espaço de constrangimento para a transformação, processo este que começa com práticas corporais feminilizantes epidérmicas, como já dito, e que, desejavelmente, deve seguir até que a travesti tenha um corpo que possa ser considerado "de mulher", independente da presença do pênis. (Pelúcio, 2007, p 282).

Fica bastante evidente que uma das diferenças mais marcantes entre esses grupos é a exposição e vida pública assumida. Enquanto as crossdressers vivem uma duplicidade de exposição, ora performatizando a masculinidade, ora performatizando a feminilidade, as travestis expõem-se e buscam expressar unicamente a feminilidade durante todo o tempo. Também podemos perceber que a exposição das travestis é o principal motivo de seu estigma e sofrimento, enquanto que crossdressers buscam justamente evitá-lo.

Orientação sexual

Embora existam relatos de bissexualidade e mesmo casos de hererossexualidade entre travestis como de bissexualidade e homossexualidade entre crossdressers, a meu ver essa é uma importante característica distintiva entre esses grupos, como veremos a seguir. Vejamos a seguir o que nos mostram os estudos de campo efetuados:

Prince (Virginia) promoveu os trabalhos científicos de John Money (1980) e definia crossdressing como estritamente heterossexual. Para Prince, isto colocava o fenômeno em um nível mais respeitável do que a homossexualidade. Embora não negasse que alguns (sic) travestis e drag queens investissem na sedução dos homens mais do que em usufruir o uso de roupas femininas, enfatizava que estas situações eram exceções. Em 1960, Prince fundou a revista Travestia e disseminou por todos os EUA, Europa e Austrália o modelo de Crossdressers Clubs. (Kogut, 2006, p 21).

Quando entram na adolescência, em geral, existe uma associação entre o vestir roupas femininas e a masturbação, mas não acompanhada de fantasias homoeróticas, e sim estimuladas pela visão da linda mulher e pelas zonas erógenas eventualmente incluindo ânus e mamilos. Concomitantemente, surge na adolescência um genuíno interesse viril pelas meninas. (Kogut, 2006, p 69).
Zara, 43 anos, na sua forma de "sapo" é médico, professor universitário, solteiro. Quando vestido de mulher diz: "Como homem sou heterossexual e como mulher sou lésbica.". (Kogut, 2006, p 71).

Assim, embora seu desejo expresso fosse de passar cem por cento do seu tempo como mulher, tinha consciência das dificuldades que isto acarretaria. Sua família e os amigos mais próximos sabiam e, até certo ponto, aceitavam sua sexualidade (sic), mas o mesmo talvez não ocorresse com seus colegas de trabalho.
Por outro lado, dizia: - "Gosto tanto de mulher que queria ser uma delas". (Kogut, 2006, p 80).

A seguir, reproduzirei um e-mail enviado por Natália no qual me conta parte de sua história ... Quem eu era? O que estava acontecendo comigo? Eu paquerava as meninas, gostava delas, sentia-me atraída, mas gostava de ser mulher? Comecei a duvidar da minha masculinidade, a temer ser descoberta pelos amigos na rua. (Kogut, 2006, p 86).

No início desta pesquisa, uma hipótese a se delinear foi a de que o crossdressing poderia ser uma defesa contra uma homossexualidade latente recalcada. Com o desenvolver da pesquisa, foi ficando claro que, se fosse uma defesa, não seria eficaz e egossintônica. Por exemplo, homofobia é uma defesa egossintônica contra a homossexualidade. O travestir-se, contudo, é objeto de mais desprezo social do que a homossexualidade. De certa forma, socialmente, imagina-se que um homem que se traveste, estaria mais perto da feminilidade e seria mais "mulherzinha" do que o homossexual. Em caso de homossexualidade recalcada, não parece fazer sentido que o sujeito invista seu tempo, sua energia e seu dinheiro em roupas, sapatos, maquiagens, depilações e etc. os quais, afinal, socialmente sugeririam, de maneira contundente, a suposta homossexualidade recalcada. (Kogut, 2006, p 124).

A maioria dos crossdressers apresenta comportamento bissexual, entretanto, apesar de reconhecer esta bissexualidade em seu comportamento, definem-se como heterossexuais. Relatam que quando "mulheres", relacionam-se com homens e quando "homens", relacionam-se com mulheres. Alguns crossdressers declaram relacionar-se sexualmente com mulheres quando estão travestidos e enfatizam que "quando mulheres" são lésbicas, pois somente se interessam por parceiros do gênero feminino. (Kogut, 2006, p 125)

[...] ao mesmo tempo em que as crossdressers têm uma inserção e convivência no meio GLS que possivelmente outros homens heterossexuais de suas relações que não se montam jamais teriam, as cds se constróem também em oposição à idéia de homossexualidade. (Vencato, 2009, p 77).

Embora existam crossdressers que se relacionam erótico-afetivamente preferencial ou exclusivamente com pessoas do mesmo sexo, a identidade auto- atribuída que se encontra mais comumente no campo é a heterossexual. (Vencato, 2009, p 78).

Em oito anos frequentando o Brasilian Crossdressers Club, a única associada que a presente autora conheceu, que se declarava homossexual e que jamais havia se relacionado com mulheres, é a desse caso descrito a seguir:

Conversando com uma das poucas crossdressers que se identificam como gay, ela relatou que há coisas que a incomodam nas abordagens das listas do BCC acerca da homossexualidade associada ao crossdressing. Para ela, é incômodo ler mensagens que digam que seu crossdressing vale menos em termos de legitimidade, que teria um caráter mais fetichista que o das demais, pelo fato de se identificar como gay. Por vezes, relata, mesmo as crossdressers operam com uma noção de continuum entre homossexualidade e se vestir de mulher, como se uma coisa estivesse ligada a outra necessariamente e que fosse apenas uma questão de tempo para ela virar travesti. Outras vezes, aparece a ideia de que um homem gay só poderia desejar se vestir de mulher com finalidade sexual. (Vencato, 2009, p 202).

Em contrapartida, vejamos o que foi verificado pelos pesquisadores em relação à orientação sexual das travestis:

Elas, as travestis, não gostam de buceta e ponto final. Aceitam fazer sexo com mulheres por dinheiro, algumas até já me confessaram que gostam de fazer sexo oral em mulheres, mas que só se excitam na presença de um homem. (Pelúcio, 2007, p87).

(As travestis) operam [...] uma transformação moral, adequando seu sexo, marcado pelo pênis, a um gênero. E este, à atração sexual que sentem pelo masculino. (Pelúcio, 2007, p 95).

A "suspeita" familiar volta-se, logo, para a sexualidade, erotizando esse desejo de ser/parecer feminino do garoto. Não é incomum que as travestis relatem que, desde a infância, elas também associavam esse interesse ao desejo por meninos e homens. (Pelúcio, 2007, p 281).

Em três anos de trabalho de campo, conheci apenas uma travesti que disse se sentir atraída por mulheres desde criança, ainda que desejasse ela mesma "ser mulher". Mesmo depois de muito transformada e fazendo programas com homens, saía com mulheres, o que era motivo de chacotas e expressões inconformadas das amigas... Atualmente, esta travesti se converteu à Assembléia de Deus, reatando os laços com a família; vive com uma mulher e trabalha como vendedora. Deixou de tomar hormônios, cortou os cabelos e veste-se com roupas que podem ser consideradas "unissex". Quando lhe perguntei, em conversa pelo MSN, o que havia feito com seus fartos seios, ela disse que estava "parecendo um sapatão", e enviou-me uma foto sua, para que eu mesma avaliasse a sua nova aparência. (Pelúcio, 2007, p 283 – em nota de rodapé).

Passar por mulher é o objetivo de todas as travestis. Além de afirmar e demonstrar as características intrinsecamente femininas, passar por mulher tem como objetivo mostrarem-se desejáveis e atraentes para os homens. (Benedetti, 2005, p 104).

Como apontado, embora possa não existir uma uniformidade no que se refere à orientação sexual em nenhum dos dois grupos, especialmente entre crossdressers, o que demonstra ser realmente uma característica diversa da identidade de gênero, a meu ver, a orientação sexual predominantemente voltada para homens no caso das travestis, é somente um elemento a mais de "pressão interna" que as impele no sentido de assumir sua identidade feminina. Assumir-se, assim, significaria para as travestis a satisfação de dois desejos íntimos, enquanto que para a maioria das crossdressers, além de todo o estigma decorrente da exposição pública, a orientação sexual predominantemente voltada para mulheres significaria uma dificuldade maior de aproximar-se do principal objeto de desejo sendo, portanto, um motivo subjetivo contrário ao desejo de assumir-se.
Assim sendo, uma vez que entendamos a orientação sexual como um fator distinto da identidade de gênero, é importante ressaltar que esse fator não é um diferencial da identidade de gênero, mas apenas um elemento a mais, uma outra característica que os distingue e que culminaria em uma diferenciação entre travestis e crossdressers enquanto grupos de pesquisa ou políticos, embora suas identidades de gênero se assemelhem.

Classe social

Pelos trabalhos dos pesquisadores, percebemos claramente que em geral as crossdressers têm uma condição sócio econômica bastante boa, possuindo diplomas de cursos técnico ou superior, enquanto a maioria das travestis sequer têm o fundamental, muitas vivendo na rua e tendo origem em famílias mais pobres.
Entendo que essas características distintivas desses grupos são ao mesmo tempo a origem e o resultado do processo histórico de vida delas, justamente pelo fato de expor-se e assim sujeitar-se ao preconceito da sociedade como um todo, com todos seus efeitos nefastos. Enquanto que crossdressers têm mais a perder por serem de modo geral oriundas de classes sócio econômica mais avantajadas e, em razão da sua orientação sexual predominante como demonstrado, permanecem no armário ocultando sua identidade de gênero, as travestis, por contingências resultantes de suas famílias mais simples e de sua orientação sexual predominantemente voltada para homens, acabam por se expor ao mundo e consequentemente, às negações por esse impostas, redundando sua condição marginalizada, acentuando-a e perpetuando-a.

SEMELHANÇAS ENTRE TRAVESTIS E CROSSDRESSERS

Como demonstrado, embora existam diferenças entre as chamadas travestis e as crossdressers, considerando-se que classe social, histórico, exposição pública e mesmo orientação sexual não são características de identidade de gênero enquanto "modo como o indivíduo se sente em relação a ser homem ou mulher", passo agora a demonstrar as semelhanças entre tais grupos, sobre características apuradas em pesquisas de campo:

Tanto mulheres, quanto homens

Como apontaremos a seguir, os dados colhidos em pesquisas de campo demonstram que ambos os grupos estudados não se consideram completamente enquadrados no binarismo masculino e feminino, possuindo geralmente sensações de pertencimento a ambos os gêneros. Como demonstração disso, trazemos em relação às crossdressers:

O (sic) crossdresser deseja ser uma mulher, mas ao mesmo tempo não quer perder sua consciência de homem. (Kogut, 2006, p 110).

Embora a maioria deles (sic) – se pudesse fazê-lo sem sofrer sanções sociais – desejasse viver definitivamente como mulher, permanece com a ideia de continuar a ser também homem. (Kogut, 2006, p148).

Entrevistada:"É engraçado, que se às vezes eu sinto-me prazerosamente mulher, por outras (e aí o prazer é maior ainda), gosto da sensação de lembrar-me que sou um homem representando uma mulher". (Trecho de e-mail enviado para a pesquisadora por Roberta (Fernando), 49 anos). (Kogut, 2006, p 124).

Enquanto as transexuais se vêem como mulheres tão mulheres quanto as GG (Genetic Girls = mulheres genéticas – nota da presente autora), as crossdressers não as vêem deste mesmo modo [...] as trans são entendidas, nas visões que têm sobre si enquanto grupo, como que compartilhando com as crossdressers um ponto de partida comum, especificamente nascer homem e vestir-se de ou sentir-se como mulher de algum modo. (Vencato, 2009, p 77).

