O gesto de reescrita muriliana: por uma edição crítica e genética Mariana Novaes

May 30, 2017 | Autor: Mariana Novaes | Categoria: Murilo Rubião, Crítica Genética, Arquivos Literários
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O gesto de reescrita muriliana: por uma edição crítica e genética Mariana Novaes1

Desde a publicação de seu primeiro livro, O ex-mágico, em 1947, Murilo Rubião (1916–1991) abriu, solitário, caminhos até então inéditos na literatura brasileira. O lugar atípico, utópico – para não dizer o não-lugar – ocupado por Murilo Rubião se manifesta não apenas pela temática e estilo original de sua literatura, mas também pelo caráter de filólogo de sua própria escrita e de editor de sua própria obra. Cada particularidade de sua literatura (a temática, as epígrafes, o gesto de escrever e reescrever e as inúmeras edições que foram meticulosamente preparadas pelo escritor) abraça conscientemente o projeto literário muriliano. Personagem central na vida literária e cultural de Minas Gerais, Murilo Rubião publicou em vida apenas 32 contos, sendo muitos deles constantemente e até a morte reescritos e reelaborados, sujeitos a inúmeras revisões, modificações e transformações, chegando alguns a apresentarem mais de cinco versões diferentes. Assim, se a priori sua obra é considerada como condensada, na verdade, o processo constante de fazer e refazer, que se reflete nas republicações e reedições de seus contos, torna Murilo Rubião um autor de obra vasta. Desses 32 contos, trinta foram reescritos e neles encontramos também mais de cem republicações, variantes de cada conto, que multiplicam a leitura, complementam a interpretação e recuperam a memória do texto. Distribuídos em sete volumes e várias reedições, os contos publicados em vida pelo escritor e a organização feita por ele obedecem a um projeto literário consciente, de constante revisão, de repetição temática e, segundo Rubião, contendo apenas três livros: Isso surgiu principalmente depois da publicação de meu primeiro livro, O ex-mágico, em 1947. Fiz várias releituras e verifiquei que tinha tanta coisa ruim que, ao reeditá-lo, anos depois, retirei três dos quinze contos do livro original, e os outros doze reescrevi violentamente, cortando parágrafos e até páginas inteiras. Fiz o mesmo com o segundo livro, Os dragões. Mais tarde, quando a Editora Ática me pediu uma Professora ATER (Attaché temporaire d’enseignement et de recherche) na Université de La Rochelle, membro e doutoranda do CRLA-Archivos. 1

seleção de contos, que publiquei com o título de O pirotécnico Zacarias, eu o compus com textos retirados de Os dragões e O ex-mágico, novamente reelaborados. Depois, publiquei O convidado e, mais recentemente, A casa do girassol vermelho, composto de contos de várias épocas, também reescritos. Na realidade eu tenho três livros publicados. (RUBIÃO, 1989. Entrevista a Alexandre Marino para o jornal Correio Braziliense, citado por ANDRADE, 1996 p. 4).

O processo de criação muriliana reflete a concepção do artista e da obra moderna: incessantemente in progress, a escrita é fruto de um trabalho meticuloso, árduo e sempre inacabado, sendo até mesmo encarado como uma “maldição”. Em entrevista concedida logo após a publicação de O convidado, Murilo Rubião confirma a coexistência entre sua visão de literatura e seu processo de escrita: Sempre aceitei a literatura como maldição. Poucos momentos de real satisfação ela me deu. Somente quando estou criando uma história sinto prazer. […] A literatura é feita com muito esforço. Muito mais esforço do que talento: é brigar com a palavra todo o dia, é revirar a história, elaborar e reelaborar, ir para a frente e voltar, enfim, mesmo numa obra reduzida, é preciso enorme capacidade de trabalho e tremenda pertinácia. Fazer literatura é quase um trabalho braçal.(RUBIÃO, 1979, p. 4–5).

Murilo Rubião, filólogo de sua própria escrita, exerceu nela a arte da ecdótica na procura de aperfeiçoá-la, corrigindo erros, tentando buscar em cada nova edição o texto perfeito. Sua obra sofre modificações voluntárias ao longo de suas transmissões. Assim, ao se deparar com as novas edições publicadas pelo escritor, o crítico genético não pretende fazer uma crítica reconstitutiva – trabalho feito pela crítica textual. Não é preciso restituir a forma genuína do texto: este trabalho já foi feito por Murilo até a sua morte. É no gesto de reescritura muriliana e no seu projeto literário deliberado que encontramos temas caríssimos não só à estilística, mas também à crítica genética. A extensa constelação de variantes, presente em cada nova edição de seus contos e, sem esquecer, o arquivo de Murilo Rubião (fundo que contêm mais de

