O Golpe de 1964 na dramaturgia de Dias Gomes

August 31, 2017 | Autor: Eduardo Navarrete | Categoria: Cultural History, Dramaturgy
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O Golpe de 1964 na dramaturgia de Dias Gomes Eduardo Navarrete*

Resumo: Engajada e voltada para os problemas nacionais, a dramaturgia de Dias Gomes lança luz sobre a sociedade brasileira dos tempos do golpe de 1964 e da ditadura implantada a partir daí. Analisamos três peças do autor que se situam neste contexto – O Túnel, Amor em Campo Minado e Campeões do Mundo. Percebemos nelas, que o golpe aparece como um hiato na suposta linha evolutiva do país. Notamos também, que muitos personagens estão cindidos pela contradição de resistir ou conformar-se a um Estado tornado estranho, onipresente e agressivo. Palavras-chave: Dramaturgia; Regime Militar; Representação. Abstract: Committed and focused to the national problems, Dias Gomes play-writing elucidates about Brazilian society from the ages of the coup in 1964 and of military dictatorship impacted since then. We analyze three plays that are situated in that context - O Túnel, Amor em Campo Minado, Campeões do Mundo. We realize that in them, the coupe appears as a break in the supposed evolutionary line of the country. We also realize that lots of characters are separated due to the contradiction of resisting or getting conformed about a State that had become strange, omnipresent and aggressive. Key words: Dramaturgy; Military Government; Representations.

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EDUARDO NAVARRETE é Especialista em História e Humanidades pela Universidade Estadual de Maringá/PR

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Introdução Alfredo Dias Gomes (1923-1999) é reconhecido como um dos mais proeminentes escritores brasileiros, tanto no âmbito teatral, quanto no da telenovela. Tem em seu currículo diversos prêmios, entre eles a Palma de Ouro do festival de Cannes, com a adaptação de sua famosa obra O Pagador de Promessas ao cinema. Ao lado de Nelson Rodrigues é considerado inaugurador e o autor mais representativo do moderno teatro brasileiro. O crítico Antonio Mercado assinalou a condição paradigmática das peças de Dias: E essa representatividade abrangente que confere à dramaturgia de Dias Gomes uma condição quase paradigmática do teatro brasileiro moderno e contemporâneo, constituindo-se num parâmetro sólido (e talvez único) que permite discernir as principais linhas de força de um conjunto aparentemente desconexo, assim como dar a medida dos desvios individuais, frutos da originalidade das personagens artísticas que o compõe (MERCADO, 1991, p. 491).

Rompendo com antigas formas do teatro, o dramaturgo produziu constante e ininterruptamente, e as peças que serão analisadas nesse artigo foram concebidas em um momento bastante fecundo e, ao mesmo tempo, turbulento da cultura e sociedade brasileira: a década de 60. Eloísa B. de Holanda e Marcos A. Gonçalves (1982) traçam um panorama da situação cultural do país nesses anos. Segundo esses autores, no início destes anos surgiram os primeiros centros populares de cultura (CPCS), os

quais visavam construir uma cultura nacional, popular e democrática. Após 64, outros movimentos culturais nasceram ou se desenvolveram tentando dar continuidade às propostas dos CPCS. Contudo, eles tinham novas características e questionavam os pressupostos culturais anteriores, uma vez que tiveram que adaptar-se, ou melhor, resistir à nova situação política do país. Nas artes plásticas, surgiram os Happenings, no cinema, o cinema novo, na música, o tropicalismo, e no teatro, o grupo Oficina e Arena. Todos esses movimentos configuravam uma produção cultural, cujo eixo em comum era o desejo de fazer da arte não mais um instrumento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação, à procura de novas possibilidades expressivas, culturais e existenciais. Política e socialmente, a década de 60 foi marcada por paradoxos. Nos primeiros anos as Forças Progressistas avançavam e davam esperanças de mudanças para a esquerda. O movimento operário, com suas novas organizações, fortalecia seus mecanismos de reivindicação econômica e pressão política. No campo, o movimento das ligas camponesas ganhava espaço e ampliava a sindicalização rural, empunhando a bandeira da reforma agrária. A classe média urbana, principalmente estudantes e intelectuais, assumia posições favoráveis às reformas estruturais, desenvolvendo uma intensa atividade de militância política e cultural. Já na esfera política, a presença no poder de forças nacionalistas filiadas

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à tradição de Vargas e, nesse sentido, sensíveis às demandas populares, favorecia a emergência das esquerdas (HOLANDA; GONÇALVES, 1986, p.11). Tudo isso pressagiava transformações de caráter democrático e antiimperialista. Entretanto, em 31 de março de 1964, contrariando todas as esperanças e previsões, os militares assumem o governo. A partir daí, instalou-se no Brasil o que Octavio Ianni (1981) chamou de “a ditadura do grande capital”. Ianni mostra que a burguesia nacional e a imperialista usaram o Estado militar, que estava sendo fortalecido e ampliado, para favorecer, orientar e dinamizar a acumulação privada do capital. Disso decorreu o arrocho salarial, a intervenção nos sindicatos, a prisão e a tortura de líderes operários e camponeses, a censura aos intelectuais e artistas, o aumento brutal da taxa de exploração dos assalariados da indústria e agricultura, etc. As forças progressistas foram subitamente entravadas e aquele discurso de cunho progressista foi silenciado e cedeu espaço a outro, que falava em nome da ordem, da moralidade, da pátria, da família e da tradição. É, então, nesta atmosfera, onde as relações entre política e cultura se tornavam mais estreitas e conflituosas, que Dias Gomes vai encontrar os ingredientes para compor suas peças e construir uma visão muito singular sobre a sociedade brasileira daquele momento. Visão esta que faz uma profunda crítica política e social, afinada com o pensamento e anseios da esquerda do país. Com efeito, Dias jamais se furtou a opinar, seja através de suas obras ou de sua militância (ele militou durante quase trinta anos no partido comunista brasileiro), sobre os problemas