Uma crossdresser, por mais feminina que seja ou esteja, ainda é um homem, que busca preservar sua masculinidade, mesmo que seja desejável parecer feminino quando en femme. (Vencato, 2009, p 199).

E em relação às travestis:

Quando travestis se valem dessa tecnologia protética e hormonal para transformarem seus corpos de homens em "outra coisa" – pois não se tornam mulheres (nem o pretendem), e tampouco seguem sendo homens - estão denunciando, ainda que sem intencionalidade, que se pode fazer apropriações não planejadas dessas tecnologias". (Pelúcio, 2007, p 96).

As travestis sabem que não são mulheres, nem desejam sê-lo. São "outra coisa", uma "coisa" difícil de explicar porque, tendo nascido "homens", desejam se parecer com mulheres, sem de fato ser uma, isto é, ter um útero e reproduzir [...] Dessa forma, para ser mulher mesmo é preciso ter "buceta/útero", compondo um sistema que faz da genitália e do aparelho reprodutor os definidores do que seria o verdadeiro gênero. As incorporações protéticas não as farão "mulher", e sim "femininas". (Pelúcio, 2007, p 99)

Do texto da travesti Vitória Ribeiro: "[...] Sabia que menina era menina e menino era menino, mas eu não era menino, mesmo sabendo ser". o "o que" aflitivo de Vitória acompanha as travestis desde as primeiras lembranças e está expresso na dificuldade de saber o que elas são exatamente: "eu não era menino, mesmo sabendo ser". (Pelúcio, 2007, p 286).

De fato,, a maior parte não se iguala às mulheres, nem tampouco deseja fazê-lo. O feminino das travestis não é o feminino das mulheres. É um feminino que não abdica de características masculinas, porque se constitui em um constante fluir entre esses polos. (Benedetti, 2005, p 96).

As travestis não desejam ser como mulheres. Seu objetivo, antes, é se sentirem como mulheres, se sentirem femininas.Vivem a experiência do gênero como um jogo artificial e passível de recriação. Por isso, criam um feminino particular, com valores ambíguos. Um feminino que se constrói e se define em relação ao masculino. Um feminino que é por vezes masculino. Vivem, enfim, um gênero ambíguo, borrado, sem limites e separações rígidas. Um jogo bastante contextual e performático, mas também rígido e determinado. (Benedetti, 2005, p 132).

Assim, aponto esse desejo subjetivo e íntimo de ser mulher sem deixar de ser homem, uma mescla de características de gênero, ou seja, das características socialmente tidas como masculinas e femininas, como a primeira semelhança entre os grupos.

Sentem-se femininas desde a infância

A seguir, verificaremos que em ambos os grupos existem indivíduos com sensações de pertencimento ao gênero oposto desde muito cedo, primeiro entre as crossdressers:

O desejo pelas roupas do sexo oposto, na grande maioria dos casos, aparece bem cedo, geralmente, entre os três e os sete anos, e uma boa parte relata que a primeira vez na qual vestiu roupas femininas foi em alguma brincadeira com primos ou ainda quando encontrava roupas íntimas da mãe, das irmãs ou de parentes quando as secavam no banheiro. (Kogut, 2006, p 67).

"...logo que tinha oportunidade trancava-me no quarto e atacava o guarda- roupa de minhas irmãs, adorava vestir suas calcinhas, sapatos, sandálias, vestidos, saias enfim todas aquelas peças íntimas que fazem a nossa glória, sentia-me linda e maravilhosa." (Érica - trecho da biografia publicada no site do BCC).
- "Não tenho certeza quanto à minha idade, talvez 4 ou 5 aninhos. Do lugar a lembrança é clara: a casa de minha avó. Adorava vestir-me com suas roupas escondida no grande armário embutido de seu apartamento. Esta é uma lembrança muito clara para mim." (Roberta 49 anos, artista plástica - trecho da biografia publicada no site do BCC)
- "Comecei meu crossdressing muito nova. Para falar a verdade nem me lembro quantos anos tinha quando usei as primeiras peças femininas de minha mãe..." (Camila)
(Kogut, 2006, p 68).

[...] Entretanto, todos ao final da infância já sabem que se trata de algo socialmente estranho e, após a adolescência, ocasionalmente percebem que pode se tratar de um sintoma de uma sexualidade perturbada ou perturbadora. (Kogut, 2006, p 70)

Algumas crossdressers contam que vestir roupas de mulher é algo que já lhes despertava interesse desde a infância, ao mesmo tempo em que, desde muito cedo, também sabiam que aquilo seria visto como algo errado e, nesse contexto, deveria permanecer oculto. Outras relatam que a adolescência foi o momento em que começaram a sentir vontade de se montar, e aproveitavam os momentos em que estavam sós em casa para brincar com os armários de suas mães, irmãs ou tias. (Vencato, 2009, p 74).

Verifiquemos, pois, a imensa e indiscutível semelhança entre as descrições apresentadas, com as colhidas pelos pesquisadores, bem como suas anotações, a respeito dessas sensações subjetivas de pertencimento ao gênero feminino desde a infância, sobre as travesits:

A cabeça é o domínio do gênero por excelência, é a forma como as travestis se percebem e se produzem femininamente e constroem sua identidade sexual e social. Muitas acreditam que já nasceram com uma cabeça feminina. Por isso, identificam na infância as primeiras manifestações de seu desejo de transformação, referindo-se a algo que está situado corporalmente e preestabelecido: a cabeça de cada pessoa. (Benedetti, 2005, p 109).

As travestis costumam identificar, ainda na infância, entre os quatro e os sete anos de idade, essa "sensação", que vem marcada pelo interesse pelo mundo feminino, o gosto pelas roupas e jogos das meninas e por uma atração sexual pelos meninos". (Pelúcio, 2007, p 220).

[...] as travestis experimentam, ainda na infância, brincadeiras "de menina", porque não gostam das "de menino". Pegam roupas femininas furtivamente, ousam se maquiar, valendo-se de cosméticos maternos ou de irmãs e primas. (Pelúcio, 2007, p 283).

Muito embora várias crossdressers e travestis tenham começado a identificar-se com o feminino bem mais tarde, é flagrante a semelhança encontrada nas pesquisas, como apontado acima.

Sensações na fase adulta – prazer em expressar-se

Vejamos a seguir, como as integrantes de ambos os grupos se sentem na fase adulta. Crossdressers:

Além disso, em geral, depois dos trinta anos, seja devido à habituação de "montar-se", seja devido a um declínio da excitabilidade sexual na vida adulta, parece ocorrer um afrouxamento da conexão entre o ato de travestir-se e a excitação genital direta. Esta excitação se transforma e passa a ser mais potencial do que imediata e muitas vezes o prazer está em passar por mulher. (Kogut, 2006, p 72).

"Daí, ao invés de fugir de mim, decidi me enfrentar, e fui atrás de me realizar, ainda que clandestinamente, ainda que contra toda a cultura preconceituosa e machista que enfiaram por anos na minha cabeça. Comecei a aproveitar cada instante e a acalmar a minha ansiedade com uma palavra. Sou. Eu sou assim, e assim tenho que me aceitar, agrade ou não. Numa das minhas andanças pela internet, encontrei por acaso um site que falava da vida uma pessoa que também se vestia, tornou-se minha amigona. Bebi cada letra daquelas histórias que ela contava, e decidi entrar em contato com ela, nos correspondemos até hoje, mas foi ela que ajudou a me achar, "eu não era um travesti lésbico, era uma crossdresser, uma mulher e não estava só, havia tantas outras". (do e-mail enviado por Natália à pesquisadora) (Kogut, 2006, p 87).

Para algumas das pessoas que sentem desejo por vestir-se com roupas socialmente atribuídas a outro sexo ou outro gênero o desejo de se montar ou se vestir e a efetivação dele constituem-se em importantes experiências, algo que é descrito como singular para suas auto-estimas, suas auto-imagens e para sua percepção enquanto uma pessoa completa. (Vencato, 2009, p 73).

Algumas afirmam que se vestir de mulher funciona como uma espécie de brincadeira, geralmente relatada como algo que produz uma grande satisfação pessoal. (Vencato, 2009, p 174).

A estratégia de cindir esses dois lados – e tratar a ambos na terceira pessoa – talvez seja uma maneira de administrar toda a necessidade do segredo e que possibilita a esses homens (sic) viver uma experiência que lhes é importante de forma menos arriscada e com menos chance de perdas em suas vidas cotidianas. (Vencato, 2009, p 184).

Como se sentem as Travestis:

Tornar-se travesti poderia ser uma escolha, mas sentir-se identificada com o feminino ou ter interesse sexual pelo masculino mesmo sabendo-se homem, seria algo com o qual "se nasce". Esse determinismo do "ser", mesmo que se queira apenas "parecer", é associado com as noções de "destino" e de "natureza", conjugando forças externas e internas, respectivamente, que seriam maiores que o indivíduo. (Pelúcio, 2007, p 100).

Essa dimensão interna, expressa no sentir-se mulher ("sinto dentro de mim"), aparece na fala de muitas travestis na locução "ter cabeça de mulher". Uma interioridade que precisa ser externalizada na materialidade do corpo, compondo uma totalidade. (Pelúcio, 2007, p 273).

Vejam ainda essa semelhança encontrada nas pesquisas entre os desejos de travestis e crossdressers, bastante esclarecedora:

Sobre as travestis
O uso cotidiano de calcinhas femininas é obrigatório por qualquer uma que se empenhe no processo de transformação do gênero. É concebido como um sinal diacrítico na construção de uma prática feminina. (Benedetti, 2005, p 69).

Sobre as crossdressers
Existem, ainda, aqueles que usam roupas íntimas femininas todos os dias em todos os momentos (mesmo quando estão em sua forma de sapo) como também aqueles que quando estão em casa, estão sempre montados, vestindo roupas masculinas somente no trabalho ou em programas sociais no papel de homens. (Kogut, 2006, p 74).
(Forma de sapo = "forma masculina" – nota da presente autora)

Parece bastante claro que, para ambos os grupos, roupas íntimas femininas tem um significado simbólico imenso, ao ponto de ser prática muito comum entre as crossdressers, ainda que vestidas como homens e até mesmo no trabalho, usarem essas peças por debaixo das roupas masculinas, como se para aplacar uma necessidade de contato constante ou o mais constante possível com esse "feminino interior", ainda que oculto. Se não têm a possibilidade de expor esse feminino interior, ao menos mantém a sensação constante de sua secreta expressão.

Modelo idealizado de gênero e construção do feminino

Vimos que a sensação de pertencimento ao gênero feminino, em geral, forma-se bastante cedo na vida de crossdressers e travestis. No entanto, a expressão de gênero é construída ao longo do tempo pelos indivíduos de ambos os grupos, na direção de um ideal de feminilidade que, embora subjetivo, é também controlado pelo meio, nos moldes descritos por Butler e apontado no início deste trabalho. Nesse sentido, vejamos:

Sobre as crossdressers, temos:

Quanto ao tipo de vestimentas, apesar da maioria vestir-se de maneira um pouco extravagante, (exagerando, às vezes, nos acessórios e maquiagem), o principal objetivo é sempre fazer uma montagem muito bem feita, ficando o mais parecido possível com uma mulher. (Kogut, 2006, p 73).

O (sic) crossdresser "montado" cria uma imagem de mulher a qual ele (sic) próprio compôs e incorporou a partir das mulheres que passaram por sua vida. (Kogut, 2006, p 111).

A idéia de feminilidade ou de modelo de mulher que aparece no discurso das crossdressers com que conversei ao longo da pesquisa revela que há atributos e objetos que compõem uma mulher de verdade, assim como um conjunto de desejos e modos de ser/estar no mundo que as tornam femininas. É desejável para as crossdressers se aproximarem deste modelo de feminilidade, embora o que isto signifique possa variar para uma ou outra cd. (Vencato, 2009, p 166).

