O Golpe de 1964 visto por um fotógrafo

October 8, 2017 | Autor: F. Silva | Categoria: Brazil: Military regime
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1964 visto por um jornalista

Eis que cinquenta anos depois do Golpe Militar e Civil de 1964 somos brindados, pela Paco Editorial, com uma nova edição de "O Golpe começou em Washington", de Edmar Morel (1912-1989). Trata-se de um livro, um testemunho, escrito no calor da hora sobre os acontecimentos de 1964. A primeira edição foi em 1965, com anotações e um "diário" escrito desde os primeiros momentos do Golpe, já em 1964. Morel, cearense, jornalista, escritor e historiador, era uma das maiores vozes críticas do jornalismo brasileiro, tendo trabalhado no "Jornal do Brasil", "A Tarde" e "O Cruzeiro". Não pertencendo a elite cearense, ou carioca, penou até encontrar, por seu talento, marcado por fina ironia, o caminho das redações da, então, Capital Federal. Foi Mauricio de Lacerda, o grande tribuno e jornalista (pai de Carlos Lacerda), que abrira os primeiros caminhos de Morel. Daí em diante, com seu brilho e sua vocação incontrolável para denunciar as injustiças e os esquecidos da História, que Morel emergirá como um dos mais importantes jornalistas de sua geração – uma geração que possuia gigantes, tais como Joel Silveira ou Antonio Callado.
O impacto do conjunto de sua obra se avolumará, para além das páginas dos jornais, com a publicação, em 1959, do livro "Revolta da Chibata", onde o autor busca, e realiza, o resgate do, então, esquecido líder da Revolta dos Marinheiros de 1910. Assim, pelas mãos de Morel, João Cândido Felisberto (1880-1969), o "Almirante Negro", ressurge e assume, inclusive junto ao movimento dos marinheiros dos anos de 1960, seu papel na História. Esta foi uma das muitas glórias de Edmar Morel, trazer do fundo da História de volta à vida, a trajetória de homens esquecidos, sofridos e torturados de um episódio relegado de nosso passado. Glória mas, também, caminho de aflição e sofrimento, num episódio tão inglório, como 1964. Os militares conservadores e antinacionais de 1961 e de 1964 nunca iriam perdoar Morel por trazer de volta para a História o personagem do "Almirante Negro".
Mas, atribuir, exclusivamente, ao renascimento do "Almirante Negro" a cassação, perseguição e a demissão de Morel em 1964 (era funcionário da RFFSA) seria unilateral. Na verdade, para além da "Revolta da Chibata", as páginas de Morel eram escritas com ácido e fogo, ao menos para os grupos civis e militares contrários às chamadas "Reformas de Base" e ao nacionalismo desenvolvimentista dos anos de 1950 e começo de 1960. Morel era um nacionalista incondicional, um nacionalista não chauvinista ou ufanista, mas voltado – como bom nordestino – para sua gente e sua terra, decidido pela superação da injustiça social.
O livro em questão é uma prova fundamental disso. Morel denuncia, com verve e ironia – algumas vezes cáustica, como na "dedicatória" do livro! – o "entreguismo" e o nepotismo das então elites brasileiras. Com um "Prefácio", original, do grande contemporâneo Joel Silveira, mantido na atual edição, e com um rico ensaio de Luiz Alberto Moniz Bandeira e a "Apresentação", vasta, erudita e precisa, do historiador Marco Morel – neto do autor – além, de um ensaio, à guisa de nota bibliográfica, do jovem historiador Leonardo Brito, a edição atual constitui-se, desta forma, em um manancial de idéias, informações, debates e referências para todos os interessados na história do tempo presente no Brasil.
Do texto do autor – preciso, mas cheio de ironias e com um risco de indignação – emergem idéias fundamentais para a discussão dos grandes temas históricos sobre 1964 e o regime civil-militar que se seguiu. Praticamente todas as discussões atuais, que opõem e reúnem os historiadores, estão presentes no livro. Assim, o caráter "civil" e "militar" do Golpe surge, desde as primeiras páginas, de forma lapidar. Os interesses dos empresários, da Igreja Católica, da imprensa e dos partidos políticos estão delimitados e analisados com a precisão de quem vive os fatos. Fica evidente a intenção de empresários e de partidos, unidos, em buscar uma solução "militar" para os impasses do desenvolvimento brasileiro – com nomes e atos daqueles fizeram a conspiração. Também a tibieza da resistência ou, mesmo, a assunção, pelos partidos, da solução militar. O desespero da UDN, a ambivalência do PSD e do ex-presidente JK, e mesmo de alguns nomes do PTB. Da mesma forma, o caráter de Jango e de seu governo aprecem com clareza, indo além e corrigindo a lenda, de um governo fraco e vacilante. A discussão estende-se, de forma crua, para o caráter repressivo do Golpe de 1964 e da ação dos seus elementos radicais, a "linha dura", beirando ao fascismo em seus atos. Assim, logo nos primeiros dias, emerge na descrição de Morel o cativeiro em navios e estádios, as prisões superlotadas, a ausência de cuidados médicos e sanitários mínimos, os campos de concentração, na Ilha Grande e em Fernando de Noronha. Lá está também a prisão, humilhação e sevícia, de mulheres, sem quaisquer acusações formais. A violação do Estado de Direito é analisada e sublinhada: a monstruosidade do AI-1, declarando que o poder emana do "Comando Supremo da Revolução" – em verdade, três oficiais superiores da FAAA – e não mais do povo. As ameaças e violações das decisões do Supremo Tribunal Federal, como o desconhecimento, por parte de militares e policiais, de habeas corpus emitidos pela aquela corte.
Emerge, ainda, das páginas do livro o fenômeno da colaboração, da pusilanimidade e do transformismo: políticos que janguista na véspera, aderem de imediato ao golpe. Federações e sindicatos de trabalhadores que assumem com rapidez a nova ordem e a delação de bispos e jornalistas de colegas. Tudo está lá...
Os fatos analisados por Morel jogam uma luz direta, dura, sobre um debate desviado de seu objetivo: a periodização da ditadura no Brasil. A tese de alguns historiadores revisionistas (de que a ditadura teria sido uma "ditamole" ou "ditabranda" na maior parte de sua existência) não resiste a algumas, apenas algumas, páginas do livro de Morel. Os líderes sindicais, espancados e mortos; vereadores do interior que enlouqueciam e tiravam a própria vida ante ameaças terríveis; a invasão em plena noite de residências populares; as prisões sem acusação, sem a interveniência de advogados ou acesso a juízes já nos primeiros dias de abril de 1964, mostra a face cotidiana do Golpe.
Morel, em seu "diário", mostra o conjunto da obra dos homens de 1964, levanta hipóteses, como a do isolamento e "sequestro" do marechal-presidente Humberto Alencar Castelo Branco pelo grupo duro e fascistizante do regime, com Costa e Silva à frente. Também as relações dos golpistas com Washington, e o medo dos norte-americanos a um cooptação do Marechal pelo ideário "reformista" de Jango, são alguns dos pontos absolutamente originais e esclarecedores do livro.
Enfim, as narrativas de perseguições cotidianas de homens e mulheres comuns, ilumina a dimensão capilar do Golpe e seu impacto sobre a sociedade brasileira. Benvinda esta nova edição de "O Golpe começou em Washington" – um livro para a reflexão.

Francisco Carlos Teixeira Da Silva
Historiador, UFRJ/UCAM.

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