O graffiti e a pixação: Desvendando as geografias destas artes na cidade do Salvador- Julia Monteiro

August 26, 2017 | Autor: Julia Monteiro | Categoria: Graffiti, Grafite, Arte urbano, Pichação, Arte de Rua, Pixação, Geografia Marginal, Pixação, Geografia Marginal
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

Por

SALVADOR 2013

JULIA MONTEIRO OLIVEIRA SANTOS

Monografia apresentada ao Departamento de Geografia - Curso de Geografia (Bacharelado) da Universidade Federal da Bahia, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Geógrafa. Orientador: Prof. Dr. Angelo Szaniecki Perret Serpa

SALVADOR 2013

O GRAFFITI E A PIXAÇÃO: DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DESTAS ARTES NA CIDADE DO SALVADOR

Por

JULIA MONTEIRO OLIVEIRA SANTOS

ANGELO SZANIECKI PERRET SERPA Orientador

SALVADOR 2013

BAST

Eu rodopio e giro escondo e procuro brincando e caminhando divertindo-me e gracejando Minhas oportunidades de me divertir são infinitas e o prazer que isso me dá me faz ronronar Os desafios da vida nunca me detêm pois eu sei como me tornar inteira brincadeira

(Marashinsky)

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Universo, e todos que me protegem! Agradeço minha família: mamis Claúdia, painho Jaime, minhas manas Vivioca e Maíra e meus manos Ugo e Rauni, minha tia Bel. Agradeço meus companheiros Gigica e Guapo. Agradeço meus irmãos e irmãs de coração Lulu, Leão da Montanha, Gaby, Chupetinha do meu coração(D2), Carcara, Pedrão Negrão, Khalil, Javier, Ogro, Bongos, Ba, Barba, Jean, Annie, Taci, Willian, Sergio, Pedrão, Preto Safado, Glaucia, Cris. Agradeço tod@s grafiteir@s e pichador@s, em especial aqueles que participaram desta pesquisa tornando-a possível, Boys, Skim, Nelp, Beck, Neghet, Smol, Mito, Sano, Menos AL, Denissena, Marcos Costa, Tarcio V, Afro, Matias. Agradeço meu Mestre de Capoeira Marcelo de João Pequeno de Pastinha. Agradeço aos funcionários do IGEO, que permitem que esse lugar seja habitado, em especial ao Carlos, André e as meninas da cantina. Agradeço a Lilica que matou minha fome muitas vezes com suas deliciosas e carinhosas comidas na quitanda Santa Bárbara. Agradeço meus professores, a Angelito. Agradeço a VIDA.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Pintura rupestre no Sítio: Toca do Morcego-Serra da Capivara–PI.................12 Figura 2 Pintura rupestre no Sítio: Xique-Xique I-Carnaúba dos Dantas-Seridó–RN...12 Figura 3 Pintura rupestre no Sítio: Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da Capivara – PI...................................................................................................................12 Figura 4 Figura 4 - David Alfaro Siqueiros, As pessoas para a Universidade. A Universidade para o Povo. Universidade Nacional Autônoma do México, Cidade do México 1952-1956...........................................................................................................14 Figura 5 - Jovem pixando no prédio da Câmara municipal do Rio de Janeiro ..............17 Figura 6 - Parede pixada e grafitada na avenida Anita Garibaldi...................................19 Figura 7- Pixação de Bongos com rolinho e spray, rua Campo Santo, Federação – Salvador...........................................................................................................................22 Figura 8 - Pixações com spray de Smol em Salvador....................................................23 Figura 9 Graffiti feito por Marcos Costa (na foto), no qual estão presentes elementos da cultura afro-brasileira e africana..................................................................................... 24 Figura 10 - Graffiti de Calangos na paisagem da Metrópole Soteropolitana.................25 Figura 11-Graffiti da serie “O grito” na Ladeira do Garcia, dialogando com o lugar..29 Figura 12 - Pixe demarcando o local do “Baba do pixe”...............................................31 Figura 13 – Pixação na Avenida Tancredo Neves coma frase “Favela é favela e pra mim é uma terra!”...........................................................................................................32 Figura 14 -Pixação de Neghet, identificando as gangues 40L e 163.............................35 Figura 15 - Tag de Smol, acompanhada da frase “O sistema me abala mas não me intimida” - Av. Bonocô...................................................................................................35 Figura 16- Pixação de Mito, Raif, Smol, Saho, questionando “se a policia me para, quem para a policia?”......................................................................................................37 Figuras- 17 e 18- Lugares considerados picos pixados por diferentes pixadores e pela gangue 163. .....................................................................................................................39 Figura 19 - Graffiti de TarcioV na saída do viaduto da Politeama................................43 Figura 20- Grafiteiro Afro em sua acao na cidade.........................................................44 Figura 21- Entrada do Centro Social Cultural de Pernambués com os graffitis fruto do mutirão.............................................................................................................................45 Figura 22 - Estação de metro em frente ao fórum Rui Barbosa, com graffiti do projeto Salvador Grafita tampando a saída da estação, e uma pixação na banca de jornal. .......46

Figura 23 - Cinema Excelsior no Pelourinho, graffiti esconde a entrada do cinema, tornando invisível sua existência...................................................................................47 Figura 24 - Graffiti de valorização da ancestralidade negra, no muro do colégio Manoel Devoto, Rio Vermelho, Salvador....................................................................................48 Figura 25- Representação da mulher negra....................................................................49 Figura 26- Graffiti de Omolú, Marcos Costa, na comunidade de São Lazaro..............49

LISTA DE QUADROS

Quadro 1-Perfil dos pixadores entrevistados ................................................................31 Quadro 2- Perfil dos grafiteiros entrevistados...............................................................41

RESUMO A pixação e o graffiti são artes cada vez mais presentes nas cidades, apropriando-se do espaço urbano nas dimensões simbólica e material. Essas práticas são ricas em cores, formas e discursos. Elas representam a fala de sujeitos/agentes que muitas vezes são marginalizados socialmente, que se utilizam destas formas para se manifestar, destacando o que por vezes os poderes públicos e privados querem calar, o pobre, a favela, a indignação, a periferia e a arte popular. Neste trabalho buscamos compreender a espacialidade da pixação e do graffiti na cidade do Salvador, analisando suas formas e conteúdos nos muros da cidade. Procuramos entender quais as lógicas que regem a apropriação destes espaços, assim como quem deles se apropriam, levando-se em consideração os lugares que são grafitados. Como atributo metodológico a observação participante foi escolhida, assim a experiência e a vivencia também foram fundamentais no decorrer desta pesquisa, deflagrando as saídas de campo. Realizamos entrevistas como forma de coleta de informação, assim como um levantamento fotográfico dos graffitis e pixações na cidade do Salvador. É importante realçar que este trabalho busca a articulação do conhecimento popular com o conhecimento científico. As conclusões deste trabalho não significam um ponto final, mas sim o início de uma trajetória no desvendar destas geografias, que se revelam enquanto formas de resistência e rebeldia na cidade. Palavras-Chave: Pixação, Graffiti, Apropriação da Cidade, Salvador.

RESUMEN

La pixação y el graffiti son artes cada vez más presentes en las ciudades, apropiándose del espacio urbano en las dimensiones material y simbólica; estas prácticas son ricas en colores, formas y discursos. Representan la voz de sujetos/agentes que muchas veces son marginalizados socialmente, y que usan estas formas para manifestarse, destacando lo que a veces lo que los poderes público y privado quieren callar: los pobres, la favela, la indignación, la periferia y el arte popular. En este trabajo buscamos comprender la espacialidad de la pixação y del graffiti en la ciudad de Salvador,Bahia, analizando sus formas y contenidos en los muros de la ciudad. Procuramos entender cuáles lógicas rigen la apropiación de estos espacios así como aquellos que los apropian, tomando en consideración los lugares que son grafitados. Como atributo metodológico fue escogida la observación participante, así como la experiencia y la vivencia también fueron fundamentales durante la investigación, a través de trabajo en el campo. Realizamos entrevistas como forma de recolección de información, así como el levantamiento bibliográfico en el tema de graffiti y pixação en la ciudad de Salvador. Es importante recalcar que este trabajo busca la articulación del conocimiento popular con el conocimiento científico. Las conclusiones de este trabajo no significan un punto final, más bien un inicio de una trayectoria en el des-cubimiento de estas geografías, que se muestran como formas de resistencia y rebeldía en la ciudades. Palabras claves: Pixação, Graffiti, Apropiación de la ciudad, Salvador.