Nessa construção de si realizada pelas crossdressers, são acionadas ainda diversas convenções sobre classe e geração. Assim, a mulher de verdade é a mais jovem, e todas dizem que as princesas que montam são mais novas que seus sapos. As roupas que usam também tem que ter glamour. Assim, os saltos são geralmente muito altos, as roupas muito enfeitadas e as montagens muito carregadas de acessórios e brilhos. (Vencato, 2009, p 184).

[...] ao mesmo tempo em que, ao vestir-se do outro sexo, as crossdressers se contrapõem a certas convenções sociais, o modo como o fazem também dialoga com essas mesmas normas. Assim, são homens que usam roupas que não são tidas como apropriadas ao seu sexo assignado ao nascer mas, ao mesmo tempo, aquilo que produzem como feminilidade legítima acorda com certo padrão de beleza que circula na vida social. Assim como nas revistas de moda, para as crossdressers uma mulher bonita é jovem, usa salto alto, está sempre maquiada e veste roupas de festa. (Vencato, 2009, p 229).




Sobre as travestis:

Da mesma forma, toda a maquiagem para o rosto – boca, pômulos, pálpebras, olhos e toda a tez – começa a ser utilizada pela (ainda) bichinha ou bicha-boy, que aos poucos vai ganhando intimidade e conhecimento de todo o processo de transformação. Poderíamos talvez identificar uma "fase de transição" entre o menino e a travesti, quando ele vai experimentando pequenas alterações no corpo, normalmente modificações facilmente reversíveis, mas que servem para uma identificação com os atributos do feminino. (Benedetti, 2005, p 56).

Uma vez inserida numa rede de relações e obrigações recíprocas, a nova travesti refina e aperfeiçoa os códigos que aprendeu. Entre as principais características a serem aprendidas e moldadas estão o gestual e o uso do corpo. Assim, aprender a andar de salto alto, mostrar movimentos leves e suaves com os braços e com o corpo todo, olhar de uma forma cândida e recatada, mover o cabelo e mesmo andar e sentar são movimentos aprendidos e aperfeiçoados a partir do modelo das outras travestis e da observação do feminino ao seu redor. (Benedetti, 2005, p 103).

Ser um "homem transformado", quando se vem das classes populares, como a maioria das travestis, significa investir parte significativa de seus recursos no processo de feminilização, ainda que isso implique sacrificar aquilo que se oporia ao luxo, isto é, coisas essenciais como alimentação e moradia. O luxo também aparece na esmerada produção corpórea das travestis, o que inclui as vestimentas, acessórios, perfumes, fazendo-se acompanhar pelo "glamour", materializado numa hiperfeminilidade. (Pelúcio, 2007, p 104).

As travestis buscam as referências para a sua feminilidade em ícones consagrados desde Marilyn Monroe, passando por Madonna, chegando a Jennifer Lopez e Beyoncé, para citarmos apenas as internacionais. (Pelúcio, 2007, p 104 – nota de rodapé).

O estilo valorizado atualmente é o da "ninfetinha", mais natural – curvas mais enxutas, seios menos exagerados, roupas mais ao gosto das adolescentes que aparecem em programas televisivos [...] (Pelúcio, 2007, p 110).

Se o "cuidar-se", como já mencionado, mantém estreita relação com a feminilização, é a casa/pensão da cafetina o espaço do aprendizado, e dessa reiteração do cuidar-se, pois é ali que "gayzinhos" podem se transformar em travestis. (Pelúcio, 2007, p 239).

À mãe ou madrinha cabe ensinar à sua filha as técnicas corporais e a potencializar atributos físicos, a fim de se tornar mais feminina. (Pelúcio, 2007, p 345).

Percebemos nitidamente a semelhança em ambos os grupos sobre o que seria um ideal de feminilidade a ser atingido, performatizado ou imitado. Nesse sentido, a construção das expressões de gênero são realmente construídas intencionalmente e com esforço. Embora existam variações subjetivas desses "modelos" ideais a serem atingidos, fica claro que esses modelos, totalmente decorrentes de construções e valorações culturais a respeito do que o gênero feminino significaria para nossa cultura, funcionam para esses indivíduos como um modelo e objetivo a ser atingido ou, ao menos, a maior proximidade possível deste. Esse ideal de performatividade se aproxima, não coincidentemente, dos momentos em que as mulheres cisgêneras mais performatizam, como quando se arrumam para festas, shows, revistas e outras ocasiões similares. São as performances extremadas de feminilidade que as trans vêm nas mulheres cis, nessas ocasiões, exatamente as que desejam reproduzir como afirmação, por vezes igualmente extremada, da própria feminilidade que sentem ou julgam sentir.

Há momentos em que relaxam a expressão do feminino idealizado

Se crossdressers não expressam seu feminino idealizado o tempo todo, nem todas as travestis também o fazem. Da mesma forma que essa expressão de gênero construída pelas crosdressers não é constante e permanentemente externada, as travestis também têm seu momento de relaxamento, como descreve:

Você, às vezes, você se depara com uma travesti na rua, ela tá louca, ela tá revoltada. Por quê? Porque ela não agüenta mais ser xingada, ela não agüenta mais ser esculachada, ela não agüenta mais aquela vida que ela tá levando. Então, ela tá num estresse muito grande. Ela não tem uma vida social. Ela não sai no dia-a-dia. Por isso que eu amo viver no bairro. Porque no bairro eu tenho uma vida social. (Bruna D'Ávila, na já citada entrevista). (Pelúcio, 2007, p 76, grifo nosso).

É na casa, esse espaço moral e significativo, que elas podem experimentar o conforto de estarem entre iguais e, mesmo, de abandonarem-se a um relaxamento doméstico: roupas largas, "neca desaqüendada" (pênis solto), pêlos aflorando, frases jocosas trocadas com as colegas, numa "normalidade" banal e cotidiana. (Pelúcio, 2007, p 243).

É interessante notar que, justamente nesses momentos de relaxamento é que as trans se aproximam mais da expressão de gênero das mulheres que vemos nos pontos de ônibus, nas fábricas, nas plantações, no dia a dia.

Rejeição do fracasso

Da mesma forma como buscam um modelo ideal de feminilidade, muitos indivíduos de ambos os grupos tendem a rejeitar o fracasso nesse processo, demonstrando a importância que sentem quanto ao resultado. Vejamos:

Sobre as travestis:

Assim, se a travesti não sabe se vestir para cada ocasião, isto não é atribuído às suas características internas e inatas, mas, ao contrário, é visto como responsabilidade dela, que não se aplicou ou se esforçou o suficiente para atingir um grau de passar por mulher socialmente aprovável. (Benedetti, 2005, p 105).

Como todo conjunto de padrões estéticos das travestis, este também está ligado a códigos morais que orientam a conformação da Pessoa travesti. Por exemplo, pode-se ser "gayzinho", mas só é tolerado que se tenha um visual andrógino e indefinido na fase inicial da transformação. Depois disso a pessoa passa a ser vista como desleixada, ou mesmo covarde, por não ter coragem de ir a fundo na transformação. O travecão está ligado ao exagero, ao masculino e, portanto, ao insucesso ou ao ultrapassado. (Pelúcio, 2007, p 110).

Sobre as crossdressers, acho importante demonstrar o depoimento de uma pesquisada, sobre o sentimento de uma crossdresser, embora a cobrança de uma montagem perfeita no outro seja quase inexistente nesse grupo, ao menos de forma expressa, até pelo contexto oculto e em uma "vida dupla" compartilhado entre as integrantes desse grupo, o que torna a tolerância quase absoluta entre elas, sobre o resultado de suas produções. No entanto, é comum existirem relatos de insatisfação, embora quase nunca publicamente, seja com relação a outra pessoa, seja com relação ao resultado da própria montagem:

"É foda! Eu não sei o que fazer, Anna. Tá foda isso. A gente se acostuma [com a aparência delas] mesmo. Risos. Eu não consigo achar [as cds lindas]... Poxa Anninha, eu não quero ser iguais as cds que vejo sabe? Eu não acredito muito que tenha uma receita para o que eu quero. Não existe cd bonita. Nossa! Todas são horríveis, fala sério. Você conhece muitas... risos. Estive no [último] encontro [do clube]. Risos. Que coisa horrível! Parecia a visão do inferno. A [fulana] escapava. Risos. ... mas ela é diferente, né [se hormoniza]? Show ela. Poxa, isso que é foda. Por isso que [eu] também queria tomar." (Vencato, 2009, p 173).

Uma das fundadoras do BCC, que encontrei há alguns anos em um restaurante vestida "de homem", me disse que não se "montava" mais, pois já tinha uma idade mais avançada e se via no espelho como uma velha, o que não correspondia mais aos seus ideais de feminilidade. Entendo que o "espelho" deixou de refletir o modelo idealizado que ela tinha de si própria, então não havia mais razão para correr riscos expondo-se ou para se esforçar nessa busca da expressão ideal de si mesma. Suas montagens já não lhe traziam satisfação ou aplacavam seus anseios interiores.

Modificações físicas

Uma crença existente no senso comum é a de que travestis fazem modificações físicas e crossdressers não, o que é uma verdade parcial e conjectural. Como veremos a seguir, muitas crossdressers fazem inúmeras modificações físicas, que vão de uma mera depilação com cera ou furar orelhas até o uso de hormônios feminino e as que não o fazem, em sua imensa maioria gostariam de fazê-lo, mas acabam se contendo em razão das pressões do meio.

Sobre as modificações físicas de travestis:

Benedetti

Uma das primeiras resoluções importantes na vida de uma travesti é iniciar o uso de hormônios. Se até então as interferências com o objetivo de construção do feminino sobre o corpo se reduziam a eventuais montagens ou pequenos detalhes , como um brilho nas unhas ou uma modelagem nas sobrancelhas, com o tratamento hormonal as mudanças corporais se mostram mais visíveis e mais definitivas: Os seios se desenvolvem, a silhueta se arredonda, os pelos do corpo e da barba diminuem em quantidade e tamanho. Submeter-se a tratamento hormonal parece identificar-se com a própria decisão de incorporar a identidade travesti. (Benedetti, 2005, p 73).

Pelúcio
"Transformação" é o termo nativo para se referir ao processo de feminilização, que se inicia com a extração de pelos da barba, pernas e braços. Afina-se a sobrancelha, deixa-se o cabelo crescer e passa-se a usar maquiagem e roupas consideradas femininas, nas atividades fora do mundo da casa. A seguir, começa a ingestão de hormônios femininos (pílulas e injeções anticoncepcionais), passando às aplicações de silicone líquido nos quadris e, posteriormente, nos seios, até se chegar (e nem todas podem fazê-lo, por absoluta falta de dinheiro) às intervenções cirúrgicas mais radicais, como operação plástica do nariz, eliminação do pomo-de-adão, redução da testa, preenchimento das maçãs do rosto e colocação de prótese de silicone nos seios. (Pelúcio, 2007, p 252).