nove

mil

documentos,

composto

de

manuscritos,

datiloscritos,

correspondências, fotografias e críticas sobre sua obra) são objetos de que dispõe o pesquisador. Além de delinearem a trajetória literária do escritor, permitem elucidar os mecanismos de produção e os procedimentos que

permitiram o surgimento da obra. O arquivo e a multiplicidade de seu texto possibilitam a elaboração de um aparato crítico e genético que se concretiza e é materializado a partir de uma edição crítica e genética e, mais especificamente, de uma edição crítica e genética elaborada pela Collection Archivos, dirigida pelo Centre de Recherches Latino-Américaines (CRLA). Ligado à equipe ITEM – Institut de Textes et Manuscrits – o Centre de Recherches Latino-Américaines (CRLA), situado na Université de Poitiers, além de abrigar o fundo de inúmeros escritores e intelectuais latino-americanos, como Julio Cortázar, Juan Emar e Rufino Blano-Fombona, também coordena cientificamente e editorialmente a Coleção Archivos, responsável pelas edições críticas e genéticas de obras maiores da literatura latino-americana. No que se refere à literatura brasileira, vale citar as edições de Macunaíma, de Mário de Andrade; A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector; Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre e Libertinagem e Estrela da manhã, de Manuel Bandeira. A Coleção Archivos tem três interesses prioritários: o textual, o contextual e o comparatista. Seu objetivo é estabelecer os textos finais, com todas as suas variantes e histórias evolutivas e gênese. Dessa forma, a maioria de suas edições obedece um único projeto editorial em que figura recorrentemente o mesmo formato, apresentando os seguintes capítulos: 1. Introdução: onde se apresenta a liminar, a introdução do coordenador ou dos coordenadores, nota filológica e estudo genético. 2. O texto com suas variantes, notas críticas e glossário, 3. Cronologia do escritor e da obra 4. História do texto, onde encontramos textos que tratam da gênese e das circunstâncias que levaram à produção da obra. 5. Leituras do texto: onde aparecem os principais textos que tratam da recepção crítica da obra 6. Dossiê: que apresenta também a recepção crítica do autor, assim como o material genético, correspondências, manuscritos, fac-símiles e documentos iconográficos.

7. Bibliografia. Quando se trata de Murilo Rubião, o work in progress e a centelha da criação se revelam em vários aspectos. Além da persona de escritor obstinado em relação ao inerente fazer e refazer de seus contos, o arquivo e a obra deixados pelo autor permitem a elaboração da sua gênese e, mais especificamente, de uma edição crítica e genética. A edição da obra de Murilo Rubião pela Coleção Archivos comporta sobretudo os trinta contos reescritos por Murilo e a descrição e estudo comparativo de suas variantes, cujo estema é definido a partir da última edição, Murilo Rubião: obra completa, publicada pela Companhia das Letras em 2011, e das edições anteriores. Uma leitura desatenciosa das republicações de seus contos não revela de imediato a importância dessas modificações. Apesar de não modificarem a íntegra das histórias e de não serem condição para a apreensão de sua obra, o estudo das variantes pode oferecer caminhos e pistas diversos para a leitura e compreensão da obra do escritor. Quando analisamos as alterações presentes nos contos de Murilo Rubião, percebemos que a maior parte delas são de ordem estilística, sem alterar o sentido completo do texto: como a substituição de uma palavra ou frase por outra sinônima, mudanças de pontuação, supressão de palavras e frases redundantes. No entanto, ainda que menos frequentes, encontramos mudanças que podem mudar o sentido do texto, como a mudança de seres animados, acréscimo ou supressão de nomes próprios, parágrafos que foram adicionados ou retirados. As alterações estilísticas feitas por Murilo caminham para um vocabulário mais sintético e genérico ou até mesmo para supressão ou mudança semântica, como a eliminação de parágrafos e trechos, troca de sinônimos por outros mais simples, supressão de nomes próprios. São recorrentes também as modificações para frases mais suaves e musicais, como a retirada de algumas vírgulas para que o enunciado assuma um ritmo mais fluído. No conto “O convidado”, por exemplo, o trecho da primeira edição de 1974 “Estacou: os jardins intermináveis, sua incapacidade de falar a linguagem dos convivas, um convidado cuja ausência retardava a realização da festa” é modificado na última edição de 1988 para “Estacou. Aqueles jardins