ABSTRACT Graffiti and pixação are arts each time more present in the cities, apropriating of urban space materially and simbolically; this practies are rich in colors, forms and discourses. They represent the voice of subjets/agents that usually are marginalized in society,and use these forms to maniffest, highlighting what public and private authorities want to silence: the poor, the favela, indignation, periphery, and popular arts. In this work we look forward to understand the spatiality of pixação and graffiti in the city of Salvador, analysing its forms and contents in the city walls. We try to find out which logics orient the apropriation of these spaces as well as the people who apropriate them, taking into consideration the places that are graffited. As a methodological tool participant observation was chosen, as well as experience, that also was fundamental during the reaserch, through field work. We made interviews as a form of gathering information, as well as bibliographic search of graffiti and pixação in Salvador. It is important to mention that this work makes na effort to articulate popular knowledge and scientific knowledge. The conclusions does not represent a final dot, but the beginning in a trajectory of discovering these geographies, that presente themselves as forms of resistance na rebelion in the cities. Key Words: Pixação, Graffiti, City apropriation, Salvador.

SUMÁRIO

Capítulo I OS PRIMEIROS TRAÇOS: INTRODUÇÃO ...........................................................01 1.1 Objetivos ........................................................................................................02 1.2 “Qualé deste rolê?” - Questões Norteadoras .............................................03 1.3 Referencial teórico – Estado da Arte ........................................................03 1.4 Procedimentos Metodológicos ....................................................................09 Capítulo II A HISTÓRIA DA CIDADE COMO TELA: A GÊNESE DOS RISCOS ..............10 2.1 As cavernas como tela: Pinturas Rupestres............................................10 2.2 Muralismo Mexicano e Pop Art : Influencia no graffiti e na pixação....13 2.3 As gêneses do graffiti e pixação: do Mundo para Salvador ..................15 Capítulo III GRAFFITI E PIXAÇÃO: SUAS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS .................19 3.1 O que é pixação?..........................................................................................19 3.2 O que é Graffiti? ........................................................................................23 3.3 Semelhanças e diferenças............................................................................25 3.4 Riscando a cidade como Obra....................................................................27 3.5 A cultura da rua e seu poder na cidade....................................................28

Capítulo IV DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DA PIXAÇÃO E DO GRAFFITI..............30 4.1 Pixadores: seus trilhos na cidade...............................................................30 4.2 Grafiteiros: caminhos no urbano...............................................................41 CONSIDERAÇÕES LONGE DE SEREM FINAIS..................................................50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................53

1 Capítulo I OS PRIMEIROS TRAÇOS: INTRODUÇÃO

Principalmente nas grandes cidades, em centros metropolitanos, com grandes aglomerados de pessoas e desigualdades gritantes, a voz popular não se faz calar. O Graffiti e a Pixação fazem parte desta voz, que, de forma criativa, rebelde, contestatória, política, e agressiva para alguns, se apropriam do espaço urbano, às vezes indo além, adentrando nos espaços rurais, vagões de trens, placas nas estradas. Essa apropriação do espaço urbano modifica sua paisagem de forma a destacar o que os poderes público e privado muitas vezes querem calar: a manifestação, a indignação, o pobre, a favela, os marginalizados socialmente, a periferia e a arte popular. A riqueza dos traços da Pixação e do Graffiti demonstra sua heterogeneidade, ainda que muitos não os compreendam. Ricas em cores, formas, discursos e atitudes, essas artes marcam e demarcam a cidade, por diversas mãos, grupos ou CREW1. Essas manifestações artísticas/culturais/políticas têm sido criminalizadas e pouco compreendidas, e seus agentes muitas vezes marginalizados, havendo a necessidade de diálogo e de pesquisa sobre o tema em questão. Essas duas artes, tão presentes na cidade e ainda pouco exploradas, expressam vidas, lutas e desejos de uma parte da sociedade que exerce um poder popular, o qual queremos decifrar. O Graffiti e a Pixação, apesar de serem artes irmãs, apresentam diferenças explícitas. Não é interesse deste trabalho detalhar essa diferenciação, algo já realizado por outros autores, mas elucidar cada uma a partir destas diferenças, buscando-se compreendê-las enquanto duas ações diferentes, e, assim, pesquisar suas geografias. Compreendendo a essência de transgressão destas artes, e vislumbrando-as enquanto forças de mudança crítica social e educacional, cabe analisar a geografia da Pixação e a geografia do Graffiti, entendendo suas lógicas na cidade, revelando suas espacialidades e as de seus sujeitos. O Graffiti tem passado por transformações em sua essência, caminhando por novos rumos, gerando novas territorialidades e ocupando novos lugares. Uma arte que surge do movimento Hip Hop e na rua, hoje se desvincula deste e se torna autônoma, saindo da rua e entrando em galerias, deixando o gueto e se expondo nos bairros nobres. São, portanto, diversas as espacialidades desta arte, que, na contemporaneidade, busca ampliar sua ação na sociedade. 1

CREW- um coletivo de pixadores ou grafiteiros

2 A prática de escrever e desenhar nas paredes é muito antiga, segundo Soares (2007): Apesar de o surgimento do grafite remontar à pré-história, evidenciam-se, na produção dos grafites contemporâneos, temas e formas que sugerem um constante diálogo, quase atemporal, entre essas escritas pré-históricas e contemporâneas. Nessa época, os hominídeos representavam por meio de pinturas rupestres, nos muros das cavernas, o seu cotidiano, o modo de viver e se relacionar com o mundo. As imagens geralmente são permeadas por temas religiosos, políticos, sociais e culturais. É o primeiro momento em que o homem, mediante o uso imagético, passa a representar os sentidos que norteiam a sua vida. De acordo com Celso Gitahy (1999:11-12), “aquelas pinturas rupestres são os primeiros exemplos de graffiti que encontramos na história da arte. Elas representam animais, caçadores e símbolos, muitos dos quais são enigmas para os arqueólogos” (2007, p. 2).

Mas a Pixação e o Graffiti contemporâneos surgem nos Estados Unidos, como aponta diversos trabalhos. De acordo com Soares:

O ponto de partida é o fim da década de 60. Nos Estados Unidos, 1966 a 1971 foi o período em que imigrantes negros e porto-riquenhos inscreveram as suas tags (assinaturas em inglês), juntamente com os números de suas casas, nos trens e muros dos subúrbios da Filadélfia e da Pensilvânia e, posteriormente, de Nova York, chamando a atenção da população e da imprensa (2007, p. 3).

No Brasil esse movimento inicia-se um pouco mais tarde, protestando contra o regime ditatorial de 1964. Nas fontes pesquisadas existe divergência referente ao ano inicial que varia entre os anos de 1964 e início dos anos 1970, tendo seus primeiros registros na cidade de São Paulo, acompanhado do movimento Hip Hop (TARTAGLIA, 2007; SOARES, 2007). A partir daí, o Graffiti e a Pixação passam a ser movimentos diferenciados.

