O gesto suspenso do desenho

June 2, 2017 | Autor: Joao Duarte | Categoria: Desenho
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No longo ensaio dedicado a Malraux, La Langage Indirect et les Voix du Silence, Maurice Merleau-Ponty descobre, de forma um tanto ou quanto inadvertida, uma mão pensante, um gesto que permanece suspenso, digamos assim, sobre um abismo.
"Uma câmara registou, ao ralenti, o trabalho de Matisse. A impressão era tão prodigiosa que o próprio Matisse, dizem, ficou comovido. Esse mesmo pincel que, visto a olho nu, saltava de um acto a outro, víamo-lo meditar, num tempo dilatado e solene, numa iminência de começo de mundo, tentar dez movimentos possíveis, dançar diante da tela, aproximar-se várias vezes, para abater-se por fim, como um relâmpago, sobre o único traço possível." (Merleau-Ponty, 1960, p. 47)
É interessante realçar, em primeiro lugar, a rapidez com que Merleau-Ponty exclui a possibilidade de essa câmara lenta, que filma a hesitação dos gestos, nos dizer alguma coisa sobre a pintura de Matisse – afinal, diz-nos, há "qualquer coisa de artificial nesta análise" (Merleau-Ponty, 1960, p. 47) e entre as possibilidades abertas pela câmara, entre o gesto suspenso nesse "tempo dilatado e solene", e o acto de pintar de Matisse cava-se um abismo tanto mais profundo quanto mais aponta para dois mundos absolutamente dissimétricos e diferentes. Que, no entanto, Merleau-Ponty venha, no final do mesmo parágrafo, afirmar que "é verdade que a mão de Matisse hesitou" (Merleau-Ponty, 1960, p. 47), que essa hesitação apenas seja passível de ser observada num mundo estranho a esse "mundo humano da percepção e do gesto" (Merleau-Ponty, 1960, p. 47) a que remete o acto de pintar e de escrever – e, alarguemos desde já o âmbito, o de desenhar – apenas demonstra que a câmara sabe qualquer coisa que nós não sabemos e que o traço que chamava Matisse para transformar o quadro naquilo que estava "em vias de se tornar" (Merleau-Ponty, 1960, p. 47) encontra no seu âmago esse espaçamento técnico, o "tempo dilatado e solene", que a câmara mostra.
Paradoxalmente, o que interessa a Nuno Higino no desenho, e nos desenhos de Álvaro Siza em particular, é a impossível relação que se estabelece entre, por um lado, o acontecimento do desenho, o traço que vem interromper a nossa relação imediata ao mundo, a interrupção protésica que nos transporta para uma "cena do luto", e, por outro lado, essa suspensão do gesto que a câmara revela – como se, aliás, o gesto suspenso, a mão que tacteia, que tenteia, e que permanece num gesto adiado transportasse um segredo que diz respeito ao próprio desenho, como se, para o dizermos de forma mais clara, a mão que ainda não desenha tivesse alguma coisa a dizer-nos.
"Esta detenção-sentença (arrêt) do desenho é a suspensão de qualquer exposição. Uma suspensão (que não é sinónimo de inactividade, e, menos ainda, de imbecilidade, deficiência ou enfermidade) que permite que alguma coisa advenha, que algo aconteça. O inacabamento do desenho, o seu estatuto de bosquejo e esboço, é a condição (quase-transcendental) para que algo aconteça, para que o porvir reconheça o espaçamento da sua possibilidade, para que chegue o outro na sua radical imprevisibilidade e inapropriabilidade." (Higino, 2015, p. 89)
É desta forma que poderemos voltar a ler o que Merleau-Ponty nos diz. O desenho, segundo Higino, não vem suturar a ferida aberta no seio do mundo, não vem preencher as possibilidades abertas pelo gesto suspenso – o gesto suspenso retraça de outra forma a nossa ligação a esse "mundo humano da percepção e do gesto". Pelo contrário, situando-se na diferença entre o gesto suspenso e o acto de desenhar, abrindo, de certa forma, essa mesma diferença, ele vem cavar a dissimetria entre ambos, testemunhando pelo ter-lugar da interrupção – é o próprio desenho que, desta forma, é o ter-lugar da interrupção e da suspensão. Ele vem situar-se, assim, entre dois limites extremos: num gesto que permanece e pretende permanecer sempre suspenso, como se um desespero não viesse desde logo macular aquele que quer viver apenas na suspensão, ou, por outro lado, num acto que pretende esquecer o fundo abismal que transporta, livrar-se desse espaçamento protésico que se insinua entre nós e o mundo, suturar a ferida aberta por um luto que é sempre impossível, que não conhece interiorização.