nacionais. Muito pelo contrário, se tem uma palavra que melhor caracteriza sua produção, essa é engajamento. Ele nunca tentou manter-se como um observador frio e imparcial dos fatos que sucediam a sua volta. Engajar-se, a seu ver, era assumir uma responsabilidade para com o futuro humano e subtrair-se a ela, representava a destruição da qualidade humana de construir sua própria história. Mas ainda que vociferasse em prol da arte engajada, ele não acreditava que pudesse existir neutralidade artística. Via em toda arte uma manifestação política: A convocação de um grupo de pessoas para assistir a outro grupo de pessoas na recriação de um aspecto da vida humana é um ato social. E político, pois a simples escolha desse aspecto da vida humana, do tempo apresentado, leva o autor a uma tomada de posição. Mesmo quando ele não tem consciência disso. Claro que podemos generalizar, em qualquer arte o artista escolhe o tema. E, no mundo de hoje escolher é participar. Toda escolha importa em tomar um partido, mesmo quando se pretende uma posição neutra, abstratamente fora dos problemas em jogo, pois o apoliticismo é uma forma de participação pela omissão. Pois esta favorece o mais forte ajudando a manter o status quo. Toda arte é, portanto, política (GOMES, 1968, p. 43).

Essa defesa do engajamento, entretanto, não significa que a obra do dramaturgo tenha um aspecto panfletário ou que pretenda impor verdades ao leitor/espectador. Dias Gomes sempre colocou a primazia do artístico sobre a política e sabia que a arte, por si só, não podia transformar a realidade. Na sua visão, que seguia os padrões de Brecht, o teatro podia, unicamente, colocar o

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leitor/espectador no estado de poder ele mesmo descobrir e verificar certas verdades e, consequentemente, tomar consciência da necessidade de mudar as coisas. A atitude que permeia suas peças é o questionamento. Herdeiro da visão dialética do mundo, ele tencionava fazer uma proposta de reflexão a partir das contradições das situações e dos personagens. Por isso, seu posicionamento ideológico se faz de forma bem sutil e discreta, sem com isso, ser pouco perceptível. Ao invés de formular conclusões definitivas, ele apenas seleciona alguns fatos e partindo deles estrutura a ação dramática. Como a câmara no cinema, ele nos indica os fatos para os quais devemos atentar e os ângulos pelos quais podemos encarálos. Assim, muitas coisas são desveladas e abrem-se novas perspectivas de compreensão. As três peças analisadas na presente pesquisa não fogem à regra. Todas elas são uma mistura de engajamento, arte e reflexão nos tempos de militarismo no Brasil. Dias entendia que o teatro tinha um papel destacado na luta contra o status quo implantado em abril de 64. Por acreditar que a arte cênica era a mais comunicativa – ela é oferecida ao público em sua realização e não depois de realizada e, além disso, utiliza um meio de expressão mais poderoso que qualquer outro: a criatura humana – e a mais social de todas as artes – ela é feita com a participação do público -, ele a considerava a mais capacitada para dar uma resposta à ditadura. O teatro poderia despertar consciências e desencadear a contestação. “Pois se a alienação consiste no fato de os homens não se reconhecerem no produto de seu próprio trabalho, como definiu o jovem Marx, a desalienação pode ser obtida pelo reconhecimento de si mesmo no

trabalho alheio, tal como se verifica na arte e, particularmente, no teatro” (GOMES, 1968, p. 21). Foi exatamente isso que Dias Gomes tentou, quando mostrou em suas peças o homem brasileiro colocado em uma sociedade opressiva e castrativa. Tendo, portanto, como objetivos a reflexão e a desalienação, e como temática central o brasileiro diante de um regime militar, as peças estudadas têm ainda outro denominador comum: cada uma delas trata de algum momento específico da ditadura, de modo que, em conjunto, elas formam um grande painel da situação do país durante aqueles anos. A primeira, O Túnel, foi escrita em 1968 e trata da perplexidade diante do golpe e da implantação de um estado militar, com seu inflexível autoritarismo. É uma das peças menos conhecidas do autor de O Pagador de Promessas e surgiu por ocasião de um festival de teatro, cujo tema era a pergunta “O que você pensa do Brasil hoje?”. Escrita em 1970, a segunda peça, Amor em Campo Minado, referese à expressão das contradições entre o discurso político teórico e os compromissos da prática cotidiana, na luta pela sobrevivência pessoal diante da escalada inicial da repressão. Já Campeões do mundo é datada de 1979 e trata das motivações que levaram à luta armada; discute ainda a repressão, a tortura, as divergências ideológicas e metodológicas da resistência radical, a viabilidade ou não das guerrilhas no contexto do Brasil, etc. Como se vê, as três peças propostas para análise são muito diferentes entre si, mas, cada uma, a seu modo, pode ser um ponto de partida para reflexões históricas. Elas trazem à tona todas as mudanças acarretadas pelo advento do militarismo no Brasil (especificamente no Rio de Janeiro), formando, no seu

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conjunto, um painel panorâmico dos anos de chumbo da sociedade brasileira. Imaginário sobre o Golpe de 1964 O golpe militar de 1964 é representado na dramaturgia de Dias Gomes como um hiato e como uma surpresa. Essa visão fica evidente, principalmente em O túnel. A peça – escrita em 1968 para responder à pergunta “O que você pensa do Brasil hoje?” – é uma alegoria farsesca e traz um túnel, no qual alguns veículos provocam um engarrafamento, ficando impedidos de se movimentarem. A imagem do túnel foi, portanto, usada para simbolizar o momento pelo qual o Brasil passava, isto é, o golpe e a ditadura que ele implantou. Dias Gomes, sendo militante do partido comunista e adepto ao marxismo, certamente estava, quando usou a imagem do túnel para compor a peça, pensando de acordo com as teorias evolucionistas e progressistas da história, às quais Walter Benjamin (1981) dirigiu severas críticas1. Para o pensador alemão, essas teorias – historicismo e certo tipo de marxismo – partiam da idéia de que a história é um contínuo linear e homogêneo: haveria certas leis que regiriam a sucessão dos acontecimentos e levariam inevitável e inexoravelmente a um progresso ininterrupto, onde existiria sempre mais liberdade, racionalidade, ou seja, mais civilização. Segundo Benjamin, então, na ótica destas teorias, a história sempre estaria caminhando, automática e naturalmente para algo melhor. Ora, se Dias Gomes pensava assim, o engarrafamento no túnel deve significar, então, um hiato, um intervalo na 1

Como nos informa Kothe (1981, p. 43), em suas teses sobre o conceito de história, Benjamin contesta tais teorias, dizendo que elas geravam certo conformismo.

progressão e na suposta evolução da história da sociedade brasileira. Antes do golpe de 64, o Brasil caminhava rapidamente rumo a um progresso cada vez maior, o que corresponde na peça à alta velocidade dos veículos na estrada: Homem da Kombi – Eu vinha até correndo, ouvindo rádio, na minha Kombi... Homem do Fusca – Meu fusca vinha a noventa (GOMES, 1968, p. 223).