- bronzear-se, naturalmente, expondo-se ao sol, ou em máquinas, para que a marca do biquíni, aspecto estético extremamente valorizado entre elas, fique bastante evidente. O bronzeado remete à imagem idealizada da mulher brasileira, principalmente da carioca: sensual, tostada pelo sol que bate em praias prestigiadas;
- pintar unhas. Mantê-las longas e bem cuidadas é sinal de status, bem como do valor moral do "cuidar-se", simbolizando a feminilidade;
- maquiar-se, principalmente com bases que cubram possíveis asperezas da pele, principalmente na região da barba. Valorizar o olhar com sombras e lápis;
- providenciar, manter e colocar enchimentos, principalmente para fazer os seios, método que a maioria pretende temporário;
- escolher roupas que evidenciem suas formas femininas ou que ajudem a "dar o truque", isto é, favorecer sua imagem. (Pelúcio, 2007, p 270)

Sobre modificações físicas de crossdressers, temos:

Kogut
Para atender às exigências estéticas dos crossdressers, existem inúmeros recursos. Há, portanto, um gradiente de alterações na aparência que, quanto mais modificações são efetuadas, maior é o grau de irreversibilidade e mais estes sujeitos se aproximam do que tem sido denominado de transexualismo secundário:
Pouquíssimas alterações: maquiagem e seio postiço;
Poucas alterações: além da maquiagem e do seio postiço, depilação no corpo;
Alterações que incluem, além da depilação no corpo, depilação definitiva no rosto e hormônios (que promovem o crescimento de pequenos seios);
Alterações que incluem, além do acima mencionado, próteses de silicone no corpo;
Alteração total: cirurgia (nestes casos, já passam a ser denominados de transexuais secundários).
A reversibilidade entre os papéis de "sapo" (masculino) e o feminino é necessária na medida em que ele deseja e/ou necessita viver sua vida de homem durante a semana e, se as mudanças fossem definitivas, correria o risco de perder a respeitabilidade que conquistou na sociedade e na família. (Kogut, 2006, p 74).

A ideia de feminilidade ou de modelo de mulher que aparece no discurso das crossdressers com que conversei ao longo da pesquisa revela que há atributos e objetos que compõem uma mulher de verdade, assim como um conjunto de desejos e modos de ser/estar no mundo que as tornam femininas. É desejável para as crossdressers se aproximarem deste modelo de feminilidade, embora o que isto signifique possa variar para uma ou outra cd. Assim, em alguns casos, não basta apenas usar roupas ou acessórios. É preciso intervir no corpo de forma mais incisiva, fazendo uso de recursos de produção estética de que as mulheres de verdade lançam mão para cuidar de si (depilação, fazer unhas, etc.). (Vencato, 2009, p 166).

[...] No caso da depilação, a sobrancelha por vezes não é feita com medo das consequências da desmontagem. O mesmo acontece com o uso de esmaltes escuros, que são mais difíceis de serem removidos sem deixar traços.
Contudo, a barba removida via várias sessões de laser para eliminá-la completamente é algo mais simples de se fazer, uma vez que mesmo homens que não praticam crossdressing desejam, por vezes, livrar-se definitivamente da barba. Os outros pelos do corpo são mais fáceis de serem retirados sem que as outras pessoas percebam, sobretudo no inverno (quando não se vai à praia ou piscina), a não ser que se esteja em uma relação conjugal com alguém que não sabe da prática do crossdressing. Nesse caso, é comum que inventem desculpas como um melhor desempenho na prática de natação para justificar que estão com o corpo liso.
Já o uso de hormônios levanta uma questão mais delicada, conforme relatam. De acordo com o que argumentam, isso pode ser muito complicado, sobretudo para aqueles que quando não estão vestidos do outro sexo têm relações heterossexuais e, especialmente, para aqueles que estão em relacionamentos estáveis com mulheres. Segundo elas, a ingestão de hormônios femininos, além de deixar o corpo mais feminino (criando peitinhos e dando-lhes formas mais arredondadas) tem impacto na possibilidade de se ter ou não uma ereção. Apontam isso como algo que seria indesejável para um homem casado e heterossexual. (Vencato, 2009, p 168-169).

A ingestão de hormônios femininos aparece nas falas com um duplo sentido: ao mesmo tempo em que é relatada como perigosa, essa prática ganha uma dimensão quase mágica na produção de um corpo mais feminino, arredondado e suave. Uma das interlocutoras deste trabalho, por exemplo, passou um final de semana de verão inteiro em São Paulo enquanto a esposa estava na casa de praia com a família. Como passei boa parte daquele final de semana com ela, pude acompanhar os diversos telefonemas da esposa pedindo que ela fosse para a praia. Ela estava chateada – chegando a afirmar isso em vários momentos - por não poder ir, mas o fato de ter seios graças à ingestão de hormônios e não poder tirar a camisa na frente da família da esposa a impedia de ir. (Vencato, 2009, p 171).

Assim, o que se verifica é que travestis realmente costumam fazer modificações mais profundas e perceptíveis, embora o desejo das crossdressers nesse sentido seja fundamentalmente o mesmo. O que as diferencia basicamente, é a possibilidade ou não de exposição, pelas razões já apontadas. No meu entender, identidade de gênero refere-se exatamente a essas sensações de identificação e esses desejos íntimos de expressá-las, sejam elas performatizadas e expressadas ou não, em razão de pressões decorrentes do meio.
Como conclusão sobre diferenças ou semelhanças entre travestis e crossdressers, segue um email irônico enviado por nós ao fórum do BCC – Brasilian Crossdressers Club e publicado na tese de Anna Paula Vencato:

"De: MarciaRocha
Assunto: Label mania Para: bcc-real
Data: Sexta-feira, 11 de Setembro de 2009, 20:14

Travesti? Ai, ai ai... de jeito nenhum!!! Sou crossdresser. Ou, talvez, transexual. Afinal, não quero ser vista como aquelas prostitutas peitudas, bundudas, siliconadas até nas sombrancelhas, com cabelos nas cinturas em cima de saltos 20.
Não, eu não, que eu sou chique!!! Estudei em colégio de padre, falo um inglês bacaninha e fiz curso superior. Tá certo que foi em Itaquera, mas e daí? Namorei umas mina na escola, outras no colégio, outras na facu.
Arrumei um belo emprego, casei, tive dois filhos e aguentei o chefe até hoje, justamente pra segurar essa onda toda.
Uso umas calçinhas debaixo do terno, vez ou outra roubo a sandalinha da minha senhora e dou uma reboladinha no espelho. Cá entre nós, fico bem lindinha!!! Mas sou macho, isso é só brincadeira.
Nunca sequer sonhei em ficar com um homem. Quer dizer... teve aí uns pesadelos umas vezes, com uns cara me pegando por trás ... mas isso não conta porque era pesadelo, né? Acordei toda molh...suada, agoniada...!!!
Gosto mesmo é de mulher e disso não tenho dúvida. Dava 5 por semana na patroa religiosamente, se é que se pode misturar religião nisso aqui, quando casei. Hoje não dá mais, né? 10 anos de casado... sabe como é. Mas não posso ver uma bonitona na rua que já fico todo ouriçado... aqueles cabelos, aquelas pernas... aquela sandália lindaaaa!!!!...ops!
Traveco gosta é de homem. Já ouvi falar de travesti sair com outra travesti, até com mulher.. mas não acredito não. Travesti sim, é viado, é bicha, gosta de homem, de dar o fiofó. Travesti com mulher? Onde já se viu? Tá certo que travesti vive mesmo é de ser ativo. Dizem que tem uns que viram macho na hora e que até assustam. Será? Não acredito. Pra mim, é tudo fruta. Podre!
Se tiver que escolher um rótulo, sou crossdresser. Transexual, acho que não sou. Afinal, não quero cortar nada. Mas preferia ser transexual a travesti. Cortava e virava mulher, mas travesti não quero ser.
Já pensaram? Uma travesti com um curso superior de primeira, que gosta de mulher, com filhos, empresária, falando 3 línguas, culta e fina? Hahahahahaha. Ridículo! Isso é coisa de crossdresser.
Bjs,

MARCIA ROCHA - !!!DEMAIS!!! "TRAVESTI COM MUITO ORGULHO"
(Vencato, 2009, p 79).

Enquanto as travestis em geral desprezam as crossdressers por levarem uma vida dupla, as crossdressers desprezam aquelas por viverem uma vida miserável. Na verdade, convivendo com ambos os grupos nos dias de hoje, entendo que ambos os grupos ao se desprezarem, expressam entre si muito pouco além de seus próprios recalques. Crossdressers invejam a livre expressão de gênero das travestis que, por sua vez, invejam a possibilidade que as crossdressers têm de uma vida melhor. Quanto à semelhança de suas identidades, creio que tudo o que foi demonstrado deixou-a bastante evidenciada.

IDENTIDADE DE GÊNERO

Tendo demonstrado em todas as pesquisas apontadas, travestis e crossdressers têm entre si mais semelhanças do que diferenças, sendo essas últimas praticamente contextuais, passamos agora a tentar demonstrar o motivo que leva alguém a essas práticas todas. Seriam meras performatividades lúdicas como algumas crossdressers afirmam, teriam unicamente como razão de ser a atração de homens como clientes para a prostituição, no caso das travestis, ou existe algo mais, algo interno que as impulsionam?

Vejamos alguns dados apontados nas pesquisas sobre as travestis:

Quatro informantes foram assassinadas durante o trabalho. Esses momentos, tensos e tristes, levaram-me a redimensionar e reavaliar minha presença entre as travestis. A essas mortes, extremamente violentas e mesmo aterrorizantes, somam-se outras dez por complicações derivadas do HIV/Aids. Além disso, houve dois suicídios no período. A perda de pessoas e das relações que haviam construído me conduziu a questionar o meu papel ali, em um grupo tão vulnerável, marcado pela violência e pela exclusão social.
Aprendi que a violência parece ser um código legítimo e possível no mundo da noite, tanto pelo anonimato como pela possível impunidade que caracteriza esse contexto. Ações violentas, físicas ou simbólicas, são dirigidas diariamente contra as travestis [...]
Ademais, as próprias práticas de transformação corporal que elas levam a cabo são violentas, pois machucam e provocam dor. (Benedetti, 2005, p 47).

As marcas deixadas pelas aplicações de silicone líquido e aquelas provocadas pelas cirurgias de implante de próteses de silicone são sempre exibidas com uma certa dose de orgulho e respeito, porque atestam os múltiplos esforços e investidas realizados para construir-se corporal e socialmente, enquanto travesti. (Benedetti, 2005, p 66).

Obter sucesso na transformação se sobrepõe aos cuidados com as DST e aids que o discurso oficial preventivo tem como prioritários em termos de saúde. (Pelúcio, 2007, p 111).

Em relação à saúde, estão mais preocupadas em corrigir algumas imperfeições como tornar coxas mais proporcionais às nádegas ou acertar no uso do hormônio. (Pelúcio, 2007, p 113).

O que o discurso preventivo parece não considerar é que o problema das travestis é o estigma, e não a aids [...] O que as coloca em permanente "risco" não é uma doença que pode levar até dez anos para se manifestar, mas a dor do estigma que as expulsa de casa, fecha a porta da escola e, consequentemente, restringe as possibilidades no mercado de trabalho. Essa constante abjeção restringe suas vidas ao competitivo mercado do sexo, à noite e às esquinas. (Pelúcio, 2007, p 150).

A excitação de quem vai bombar é visível, mesmo quando não é a sua primeira vez. Há grande apreensão, principalmente porque se fala muito, entre elas, da dor que se passa durante o processo. Teme-se também pelos resultados, mas não se fala muito sobre os possíveis problemas estéticos e de saúde que o silicone pode causar. Uma sessão de aplicação de silicone nas nádegas e quadris, a mais procurada, leva em média cinco horas. (Pelúcio, 2007, p 149, grifo nosso).

Se o hormônio é a feminilidade, a beleza e o nervoso, que confirmam os resultados da feminilização, o silicone é "a dor da beleza". (Pelúcio, 2007, p 258, grifo nosso).

O processo é dolorido, demorado e arriscado. (Pelúcio, 2007, p 259, grifo nosso).