Desta forma, não existe relação ao mundo que não seja mediada por um desenho, por uma dimensão protésica, suplementar, um espaçamento que impede qualquer continuidade, a homogeneidade do mundo. Como afirma Higino relativamente ao olhar, a nossa relação é sempre interrompida, intermitente:
"Estes episódios mostram-nos que o movimento mais ou menos controlado de abrir e fechar os olhos é fundamental para a nossa relação visual com o mundo. Não existe uma continuidade absoluta e ininterrupta (na luz ou na escuridão) entre os nossos olhos e os motivos perceptivos que têm como alvo. O que há é um «abrir e fechar os olhos», um instante, instantes, um quase-nada temporal que interrompe, que curto-circuita a relação" (Higino, 2015, p. 60)
Se não há continuidade entre a nossa visão e "os motivos perceptivos que têm como alvo", se os nossos olhos não se encontram ainda preparados para olhar apesar de verem – a distinção entre olhar e ver, entre a abertura de um dispositivo ocular que permite um jogo de diferenças entre motivos perceptivos e visão, que permite sermos olhados pelas coisas, e o facto biológico da visão é colocada em destaque logo no início do livro – é porque esta ausência de continuidade é sempre lutuosa, diz sempre respeito a uma impreparação radical face ao desaparecimento do outro, encontra-se sempre relacionada com um envio à ausência.
"o problema maior do olhar é, talvez, a não existência de lugares vazios, lugares que pudessem (no caso de existirem) ancorar uma possibilidade de sentido. As ataduras que sujeitam o mundo dos corpos estão sempre a ceder, a resvalar, a «dar de si», não deixando espaço vazio propriamente dito. Os corpos têm que deter-se uns aos outros, amparar-se, completar-se; quer dizer, procurar para si mesmos um horizonte de sentido" (Higino, 2015, p. 65)
Não passará por aqui a necessidade de uma releitura da própria distinção entre ver e olhar, entre a ideia de que "aquele que olha é olhado ao mesmo tempo" (Higino, 2015, p. 35) – como Klee, que se sentia observado pelas coisas – e o ver enquanto "órgão sensorial que corresponde ao olho" (Higino, 2015, p. 35)? Porque o olhar, na realidade, não abre ao espectáculo do mundo, não dá lugar ao jogo entre visível e invisível, ao entrelaçamento entre presença e ausência. O horizonte de sentido que parte desses corpos que "têm que deter-se uns aos outros, amparar-se (e) completar-se" tem de carregar, como se carrega o luto, o "cruzamento sem correspondência" (Higino, 2015, p. 41) que o "efeito de viseira", esse efeito de uma "lei que esconde o rosto por detrás da viseira" (Higino, 2015, p. 293) e que vê, observa, sem ser visto, como um fantasma, impõe. E, desta forma, um adeus ao mundo: uma dissimetria profunda, enquanto luto impossível, torna impossível o próprio mundo, isto é, o próprio horizonte de sentido que permite o encontro com o outro, o terreno que prepara e antecipa a chegada do outro. Um luto, também, pelo mundo, pelo próprio (do) mundo, eis também uma forma de ler o que Higino nos diz sobre o desenho. Que, como ele afirma, não vai sem uma certa violência.
"O desenho, como todos os acontecimentos em geral, acontece, pois, «num abrir e fechar de olhos», numa sucessão de golpes (como o estilete, o lápis, a esferográfica que golpeia o papel) que têm lugar entre a luz e a escuridão. Há na origem do desenho uma certa violência" (Higino, 2015, p. 60)
"Num abrir e fechar de olhos": traduzindo a leitura que Derrida faz de Husserl em La Voix et le Phénomène – Derrida consagra ao "piscar de olhos" todo um capítulo –, leitura que diz respeito à doação do sentido a partir de um instante que Husserl pretenderia indivisível, Higino sublinha a marca aporética do desenho enquanto acontecimento: o instante onde, num abrir e fechar de olhos, algo acontece, algo chega, este acto de desenhar que, pretenderia Merleau-Ponty, se torna necessário para que o quadro se transforme naquilo "que estava em vias de se tornar" – e não há já aqui um diferimento, uma estranha temporalidade a partir da qual aquilo em que o quadro ou o desenho se estava "em vias de se tornar" é trazido para um presente necessário mas também aberto ao porvir? Instante do acontecimento; mas também "abrir e fechar de olhos", quer dizer, pequena interrupção no visível e no que é visto: não há visão sem que uma suspensão, mesmo que mínima, se insinue desde sempre. Um luto, um desvio – mas, dirá igualmente Higino, um enxerto, a anteposição de um aparato técnico, de uma mediação sem fim – não se faz esperar e trabalha de dentro a visão; um desenho marca a visão a antecipa-se-lhe.