1.1 Objetivos

Esse trabalho tem como objetivo central compreender a espacialidade da Pixação e do Graffiti na cidade do Salvador, analisando suas formas e conteúdos nos muros da cidade. Procura-se entender quais as lógicas que regem a apropriação destes espaços assim como quem deles se apropria, levando-se em consideração os lugares que são grafitados. A cidade contemporânea é carregada de imagens, propagandas e cartazes, gerando uma enorme poluição visual, com as quais essas artes disputam espaços. Diante

3 dessa complexidade, constatada nas grandes cidades, Salvador é uma metrópole incompleta, por ter uma relação ainda muito superficial com sua região, ainda que haja uma integração cada vez maior dos fluxos metropolitanos desta cidade, não se planeja o espaço urbano na dimensão metropolitana (DIAS, 2005), um espaço urbano caótico: Considera-se que essas práticas têm muito a dizer sobre a cidade, criando o espaço urbano não apenas na dimensão material, mas também na dimensão simbólica. É objetivo também analisar os Graffitis e as Pixações, buscando-se as representações e discursos embutidos nestas artes: Sabemos que essas práticas na cidade envolvem diferentes agentes que, a seu modo, expressam suas ideias de formas diferenciadas, atuando em cada lugar segundo lógicas ainda pouco conhecidas. 1.2 “Qualé deste rolê?” - Questões Norteadoras Compreendendo essas artes na cidade questiona-se:  Como o Graffiti e a Pixação constroem e se apropriam simbólica e materialmente do espaço urbano?  Por que se constituem como práticas rebeldes de resistência?  Quais são suas espacialidades?  O que expressam esses Graffiti e Pixações?  Quem são seus criadores? Quais as suas formas de organização na cidade? 1.3 Referencial teórico – Estado da Arte Inicialmente é preciso ressaltar o caráter inovador desta pesquisa, pois começa a preencher uma lacuna existente nos estudos geográficos referente ao tema, na região Nordeste e, sobretudo, em Salvador. As geografias cultural e urbana começam a explorar essa temática, alguns trabalhos consolidados já foram realizados sobre o Graffiti e sobre a Pixação, mas concentrados na região Sudeste, como aponta Moren: “Cabe ainda a ressalva de que os poucos estudos feitos sobre grafite no Brasil são centrados na região sudeste e estão, de alguma forma, vinculados aos estudos da cultura Hip Hop” (2009, p 36). Hoje o Graffiti é um movimento que vai além da cultura Hip Hop, ainda que existam alguns coletivos e graffiteiros vinculados a ela.

4 Ao se falar de Pixação, a escassez dos estudos é ainda maior na área da geografia, ainda que existam alguns poucos trabalhos, principalmente em outras áreas do conhecimento. Assim, essa pesquisa pretende colaborar com a produção do conhecimento geográfico sobre Graffiti e Pixação, sobretudo na cidade de Salvador, ainda que não pretendendo esgotar este assunto. Dos estudos encontrados em geografia destacam-se os trabalhos realizados por Tartaglia (2010), Barchi (2007), Mondardo e Goettert (2008), Medeiros (2008) e Morem (2009). A dissertação de Tartaglia apresenta um histórico muito rico sobre a origem e as influências do/no Graffiti, estabelecendo a diferenciação entre o Graffiti e a Pixação, que acontece posteriormente com o desenvolvimento dos Graffitis. O autor resgata o caráter de autoafirmação de grupos socialmente marginalizados e de sua forte ligação com o movimento Hip Hop, mas não restritos ao movimento, assim como seu caráter político. Segundo o autor (2007):

Mesmo que muitos grafiteiros estejam distantes de um projeto mais abrangente alicerçado por propostas ideológicas articuladas com alguma forma de mobilização social mais engajada, como o movimento hip-hop, ou de políticas institucionais para a cidade como um todo, tal qual propõe Borja, de um modo geral os grafiteiros têm promovido, no mínimo, um sentido de reflexão sobre a cidade a partir de suas intervenções no espaço urbano. Em um período marcado por tamanha apatia política como o que vivemos em nossa sociedade atualmente, o graffiti aparece como uma rara manifestação de cunho político deste momento (2007, p. 81).

Analisando a cidade do Rio de Janeiro, Tartaglia desenvolve suas pesquisas baseado nos conceitos de paisagem, espaço público, fragmentação sócio-política do espaço urbano, identidade territorial, territorialidade e território, dedicando um capitulo inteiro para analisar a territorialidade dos grafiteiros na cidade do Rio de Janeiro, assim como suas formas de apropriação do espaço urbano. Ë importante dizer da metodologia escolhida pelo autor para realizar esse trabalho, segundo ele, “a observação participante, principal instrumento metodológico deste trabalho, foi escolhida como uma forma de apreender a riqueza de detalhes apresentada nas ações dos grafiteiros, inclusive a minha, pelo espaço urbano” (2007, p. 166). A partir de uma abordagem diferenciada da pixação, Barchi (2007) investiga os discursos expressos nas conversas cotidianas sobre as pixações nas escolas, analisando as possibilidades de uma educação ambiental e libertária, partindo de uma narrativa pessoal de sua experiência como professor de Geografia numa escola de periferia. O

5 autor defende o status de arte para a pixação, baseando-se no fotógrafo Wainer, que em uma reportagem discorre sobre essa arte e todo seu potencial; e na discussão levantada por Gianni Vattimo, sobre a valorização da arte na cultura de massa, que não se assentaria sobre o objeto mas sim sobre o valor oficial idealizado pelos mass media (BARCHI, 2007, p. 3 ), defendendo a arte autêntica como aquela que rejeita a comunicação de massa. Barchi segue seu artigo trabalhando a dualidade que permeia a pixação, já que, segundo ele, “se por um lado as pichações são vistas como crime (ambiental), sujeira, má educação e desrespeito com um determinado senso estético, por outro podem ser consideradas a partir de sua potencialidade politicamente intervencionista e artística” (2007, p. 4). A metodologia desenvolvida para sua pesquisa segue ideias apontadas por Feyerabend, em sua famosa obra “Contra o método”, e Boaventura de Sousa Santos, em “Introdução a uma ciência pós-moderna”, articulando a ideia de “acidentes de percurso” e “encontro da ciência com o senso comum”, escolhendo como forma de coleta de dados a conversa, baseada em Menegon. Assim, Barchi estabelece o diálogo como fundamental para uma educação ambiental, não preocupado em dizer não a pixação, mas com o processo de educação e comunicação para discutir um tema tão controverso. Mondardo e Goettert, em seu artigo intitulado “Territórios simbólicos e de resistência na cidade: grafias da pichação e do grafite”, discutem, a partir da análise de fotografias de pixações e graffitis nas cidades do Brasil e do Paraguai, o poder que essas grafias exercem nas cidades, enquanto demarcadores de territórios de resistência, contrapondo-se à ordem hegemônica. Conforme estes autores:

Desse modo, o grafite e a pichação são representações político-simbólicas que podem ser também de poder, ou melhor, de um contra-poder: o da resistência e de crítica popular à ordem hegemonicamente estabelecida e imposta pela sociedade burguesa composta pelos seus atores hegemônicos: o capital e o Estado (2008, p. 307).

Baseados nos conceitos de território de Haesbaert e de poder de Foucault, defendem o caráter de resistência que essas praticas têm nas cidades, por demarcarem territórios, material e simbolicamente, exercendo a função de contra-poder na dialética da dominação e da contra-dominação, sendo, portanto, um meio de se apropriar de parcelas da cidade através de marcas de expressão cultural e de resistência. “O que dizem os muros da cidade” é o titulo da dissertação de mestrado de Medeiros (2008), que buscou analisar as formas e os usos, em processos de apropriação

6 popular da cidade, elegendo os muros como objeto de pesquisa: investiga principalmente os graffitis Hip Hop e as pixações vinculadas ou não ao movimento Funk, discute questões como segregação sócio-espacial, preconceito racial, suas dimensões territoriais e territorialidades, considerando também a paisagem, sendo estes os principais conceitos geográficos discutidos. Ë importante ressaltar que, ao desenvolver cada questão, aprofunda-se nas dimensões espaciais e sociais, abordando um pensamento social crítico e trazendo o histórico deste pensamento. Reflete também sobre o papel do negro nestes processos, evidenciando as transformações da cidade assim como suas desigualdades. Seu trabalho é de grande contribuição, pois analisa os discursos propagados nos muros da cidade como formas de tomar e re-significar o espaço urbano pela atuação de agentes que não se conformam com a estrutura racista e preconceituosa da sociedade. O trabalho de Moren realiza um estudo comparativo entre duas áreas da cidade do Rio de Janeiro, a zona sul e o centro da cidade, a zona sul vista como espaço da elite econômica, e o centro como um eixo comercial e de moradias de classes economicamente menos favorecidas. Moren trabalha apenas com os graffitis pictóricos deixando de fora de sua análise a Pixação e outras formas de graffitis, ainda que isto apareça em sua dissertação, mas de forma sucinta. Ela levanta a hipótese que se confirma em sua conclusão, “de que quaisquer que sejam as diferenciações entre os grafites, elas são, em algum nível, representativas das diversas relações de significado estabelecidas entre a população e o lugar público urbano” (2009, p. 43). Moren pauta sua dissertação nos conceitos de “espaço público (GOMES, 2002) e lugar (CRESSWELL, 1996; BERDOULAY, 1989)” (2009, p. 36). Em outras áreas do saber científico o Graffiti e a Pixação também são objetos de pesquisa, destacando-se as áreas de antropologia, artes visuais, pedagogia e história, nas quais encontramos maior quantidade de trabalhos desenvolvidos. Nesse sentido, selecionamos alguns trabalhos que pudessem contribuir com essa pesquisa, como os estudos realizados por Coelho (2010), Pena (2007), Soares (2007), Souza (2007), Olária (2009), Silva (2008; 2011) e Pereira (2010). Em um ensaio filosófico, Coelho investiga as relações de um pixador que cursa a faculdade de Belas Artes em São Paulo e faz uma pixação na faculdade, como trabalho de conclusão de curso, gerando um episódio bastante conflituoso, que resultou no jubilamento do estudante-pixador. Aborda, assim, a questão do status da arte, dos sentidos do ensino de arte, questionando o “bom gosto”, a “racionalidade”, o “bom