Repentinamente, aquelas forças que a esquerda considerava como reacionárias dão o golpe em 64 e interrompem, assim, o curso progressista da história do país. Na peça, isso é simbolizado pelo súbito engarrafamento no túnel: os automóveis foram imobilizados, não podendo seguir em frente rumo a seus destinos (progresso) e tendo que ficar em um local escuro e fechado. Nota-se que aqui, a escuridão e o fato de se estar em um local completamente fechado são signos do terror e da repressão do Estado ditatorial implantado a partir daquele ano: Homem da Kombi – Subitamente... Escurece tudo, pára tudo. Como se o túnel tivesse desmoronado, ou tivessem fechado as duas bocas. Nem pra frente, nem pra trás (GOMES, 1968, p. 223).

Considerando que Dias Gomes concebia o progresso como algo inevitável, como um alvo para o qual as sociedades estariam naturalmente caminhando, o golpe – representado pelo engarrafamento no túnel – só poderia aparecer em sua dramaturgia com um caráter inexplicável e imprevisível, que geraria assombro e surpresa, como fica visível em diversos diálogos dos seus personagens: Homem da Kombi – Como é possível que isso tenha acontecido? Vínhamos tão bem... Passamos pelo

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aterro, trânsito desimpedido, de repente... Homem do Fusca – Sem quê nem pra quê, sem nenhuma explicação... (GOMES, 1968, p. 223). Mais a frente eles dizem: Homem da Kombi – Não podia ter acontecido. É um túnel largo, sempre se passou muito bem por aqui. Nunca houve um engarrafamento dentro dele. É suficiente para o volume de tráfego. Sei toda a história deste túnel e posso lhes garantir, cientificamente... Não encontro explicação. Homem do fusca – Não há explicação (GOMES, 1968, p. 223).

Em outra peça, Amor em Campo Minado, há o mesmo tom de perplexidade na fala do personagem Sérgio quando ele relembra o golpe: Sérgio – Claro, quem é que podia prever o que aconteceu? Eu mesmo, até agora, ainda não consegui acreditar. Por mais que queira me convencer... É inteiramente ilógico, irracional, estúpido. Esta noite não consegui dormir um segundo, pensando, tentando estabelecer uma relação lógica de causa e efeito entre o que aconteceu antes e o que aconteceu depois. Sabe que é impossível? É como juntar dois pedaços de um quebra-cabeça que não se ajustam (GOMES, 1969, p. 295).

A inexplicabilidade e a imprevisibilidade do golpe, tal como é mostrada por Dias Gomes, provavelmente foram acentuadas pelo otimismo que dominava a esquerda antes de 31 de março de 64. João Goulart havia chegado à presidência em 1961 e tinha anunciado as reformas de base, incluindo as reformas agrária, urbana, bancária, fiscal e universitária, e, além disso, tinha proposto uma

política de controle sobre o capital estrangeiro e a nacionalização e estatização dos setores básicos da economia. Todas essas propostas iam ao encontro dos interesses da esquerda, principalmente do PCB (SOARES; D’ARAÚJO, 1994, p. 74). Ao mesmo tempo em que a esquerda depositava tantas esperanças no governo de Goulart, ela também subestimava o papel dos militares. Quase toda literatura sociológica anterior ao golpe não atribuía relevância para o potencial transformador da política por parte dos militares. Entre os fatores que levaram a esta conclusão está: o fato de a tradição marxista privilegiar explicações econômicas e desconsiderar as demais, a concepção de que os militares são somente executores de projetos políticos de outras classes, a dificuldade de se pesquisar uma instituição fechada como a militar e a herança da tradição sociológica eurocêntrica que dificultava a percepção da relevância política de várias classes e setores sociais e insistiam em ver toda luta política como um embate entre duas únicas classes, a burguesia e o proletariado (SOARES; D’ARAÚJO, 1964, p.10-11). A crença inabalável no progresso, somada às esperanças na política de Jango e à subestimação da importância dos militares, inebriou Dias Gomes e o levou a esperar transformações, e até revoluções na sociedade brasileira, no sentido de trazer mais liberdade, racionalidade e igualdade. É, por isso, que nas suas peças o golpe é mostrado como algo inexplicável e surpreendente. Ele foi, inesperadamente, na contramão de tudo o que a esquerda havia previsto e projetado para o Brasil. Como diz um dos personagens das peças, o golpe mudou, sem avisar e de uma hora para outra, as águas do rio: “De repente tudo desmoronou como um castelo de cartas”

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(GOMES, 1991, p. 390). O resultado disso foi a perplexidade que fica clara nos diálogos expostos acima. Um sintoma do quanto o golpe causou assombro foi o profundo momento de crise pelo qual a intelectualidade passou pós-64. Como nos informa Heloísa B. de Holanda e Marcos A. Gonçalves (1982), a defasagem entre a expectativa de transformação social e a realidade do desmoronamento do governo Goulart haveria de exigir uma reavaliação do pensamento esquerdista, corrigindo os possíveis enganos. O primeiro esforço neste sentido foi o livro A Revolução Brasileira de Caio Prado Júnior, que procurava demonstrar a ineficiência e inadequação dos esquemas de análise utilizados pelo PCB para explicar a dinâmica do processo social no Brasil (PRADO JÚNIOR, 1982, p. 15). Desse modo, o golpe militar de 1964 representa um hiato na linha contínua do progresso, um interstício na evolução da história do Brasil, que encontra no engarrafamento em um túnel a imagem mais perfeita para expressá-lo. Ela configura o enclausuramento e a estagnação, dois contrapontos para a liberdade – valor supremo para Dias Gomes. Em um túnel a história tem seu desenvolvimento interrompido e, com isso, as pessoas são impedidas de traçar seus próprios destinos e realizar seus objetivos. Não é por mera casualidade que O Túnel tenha sido composta em estilo farsesco e tenha um teor pessimista. Somente uma farsa poderia exprimir o absurdo desta situação e somente o pessimismo poderia revelar o sentimento das esperanças perdidas. Conformismo Nas três peças de Dias Gomes que foram propostas para análise, vemos os mais diversos personagens, dos mais diferentes segmentos sociais,