intermináveis, a sua incapacidade de falar a linguagem dos convivas, um convidado cuja ausência retardava a realização da festa.” A mudança no texto, que atinge também o sentido, é mais evidente ainda. A substituição dos dois pontos pelo ponto final, além de alterar a tonalidade da frase, transforma o enunciado e exclui a possibilidade da explicação, tornando apenas um fato que diminui a relação com o enunciado seguinte. Apesar de a narrativa continuar na terceira pessoa, a substituição do artigo definido “os” pelo pronome demonstrativo “aqueles” aumenta a subjetividade do enunciado e insere na frase um caráter depreciativo e distante. A edição abrange ainda o dossiê genético, podendo ser entendido como todo o conjunto que envolve o ateliê do escritor e as relações que o texto estabelece com o ambiente e vice-versa. Em Murilo Rubião, o material genético que possibilita a elaboração de sua trajetória literária é o seu fundo documental, localizado no Acervo de Escritores Mineiros e que, graças ao bom relacionamento entre as duas instituições, encontra-se, em grande parte, digitalizado. Em seu arquivo, rigorosamente organizado e catalogado pelo próprio Murilo, o pesquisador pode utilizar-se de um riquíssimo acervo documental onde as correspondências trocadas com escritores consagrados revelam as afinidades e trajetórias literárias; os periódicos e trabalhos acadêmicos denunciam a recepção crítica e os manuscritos, datiloscritos, rascunhos e notas de correções permitem ver os vestígios do processo de criação e elaboração dos contos de Murilo. A rigidez e a permanente insatisfação com a escrita de seus contos é também registrada no seu arquivo: além de correções de contos e de provas que foram enviadas às editoras, encontrarmos nove manuscritos e datiloscritos de contos jamais publicados, alguns finalizados e outros inacabados, escritos durante o período de 1946 a 1987. O conto "O guarda-costas", por exemplo, como documentado no arquivo, demorou mais de 27 anos para ser escrito, sem jamais ter sido publicado. No que se refere à vida literária do escritor, dentre os documentos presentes no arquivo de Murilo Rubião, merece a atenção do pesquisador uma pasta intitulada “O ex-mágico”, cujo conteúdo, abrangendo os anos de 1943 a 1947,

revela o percurso genético e editorial até a publicação de seu primeiro livro, O ex-mágico, em 1947. A pasta, que é composta por cartas de escritores, editores e colegas, torna-se também um documento que complementa a narrativa da trajetória literária, perseverante e solitária, seguida pelo escritor Murilo Rubião. Em carta de junho de 1946, Marques Rebelo tenta convencer Murilo para que aceite a proposta da editora: Estou te enviando a proposta feita pelo Caio. Foi o melhor que foi possível se conseguir. A editora é nova e com pequeno capital. Todavia, já lançou dois livros de sucesso, sendo que Sagarana esgotou-se em 15 dias, de sorte que ele está animado. E os livros têm ficado muito bem apresentados, e quando uma editora publica assim dois livros tão interessantes, os que vêm a seguir já estão automaticamente recomendados. Eu creio que você deve fazer negócio. É preciso você ficar livre deste livro, que até agora tem sido infeliz. (Carta de Marques Rebelo a Murilo Rubião, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1946).

É a partir das rasuras e dos reescritos que o geneticista reconstrói as etapas de elaboração do texto. Em Murilo Rubião, a análise das variantes, que segundo a crítica genética também pode ser substituída pelo termo reescrita, é orientada por uma edição que alia a crítica do texto com o estudo da gênese, o que possibilita a realização de uma edição crítico-genética. Crítica, pois apresenta o texto mais próximo da última vontade do autor sem, no entanto, reconstituí-lo; e genética, já que procura definir o percurso seguido pelo autor para a construção de seus textos. Ao reunir originais dentre os mais importantes da literatura latino-america, a Coleção Archivos reconstitui e reacende parte da identidade cultural latino-americana no ambiente eurocêntrico. Uma edição crítica e genética dos contos de Murilo Rubião possibilita reafirmar com propriedade e rigor a presença e devida consagração do escritor no panorama literário latino-americano. REFERÊNCIAS: HAY, Louis. La littérature des écrivains. Paris: Éditions Corti, 2002. RUBIÃO, Murilo. Entrevista a Alexandre Marino para o jornal Correio Braziliense, 1989, citado por ANDRADE, 1996 p. 4. RUBIÃO, Murilo. O convidado. São Paulo : Quíron, 1974.

RUBIÃO, Murilo. Obra completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SEGALA, Amos. Éditer la littérature latino-américaine et caraïbe: la collection “Archivos”. Genesis. Paris, n.1, 1992, p. 161-166.

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