7 senso” e a “boa educação”, e reverberando palavras de Boaventura de Sousa Santos como “força reguladora” e “energias emancipatórias”. No contexto de nossa pesquisa, esse ensaio filosófico se torna um riquíssimo trabalho, que exige nossa reflexão sobre a sociedade e seu olhar regulatório e repressor em relação à criatividade e às outras formas de cultura. Patrícia Pena (2007) estuda a pedagogia dos graffiteiros de Salvador, analisando oficinas de graffitis ministradas para alunos de escolas públicas e explorando as questões de identificação de aspectos que interferem na relação desses jovens negros com a educação formal. O método utilizado é a historia oral, partindo de uma relação mais próxima e de confiança entre entrevistado e entrevistador. A autora a partir da relação de diferentes dimensões como casa (família), da escola e da rua, busca entender a relação que esses jovens artistas vêm construindo com a escola. Partindo das dimensões históricas, sociais e simbólicas dos graffitis e das pixações nos espaços públicos de Recife, Soares (2007) identifica que esses gêneros discursivos ressaltam as tensões urbanas, considerando-os como fontes documentais relevantes, sendo representativos dos sentidos existentes entre a memória e a identidade dos sujeitos (SOARES 2007). O autor também ressalta as territorialidades apresentadas nestas grafias, discutindo a normatização imposta a esses gêneros, além do pluralismo cultural destas manifestações. O trabalho de Soares se insere num projeto maior, denominado “Muros da univer(c)idade: identidade, memória e sócio-história discursiva”. Em sua dissertação de mestrado, Souza (2007) nos apresenta a etnografia da Pixação carioca assim como propostas para seu entendimento, tendo como campo de pesquisa a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana, utilizando-se de procedimentos etnográficos, como pesquisa de campo e observação participante, além de fontes como jornais, revistas e internet.

Ensina-nos Olaria (2009) a pensar em imagens para além da função de ilustração, como deflagradoras do pensamento investigativo, ressaltando a capacidade da imagem em provocar efeitos, produzir formas de sociabilidade, sendo a “imagem um documento visual como registro produzido pelo observador; (...) como registro ou parte do observável, na sociedade observada; e, finalmente, [documento visual como] a interação entre observador e observado” (MENESES apud OLARIA, 2009, p. 4). Silva (2008, 2011) contribui, com seus dois artigos, para o conhecimento da historia do Graffiti, traçando sua trajetória no mundo, assim como a diversidade existente, mostrando um panorama do Graffiti no mundo contemporâneo e apresentando

8 diferentes fontes e autores que estudaram a temática. Este autor não considera a Pixação como arte e sim como intervenção, conceitualizando e diferenciando a Pixação do Graffiti, e discutindo também a lógica destas intervenções no espaço urbano. A contribuição de Pereira (2010) foi a de investigar a dinâmica da Pixação em São Paulo: partindo de uma relação próxima com esses agentes, o autor revela as ações e práticas realizadas pelos pixadores na cidade, desvendando o estilo das pixações, assim como os points dos pixadores, revelando também a lógica das periferias no centro, ao constatar que a maior parte dos jovens que praticam essa arte é da periferia e se encontra no centro para trocar ideias. Realizam conjuntamente ações, levando a identidade e o discurso da periferia para o centro. Segundo Pereira: As dinâmicas da relação com a periferia – como espaço mais geral de articulação que extravasa o bairro particular – e as regras de procedimento relacionais afetam o próprio modo da pixação paulistana, pois, para esses jovens, sair para pixar em outras regiões da cidade é muito mais interessante do que apenas pixar em seu próprio bairro. Para eles, inclusive, é no momento em que deixam de atuar apenas na quebrada onde moram e saem para pixar em outras quebradas, ou mesmo no centro da cidade, que se tornam pixadores de verdade (2010, p. 160).

O autor coloca então a questão da territorialidade que esses agentes estabelecem na cidade, discordando de outros autores: Circular pela cidade e deixar sua marca é a regra principal da pixação. No entanto, é difícil afirmar que os pixadores sejam desterritorializados, conforme apontam muitos estudos sobre grupos juvenis inspirados por autores como Deleuze e Guattari (1997) ou Maffesoli (2001). Na verdade, a partir desta valorização da periferia como categoria de pertencimento e de reconhecimento, pode-se dizer que os pixadores são hiperterritorializados, pois, mesmo em seus encontros no point do centro da cidade, são as relações concebidas sobre e na periferia que estão sendo postas em ação (2010, p. 161).

Apresentadas essas referências, notamos que alguns conceitos se repetem e podem servir como apoio para análises e pesquisas sobre o Graffiti e a Pixação. Ressalta-se, porém, que não é pretensão deste trabalho encaixar a realidade dentro de conceitos, mas sim utilizá-los como forma de melhor explicar a realidade pesquisada. Conceitos como paisagem, território, territorialidade, espaço público, identidade, política e poder servirão aqui como ferramentas teórico-metodológicas para ajudar na compreensão dos fenômenos analisados. É claro que a escolha dessas ferramentas teóricas não impossibilita a adoção de outros conceitos que por ventura possam se revelar como necessários no desenvolver da pesquisa.

9 Gostaria de registrar que também embasam essa pesquisa as ideias levantadas por Hakim Bey, nos livros Caos e Taz, principalmente os conceitos de “terrorismo poético” e “zona autônoma temporária (TAZ)”. O conceito de terrorismo poético esta em dar graça aonde ela não existe, levar alegria a lugares “sem graça”, normativos. Bey coloca que a “arte do grafite emprestou alguma graça aos horríveis vagões de metrô e sóbrios monumentos públicos (...)” (2003, p. XIII). Por TAZ podemos compreender, mesmo que o autor tenha escolhido não definir, por um momento determinado, em um lugar em que as ações fossem livres, autônomas, mas com a característica de serem temporárias; como nos diz o autor, o próprio nome é autoexplicativo se ele entrasse em uso. A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la (BEY, 2001, p.17).

1.4 Procedimentos Metodológicos “A ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam a lei e a ordem” (FEYERABEND, 2003, p.31).