manifestarem seu posicionamento frente ao golpe militar de 1964 e à ditadura implantada a partir daí. A atitude mais corrente entre eles é a conformação com o estado de coisas. Na peça O Túnel, o personagem “Homem da Mercedes” é descrito como homem de meia idade, com aparência de prosperidade e perfeito equilíbrio emocional, o que sugere tranqüilidade e conformação. É empresário e proprietário de uma Mercedes, donde se depreende sua condição social burguesa. Todos os signos relacionados a ele conotam, portanto, que ele é um conformado representante da burguesia nacional. O caráter burguês do personagem é reforçado pelo fato de em diversas cenas ele demonstrar uma excessiva e ridícula preocupação com questões financeiras. Quando ele é informado de que o que causou o engarrafamento foi a repentina mudança na mão da rua do túnel, a primeira observação que ele faz é dizer que eles seriam multados, pois estavam andando na contramão. Em outra cena, o personagem “Homem da Kombi” diz que recebeu uma carta lhe comunicando sua perda do crédito. O “Homem da Mercedes” reage, conforme uma indicação cênica, como se seu interlocutor tivesse perdido um parente próximo, e compungido diz ao “Homem da Kombi” que lamentava muito. As duas cenas são tratadas com comicidade, o que serve para acentuar o absurdo da situação. Na primeira, o riso vem da mesquinhez do personagem frente a um problema de tão grande dimensão; vem de sua exagerada preocupação com uma mera multa, quando se tratava de um problema social, ou até existencial, que era a perda da liberdade simbolizada pelo engarrafamento. Na segunda cena acontece o inverso: diante de um

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acontecimento tão insignificante, como a perda do crédito, ele reage com gravidade, com pesar, com luto, como se o crédito equivalesse a uma vida. Para o “Homem da Mercedes”, então, os valores monetários estão acima de quaisquer outros. Esse personagem, sendo um burguês, manifestará, ao longo de toda a peça, um profundo conformismo, que ficará visível tanto em seu comportamento, como em seus diálogos. Logo no início de O Túnel, os automóveis engarrafados fazem um ensurdecedor buzinaço como uma forma de protesto à situação em que se encontram. O “Homem da Mercedes”, contudo, não participa desse ato, dizendo que isso não resolvia nada e que há momentos em que se é melhor cruzar os braços e economizar forças. Ao final da peça ele também se opõe ao ato terrorista de lançar uma bomba no túnel e se recusa a assinar um manifesto que seria enviado ao Estado exigindo a abertura. Ou seja, o personagem rejeita todas as soluções propostas para acabar com o engarrafamento. O buzinaço, a bomba e o manifesto eram, a seu ver, desperdícios de forças que só trariam mais problemas. O que se percebe, é que ele propõe uma acomodação à nova situação, como fica patente na vazia teoria que ele expõe sobre liberdade: Homem da Mercedes – Se nada fosse proibido, tudo seria permito, não é? Se tudo fosse permitido, nada seria proibido. Homem da Kombi – Não entendi... Homem da Mercedes – Mas é lógico, não é? Homem da Kombi – Sim, como é lógico, é perfeito. Homem da Mercedes – Para que alguma coisa seja permitida, é preciso que alguma coisa seja proibida. Para tudo é preciso haver um regulamento.

Homem do Fusca – Pro inferno com os regulamentos. Em cada um deles nós deixamos um pedaço de nossa liberdade. Homem da Mercedes – Isto só depende de nós. A minha liberdade, por exemplo, não é diminuída por regulamento nenhum, por lei nenhuma. A minha liberdade é intocável. Homem do Fusca – (espanto) Ah, é?... Homem da Mercedes – Sou, neste momento, tão livre como antes do engarrafamento. Homem do Fusca – Então, por que não grita? Homem da Mercedes – Não quero gritar. Homem do Fusca – Por que não buzina? Homem da Mercedes – Não quero buzinar. Homem do Fusca – Por que não sai daqui? Homem da Mercedes – Estou muito bem. Não quero sair, e se eu não quero sair, não estou privado de nada. Só existe cerceamento de liberdade quando se proíbe a alguém de alguma coisa que alguém quer fazer. Mas se não se quer fazer aquilo que está proibido, então nossa liberdade permanece intacta. É proibido gritar, basta que eu não queira gritar. É proibido buzinar, basta que eu me esqueça de que existe buzina para que esta proibição deixe de ferir minha liberdade. Risco tudo isso da minha mente e continuo tão livre como antes (GOMES, 1968: 244 – 246).

Mas além de conformar-se com a nova situação, o “Homem da Mercedes”, de certo modo, a justifica. Para ele o engarrafamento havia sido causado pelo fato de os carros não terem seguido

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disciplinadamente suas filas. Decifrando a metáfora da peça, isso quer dizer que o golpe foi uma forma de resolver a grande desordem que existia no país. A desordem dava, desse modo, razão para os autores do golpe terem feito o que fizeram. Como nos informa Glácio A. D. Soares essa explicação ou justificativa para o golpe foi freqüente entre os militares e encontrou aceitação entre a burguesia nacional, classe social da qual o “Homem da Mercedes” é emblema. O personagem ainda, com certa dose de cinismo, tenta mostrar certo “lado bom” (GOMES, 1968, p. 246) da situação, alegando que com o engarrafamento ninguém mais havia morrido atropelado. Dessa forma, o “Homem da Mercedes” percorrerá a peça buscando maneiras de acomodar-se, mostrando que suas preocupações limitam-se apenas ao nível individual. Desde o começo ele se aproxima da personagem Loura e mantém, com ela, uma relação bastante estreita; oferece sua Mercedes para ela ficar e ambos passam a viver no carro, desfrutando do ar refrigerado, da geladeira portátil e da televisão que há no seu interior. A Mercedes torna-se, assim, um refúgio onde eles encontram distração e comodidade. A alienação do personagem também pode ser notada quando, em pleno engarrafamento, ele se diverte, junto à Loura, gritando para provocar ecos no túnel. O personagem “Homem da Mercedes” representa, portanto, um homem desprovido de preocupações com interesses coletivos, que em meio a uma situação extremamente caótica, onde todos estão impedidos de traçar seus próprios destinos, se acomoda em seu carro ou se detém com pequenas distrações. Entretanto, há alguns momentos da peça em que ele se mostra descontente ou,