Gisele confessa que gritou e chorou muito depois que fui embora, no dia anterior. Não conseguiu manter-se calma nos últimos furos. Estava deitada de bruços e parecia bem. Levantou-se apenas para que eu a fotografasse, aproveitou para ir até o quarto da bombadeira, onde Juliana Carão estava sendo bombada. Andando lentamente, retornou à posição inicial, queixando-se de dor nas costas. Apesar do incômodo da posição, é assim que deverá permanecer por pelos menos três dias, quando já poderá se banhar. Antes disso, deverá se levantar o mínimo possível, para que o silicone não escorra. Para que isso não aconteça é que são feitas as amarrações cuidadosas, em pontos específicos... Se bombar os seios, os cuidados devem ser ainda maiores. Sobretudo para a bombadeira, pois a proximidade com o coração e pulmão faz com que um erro nessa região seja fatal. (Pelúcio, 2007, p 265, grifos nossos).

Ingerir hormônios femininos em grandes quantidades e/ou submeter-se a longas sessões para bombar o corpo é a forma de entrada no mundo da travestilidade. As dores desses processos são compartilhadas, são dores públicas, que anunciam a iniciação da novata. (Pelúcio, 2007, p 280).

Com relação às crossdressers:

A alternativa de iniciar um processo de hormonização lhe era muito atraente, não obstante o medo que uma mudança corporal deste porte o denunciasse devido a uma aparência mais feminina. Seus colegas de trabalho, machistas, nunca o aceitariam se soubessem que passava uma parte de sua vida "como mulher". (Kogut, 2006, p 80).

Era um travesti lésbico. Pronto, era heterossexual convicto, mas ao mesmo tempo tinha minha alma feminina falando alto. Gostava de poesia, de filmes, me emocionava e chorava fácil – isso de tanto reprimir agora sumiu, uma pena, mas é a nossa casca masculina se impondo para a sociedade, né? Namorei a primeira vez, e a culpa aumentava, pensei em suicídio. Aliás, a ideia de me matar me perseguia e foi aí que comecei bestamente a me envolver com drogas e álcool, tomei meu primeiro porre aos dez anos de idade, e aos onze já cheirava éter e benzina, sempre vestida. Foi triste, deixei meu cabelo crescer aos catorze, sob os brados de meu pai e suas broncas mordazes, mas lutei e fiz, ele achava que era rebeldia. (Kogut, 2006, p 87, sobre email enviado por Natália, grifos nossos).

Finalmente, cabe ainda abordar uma versão que, ocasionalmente, é veiculada por alguns crossdressers. Trata-se da idéia de que o crossdressing seria somente um "hobby". Embora, alguns o pratiquem como se o fosse, no caso da maioria, é preciso dizer que o crossdressing envolve, diferentemente do "hobby", medo, culpa e principalmente questões de identidade. Assim, pode ser considerado hobby para aqueles que fazem isto só ocasionalmente, por exemplo, no carnaval, bem como para um dos pacientes de nossa amostra, mas não na maioria dos casos, nos quais a energia libidinal despendida é alta e a exposição social muito problemática. Ora, justamente uma das características do "hobby" é ter um lugar sancionando pela sociedade: aceita-se como" hobby" a filatelia, mas, certamente não, colecionar calcinhas de meninas de quatro anos. Devido ao crossdressing atingir o cerne da imagem que simboliza a identidade da masculinidade, devemos considerá-lo um fenômeno muito mais visceral do que uma mera atividade recreativa. (Kogut, 2006, p 93, grifos nossos).

Neste capítulo, discutirei a importância de sair na rua vestida de mulher, algo que é narrado pelas pessoas que pesquisei como uma experiência importante para a vivência de seus crossdressings, ao mesmo tempo em que é algo que tem implicações sobre suas vidas pessoais e a das pessoas com que se relacionam... Conforme descreverei, essas relações são delicadas e estão sempre sob risco de rompimento caso o crossdressing seja descoberto. O rompimento dessas relações é algo que é visto pelas interlocutoras de meu trabalho como algo indesejável, pois implica em perdas emocionais e econômicas. (Vencato, 2009, p 188, grifos nossos).

Embora no caso dessa associada o que a expôs não tenha sido a intervenção corporal, mas o fato da ex-esposa contar a seus pais que ele praticava crossdressing, mesmo decidida na ocasião a assumir o lado feminino fortemente, ele (sic) foi chamado a uma reunião de família em que os pais disseram que, caso resolvesse assumir isto para a própria vida ele seria deserdado - o que no caso significava uma grande perda financeira e a exclusão dos laços familiares, incluindo contato com os filhos que tinha com a esposa. (Vencato, 2009, p 192, grifos nossos).

Esses relatos, somados a todos os anteriores, demonstram que tanto travestis como crossdressers em geral, têm algo dentro de si algo que as impulsiona a agir no sentido de desejar construir uma expressão de gênero feminina. Algo que muitas vezes começa bem cedo na infância e tão poderoso que leva essas pessoas a arriscar ou mesmo romper laços familiares e afetivos profundamente importantes para realizarem essa construção; algo tão forte, que sobrepuja a dor de permanecer por horas submetendo-se a procedimentos extremamente dolorosos, intervir nos corpos das mais diversas formas, arriscar seus empregos, sua estabilidade financeira e, inúmeras vezes, a própria vida.

Esse "algo" interior é tão irresistível que, diante da não aceitação do mundo, da família, dos amigos e em razão das misérias existenciais por ele causadas, pode chegar a ser de tal modo insuportável à vida dessas pessoas, que leva inúmeras pessoas transgêneras ao suicídio.
Segundo reportagem publicada na Folha de São Paulo, "Mais de 40% dos estimados 700 mil transgêneros que vivem no país já tentaram se matar, ante 1,6% da média da população. Os dados compõem a maior pesquisa sobre transgêneros nos EUA até hoje, feita em 2011 pelo Centro Nacional pela Igualdade de Transgêneros com 6.400 pessoas".
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/233733-exilio-trans.shtml Acesso em: nov. 2015.

Ora, uma brincadeira como afirmam algumas crossdressers, mera performatividade repetitiva como sugere Butler ou mesmo a orientação sexual de alguém poderia ser razão suficiente para justificar tamanho desespero e sofrimento? Não poderiam travestis e transexuais simplesmente atraírem os objetos de desejo, como gays e lésbicas fazem? Não poderiam as crossdressers encontrar algum hobby menos danoso e arriscado como paraquedismo, por exemplo? Uma mera imitação ou reprodução daquilo que vêm, como sugere Butler, não deveria levar as pessoas trans a simplesmente imitarem os homens, como todos os demais machos da espécie fazem? Mais adiante demonstrarei através de alguns trabalhos científicos mais atuais, que identidade de gênero não se trata disso.

Simplesmente não há escolha

De todos os estudos examinados, o que definitivamente podemos ter certeza é que não existe uma escolha quanto à identidade de gênero que possuímos. Os indivíduos transgêneros não escolhem e simplesmente não podem deixar de sê-lo:

Como mencionado anteriormente, Hirschfeld em 1910, cunhou o termo travestismo para descrever pessoas que têm compulsão (urge) em se vestir com roupas do sexo oposto[...] Seu livro "TRANSVESTITES The Erotic Drive to Cross-Dress" (1991)37, apesar de escrito em 1910, apresenta uma visão bastante moderna sobre o travestismo.
Para além da questão científica e pessoal, havia também na motivação de Hirschfeld um aspecto político. A homossexualidade e manifestações tais como o travestismo eram consideradas comportamentos fora da lei (inclusive passíveis de prisão), assim, para o psiquiatra alemão era importante mostrar que, tanto a homossexualidade quanto o travestismo, não deveriam ser classificados como doenças, nem serem considerados "opções sexuais" sobre as quais o sujeito tivesse qualquer poder de escolha". (Kogut, 2006, p 32, grifos nossos).

Outro ponto a destacar na teoria de Stoller diz respeito aos três componentes da identidade de gênero por ele apontados. Para ele, o núcleo da identidade de gênero é imutável, constituída desde o nascimento e possui três componentes: a anatomia externa, as relações parentais com a criança e as forças biológicas em ação. (Kogut, 2006, p 32). (Kogut, 2006, p 58, grifos nossos).

Esse mesmo determinismo pode, por outro lado, ser acionado para justificar a sua condição como inescapável. Tornar-se travesti poderia ser uma escolha, mas sentir-se identificada com o feminino ou ter interesse sexual pelo masculino mesmo sabendo-se homem, seria algo com o qual "se nasce". Esse determinismo do "ser", mesmo que se queira apenas "parecer", é associado com as noções de "destino" e de "natureza", conjugando forças externas e internas, respectivamente, que seriam maiores que o indivíduo. (Pelúcio, 2007, p 100, grifos nossos).

Jéssica, do seu jeito hiperbólico, me dizia que "ser travesti é lutar contra toda a humanidade". Nessa reflexão sobre o que se é, resignação e resistência se encontram. É como se, internamente, não houvesse escapatória, ainda que seguir esse "destino" venha a significar um confronto com as normas socialmente estabelecidas. Negá-lo, porém, é se sacrificar de algum modo. Essa "condição" inescapável se dá, justamente, por estar no plano da internalidade do ser: da alma (espiritual), da cabeça (moral), dos "instintos" (biológico/físico)". (Pelúcio, 2007, p 285, grifos nossos).

Gendercare Clinic:
- Nenhuma terapia foi capaz, até hoje, de reverter as GID`s de forma radical;
- Jamais tentar fazer com que a criança, adolescente ou adulto "volte atrás e deixe de ser quem está consciente de ser"; em outras palavras, nunca tente fazer com que uma pessoa com GID deixe de ser GID;
- Por outro lado muitas "terapias" são capazes de torturar crianças e adolescentes, e de tornar adultos e jovens neuróticos, devido à insistência na possível reversibilidade, ou então tentando "moldar" a pessoa GID em função das convicções pessoais do "terapeuta". (Wal Torres, MS, PhD, grifos nossos).
GID ou Gender Identity Disorder significa Transtorno de Identidade de Gênero (nota nossa).
Disponível em: http://www.gendercare.com/download/PHP/index.php - gid2 Acesso em: nov. 2015.

Matéria publicada na Revista Veja em 05 de Novembro de 2015 por Ana Carolina Soares sobre Talita Oliveira:
Desde outubro, ela se refugia na Alemanha. Sente-se perseguida por pessoas do movimento LGBT e também por evangélicos. Até julho, ela era conhecida como militante da "cura gay", percorreu diversos programas de televisão e eventos, vários deles acompanhada pelo pastor e Deputado Federal Marco Feliciano.
Travesti desde a adolescência, sob o nome social de Talita Sayeg, passou a frequentar no início de 2014 a Assembleia de Deus e reassumiu seu nome de batismo, Thiago Oliveira. Cortou as longas madeixas, passou a usar roupas masculinas e tirou as próteses de silicone. Nessas múltiplas metamorfoses, buscava se firmar no emprego de cabeleireira (ela diz que se prostituiu algumas vezes, porque brasileiros não dão empregos a transexuais) e, acima de tudo, queria aceitação da sociedade, dela mesma e até divina. Depois de quase dois anos peregrinando pelo Brasil entre programas de televisão e igrejas evangélicas, chegou à seguinte conclusão: "Não existe cura gay! Não existem "ex gays"! Tudo é conveniência, medo e opressão psicológica das pessoas".
Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/blogs/sexo-e-a-cidade/2015/11/05/cura-gay-travesti-feliciano-militante-talita/ Acesso em: nov. 2015.