Ao iniciar com essa citação de Feyerabend, queremos deixar claro que mesmo definindo alguns procedimentos metodológicos, essa pesquisa será conduzida de modo livre e criativo. Outro ponto essencial para essa pesquisa é a articulação do conhecimento popular com o conhecimento cientifico, como aponta Serpa ao escrever sobre metodologia sem hierarquia, “Se o conhecimento acadêmico não é melhor e nem pior que o conhecimento popular, então não há porque pensar atividades de pesquisa e ensino que não busquem incessantemente a interação com o conhecimento popular como objeto” (2007, p.137). A experiência e a vivencia também foram fundamentais no decorrer desta pesquisa, deflagrando as saídas de campo e a observação participante. Pretendíamos realizar uma analise qualitativa da espacialização do Graffiti e da Pixação. As saídas de campo podem ser divididas em duas etapas. A primeira consistiu nos encontros com os graffiteiros e pixadores, para a realização das entrevistas semiestruturadas e a observação participante, ou seja, participar do cotidiano deste agentes durante suas ações na cidade. O grupo de Pixadores que foram entrevistados faz parte de uma rede de contatos estabelecida a partir do “Baba do Píxe”, encontro aos domingos na praia do Jaguaribe,

10 onde diversos Pixadores, de diferentes grupos, se encontram para um baba2, trocar ideias, trocar Pixações nas folhas, enfim para compartir. Fazem parte deste grupo aproximadamente 20 jovens de ambos os sexos, ainda que a maioria seja masculino. O grupo de Graffiteiros selecionado para participar nesta pesquisa, de alguma forma, estabeleceu com a autora laços de afetividade, construindo, assim, uma relação mais próxima e de confiança, esses laços foram formados em encontros e eventos de grafiteiros e pixadores. A segunda etapa consistiu no levantamento fotográfico no centro da cidade do Salvador, assim como em áreas importantes, reveladas na primeira etapa pelos entrevistados. A entrevista é compreendida aqui como um método de coleta de informação, cuja subjetividade, a memória e a historia de cada individuo é valorizada: ainda que a historia do individuo seja uma construção social, cada individuo é único, sendo cada entrevista uma fonte rica de conhecimento. Quando dizemos que essa pesquisa foi conduzida de modo livre e criativo, queremos dizer que deixamos em aberto todas as possibilidades para investigar essas artes, ou seja, se fosse necessário graffitar, pixar, entre outras praticas, o faríamos. Vídeos, filmes, sites e redes sociais foram considerados fontes documentais essenciais, utilizando-as durante o processo. Queríamos ser livres e apostar na criatividade para desenvolver a pesquisa, e que seus resultados fossem fieis aos seus protagonistas e a sua prática.

2

Partida de futebol de bairro, jogo organizado por grupos de amigos.

11 Capítulo II A HISTÓRIA DA PAREDE COMO TELA: A GÊNESE DOS RISCOS

São relativamente recentes como objetos de estudos as pixações e os graffitis, no entanto, como sinalizamos nas linhas anteriores, a prática de escrever na parede acompanha a história da humanidade. E é fundamental para os estudos geográficos a dimensão temporal e histórica: como aponta Santos (2012), o espaço é inseparável do tempo. Assim, neste capitulo, resgataremos recortes da história das escritas e pinturas nas paredes, buscando entender a função que tais grafias exerciam nos distintos momentos históricos analisados.

2.1 As cavernas como tela: Pinturas Rupestres O primeiro recorte corresponde à pré-história, com as pinturas rupestres, realizadas pelos hominídeos, considerados por alguns como arte pré-histórica, o que gera calorosas discussões sobre seu caráter de arte ou não, que é datada aproximadamente há 35 mil anos A.C. As pinturas rupestres estão espalhadas pelas cavernas do mundo, destacando-se as cavernas de Lascaux (França) e Altamira (Espanha), entre outras. O Brasil tem um dos maiores acervos rupestres do mundo, existindo no país diversos sítios arqueológicos com pinturas rupestres: destaca-se o Parque Nacional Serra da Capicara, no Piauí, com o maior acervo rupestre do continente (PEREIRA, 2011). Essas pinturas eram realizadas com rochas trituradas, ossos carbonizados, carvão, vegetais e sangue de animais. As gravuras apresentam formas geométricas, curvilíneas, lineares, pegadas de felinos, marcas de mãos, e figuras de animais e plantas, como as encontradas nos sítios arqueológicos da região do Cariri paraibano (NETTO; KRAISCH; ROSA, 2007). Para Sanches, “essas representações não são feitas ao acaso; respondem tal como as mais realistas a uma representação conceptualizada do mundo” (2003, p. 91-92). Cenas do cotidiano também foram temas das pinturas, retratando relações sexuais, a caça, e a vivência coletiva. Por mais que não possamos entender quais os significados destas pinturas em sua época, já que se perdeu o elo conceitual entre a atualidade e os que as fizeram, como afirma Pereira, “o que seus criadores queriam dizer de forma precisa nunca se saberá, se perdeu no tempo” (2011, p.25), podemos ver a clara relação com o modo de vida deste período, como expressão da criatividade humana, para os arqueólogos tais pinturas são

12 formas de identificação do grupo étnico que as realizou (PEREIRA, 2011). Existe uma relação direta entre os que as fizeram e seus territórios: partindo da análise das diversas pinturas rupestres, é possível identificar os diferentes grupos e suasrelações como espaço, nos trabalhos de Pereira (2011), Sanches (2003), Netto; Krasch; Rosa (2007), que apontam as diferentes atividades realizadas no território, partindo dos estudos das pinturas rupestres, vistas não apenas como arte mas como “a capacidade humana de ter consciência de si mesmo, o que permite se posicionar em relação ao espaço” (PESSIS apud PEREIRA, 2011, p.28). Sanches em seu trabalho demonstra, através de exemplos, a marcação territorial, distinta para diferentes usos, partindo dos lugares onde estão essas grafias, apontando a diversidade de significados existente.

Figura 1

Figura 2

Figura 3

Figura1 Sítio: Toca do Morcego - Serra da Capivara – PI; figura 2 Síti : Xique-Xique I - Carnaúba dos Dantas - Seridó – RN; figura 3 Sitio: Toca do Boqueirão da Pedra Furada - Serra da Capivara – PI; fonte: Associação Brasileira de Arte Rupestre - ABAR

É pertinente a colocação Pereira sobre a diversidade e as particularidades que carregam as pinturas rupestres. Para o autor: Hoje, esses registros são observados como um produto final, por serem vestígios milenares; mas as pinturas e gravuras rupestres foram realizadas em tempos diferentes, por numerosos autores, de diversas etnias, em ambientes distintos e com histórias particulares. Por essas atribuições, possuem múltiplos significados no interior de uma mesma cultura, experimentações de significação motivadas pela diversidade e pela particularidade de cada grupo. Observadas as maneiras pelas quais resolveram os problemas de suas sobrevivências (PEREIRA, 2011 , p. 28).

Assim, as pinturas rupestres revelam a pluralidade e sua estreita relação com o lugar, seus autores no uso de sua criatividade, transformando o concreto e o abstrato em formas estéticas e também em registros, demarcando seus lugares. Segundo Sanches, “portanto, a evocação ou localização de narrativas num lugar transforma esse espaço amorfo num espaço cognitivo. A marcação desses lugares físicos através de riscos ou

13 pinturas parece reforçar e fixar de forma mais perene uma certa estrutura narrativa” (2003, p. 87). A Arte Rupestre é uma manifestação global: o Congresso Internacional de Arte Rupestre (Global rock art), ocorrido em 2009 no Parque Nacional da Serra da Capivara, teve como objetivo demonstrar que “a globalização não é um fenômeno atual, ela começa quando o homem parte de seu berço na África e começa a ocupar os continentes” (GLOBAL ROCK ART apud PEREIRA, 2011, p.31). Essas grafias rupestres tiveram um importante papel social além das questões territoriais, já que elas “seriam essenciais para a sobrevivência de cada grupo” (GUIDON e MARTIN apud PEREIRA, 2011, p. 26). Nesta perspectiva Pereira aponta que: A imagem é ferramenta essencial para o conhecimento e para ação; para realizá-las, os autores das pinturas rupestres precisaram observá-las e imaginá-las previamente. Após o processo de observação e imaginação é que foi possível elaborar os registros das formas imaginadas por meios de técnicas gráficas, ou seja, as pinturas como instrumento do conhecimento. Inicialmente, sem finalidade imediata, mas lúdica, realizadas pelo prazer da própria motricidade, na convergência do suporte, da tinta e do instrumento; tonou-se prática como função social, tendo como finalidade contribuir para a manutenção de uma organização social, de regras e comportamentos e, por fim, do principio de dominação que caracteriza os diferentes grupos sociais. (2011, p. 29-30).

É interessante perceber a semelhança que tal ação, realizada há milhares de anos atrás, tem com os graffitis e pixações da atualidade, no que se refere a sua ação no espaço e socialmente, veremos nas linhas posteriores como essas grafias atuais agem conforme os diferentes grupos que os fazem. Concordamos com Pereira, quando diz que “na história dos registros gráficos, a Pré-história e a história se reencontram pela via da descoberta técnica e pela liberdade de expressão” (2011, p.16). Após esse resgate da pré-história, daremos um salto na história e veremos as manifestações que de alguma forma influenciaram o graffiti e a pixação contemporâneos.