pelo menos, pouco disposto a tornar-se cúmplice do golpe. Em duas ocasiões ele faz reclamações: no início, quando ele é avisado de que haviam mudado a mão do túnel, ou seja, que haviam dado o golpe, ele afirma que isso não era direito; em outra cena, ele se lamenta por estar preso num túnel, perdendo o jantar que sua mulher preparou para comemorar os vinte e dois anos de casados. O personagem também, sempre alerta a Loura para usar uma máscara, dizendo que se ela não usasse poderia morrer por asfixia com o mau cheiro que havia no túnel. Talvez, seguindo a metáfora da peça, usar a máscara significasse não se opor ao novo regime instalado através do golpe, isto é, não falar e não agir contra ele, caso contrário a repressão (mau cheiro) mataria. Ora, se o “Homem da Mercedes” faz esse tipo de aviso, é porque embora legitime o golpe e se acomode, ele não acredita no discurso dominante, representado pela voz do diretor de trânsito, que enfatizou, em suas poucas falas que nunca morreu ninguém por asfixia no túnel. Isso põe em questão a conivência do personagem com a ditadura. Se por um lado, então, o “Homem da Mercedes” ainda esboça atitudes de inconformismo, mesmo que de maneira bastante tímida e voltada puramente para seus interesses pessoais, a personagem denominada Loura, por outro lado, expressará uma conduta fortemente conformista, na qual não há o menor indício de insatisfação. Loura é caracterizada como uma jovem vistosa e desinibida. Seus trajes são, durante toda a peça, uma saia de praia de cores berrantes sobre um biquíni, e ela tem, como acessórios, enormes óculos escuros e um cãozinho de raça. Os signos óculos, o cãozinho e o fato de ser descrita como loura revelam que a

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personagem é o protótipo da mulher alienada, pertencente à classe média. Ela representa, também, uma pessoa descontraída e despreocupada, como designa o biquíni e a saia de praia, roupas usadas geralmente para a diversão em tempos de férias. A alienação da Loura é levada ao extremo e é expressa de forma burlesca. Enquanto os automóveis estão caoticamente estagnados em filas sinuosas e as pessoas estão impedidas de realizar seus objetivos, ela, com grande entusiasmo, consegue entreter-se com os ecos que seus gritos causam no túnel; ela brinca em meio à uma situação trágica, onde o destino de todos está em jogo. Em algumas cenas a Loura também demonstra uma ingênua crença no discurso dominante. Quando o “Homem da Mercedes” lhe diz que tinha visto o enterro de algumas pessoas mortas por asfixia, ela replica afirmando que isso não podia acontecer, pois na televisão haviam dito que não existia o mau cheiro, além de nunca ninguém haver morrido asfixiado ali e que essas visões eram provocadas pela neurose do túnel. A peça é dividida em dois quadros, sendo que o primeiro representa o momento em que acontece o golpe, o engarrafamento, e o segundo refere-se a 1968. No início do último quadro, que ressalta como os personagens se habituaram, após quatro anos, às circunstâncias em que foram postos, a Loura mostra novamente seu conformismo: Loura – (voz Benzinho?...

fora

de

cena)

Homem da Mercedes também fora de cena, emite um grunhido. Loura – Quer pegar minha calcinha que está aí na corda? Homem da Mercedes – (sai de

dentro da Mercedes com uma máscara contra gases, vai até um dos varais, apanha uma calcinha de rendas e leva ao carro. A mão da loura surge de dentro e a recebe). A necessidade torna as pessoas práticas; se fosse minha mulher mandava lavar em Campinas. Loura – (sua cabeça aparece numa das janelas da Mercedes – Benz.) Que foi que você disse benzinho? Homem da Mercedes – Disse que estou louco por café. Loura – Eu tentei fazer hoje, pus o motor da Mercedes para funcionar, mas a água custou a ferver no radiador. Olhe, o melhor café é o daquele “rabo-quente” vermelho. O Chevrolet está com gosto de ferrugem (sai de dentro da Mercedes, com o mesmo biquíni, a saia de praia, mas agora na mão a sua máscara contra gases). Homem da Mercedes – Aonde você vai? Loura – Vou à manicure do fusca verde. Tenho que me preparar para o batizado. Homem da batizado?

Mercedes



Que

Loura – Oh, benzinho, como você está por fora... Não sabe que vai haver um batizado no Aero-Willis? Aquele padre do ônibus é quem vai batizar. Aliás, dizem que o garoto não é filho do homem do AeroWillis, e sim do rapaz do KarmanGhia... Também, aquela fulana anda de carro em carro... “Parece que não acredita em anticoncepcionais... (GOMES, 1968: 236 – 238).