Teorias sobre identidade de gênero

Como demonstramos durante todo o trabalho, as expressões de gênero são performáticas, aprendidas e construídas de acordo com valores sociais de gênero inferidos do meio. No entanto, parece claramente existir algo interior que move os indivíduos na direção dessas apreensões e construções, ainda que totalmente contrário ao seu sexo biológico de origem, à lógica da sociedade e contrária até mesmo à lógica desses próprios indivíduos, impelindo-os a comportamentos arriscados, muitas vezes contra a vontade deles próprios, do mundo à sua volta, contra tudo e todos, mais forte do que laços familiares, afetivos, e até do que alguns instintos básicos como o de autopreservação e sobrevivência. Essa força motriz que contraria toda a lógica social, da medicina e até a lógica do próprio sujeito, é chamada de identidade de gênero, uma sensação interna de pertencimento em graus que variam de um indivíduo para outro, a um ou outro sexo biológico, macho ou fêmea mesmo, sensação essa que é representada para o indivíduo pelo gênero social historicamente construído que o meio lhe apresenta. Essa sensação interna é o que move a pessoa à busca de expressar esse gênero que sente como seu, nos moldes do gênero social em que está inserido, com a consequente busca de regras, valores e performances que poderão ser aprendidas, desenvolvidas, performatizadas.
Não se trata, assim, de mera imitação, mas de uma sensação interior geradora dessa necessidade de busca da imitação, em razão de uma identificação primária e anterior à socialização e que, se não satisfeita, permanece como uma constante insatisfação do inconsciente manifestando-se em forma de pulsões, cuja repressão ou conflitos internos pode culminar mesmo no surgimento de outros distúrbios e até em suicídio.
O que seria, então, essa tão poderosa Identidade de gênero? Diversas teorias de formação da identidade de gênero tentam explicar esse fenômeno humano:

Teorias psicológicas e psicanalíticas

A identidade de gênero, neste trabalho, será compreendida pelo modo como o sujeito se auto-define. Em geral, os sujeitos introjetam uma identidade que é socialmente construída a partir da combinação da anatomia, da orientação do comportamento sexual (e fantasias) e da persona sexual (roupas, trejeitos, discurso, etc.). (Kogut, 2006, p 96).
Este duplo modo de se relacionar com o objeto e a forte carga narcísica do prazer crossdresser torna plausível, do ponto de vista psicanalítico, atribuir ao crossdresser fixações do período pré-edípico e, em especial, no estádio do espelho. Neste período de estruturação da noção de Eu e objeto, ocorre em toda criança um processo de constituição da própria imagem a partir do outro visto e da visão que o outro tem dela. (Kogut, 2006, p 115).
Fazendo um breve apanhado das descrições que Butler faz sobre as teorias de Freud:
Freud isola o mecanismo da melancolia, caracterizando-o como essencial à "formação do eu" e do "caráter", mas só faz menção indireta à centralidade da melancolia no gênero. Em O eu e o id, ele discorre sobre o luto como estrutura incipiente da formação do eu, tese cujos rastros podem ser encontrados no ensaio de 1017, Luto e melancolia. Na experiência de perder um ser humano amado, argumenta Freud, o eu incorpora esse outro em sua própria estrutura, assumindo atributos do outro e "preservando-o" por meio de atos mágicos de imitação. A perda do outro desejado e amado é superada mediante um ato específico de identificação, ato esse que busca acolher o outro na própria estrutura do eu: "Assim, refugiando-se no eu, o amor escapa à aniquilação" (apud p.178). Essa identificação não é meramente momentânea ou ocasional, mas se torna uma nova estrutura da identidade; com efeito, o outro se torna parte do eu através da internalização permanente de seus atributos. (Butler, 2015, p107).
Continuando a autora sobre as mesmas teorias:
Na sequência deste capítulo sobre "O eu (Ego – nota nossa) e o supereu (superego – nota nossa), contudo, vemos que não é meramente o "caráter" que está sendo descrito, mas igualmente a aquisição de uma identidade de gênero. (Butler, 2015, p 108).

Causas biológicas

Inúmeras teorias, estudos médicos e biológicos têm buscado causas físicas para explicação da transgeneridade de modo geral, incluindo transexuais, crossdressers, travestis e outros grupos que não se identificam com o gênero correspendente ao sexo biológico, absolutamente nenhuma podendo ser considerada conclusiva e universal até o momento. Apontamos alguns desses estudos que tentam imputar à formação anatômica cerebral, como outros que sugerem haver uma alteração hormonal durante a gestação.
Gendercare Clinic:
1. A identidade de gênero, sendo uma auto - percepção, é um desenvolvimento dinâmico que tem como parte central, o cérebro;
2. Dentro do cérebro, a parte fundamental é a do cérebro "reptiliano", incluindo o hipotálamo, stria terminalis, amygdalas e sistema límbico, entre outros possíveis núcleos basais;
3. Genes, hormônios, o tempo no interior do útero, são fatores fundamentalmente importantes que afetam a formação da identidade de gênero;
4. Mesmo sendo muito importante, o cérebro não é o único fator importante no desenvolvimento da identidade de gênero;
5. O desenvolvimento da identidade de gênero é um processo complexo, que está relacionado a muitas causas gerando muitos efeitos. Esse processo tem controles e variáveis conhecidos e outros desconhecidos;
6. Com ou sem um desenvolvimento sexual normal típico, podem haver desenvolvimentos inesperados quanto à identidade de gênero, como eventos extremos com baixa probabilidade;
7. Devido à evolução inesperada de eventos extremos com baixa probabilidade, podemos dizer que o desenvolvimento da identidade de gênero é tipicamete caótico e determinístico (com base genética e orgânica);
8. Devido a esse padrão caótico, para cada indivíduo, mesmo com o desenvolvimento sexual "normal" típico, não podemos ter certeza, "a priori", como será esse desenvolvimento. Assim, poderemos definir para cada indivíduo uma imprevisibilidade intrínseca - mesmo que a coletividade apresente um padrão;
Disponível em: http://www.gendercare.com/Brasil/pointsP.html Acesso em: nov. 2015.

Como última e conclusiva colocação sobre formação da identidade de gênero, exponho os dados do brilhante trabalho apresentado recentemente pelo Doutor Milton Diamond, no último Congresso mundial da World Association for Sexual Health (WAS), em julho de 2015, Singapura, fruto de suas pesquisas de mais de quarenta anos sobre intersexuais e transexuais em todo o mundo. Esse trabalho não apenas traz conclusões que coadunam com nossas exposições anteriores, como demonstra e comprova de forma totalmente científica aquilo que sempre entendemos como correspondendo à realidade:

(Fotografia nossa)

(Fotografia nossa)

O pesquisador apresentou uma série de estudos existentes sobre possíveis motivos físicos ou biológicos para a transgeneridade:

O cérebro é uma tendência
- Dados de escuta dicótica
- Dados de estudos olfativos
- Dados neurológicos do cérebro
- Dados do trato cerebral
- Dados do Corpus Callosum cerebral (fibras nervosas que ligam os dois hemisférios cerebrais)
- Dados genéticos sobre receptores de androgênio
- Dados sobre dentição
(Tradução nossa)

Como mencionei anteriormente, nenhum desses trabalhos é comprobatório de que algo biológico determine a identidade de gênero. No entanto, demonstram haver dados suficientes para mostrar uma influência do biológico sobre sua formação. Entretanto, o referido doutor prossegue em sua demonstração que continuamos a relatar.




Em seguida, o pesquisador apresenta os resultados de uma pesquisa feita com gêmeos idênticos ou univitelinos e outros diferentes ou polivitelinos. Os dados mais relevantes de todo esse trabalho estão representados no quadro abaixo. Além da tradução, farei uma análise dos mesmos:

(fotografia nossa)

Concordância de gêmeos em transição para masculino e feminino.
Distribuição das respostas encontradas em pesquisas bibliográficas e de observação direta, combinadas.
Sexo (bio) Carcterísticas Concordância Totais
Zigóticas


SIM

NÃO
NUMERO TOTAL
CONC. SIM%
Masculino
Monozigoto
7+6 = 13
10+16 = 26
39
13/39 33,3%

dizigoto
1+0 = 1
9+11 = 20
21
1/21 4,8%






Feminino
monozigoto
5+3 = 8
9+18 = 27
35
8/35 22,9%

dizigoto
0+0 = 0
2+15 = 17
17
0/17 0%






Totais

13+9 = 22
30+60 = 90
112
22/112 19,64%
Trabalho completo sobre gêmeos disponível em: http://www.hawaii.edu/PCSS/biblio/articles/2010to2014/2013-transsexuality.html Acesso em: nov. 2015.
Façamos, então, uma avaliação dos dados apontados:
Dos 74 casos de gêmeos idênticos, univitelinos ou monizigóticos estudados, masculinos e femininos, cuja genética e gestação eram idênticas, apenas 21gêmeos se tornaram transgêneros quando o irmão ou irmã também se tornou. Isso representa 29,5% dos casos. Ora, se a genética ou algo durante a gestação determinassem a transgeneridade, esses números deveriam estar muito próximos a 100%, o que não acontece. Ressaltamos que nesses casos, além de serem absolutamente idênticos geneticamente, os irmãos ou irmãs passaram exatamente pela mesma experiência intra uterina, seja hormonal ou de qualquer outra sorte, ao que podemos concluir que tais fatores não determinam a existência da transgeneridade.

Dos 38 casos de gêmeos diferentes, polivitelinos ou dizigóticos estudados, houve apenas um caso em que ambos os irmãos eram transgêneros, embora tenham passado pela mesma gestação e experiências dentro do útero materno, o que representa praticamente zero % dos casos ou, mais precisamente 0,26%. Essa diferença para a estatística anterior demonstra claramente que a genética tem uma influência importantíssima na manifestação da transgeneridade, embora não a determine, assim como demonstram que experiências dentro do útero, inclusive influências hormonais, não influenciam na determinação do gênero, ao contrário do que muitas teorias médicas supunham até o momento.

Por outro lado, uma vez que a genética influencia a formação da identidade de gênero mas não a determina, fica óbvio que algum fator externo a esses indivíduos consolidou a manifestação dessa ocorrência, após o nascimento, nos gêmeos com formação final da identidade de gênero distinta entre si, que é a maioria na pesquisa.
Assim sendo, apresento as conclusões do brilhante Doutor Diamond:

(fotografia nossa)
Conclusões sobre a evidência transexual:
Genitais não determinam o gênero
O ambiente social de criação não determina o gênero
A cultura não determina o gênero
Esses fatores podem influenciar a demonstração do gênero, mas não a determinam.
Forças pré natais (genéticas e endócrinas) determinam o desenvolvimento psico sexual, ou seja, eles organizam o cérebro para fomentar as manifestações de gênero.
Eventos pós natais interagem com essas predisposições para estruturar o comportamento.
(Tradução nossa)

Assim, enquanto o gênero social como proposto por Bouvouir e Butler, compreendido como um conjunto de atributos socialmente considerados feminino e masculino é indiscutivelmente algo cultural, mutável em razão da época ou povo ou local onde ocorre, construído historicamente e que traz em si valores discutíveis, muitas vezes nocivos aos indivíduos e possíveis de desconstrução, a identidade de gênero, ou seja, a sensação interior correspondente a ser masculino ou feminino não o é.
Identidade de gênero é algo subjetivo que tem uma base biológica como predisposição, sobre a qual o meio, as experiências e inferências subjetivas de cada indivíduo, partindo das identificações primárias com a mãe, o pai e outras pessoas de sua convivência, inclusive quanto ao gênero social, vão determinar essa sensação de pertencimento, poderosa e imutável, impelindo o sujeito à busca de expressões correspondentes àquilo que ele sente, expressões essas sempre espelhadas naquilo que ele pode ver, sentir e, assim, inferir ou absorver do meio, ou seja o gênero socialmente construído e expresso, correspondente ao sexo biológico com o qual se identifica, que são as tais "ferramentas disponíveis" como Butler as denomina, ou seja, as manifestações sociais de gênero.

Nesse sentido, devo acrescentar um fato curioso apurado por mim: Em toda a minha vida, as únicas mulheres que ouvi dizerem que gostariam de menstruar, eram mulheres transexuais!