2.2 Muralismo Mexicano e Pop Art: Influências no graffiti e na pixação

O muralismo mexicano, um movimento artístico que ocorreu no inicio do século XX, a partir da revolução mexicana, é considerado por Thiago Tartaglia (2010) a primeira influência mais significativa para o graffiti. Esse movimento, que surge junto a um levante popular, tem suas inspirações nos valores políticos da revolução, buscando a

14 valorização da cultura popular mexicana a partir de seus painéis (ARGAN, 1999 apud TARTAGLIA, 2010). A construção de painéis em grandes dimensões, pintados em espaços públicos, é a principal característica do muralismo mexicano, que rompia com padrões artísticos do período. Mergulhados no figurativo, abandonando o estilo abstrato, esses murais abordavam cenas do cotidiano, fortalecendo a cultura e o povo mexicano. Redefinir significava abandonar o cubismo, o impressionismo e – sobretudo – qualquer veleidade de arte abstrata. Significava mergulhar no figurativismo. E mais ainda: produzir obras que não terminassem como propriedade de uma pessoa, de algum abastado colecionador. Produzir obras que pudessem ser vistas por todos, a qualquer momento, não em museus ou em instituições às quais o povo nunca teve acesso, mas em edifícios públicos, escolas e repartições oficiais, com isso aproximando também o Estado e a Nação (Gênios da pintura, 1967: 4/5 apud TARTAGLIA, 2010).

Figura 4 - David Alfaro Siqueiros, As pessoas para a Universidade. A Universidade para o Povo. Universidade Nacional Autônoma do México, Cidade do México 1952-1956. Fonte: http://www.nga.gov/education/classroom/self_portraits/bio_siqueiros.shtm

Desta forma, apoiadas pelo Estado, as pinturas muralistas tiveram grande visibilidade e nas décadas posteriores chegaram nas cidades do Estados Unidos, o que, conforme Tartaglia, “demonstra a influência dessa cultura levada pelos imigrantes mexicanos e o seu valor para o surgimento dos graffitis. Os graffitis contemporâneos absorveram o caráter de arte pública e a politização temática de suas obras a partir da pintura muralista mexicana” (2010, p. 27).

15 É importante a compreensão do referido autor, de que a influência do muralismo mexicano no graffiti é um dos fatores que diferenciam o graffiti da pixação. Outro movimento artístico que influenciou o graffiti, segundo Tartaglia, é a pop art: A pop art foi outra significativa influência artística contemporânea sobre os graffitis, originada posteriormente ao muralismo mexicano. Decorrente do processo de midiatização e massificação da sociedade de consumo, especialmente nos EUA, a pop art é um reflexo desse momento, cujas bases foram inicialmente lançadas na cidade de Nova York.(...) A pop art desenvolve então esta idéia de “faça você mesmo” como uma crítica à falta de autonomia e de capacidade decisória dos indivíduos na sociedade derivada de sua própria alienação, o que criava uma dependência de modelos a serem seguidos. (...) A reprodutibilidade foi um importante elemento da pop art que assumia uma crítica à saturação da veiculação de imagens e massificação de informações, das quais a televisão tornava-se a principal fonte. Esse apelo da veiculação de imagens acabou influenciando de maneira significativa a cultura do graffiti e da pichação nova-iorquina desde os anos 60. A repetição das tags ou dos próprios graffitis como formas de afirmação coletiva de existência foi uma derivação desse processo iniciado pela pop art, no qual a reprodutibilidade, atitude de faça você mesmo, tiveram um papel fundamental. O fato de a pop art ter Nova York como epicentro é mais um fator que ajuda a explicar por que o surgimento dos graffitis está ligado a essa cidade (2010, p. 29- 30).

2.3 As gêneses do graffiti e da pixação: do mundo para Salvador

Entendendo as principais influencias do graffiti e da pixação analisaremos sua história. São duas as teorias que discorrem sobre o surgimento destas artes segundo a CUFA, Centra Única de Favelas. Cada teoria de certa forma complementa a outra, no entanto as duas consideram o surgimento nos anos 1960/70 na cidade de Nova York, Estados Unidos. A primeira vincula o graffiti ao surgimento do movimento Hip Hop, nos bairros periféricos onde os migrantes marginalizados jamaicanos, mexicanos, portoriquenhos, haitianos e afro-americanos realizavam festas como forma de convivência, e o graffiti como uma das linguagens do Hip Hop, de acordo com Oliveira; Tartaglia (2009): Essas festas criavam espaços de celebração da multiplicidade que atraía jovens para a diversão e o encontro com os imigrantes porto-riquenhos, mexicanos, haitianos e afro-americanos, entre outros, que assim transferiam os conflitos violentos entre as gangues, ou seja, uma geopolítica urbana (GOMES, 2002) de disputas territoriais para as disputas musicais (os desafios de rap), disputas de dança (as batalhas de street dance e break) e as disputas estéticas visuais (competições de quem fazia os melhores desenhos e os mais difundidos pela cidade, os graffitis). Neste sentido, criavam práticas espaciais conciliatórias através de elementos culturais. Todavia, isso não significa que os graffitis de hip-hop dissimulavam totalmente os conflitos; pelo contrário, num primeiro momento os graffitis foram estratégias territoriais que

16 demarcavam a disputa por territórios entre gangues, especialmente de imigrantes, para depois se tornar uma estética de conciliação para esses grupos (2009, p. 60-61).

A segunda teoria afirma que os grafiteiros escreviam seus próprios nomes (tag) ou denunciavam problemas sociais nos muros da cidade assim como nos vagões de trem: o intento era dar visibilidade a esses agentes marginalizados socialmente que se apropriavam dos espaços da cidade afim de se auto afirmarem como também para se manifestar contra os regimes políticos e as injustiças sofridas. Nesta perspectiva, faz parte desta gênese as pixações e os graffitis políticos presentes no maio de 1968 na França, nos movimentos contra as ditaduras militares na América Latina, nos protestos urbanos na Inglaterra, na luta pelos direitos civis nos EUA entre outros (KNAUSS, 2001 apud OLIVEIRA 2006, p. 108). Se assumimos que as duas teorias são complementares, que o graffiti e a pixação surgem do movimento Hip Hop, como também das manifestações individuais ou/e de grupos resultantes de um processo de denúncia e de autoafirmação, fica evidente o caráter politico destas artes, que utilizam a cidade como suporte para suas falas, sendo uma forma de resistir na cidade. Mas esses pixadores e grafiteiros eram cruelmente margilizados pelas autoridades e pelo Estado: “Todavia, a ação dos grafiteiros será convertida em questão policial, principalmente pela imprensa nova-iorquina, no início dos anos 70” (KNAUSS, 2001 apud OLIVEIRA; TARTAGLIA, 2009, p. 63). Tratados como vândalos, esses sujeitos foram ainda mais discriminados, além das discriminações cotidianas que sofriam por serem migrantes, negros e pobres. Para Oliveira e Tartaglia:

Nos anos 70, o graffiti era utilizado principalmente como uma assinatura que demarcava os territórios disputados por grupos de jovens, negros e “latinoamericanos” em sua maioria, pelos bairros da cidade de Nova York. Até então não havia uma unidade entre esses grupos que, apesar de sofrerem preconceitos e discriminações perante a elite branca da sociedade estadunidense, estabeleciam entre si uma grande rivalidade. A paisagem então era demarcada com as assinaturas que identificavam as gangues juvenis, também conhecidas como Tag. O espaço, assim, era dividido e territorializado. (2009, p.64).

Nota-se que os primeiros traços na rua ainda que identificados como graffitis se aproximam muito mais do que conhecemos atualmente por pixação, no entanto não havia uma distinção muito clara do graffiti e da pixação, fato que acontece

17 posteriormente com a evolução do graffiti e da pixação, esta última se assumindo como um movimento distinto do Hip Hop e do graffiti. De acordo com a segunda teoria da gênese do graffiti e da pixação, no Brasil os primeiros riscos apareceram no ano de 1964, em protestos contra a ditadura, é clássica a imagem da figura 5 com a pixação “abaixo a Ditadura”. .