Observa-se, no diálogo acima, que coisas triviais do cotidiano são adaptadas à realidade do túnel. A calcinha é pendurada na corda, o café é preparado nos radiadores dos carros, a

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manicure faz o pé no fusca verde, e o batizado e até mesmo as fofocas são realizadas em pleno engarrafamento. A comicidade aqui é o resultado da combinação entre o ambiente caótico, sombrio e desesperador, e o desenrolar natural de ações corriqueiras em condições absurdas. A Loura parece não manifestar incômodo em viver naquelas condições. A divisão da peça em dois quadros realça esse absurdo. O primeiro quadro se passa nos primeiros momentos do golpe, do engarrafamento, e o segundo inicia-se quatro anos depois, em 1968. Na mudança de um quadro para o outro, há uma brusca transposição de 1964 para 1968, de modo que fica mais perceptível a acomodação que os personagens desenvolveram ao longo de quatro anos. A quebra na continuidade da narrativa serve para sublinhar a diferença que há entre um momento e outro. Através da análise dos personagens “Homem da Mercedes” e Loura, percebemos que há uma afinidade de comportamento entre eles: ambos expõem um grande conformismo ao golpe de 1964. Desde o início da peça eles se aproximam e até o fim mantém uma relação bastante íntima, ao contrário do que acontece nas relações que tanto um como o outro têm com os demais personagens. Essas são distantes e quando há aproximações, elas são, na maioria das vezes, conflituosas. Na cena em que há uma discussão sobre liberdade isso fica muito claro. Nela o “Homem da Mercedes” expõe sua teoria, enquanto é atacado pelas objeções do “Homem do Fusca” e do “Homem da Kombi”. Há, do mesmo modo, duas ocasiões na peça, nas quais o “Homem da Mercedes” fala algo ao “Homem do Fusca” e este não ouve ou não entende o que lhe é dito. Isso,

provavelmente, sugere certo desencontro, certa diferença de interesses entre os dois. Pode-se dizer, então, que o “Homem da Mercedes” e a Loura constituem, dentro da peça, um bloco unido pela conduta conformista. Tal bloco acaba sendo ridicularizado pelo teor cômico-farsesco que Dias Gomes dá à peça, uma vez que os dois personagens sempre são postos em situações grotescas. Frente ao golpe e à ditadura a Loura age como se estivesse de férias e o “Homem da Mercedes” simplesmente “cruza os braços” (1968, p. 236). Neste sentido, “a derrisão farsesca ressalta a mesquinhez e miopia das posturas e preocupações individualistas diante da gravidade da situação em que estão inseridas” (MERCADO, 1991, p. 216). Para Dias Gomes a liberdade era um valor supremo; era ela que, ao permitir que o homem construísse seu próprio caminho, o humanizava. Se em O Túnel o golpe significou a perda da liberdade, como atesta o fato de todos estarem estagnados e não poderem decidir sobre suas vidas, conformar-se com esta situação seria consentir com a própria desumanização; significava não se importar com aquilo que havia de mais valioso. É por isso que os personagens conformistas da peça possuem um caráter burlesco. A dramaturgia de Dias Gomes, entretanto, não se limita a um mero maniqueísmo. Muitas vezes, os personagens e situações que ele cria são ricos, plurais e complexos. No bloco sobre o qual falamos acima, essa recusa a uma exposição simplista da ação dramática está presente. Vemos que em um dos personagens – “Homem da Mercedes” –, embora ele se acomode à situação, pode-se entrever uma pequena vontade de resistir, expressa em suas poucas reclamações e no alerta que ele

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dirige à Loura para usar a máscara. Há germes de resistência, portanto, mesmo no mais profundo conformismo. O fracasso da resistência A despeito dos germes de resistência que a peça manifesta, ela assume uma forte conotação pessimista, característica esta rara na obra do autor de O Pagador de Promessas, “onde até mesmo as cinzas dos heróis são sementes de rebelião” (MERCADO, 1991, p. 215). Em O Túnel, não há aquele herói positivo postulado pelo realismo socialista, que poderia ser um emblema de uma perspectiva de transformação. Não há esperanças de êxito da resistência, pois os dois personagens – “Homem do Fusca” e “Homem da Kombi” – que manifestam inconformismo com a situação também são ridicularizados. Ambos, que formam o que podemos denominar de bloco da resistência, ainda que em Dias Gomes conformismo e resistência, muitas vezes, apareçam como pólos que se interpenetram, são marcados pela incompletude e pela contradição, o que está em consonância com a visão dialética da realidade que o dramaturgo tinha. O “Homem do Fusca” é magro e nervoso, sendo que seu nervosismo “oscila entre a simples irritação e o histerismo” (GOMES, 1968, p. 256). É mais jovem que o “Homem da Mercedes” e o da Kombi, característica que pode indicar irresponsabilidade e imaturidade. Poucos são os signos que remetem à sua posição social, mas a julgar pelo fato de ter um fusca (um carro popular) e de ser empregado, depreende-se que ele pertença às classes baixas. O personagem demonstra um profundo mal estar por ficar preso no túnel, como se observa no diálogo com o “Homem da Mercedes”, onde ao ser informado que fazia uma hora e meia

que eles estavam engarrafados, se surpreende, dizendo que parecia já haver passado mais de duas horas. O ato de imaginar uma fluição mais rápida do tempo expressa o grande desconforto dele com a situação. O “Homem do Fusca” se mostrará como um homem de ação, de prática. O tempo todo ele dirá, desesperadamente, ser necessário fazer algo para tirá-los do engarrafamento. Impacienta-se e sentese culpado com a inércia. Alega ser claustrofóbico e na discussão sobre liberdade repudia ostensivamente todos os regulamentos (talvez essas sejam indicações de filiação ideológica ao anarquismo). Além disso, ele reclama de estar impedido de se encontrar com a Renata, a mulher que desejava há seis meses. Tal reclamação aumenta quando, no segundo quadro, ele recebe uma carta anunciando-lhe o casamento dela com um banqueiro. O personagem, portanto, tem necessidade de agir, porém ele não pára para pensar sobre quais as decisões mais adequadas a se tomar, e as soluções que propõe para sair do túnel são todas fruto desse desespero. A primeira delas foi o buzinaço. Ele começa a buzinar insistentemente e é seguido por outras buzinas. Logo, entretanto, elas vão parando aos poucos, restando somente uma, que vai também enfraquecendo e some. No fim do primeiro quadro, ele, descontrolado, tenta furar o teto do túnel com uma verruma. Já ao final da peça, depois de se negar a assinar um manifesto e a formar uma frente ampla com o “Homem da Mercedes”, o que revela certo individualismo, o “Homem do Fusca”, à revelia dos outros, lança uma bomba na boca do túnel, mas ela não explode. Nota-se, assim, que suas ações são desesperadas e estão muito distantes de ser a solução para a situação. Elas têm

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efeitos insignificantes perante a grandeza do problema. Desse modo, o “Homem do Fusca” representa um homem de prática, mas de uma prática irrefletida, impensada, que não conta com o auxílio da teoria. Importa lembrar, também, que embora ele estimule a resistência, há um indício de comodismo de sua parte: ele também brinca gritando para provocar ecos no túnel.

soluções que este propõe: rejeita o buzinaço, rejeita a bomba e a única proposta de ação que ele faz é a publicação de um manifesto que contaria com a assinatura de todos e que forçaria as autoridades a abrirem o túnel. Assim como as soluções do “Homem do Fusca”, essa também é de efeitos insignificantes se for levado em conta o tamanho do problema que ela se propõe a resolver.