A título de resumo de tudo o que foi exposto, percebemos que:

Gênero social é o conjunto de expressões, regras e valores culturalmente atribuídos a "feminino" e "masculino".
Identidade de gênero é a sensação subjetiva e, portanto, variável de uma pessoa para outra, embora imutável para cada indivíduo depois de formada, de pertencimento a um gênero, a ambos ou a nenhum deles.
Expressão de gênero é a forma como cada indivíduo manifesta ou deseja manifestar sua identidade de gênero, na forma e com as características subjetivas como ele a sente, baseando-se no gênero social correspondente a essa identidade em sua cultura.


Vejamos a seguir, outro dado interessante apontado na continuidade da apresentação do Dr. Diamond:

Aproximadamente 1,5% da população holandesa delcarou, em um estudo representativo em larga escala feito pelo Rutgers-Nisso Group, que eles se identificavam mais como pertencendo ao sexo oposto do que ao gênero designado ao nascimento. Quase 3% da população masculina dos países baixos se identifica como crossdresser.
(Tradução e fotografia nossa)

Baseando-se nessa pesquisa, verificamos que na Holanda há 1,5% de pessoas transgêneras, sendo que é um país bem menos intolerante e com um povo bem mais esclarecido que o Brasil, onde seria teoricamente mais fácil assumir-se ou mesmo compreender a si mesmo, em razão do acesso à informação e educação de qualidade. E com base nas conclusões anteriores desse trabalho, de que crossdressers nada mais são do que transgêneros "no armário", tendo ou não consciência disso, imaginamos se tal porcentagem de 3% da população, apresentada na pesquisa acima, não seria aproximadamente a correspondente à realidade humana em geral, inclusive no Brasil.
Ainda que mantivéssemos essas porcentagens apenas como base ilustrativa e a título meramente especulativo, projetando tais porcentagens sobre a população do nosso país, poderiam haver no Brasil 3 milhões de pessoas transgêneras conscientes e expostas ou não, bem como 6 milhões de crossdressers, perfazendo um total de 9 milhões de pessoas com alguma discordância sensível de gênero, o que tornaria essa minoria bastante considerável enquanto grupo político reprimido e oprimido por questões relativas a gênero em nosso país.


Gênero é uma característica exclusiva de pessoas trans?

Ora, em sendo a expressão do gênero aprendida e reproduzida por pessoas trans, mas o desejo de fazê-lo, uma força identitária subjetiva, poderosa e incontrolável chamada identidade de gênero que impele o sujeito a buscar parecer-se o mais possível com o gênero e as características de gênero com as qual se identifica, nos parece bastante lógico imaginar que tal fenômeno deva ocorrer da mesma forma com pessoas cisgêneras ou gênero concordantes.
Quando a identidade de gênero de alguém corresponde mais proximamente às características entendidas pela sociedade como correspondentes ao sexo biológico de nascimento, embora esse "gênero nunca possa ser completamente internalizado" como afirma Butler (2015, p 243), em razão das características socialmente construídas serem "fantasísticas", além da subjetividade de cada um ao inferi-las, tal identidade de gênero e suas expressões simplesmente passam despercebidas, como algo natural dessa pessoa. No entanto, se os graus de identificação com feminino e masculino variam entre pessoas trans e dependem de uma infinidade de fatores biológicos e do meio, como demonstrado, então mulheres e homens cisgêneros ao sofrerem os mesmos processos, acabarão tendo identidades de gênero igualmente múltiplas e diversas entre si. A questão é que, por mais que exista uma infinidade de identidades de gênero e consequentes infinitas manifestações de gênero entre as pessoas em geral, elas não são tão perceptíveis na população cisgêneras como o são nas pessoas trans.

Não é necessária uma pesquisa detalhada para comprovação dessas afirmações, basta olhar à nossa volta e reparar nas pessoas cisgêneras para ver que suas identidades de gênero e respectivas expressões são tão diversas quanto suas digitais. Da mesma forma que ninguém é igual a ninguém, nossas identidades de gênero também não o são. Qualquer homem ou mulher cisgênero, partindo de seus aspectos biológicos únicos e suas experiências igualmente únicas, inferindo manifestações sociais de gênero totalmente diversas em razão dos modelos existentes em seus ambientes, terá identificações maiores ou menores com cada aspecto de gênero existente no meio à sua volta, entre eles expressões e mesmo valores, consolidando as mais diversas identidades de gênero, que jamais serão iguais entre si.
Desta forma, por exemplo, uma mulher pode sentir-se muito feminina dentro do que sua cultura entende como tal, e outra bem menos ou nada, podendo ainda identificar-se com o masculino em algum grau ou até de forma extrema, como acontece com os transexuais masculinos (FtM). Esse fenômeno é meramente uma ocorrência natural e de modo algum deveria ser considerada uma patologia. Ora, se o fato de um "homem biológico" desejar usar saia e salto alto deva ser considerado uma doença por não ser algo natural, então também deveria ser considerado doença para uma mulher biológica que tenha esse mesmo desejo, uma vez que não é um comportamento advindo da natureza. Sem sombra de dúvidas, uma índia Ianomâmi afirmaria que tal comportamento é completamente insano para qualquer mulher. Do mesmo modo que uma "mulher biológica" pode não gostar ou sentir-se bem usando saias ou sapatos de salto alto, burca, véu, biquíni ou maquiagem, pode querer dirigir caminhão ou ir para a guerra e nem por isso deixará de ser considerada uma "mulher natural" ou uma pessoa doente em nossa sociedade, a menos que declare "sentir-se" um homem.


Foto de índias Ianomâmis:

Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=%C3%ADndio+ianom%C3%A2mi&biw=1280&bih=929&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0CCwQsARqFQoTCNjL4sr5gMkCFQMXkAodkUcL2g#imgrc=mMR9xrFVP59qyM%3A Acesso em: nov. 2015.

Portanto, o erro da medicina, das ciências sociais, do direito, da moral e das religiões, vem sendo justamente a suposição de que existe um modelo ideal de masculinidade ou feminilidade "verdadeiro" a ser seguido, sendo que existem tantas possibilidade de identidade de gênero quanto há seres humanos no planeta. O problema é forçar-se e até mesmo obrigar-se seres humanos a deixar de serem humanos, precisando negar sensações e desejos íntimos que simplesmente ali estão, e os quais não escolheram ter, para performatizar e fingir um enquadramento a padrões culturalmente criados, cujos moldes e valores não são questionados cientificamente, muitos deles prejudiciais a praticamente todos os indivíduos que compõem essa própria sociedade, na medida em que cria sujeitos infelizes, insatisfeitos e problemáticos.
Nesse sentido, a Teoria Queer surge para apontar essa estrutura cruel, buscando uma reestruturação social com maior liberdade, igualdade de direitos e respeito às diferenças. Nas palavras de Richard Miskolci, em seu livro Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças, 2. Ed. Belo Horizonte, editora Autêntica, 2012, p 61:

Temos que encarar o desafio possível de lidar com a sexualidade como algo cultural e que influencia todos os aspectos da nossa vida em sociedade. Precisamos repensar nossos modelos de recusa, mas também os de aceitação. Nesse sentido, temos que olhar mais criticamente para as representações culturais com as quais vivemos, nos divertimos e também aprendemos. Poderíamos tentar inserir ruído, inserir dúvida sobre coisas que antes ainda eram vistas como naturais ou indiscutíveis.

Assim, o que devemos combater, principalmente no âmbito dos direitos humanos, são valores ou regras socialmente associados a gênero e sexualidade, histórica e culturalmente construídos, que causam profundas injustiças não somente para pessoas transgêneras, mas também para pessoas cisgêneras, especialmente para as mulheres, como vem apontando o movimento feminista há décadas e demonstrado no início desse trabalho.
Ressalto que, a meu ver, não há nada de errado na existência do gênero social ou de diferenças existentes entre o que é considerado masculino e feminino desde que não cause mal a ninguém. Obviamente, não há mal algum em uma mulher desejar ser mãe, cuidar da casa e dos filhos, assim como um homem também pode desejar fazê-lo. O problema é a imposição de regras, proibições e valores a ele incorporados de forma universal e inquestionável, bem como a ocorrência de violências de toda sorte, dele decorrentes, atreladas unicamente à existência de um pênis ou vagina, sem reconhecimento e respeito à individualidade, subjetividade e diversidade dos sujeitos, suas sensações, desejos e projetos de vida.
Ao observar tais injustiças, tendemos a combater o próprio gênero, ou pior ainda, as próprias diferenças biológicas entre os sexos, sem perceber que mulheres e homens cisgêneros simplesmente podem estar plenamente satisfeitos em seus papeis, corpos e performances, seja em nossa cultura ou em qualquer outra, sem que isso devesse implicar obrigatoriamente em desigualdades. Faz-se urgente e necessário que os estudos de gênero apontem quais são, e em que medida, esse valores extremamente opressores, instrumentos de manutenção do poder machista, patriarcal e mesmo econômico.
Assim, o gênero social não é o mal por excelência, como chegam a sugerir algumas pessoas, mas simplesmente algo que a cultura criou ao longo da história de seu desenvolvimento e que reproduzimos sem avaliar suas consequências. O mal está na pouca maleabilidade e falta quase absoluta de questionamento e adequação dos valores associados aos gêneros à realidade atual. Tais valores historicamente criados podem ter tido, talvez, algum razão histórico ou sentido lógico em um passado distante, mas vêm sendo mantidos e reproduzidos sem avaliação, como "verdades" absolutas, muitos deles sendo atualmente meros e injustificáveis meios de opressão e manutenção de poder, causando verdadeiras torturas físicas e psíquicas a enormes grupos de pessoas, se não a todas elas. Como costumo chamar, são "resquíscios evolutivos morais", sem quaisquer embasamentos lógicos ou fundamentos científicos que justifiquem sua permanência enquanto regras sociais ou leis nos dias de hoje, mas que se perpetuam por interesses de alguns grupos dominantes por puro interesse egoísta na manutenção do Status Quo, obrigando a população a uma hipocrisia extrema ou a uma vida de sofrimentos e injustiças atrozes.

"Com relação à sexualidade, existe uma enorme diferença entre o direito à privacidade e a obrigação de mantê-la oculta".
Márcia Rocha – Congresso da WAS, Singapura, Julho de 2015.