Figura 5 - Jovem pixando no prédio da Câmara municipal do Rio de Janeiro. Fonte: http://metododialetico.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html acesso: 12/02/2013

Nas décadas de 1970 e 80 o movimento Hip Hop chega ao país, divulgando ainda mais o graffiti, mesmo que nem todo grafiteiro esteja vinculado a esse momento. Assim o graffiti e a pixação começam a se separar e se tornar movimentos distintos. Em Salvador existe uma lacuna sobre a história destas artes. Encontramos uma reportagem cujo titulo é Fachadas de Salvador a partir da década de 70: a arte dirigida às coletividades, que relata as primeiras pixações que chamaram a atenção dos moradores da cidade: “Deus condena candomblé” foi a primeira manifestação em grafite que teve certa ressonância junto à população. Mas, o autor da pichação nas paredes dos viadutos nunca chegou a ser descoberto. Depois foi a vez de se falar na crise que o esporte Clube Bahia atravessava, pela falta de renovação dos jogadores. Em agosto de 1979 grupos de poetas iniciaram uma intensa movimentação de manifestações artísticas, utilizando as paredes públicas, fazendo reviver toda uma fase de exposição de ideias. A poesia de rua é importante por ser a veiculação direta autor/povo, das variadas mensagens, como por exemplo: “O operário é um poema censurado”.

18 (www.blogdogutemberg.blogspot.com.br, Data de postagem 29/09/2011, data de acesso1/01/2013).

Mesmo com essa noticia ainda é muito obscura a história do surgimento do graffiti e da pixação em Salvador, tema esse que mereceria ser pesquisado em trabalhos futuros. O grafiteiro TarcioV, em entrevista, contextualiza o graffiti em Salvador em dois momentos O graffiti em Salvador são duas etapas, essa galera que veio no fim da década de 80 e que tiveram outras vivências e a galera que vem da década de 90, início de 2000 pra cá, que é de onde eu faço parte, a relação era muito envolvida com musica e skate, a relação com o RAP estava muito forte também e o convívio com a cidade também (TARCIOV, 2011).

Contudo fica em aberto a história do graffiti e da pixacão em Salvador, mas com alguns indícios de como chegaram na cidade e das mudanças ocorridas.

19 Capítulo III GRAFFITI E PIXAÇÃO: SUAS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS

Viemos trabalhando até aqui o graffiti e a pixação sem ter feito uma clara distinção entre eles, com o propósito de afirmar que, apesar das diferenças que tais manifestações tomaram, partiram de um lugar comum, não apenas geograficamente, mas enquanto movimento. E ainda hoje, em alguns momentos, graffiti e pixação se confundem. Afinal o que é pixação? O que é graffiti? Responderemos essas perguntas não buscando discutir detalhadamente as diferenças, como já foi realizado por diferentes autores, mas procurando entendê-los enquanto duas ações que se apropriam da cidade com estratégias diferentes.

Figura 6 - Parede pixada e grafitada na avenida Anita Garibaldi. Fonte: Google Maps, acesso em 23 de outubro de 2012

3.1 O que é pixação?

Pixação é uma arte de rua, caracterizada por uma escrita estilizada do nome do pixador e do grupo que participa (se participa de algum grupo), monocromática, quase sempre feita com spray preto. Em Salvador, no entanto, observa-se pixações de outras cores (verde, prata, azul, branco, etc.), e com tinta látex, utilizando-se rolinho ou pincel, o que constitui uma forma de apropriação da cidade. Para David Souza, a pixação é:

caracterizada pela veiculação através da paisagem urbana, por sua vocação clandestina e por seu aspecto estético com traços rápidos e apressados em

20 tinta spray, cuja premissa é a divulgação através da repetição (...) A pichação é usualmente associada a um discurso norteado pelas noções de vandalismo, delinqüência, e poluição visual (SOUZA, 2007, p.19).

Nesta mesma perspectiva, Elizabet Souza et al. (2007, p. 4) afirmam que: A pichação é entendida, por uma maioria de seus sujeitos-leitores, como um ato de vandalismo, com o único e exclusivo intuito de depreciar o patrimônio público. Em contrapartida o artista de rua Ivan Sudbreck afirma o sentido ideológico das pichações: “a arte será sempre um reflexo social de um povo, no nosso caso reflexo de um povo oprimido” (GITAHY, 1999: 23).

A visão de Ivan Sudbreck coincide com a dos pixadores entrevistados, que, em sua maioria, compreendem a pixação como arte e uma forma de liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que dá visibilidade a esses agentes “invisíveis” e marginalizados. Indagados se consideravam a pixação uma arte, 8 dos 9 entrevistados responderam que sim. As respostas foram enfáticas: O pixador Beck, de 23 anos, com 12 de pixação, nos diz por exemplo: “Considero sim, porque as pessoas se expressam naquela momento, mesmo pixando expressa ali seu momento de criatividade e um bocado de coisa mais, se tiver estressado sai pra pixar, pronto já foi o estresse (BECK, 2012). Já o pixador Nelp (17 anos, 3 de pixação) enfatiza a questão da habilidade de quem faz, “pessoas têm habilidade pra fazer outras coisas, a gente tem pra fazer isso aí”(NELP, 2012). Mito (26 anos, 11 na pixação), uns dos pixadores com maior quantidade de riscos na cidade, é sucinto na resposta quando fala que: “Sim claro, por isso que eu faço!”(MITO, 2012). Smol (16 anos), iniciante na pixação, com 1 ano de experiência pintando nas ruas diz: “Com certeza, porque é uma arte, não tem como negar, pode sujar, mas é uma arte, pode ser proibido mas é uma arte” (SMOL, 2012). Sano, 28 anos, 12 pixando, afirma: Considero sim, a pixação vem desenhando na parede há muito tempo, desde os homens da caverna que desenhavam nas paredes, e escreviam, faziam seus desenhos, é uma coisa que já vem acontecendo há muito tempo. Na época da ditadura mesmo, a galera botava abaixo a ditadura, diga não a violência, a pixação vem ai há muito tempo, eu considero uma arte. Você vê a parede branca e você escreve alguma coisa, mesmo que não seja um pixe, seja uma frase, tudo pra mim é pixe.

Já para o pixador Neghet, 23 anos, 5 anos pixando, não considera a pixação uma arte: Não eu não considero uma arte não, porque como eu falei, a arte está ali para algumas pessoas, exemplo, a arte é para ver, para as pessoas gostarem, essa é a minha visão. A pixação é um vicio na verdade, tudo bem que a gente não

21 protesta muito, mas nós estamos passando as nossas ideias, passando que nós estamos vivos também, é o lado tipo oposto do que as pessoas querem ver (NEGHET, 2012, grifos meus).

Assim esse pixador define a pixação como: “pixação é uma atitude das ruas, é um vicio de quem não esta tendo a liberdade, não estão sendo vistos, e é amor pra mim” (NEGHET, 2012, grifos meus) A compreensão da pixação como vício e “adrenalina” também está presente nas falas de outros pixadores como Skim (18 anos, 3 de pixação) “Claro (que é arte), pela adrenalina, porque adrenalina corre no sangue, parece que a pixação é tipo droga, você usa pela primeira vez e já foi, você vicia, não quer parar mais”(SKIM, 2012). O pixador com 3 anos de experiência na rua, Nelp, 17 anos, resume a pixação assim: “Pra mim é assim, é arte é adrenalina, você riscar rápido para não tomar um bote” (NELP, 2012). Quando solicitei que os pixadores resumissem em uma palavra a pixação surgiram as seguintes palavras: Adrenalina (3 vezes), Arte (4 vezes), Amor (2 vezes), Protesto (2 vezes) e Vandalismo (1 vez). Desta forma, para os entrevistados, a pixação envolve diferentes sentimentos como o amor e a “adrenalina”, ações como o protesto e o vandalismo. Como arte, esses sentimentos e ações estão interligados. Neste texto, adotamos a grafia da palavra pixação com “x”. Segundo Alexandre Pereira: A pixação, escrita assim mesmo com “x”, conforme o uso feito pelos próprios pixadores, poderia sinalizar apenas uma suposta ignorância das regras gramaticais, visto que a grafia correta da palavra seria pichação com “ch”, mas é colocado por eles como uma maneira de diferenciar a sua prática da definição comum de pichação. O que fazem não seria simplesmente pichar um nome, uma palavra ou uma frase qualquer numa parede, mas sim pixar a sua marca feita, ou melhor, desenhada com letras estilizadas, contorcidas e com um formato anguloso. Não se pixa de qualquer modo, com qualquer letra, mas com um formato previamente elaborado, com tipos de letras criadas pelos próprios, demonstrando um padrão estético peculiar. Além disso, há um diálogo com o espaço urbano, com o local onde esta marca será “lançada”, é preciso que ela esteja em local de grande destaque na cidade. Obter grande visibilidade é outro fator que torna uma pixação ainda mais atraente (2010, p .65).