Diferentemente do “Homem do Fusca”, o outro personagem que compõe o que chamamos de bloco da resistência, não se entrega à ações desesperadas. Ao contrário, seu comportamento frente ao engarrafamento será marcado por uma constante e tranqüila especulação que não traz nenhum resultado. Ele apresenta-se como um intelectual, como homem do saber e durante toda a peça elaborará teorias verborrágicas, cujos conteúdos em nada contribuem para solucionar o caso. Vejamos um trecho em que isso fica claro:

O “Homem do Fusca” e o “Homem da Kombi” formam, portanto, o bloco da resistência. São dois personagens que têm em comum a vontade de resistir ao golpe, representado pelo engarrafamento no túnel. Contudo, olhando por dentro deste bloco, vemos que esses personagens são um o contraponto do outro. O “Homem do Fusca” representa a ação sem a teoria e o “Homem da Kombi”, inversamente, representa a teoria sem a prática.

Homem da Kombi – O ar está ficando cada vez mais viciado, em conseqüência da falta de renovação. O gás carbônico que expiramos misturado ao dióxido de carbono dos motores em funcionamento... Homem do Fusca – Vamos morrer todos envenenados. Homem da Kombi – Imediatamente, não. Calculei a quantidade de oxigênio que um homem precisa para viver, multipliquei pelo número aproximado de pessoas que estão aqui, relacionei com a área do túnel e cheguei à seguinte conclusão: se não houver renovação de ar e os motores continuarem funcionando, poderemos viver cerca de uma semana (GOMES, 1968, p. 231).

O “Homem da Kombi” admite com o “Homem do Fusca” ser necessário fazer algo. Porém, ele se opõe a todas as

A propósito, essa cisão entre os dois elementos que constituem a ação revolucionária, também aparece em Amor em Campo Minado. Porém, aqui a cisão não está entre um indivíduo e outro. Ao contrário, é uma mesma pessoa que experimenta essa contradição, o que só pode ser percebido devido ao caráter intimista da peça, que permite penetrar no universo interior dos personagens. Sérgio Penafiel, como o próprio nome indica (Sérgio lembra Sergey, nome russo que assinala sua postura comunista; e Penafiel é uma ironia que remete à sua infidelidade em relação ao que escreve), é um intelectual que após o golpe mostra-se em constante conflito. Suas ações quase sempre contradizem suas palavras: ao mesmo tempo em que diz ser nacionalista, ele despreza as bebidas nacionais; afirma zelar pela igualdade entre homens e mulheres, mas mostra um machismo brutal, a ponto de

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espancar a própria esposa; se declara um antiburguês, mas é redator em um jornal da burguesia. O personagem revela até mesmo uma vontade de acomodar-se e deixar a “ventania passar” (GOMES, 1970, p. 321). Voltando ao O Túnel, percebemos que aquela incompletude dos dois personagens é ridicularizada pela farsa. As soluções que o “Homem do Fusca” encontra para tentar acabar com o engarrafamento são risíveis pelo ínfimo efeito que elas podem ter. Do mesmo modo, os discursos e as teorias do “Homem da Kombi” se mostram inúteis. Tanto em O Túnel como em Amor em Campo Minado, então, é como se Dias Gomes quisesse dizer que a falta de práxis – união da teoria com a prática – constitui-se um obstáculo para os resistentes. Um Estado estranho, agressivo e onipresente. A ditadura militar nascida após 1964 aparece na peça O Túnel de Dias Gomes como uma realidade da qual não se pode escapar. Todos os personagens estão enclausurados e, portanto, desumanizados, já que para o dramaturgo a liberdade é o que humaniza. Impossibilitados de traçar seus destinos, eles dividem-se entre o conformismo e a resistência, sendo um pouco tênue a linha que separa um extremo do outro. Na verdade, esses são dois pólos que parecem interpenetrarem-se. Herdeiro da visão dialética, Dias cria alguns personagens marcados por contradições. O “Homem da Mercedes”, empresário e representante da burguesia nacional, justifica o golpe dizendo que ele era necessário para instaurar a ordem e acabar com a falta de disciplina. Mesmo assim, algumas vezes ele se mostra sufocado em seu próprio

comodismo, manifestando inclusive, algumas reclamações. O “Homem do Fusca”, ao que tudo indica um anarquista, se inquieta profundamente com a situação e busca algumas formas desesperadas de ação. Porém, ele demonstra despreocupação ao brincar provocando ecos no túnel. O intelectual marxista Sérgio Penafiel, em Amor em Campo Minado, revela um grande antagonismo entre seus pensamentos e suas ações e, a certa altura, temendo a repressão, ele admite pensar em conformar-se: Sérgio – (...) Acho que na vida da gente pode ter um tempo assim que não conta. A gente levanta a gola do paletó, encosta na parede e deixa a ventania passar (GOMES, 1970, p. 312).