Para finalizar esse trabalho, faço minhas as palavras finais do Dr. Diamond em sua apresentação, trazendo o quadro abaixo em que afirma de forma tão brilhante quanto seu próprio nome:

A natureza ama a variedade. A sociedade a odeia.
(Tradução e fotografia nossas)


















Apêndice

Minha história

A título de exemplificação empírica e ilustração, apresento trechos de minha própria história, citada em artigos e entrevistas publicados:
Tenho duas lembranças muito antigas, que explicam muito a mim mesma. A primeira, é de um dia em que procurei minha mãe em casa. A empregada estava arrumando seu guarda roupas, a porta estava aberta e perguntei por ela, ao que a moça me respondeu que ela não estava. Lembro da sensação de frustração, quase uma dor, como se ela nunca estivesse, como se sentisse uma falta imensa dela dentro de mim, com um pouco de raiva também. Vendo seus sapatos no armário, peguei alguns, levei ao meu quarto e fiquei brincando e me esfregando neles. Eu não podia ter mais do que quatro anos.
A segunda é dos primeiros dias do jardim de infância, quando eu permanecia sempre com as meninas. Havia um momento em que pegávamos tapetezinhos para dormir, meninas de um lado da sala, meninos de outro. Eu ia sempre ficar com as meninas, até que um dos coleguinhas começou a reclamar e a professora me disse para ficar com os meninos, que eu era menino. Apenas lembro-me da sensação de frustração e raiva, de que não queria mais ir para a escola. Mais tarde, tendo que enfrentar a situação, percebi que não haveria escolha e passei a me comportar como menino, até exageradamente, iniciando uma performance masculina que jamais condisse com minha identificação subjetiva. Eu não tinha dúvidas quanto a ser fisicamente menino, nunca achei que meu corpo estava errado ou algo assim, apenas tinha a certeza absoluta de que meu lugar era com as meninas, que aquele era meu universo. Nascia ali minha dupla expressão de gênero, uma para o mundo e outra para mim mesma.
Durante toda a infância, me vestia escondida com as roupas de minha mãe, de minha irmã ou com qualquer roupa feminina que pudesse usar, sem que ninguém percebesse. Aos oito ou nove anos, já me "montava" completamente, me maquiava como observava as mulheres de minha vida fazerem, ficava por horas assim sempre que podia. Aos treze, contei a um amigo meu o que fazia. Ele me ajudou a escolher o nome de Márcia e até hoje acompanha minha trajetória. Também foi ele quem me disse que as travestis tomavam hormônios femininos para ter corpos de mulher. Os corpos das colegas da escola mudavam, ganhavam seios e curvas, enquanto o meu não acompanhava tais mudanças quando eu me montava, causando insatisfação. Sem pensar muito, fui conversar com uma travesti na rua, que me disse o que tomava. Fui à farmácia, comprei e passei a tomar.
Em alguns meses, meus seios doloridos despontavam sob a blusa da escola. Meu pai percebeu e me perguntou o que estava acontecendo, ao que menti que não sabia. Ele me levou a um médico urologista seu amigo, que me examinou e pressionou para contar o que estava fazendo. Não tive escolha senão contar.
Ambos ficaram longamente me dizendo os efeitos que isso teria em minha vida, eu irredutível, decidida a ser o que sempre desejei, uma menina. Somente quando o médico me disse que eu ficaria estéril, que não poderia ter filhos, foi que mudei de ideia. Eu gostava de meninas, queria muito ter uma família, então concordei em parar. Essa nova fase de minha vida foi marcada por dois sentimentos conflitantes: Eu sempre desejava que meu corpo mudasse, chegava a tomar hormônios escondida, para depois lembrar do que aconteceria, entrar em pânico e parar. Isso se deu em vários momentos de minha vida, às vezes por períodos curtos, outras por longos períodos. Nunca deixei de me montar e produzir como mulher, até os quarenta anos quando, já tendo uma filha do primeiro casamento e casada pela segunda vez, fiz um depósito em um banco de espermas e passei a me hormonizar definitivamente, terminando por assumir de vez e publicamente, minha identidade de gênero feminina.
Muitas coisas aconteceram em minha vida, nas diversas áreas em que atuamos enquanto seres humanos. Tentei muitas vezes "esquecer" essa coisa dentro de mim, lutei contra ela, sempre para me ver novamente cedendo. Sem compreender o fato de me sentir mulher e gostar de mulheres, o que me parecia totalmente ilógico dentro do senso comum de que travestis seriam gays exagerados, desde os quatorze anos pesquisei tudo o que podia encontrar sobre sexualidade. Somente décadas depois, com o avanço das ciências e aprofundamento nos estudos de gênero e sexualidade, pude finalmente encontrar respostas e compreender realmente o que acontecia comigo. Olhando para trás, percebi que me casei sem amor na primeira vez, simplesmente porque queria ter uma filha, para tentar acabar com meu conflito interior e poder ser eu. Ao mesmo tempo, depois do primeiro divórcio, eu construía toda uma vida de "homem", empresára, com namoradas e vida social que cada vez tornava mais difícil a decisão de me assumir.
Descobrindo o Brasilian Crossdressers Club, percebi que havia muitas outras pessoas como eu, passando a frequentar o grupo de forma assídua. Assim como eu, a grande maioria das crossdressers vive uma vida dupla, onde o desejo de expressão da feminilidade interior pesa como em um prato de balança, contra todas as exigências do meio e da vida. Esse equilíbrio alterna-se durante todo o tempo, pendendo mais para um ou outro lado, conforme o momento, as frustrações e as exigências da vida lá fora, em contraposição ao desejo interno, nem sempre plenamente claro, de ser quem se é.
Hoje, assumida, com o corpo modificado conforme meu desejo e namorando uma mulher assumidamente lésbica, percebo que gênero não apenas faz parte de nossa identidade, como orienta nosso desejo. Depois que me hormonizei e fiz as modificações em meu corpo, as mulheres em geral deixaram de me olhar com interesse do ponto de vista sexual. Cheguei a pensar que nunca mais teria um relacionamento sério em minha vida, até que alguém sugeriu que eu experimentasse ir a festas e casas noturnas voltadas para o público lésbico. Voltei a ter esperanças de encontrar alguém, pois descobri que era desejada!Sempre desejei mulheres femininas, ou o que para mim isso significa. O que me atrai também faz parte desse conjunto de identificações que se forma dentro de nós, o que achamos bonito ou feio.
Convivendo hoje com travestis no meu dia a dia, percebo que as diferenças para com crossdressers é muito mais conjectural do que identitária. Venho tentando aproximar esses grupos, com pouco sucesso, o que demonstra claramente para mim que as chamadas identidades políticas deveriam ser mais tolerantes umas com as outras e juntar forças. Cada grupo de militância, seja de travestis, transexuais, lésbicas, feministas, deficientes, de negros, minorias religiosas, sociais, entre outros, buscam defender as suas "verdades", enquanto, muitas vezes, condenam e atacam de forma intolerante as características dos demais, reforçando o sistema de controle e opressão que lhes afeta diretamente. Costumo dizer que todas as minorias unidas, são na verdade a grande maioria da humanidade e só mudaremos realmente as coisas quando compreendermos que a diversidade nada mais é do que uma característica humana, passando a defender todos os seres humanos igualmente.
Também percebi o quanto gênero, enquanto construção social é um instrumento de imenso controle e poder doutrinador e opressor sobre as mulheres e mesmo sobre os homens, obviamente com menores consequências para esses, passando a incorporar o discurso e demandas feministas em minha luta. Depois que me assumi, passei a sofrer assédio diário nas ruas e nas redes sociais. Se o corpo da mulher é entendido como objeto pelos homens, existe a ideia de que os corpos das travestis existem unicamente para seu uso, sem respeito pela pessoa que o possui. É extremamente comum receber propostas para fazer sexo, mas nunca me convidaram para ir ao cinema ou à padaria. Pelo contrário, mesmo aqueles com quem tive alguma relação jamais aceitaram andar comigo na rua ou sentar para tomar um shopp, mesmo como amigos. Os chamados T lovers nos adoram, desde que distante dos olhares públicos e, principalmente, de suas esposas.
Finalmente, entendo que não há nada de mal em uma mulher ser feminina, delicada, gostar de se produzir como uma boneca ou mesmo um homem ser masculino, forte, bombado, da forma como se identificam e se sentem bem. O problema é a imposição de padrões e valores, obrigando as pessoas a serem magras, "bonitas", bem sucedidas e "bem vestidas", saudáveis, brancas, cultas... com terríveis punições, bullings e negações de direitos a quem não se enquadra, impedindo a livre expressão de suas identidades múltiplas, diversas e ao mesmo tempo singulares, garantindo a cada um o direito a dispor do próprio corpo e se expressar da forma como mais lhe agrada. E ainda mais, o problema maior da humanidade é a reprodução de "certezas" sexistas, machistas e disfarçadas de "naturais", oprimindo seres humanos em razão de suas características.
Atualmente, talvez a mais evidente dentre essas relações de poder, seja a opressão das mulheres em razão simplesmente de serem mulheres. Há países onde se retira o clitóris de meninas, sob pretextos religiosos, simplesmente para que nunca sintam prazer sexual. A mulher deve evitar ao máximo a exposição do seu corpo para não provocar o desejo dos homens, é a única responsável por uma gravidez indesejada, ainda que decorrente de um estupro, não é considerada igual no ambiente de trabalho, entre tantas outras injustiças, e as travestis são ainda mais culpadas, talvez porque desejam se rebaixar à essa categoria.
Curiosamente, nunca senti vontade de me vestir e me expressar como homem, mesmo que isso pudesse me trazer vantagens em algumas situações. As poucas roupas masculinas que me sobraram estão esquecidas em caixas, da mesma forma que as lembranças de quase toda uma vida que parece nunca ter sido minha realmente. O que posso dizer é que estou melhor comigo mesma, com meu corpo, com meu espelho, embora sair de casa seja sempre um "enfrentar o mundo".
Se posso dizer que sou mais feliz hoje, depois de assumir? Sinceramente não sei, pois troquei a mentira, a hipocrisia e a repressão de mim mesma pela mentira, hipocrisia e repressão do mundo sobre mim.
O ideal? Ora, o ideal não existe. Ao menos, ainda não!




Referências

Minha história pessoal, mais detalhadamente descrita, pode ser encontrada em:

Entrevista concedida a Maura Roth, no programa Saladanet, canal Net.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QHwWK81bXj4 acesso em nov. 2015.
Entrevista concedida a Alex Solnik e publicada para o jornal Brasil 247 em 9 de Setembro de 2015.
Disponível em: https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/196214/%E2%80%9CEu-posso-tomar-um-tiro-na-cara-a-qualquer-momento%E2%80%9D.htm acesso em nov. 2015.
Mentes da Contramão: perfis da contramão, Larissa Calderari et all, Editora Opção, 2012 p 57-64.
Mulheres Genéricas, Kizzy Fonseca e Vanessa Faria, editora Multifoco, 2012, pg 19-27.

Anna Paula Vencato é graduada em Pedagogia e Mestre em Antropologia Social pela Universidade do Estado de Santa Catarina e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Existimos pelo prazer de ser mulher: um olhar antropológico sobre o Brazilian Crossdresser Club, 2008.
http://www.ppgsa.ifcs.ufrj.br/teses-e-dissertacoes/existimos-pelo-prazer-de-ser-mulher-uma-analise-do-brazilian-crossdresser-club/ acesso em nov. 2015.

Eliane Chermann Kogut é graduada em Psicologia, Mestre e Doutora em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Crossdressing Masculino: uma visão psicanalítica da sexualidade crossdresser, 2006.
Disponível em http://www.bccclub.com.br/teste/teses/ElianeKogut.pdf acesso em nov. 2015.

Judith Butler. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. 08. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, 287p.

Larissa Maués Pelúcio Silva é graduada, Mestre e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos, Pós Doutorada pela universidade Estadual de Campinas na área de Antropologia.
Nos Nervos, na Carne, na Pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo preventivo de AIDS, 2007
Disponível em: http://www3.crt.saude.sp.gov.br/arquivos/pdf/publicacoes_dst_aids/Larissa_Pelucio_travesti.pdf, acesso em nov. 2015.

Marcos Renato Benedetti é graduado em Ciências Sociais, Mestre em Antropologia Social e Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor do livro Toda Feita: o corpo e o gênero das travestis, 01. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, 142 p.

Milton Diamond, apresentação no CONGRESSO MUNDIAL da World Association for Sexual Health (WAS), 28 de Julho de 2015, Singapura.



O Ser

Me olhe como quiseres
que hoje já não ligo mais.
Críticas que a tantos ferem,
há muito só ferem os demais.

Sigo de cabeça erguida
ignorando os passantes,
suas feições descabidas,
deboches, sorrisos infames.

Vivo na ilha segura
de minhas convicções,
onde o espelho é ternura,
verdade sem ilusões.

Tu, que já não compreendes
minha maneira de agir,
deixo esquecido na mente,
já não me podes atingir.

Pelo que sou não me culpo,
cabeça erguida mantenho
e ao mundo não me desculpo
ignorando seu cenho.

Sou o que sou, já não nego,
desfilo, assim, entre os demais
e às regras terrenas renego
sem arrepender-me jamais!

Sou mais um fruto da vida
que vocês terão que engolir,
sou livre, guerreira e sofrida,
sou homem e mulher, travesti.

Márcia Rocha
17/03/2009

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