"Em bom rigor, esta «intuição difícil» não será já e propriamente uma intuição, uma vez que a dificuldade que denuncia o esforço de procura nega a imediatez exigida ao acto intuitivo. Na melhor das hipóteses, o clic intuitivo, quando tem lugar (e se tem lugar), vem marcado por uma retaguarda de experiência acumulada (uma «grande experiência») que, aliás, só vem reforçar a dúvida da possibilidade de uma intuição pura: directa, imediata, adequada, completa. O que acontecerá eventualmente é um momento de quebra numa continuidade da experiência profissional que colapsa, que sofre uma síncope." (Higino, 2015, p. 71)
Seria interessante seguir um gesto ao mesmo tempo próximo e distante – o que aliás Nuno Higino não deixa de fazer. Em vez de resgatar o desenho e a obra de arte do campo da intuição, seria necessário fazer o percurso inverso, mostrar que, não apenas essa intuição pura de que fala na realidade nunca existiu, como ela é inseparável ou impensável fora da clivagem e da quebra que o desenho institui – como se, na realidade, ela não existisse fora de uma interrupção, de um limite, como se não fosse desde sempre intuição de um limite, intuição no limite; o luto seria a sua verdade e começaria antes de qualquer visão, antes de vermos e enquanto vemos o que quer que seja. Se lembrarmos o mito de Dibutades, trabalhado por Derrida em Mémoires d'Aveugle, evocado por Nuno Higino no início do primeiro capítulo e presente em filigrana ao longo de toda a análise que faz do desenho, vemos que o entrelaçamento entre luto e intuição é profundo: Dibutades vê a partir de um luto antecipado, vê a partir da dissimetria imposta por esse fantasma que está constantemente a chegar, vê e desenha, vê enquanto desenha, mas num tempo impossível, heterogéneo, por causa desse luto antecipado, por causa desse amante que está de partida.
O acontecimento do desenho deve então responder a essa ausência e partida, a essa visão enlutada. É nesta medida que podemos distinguir duas quebras, duas interrupções para que o texto de Nuno Higino aponta. A primeira tem que ver com essa relação que ele estabelece entre a "experiência acumulada" e a decisão do desenho, o acto de desenhar. Esta "experiência acumulada" de que fala aponta, como facilmente se vê, para diversas coisas, desde a memória, a imaginação ou o conhecimento efectivo ou prático do desenho até ao seu lado mimético ou representativo. Na análise que faz do desenho de Álvaro Siza intitulado "Gizé", onde se vê, ao fundo, a pirâmide, essa "experiência acumulada" corresponde ao conhecimento disponível que Álvaro Siza tinha do local, da pirâmide, da história, etc., etc., mas também a esse lado referencial que corresponde, no desenho, ao facto de reconhecermos aquilo para que o desenho aponta. Entre, por um lado, esta "experiência acumulada", este sentido que mostra o desenho no seu lado mais pobre, que preenche o desenho de uma acumulação de conhecimentos que o faz desaparecer, e, por outro lado, o traçar do desenho, o gesto da mão que vai transformando o desenho naquilo "que estava em vias de se tornar", surge uma primeira interrupção, uma quebra. Como no exemplo de Merleau-Ponty, a mão não sabe ainda como desenhar, vê-se obrigada a tactear, a hesitar, a tentear no limite do conhecimento acumulado, lembrando assim o que Deleuze dizia da escrita: que ela avança sempre na extremidade do nosso saber. Sem essa primeira quebra não há, de facto, desenho. Mas haverá desenho apenas com essa primeira interrupção, chegará esta para haver desenho? Segundo Nuno Higino esta primeira interrupção não chega. Há enxertos que são uma violência excessiva.
"O êxito de um enxerto não está assegurado de antemão: fica sujeito à prova da próxima primavera. E à prova da compatibilidade dos corpos: há enxertos que não são compatíveis. Num enxerto há algo de porvir, algo que «não se sabe», ainda que o enxertador seja o mais experimentado. Quando Siza afirma que se move entre «conflitos», «compromissos», «mestiçagens», «transformações», dá testemunho da passagem de uma marca a outra." (Higino, 2015, p. 156)
É neste momento que uma outra interrupção se vai insinuar e vai permitir ler de outra forma esta quebra entre a "experiência acumulada" e o acto de desenhar. No já referido esquisso de Siza Vieira, esta segunda interrupção corresponde ao espaço em branco que cobre grande parte do desenho – e que, afirma Higino, gera "um lugar para a respiração do olhar"
"O espectro é o que «ordena o dever sem dever, sem dívida, mais além inclusive do imperativo categórico». O desenho das pirâmides que referimos é um desenho entre espectros, uma aproximação respeitosa à morada dos mortos. (…) os desenhos de Siza deixam um espaço que, se pudéssemos falar desta maneira, seria aberto, intocado, branco, indemne" (Higino, 2015, p. 42)
Este espaço em branco, este deserto dentro de um desenho onde o deserto também figura, é o lugar da hospitalidade. Esta segunda interrupção, no entanto, já não diz respeito à relação entre "experiência acumulada" e o acto de desenhar mas, digamos assim, desenha de outra forma a relação à memória ao permitir a entrada do imemorial. Quando analisa um desenho de Álvaro Siza relativo ao Bairro da Malagueira, onde se vê uma figura a sobrevoar o referido bairro, Nuno Higino fala de um "espaço de contacto e de contaminação" (Higino, 2015, p. 224) e sublinha a indeterminação da personagem: esta, anterior à distinção entre o deus, o homem e o animal, é o contraponto ao deserto do outro desenho. Entre a "experiência acumulada", por um lado, a generalidade de um conhecimento disponível, e, por outro, a subjectividade daquela que desenha, traça-se um ductus enquanto hospitalidade, enquanto envio ao porvir. Esta mão pensante, suspensa, é o tema, o motivo, que Nuno Higino traça.



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