Essas observações vêm para explicar que muitos dos revolucionários de Dias Gomes não são simples heróis convictos, e nem todos seus conformados são meros alienados, despreocupados com relação à sua liberdade. Portadores de maior riqueza e complexidade, eles ficam indecisos entre o risco de resistir e a segurança de acomodar-se ao enclausuramento. Tal oscilação ou hesitação entre a resistência e o conformismo é compreensível se temos em vista o tipo de governo que se erigiu sobre esses personagens. No decorrer de O Túnel a única forma de comunicação com o exterior será, além das cartas trazidas por um carteiro, um rádio por onde fala o diretor de trânsito. Este personagem é denominado de “Voz” e representa o discurso do Estado ditatorial implantado a partir de 1964. A escolha de uma voz de rádio para representar esse discurso, revela que para o autor da peça o Estado havia se tornado estranho e distante para a população. Sabemos que em A ditadura do grande

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capital, Octavio Ianni (1981) defende uma tese na qual aponta para um deslocamento do Estado com relação à sociedade. A seu ver, o poder estatal, a partir do golpe de 1964, adquiriu um aspecto estrangeiro, não conseguindo comunicar-se e sintonizar-se com as necessidades e anseios da população: O Estado forte, estrangeiro, repressivo, brutal, monolítico, passa a parecer, e ser, uma realidade fora da sociedade. A sensação generalizada que muitos passaram a ter, de que se criara e crescia um abismo entre o Brasil real e o Brasil legal, não é senão uma forma de expressar a vasta dissociação, o vasto divórcio, entre o Estado e grande parte da sociedade civil. Esse abismo é tão grande, tão real e incômodo que os próprios governantes perderam o sentido do seu governo, desgoverno. Não sabem o que estão governando. Imaginam que o monopólio da máquina do Estado, que a manipulação dos instrumentos de mando, que o acionar da repressão, que tudo isso significa governar. Sem compreender a quem governam, sem sentir ou entender nenhuma resposta válida das classes subordinadas, oprimidas. Como o bloco de poder não detém a hegemonia política e moral sobre as classes subordinadas, porque aparece como um bloco de conquistadores, estranhos, estranhados, estrangeiros, por isso os governantes não fazem senão reiterar o seu mando e desmando. Por isso os governantes não conseguem falar à nação, ao povo, à sociedade civil, ao cidadão e a todas categorias que eles negam, e que os negam. Por isso os governantes não sabem senão baixar determinações, reprimentos, punições, proclamações, ordens do dia. Foi tão longe a ditadura no Brasil, que o Estado acabou por

tornar-se exótico, estrangeiro; no mesmo lugar encravado (IANNI, 1981, p. 190).

Ao mesmo tempo em que o Estado se tornava estranho, ele agia como o todopoderoso e onipresente: Em todos os campos da vida social, o aparelho estatal passou a estar presente e mostrar-se decisivo. Toda criatividade dos grupos e classes que se achavam fora do bloco de poder passou a ser organizada, induzida, proibida ou reprimida pelo Estado. A censura atingiu a vida política e cultural, em todos os quadrantes. A espionagem passou a ser praticada nos ministérios, superintendências, institutos, universidades, fábricas, campos, construções (IANNI, 1981, p. 154).

Em O Túnel, Dias Gomes expõe essa onipresença e esse caráter estrangeiro do Estado de forma cômica: Homem da Mercedes – Cuidado, fale baixo. Há microfones instalados por ai... Eles ouvem tudo, gravam tudo! Homem do Fusca – Que gravem, e que vão à merda também! Uma voz – Vá você! Homem da ouviram?

Kombi



Vocês

Homem da Mercedes – (baixo) Eu não disse? ... (alto) Desculpe general... Ele estava brincando. Ele até que está muito satisfeito com a situação. Nós todos estamos satisfeitos com a situação, general. A voz – Isso me alegra. Isso tudo que estamos fazendo é para o bem de todos e felicidade geral da nação (GOMES, 1968, p. 243).

A Voz parece ouvir absolutamente tudo o que se diz no túnel. Não obstante, ela aparece distanciada por não querer compreender a insatisfação do “Homem

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do Fusca” e mostrar-se agressiva, pronta a repreender toda ofensa que lhe é dirigida. A cena é engraçada porque a repreensão parte de uma voz cuja origem todos desconhecem, e porque ela se expressa de uma maneira seca e abrupta, a ponto de provocar susto naqueles que a ouviam. Mais uma vez a farsa denuncia o absurdo da situação. O estado militar surgido após 1964 aparece, assim, distante na obra de Dias Gomes. Ele é só uma voz, quem a profere não está presente. Ele é, também, um Estado agressivo, que reprime e não aceita reclamações, que fala, mas não quer ouvir. Cumpre lembrar que essa agressividade é justificada com um tom paternalista: “o que estamos fazendo é para o bem de todos” (GOMES, 1968, p. 257). Portanto, este é um Estado que além de agressivo e estranho, disfarça seu autoritarismo sob a forma de proteção. Diante dessa ditadura as chances de êxito da resistência são nulas. Todas as soluções que os personagens propõem para acabar com o engarrafamento e sair do túnel acabam frustradas. E mais, elas são ridicularizadas dentro da peça. O Túnel destila, assim, uma alta dose de pessimismo e uma falta de perspectivas pouco comum na dramaturgia de Dias Gomes. Reforça isso, o fato de a peça começar, terminar o primeiro quadro e ser finalizada com inúteis buzinaços. É como um ciclo. Fica a impressão de que tudo acaba como começou.

acordo com uma visão linear e evolucionista da história. Consequentemente, aquele ato político aparece em sua obra como um interstício, como um hiato na progressão contínua dos acontecimentos. Daí vem a surpresa e a falta de explicação que os personagens manifestam em O Túnel, Amor em Campo Minado e em Campeões do Mundo. Mas além de estarem estupefatos com o ocorrido, eles sentem que o estado, sob o jugo dos militares, havia se tornado estranho, onipotente e agressivo. Frente a essa situação, os homens e mulheres criados por Dias ficam cindidos pela contradição de arriscar-se a resistir e brigar por sua liberdade, ou garantir sua segurança individual conformando-se com a perda de controle sobre seus destinos. A liberdade mostra-se, então, como o cerne da questão, já que para o dramaturgo ela era um valor supremo, um elemento humanizador. Por isso, aqueles que se conformam são, quase sempre, ridicularizados, e os que resistem são mais ou menos virtuosos. Contudo, naquelas três peças, a linha que separa um extremo do outro é tênue. Por vezes, os resistentes manifestam desejos de ajustar-se, assim como os acomodados expressam uma pequena vontade de reclamar. É uma visão dialética da realidade, que nega os maniqueísmos e mostra personagens, cenários e situações mais ricos e complexos.

Conclusão Dias Gomes foi um pensador profundamente preocupado com as questões de sua época e, ao mesmo tempo, extremamente influenciado pelas grandes teorias de então. No que tange ao golpe militar de 1964, percebe-se que esse dramaturgo pensava a sociedade brasileira daqueles tempos de

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Referências

11. (col. Dias Gomes, vol.3).

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