No entanto, para o poder publico e grande parte da sociedade civil, essa arte, assim como o graffiti, são considerados como crime ambiental, enquadrados na Lei nº. 9605/98: Lei dos Crimes Ambientais. Lei nº. 9.605/98. Seção IV: Dos Crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural. Art. 65. Pichar, grafitar, ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano. Pena –

22 detenção, de três meses a um ano, e multa. Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude de seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de seis meses a um ano de detenção, e multa. Decreto nº. 3.179/99. Seção IV: Das Sanções Aplicáveis às Infrações Contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural. Art. 52. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano: Multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais). Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, em virtude de seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a multa é aumentada em dobro. (BRASIL, 1999 apud BARCHI, 2007, p.3)

Nesse contexto, convém mencionar uma pixação, em uma avenida no bairro do Itaigara que dizia, “roubar é arte e arte é crime”. Observa-se nesse discurso uma crítica social ao enquadramento da pixação como crime, em um país onde a corrupção impera. Nesse sentido, ao se pensar na pixação como uma prática que se apropria da cidade, com um discurso próprio, temos um processo de criação da cidade como obra (LEFEBVRE, 1991). Sob essa ótica, o direito à cidade deveria abarcar novas necessidades e as demandas destes sujeitos/agentes.

Figura 7 – Pixação de Bongos com rolinho e spray, rua Campo Santo, Federação - Salvador . Fonte: Bongos, 2012

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Figura 8- Pixações com spray de Smol em Salvador. Fonte: Lucas Silva.

3.2 O que é Graffiti?

Assim como a pixação, o Graffiti é uma arte de rua efêmera, no entanto, mais aceita do que a pixação, por ter uma estética mais próxima das artes plásticas: é policromática, com desenhos de personagens, assim como murais temáticos; sua grafia é tridimensional, tem efeitos como sombra e luz. É um elemento da cultura Hip Hop, mas hoje não está necessariamente vinculada a ela. É uma arte que tem saído das ruas e entrado nas galerias, hoje tem maior reconhecimento social, e seus agentes vêm sendo vistos como artistas. Para o grafiteiro Denissena, a rua é a essência, “sem perder o essencial, que o graffiti é uma linguagem transgressora, que está nas ruas, por mais que esteja nas galerias, nos museus e na moda, me refiro a estampas e tal. Mas a essência é a rua mesmo” (2011).

24 O graffiti apresenta grandes variações de técnicas e estilos, tem um forte apelo social e de crítica, assim como de valorização da cultura popular.

Figura 9- Graffiti feito por Marcos Costa (na foto), no qual estão presentes elementos da cultura afro-brasileira e africana. Fonte: Marcos Costa.

Outra questão presente nas entrevistas com os grafiteiros é refere-se à democratização da arte. O graffiti, ao se apropriar da cidade, permite que todos tenham acesso a essas obras. Para o grafiteiro Tarcio V: Por mais que vivemos numa cidade que tenha uma influência muito forte da cultura da miscigenação, a gente tem uma carência dessa vivência. Tipo a periferia... o único pico de acesso à cultura que a periferia tem é a música e propriamente o grafite que é artes plásticas; difícil uma companhia de teatro ir no gueto. Então eu acho que é mais uma força. O grafite não precisa entrar num espaço para você viver o grafite, você só precisa passar na rua e ele já esta lá (2011).

Nesta mesma direção, Marcos Costa afirma: Na medida em que vivemos numa sociedade com muitas desigualdades, então, quando você pinta na rua você esta dando oportunidade para várias pessoas perceberem a obra de arte, estarem entrando em contado com ela. É massa pintar na cidade por causa disso: poucas pessoas vão a museu e a galerias! Quando você pinta na rua você dá oportunidade de vivência artística aos mais cults e aos mais leigos, o que torna a arte democrática, acessivel; e também trata de temas que a cidade vive como racismo, problemas de educação, moradia, transporte, violência; tem temas que são bons e você fala e todo mundo se identifica, vivendo aquela onda.(2011).

25 O graffiti tem se afirmado e conquistado espaços na cidade, como ação afirmativa de sua identidade de resistência. Dando mais graça aos muros da cidade, no meio do caos das metrópoles, é possível contemplar um graffiti, como contraponto cultural e crítico a e em meio a tantas propagandas cujo discurso é claro: COMPREM!!

Figura 10 - Graffiti de Calangos na paisagem da Metrópole Soteropolitana. Fonte: Rua de Salvador (Facebook)

3.3 Semelhanças e diferenças no espaço urbano.

Ao definirmos graffiti e pixação já trabalhamos um pouco as semelhanças e diferenças, mas nesta seção procuraremos entender como essas práticas se manifestam no espaço urbano. Inicialmente é preciso ter claro que, apesar das semelhanças, não são a mesma coisa, embora seja muito frequente usar os termos como sinônimos. Neste contexto, o grafiteito Matias comenta: É diferente, se você ver as duas coisas vai ver que é diferente, agora tem o mesmo espírito a mesma ideia, é arte, os dois são artes, mas duas formas diferente de arte. Pixação tem outra ideia, e o graffiti tem outra ideia também, mas mesmo assim é arte. É engraçado porque as pessoas não sabem

26 diferenciar a pixação do graffiti, você vê uma obra de pixação e outra de graffiti, pra mim é lógico que é algo diferente (2011).

As semelhanças estão no caráter destas artes que, no espaço urbano, apresentam por vezes, as mesmas intenções, como transgressão de normas, reivindicar direitos, dizer o que se pensa, expressar-se artisticamente, mostrar o que outros meios de comunicação não mostram, denunciar questões sociais, fazer propaganda ou, simplesmente, apresentar traços ou a própria assinatura (SOUZA et al., 2007). Essas artes são uma forma de expressão urbana, e seus riscos estão em consonância com a urbanidade, assim como com o estilo de vida pós-moderno. O grafiteiro Afro afirma que sua arte está atrelada à morfologia urbana, aos traços retos dos prédios, em suas palavras: “Eu faço mais letras, as minhas letras têm muito a questão da geometria, elas não têm praticamente curva, é só reto, então eu fico muito olhando os prédios, as faixadas, às vezes eu lembro uma letra, com uma janela, sei lá uma telha, o que der ideia de uma letra, fico muito olhando os prédios, as coisas duras mesmo, mais geométricas” (AFRO, 2011). De acordo com Penachim: As próprias técnicas utilizadas, a rapidez do traço do spray, a sobreposição de elementos visuais e os temas abordados refletem a influência da experiência urbana nestas atividades, cuja própria forma de existência encerra alguns dos elementos desta metrópole que padece de infindáveis intervenções sígnicas e rápidas transformações, em que tudo parece prestes a se desfazer no ar, sem certeza alguma de continuidade ou permanência (PENACHIN, 2003:3 apud SOARES, 2007, p.6).

Os traços e tempos do graffiti e da pixação se diferenciam, no primeiro traços mais detalhados e o tempo do fazer mais longo, na pixação traços e tempo mais rápidos. Ambos demarcam a cidade e se apropriam dos espaços urbanos, expondo um discurso próprio. Diferentemente do que ocorre em outras cidades, como no Rio de Janeiro, existe em Salvador uma ética de não pintar/riscar por cima de outro graffiti ou pixação. Segundo Souza: Em entrevista publicada no “Caderno B” do Jornal do Brasil, Ziraldo (na posição de entrevistador) pergunta ao grafiteiro “Toz” do grupo Fleshbeck Crew da zona sul do Rio de Janeiro: “Se qualquer um pode chegar, como impedem que um pinte em cima do outro?”. A resposta do grafiteiro: “Há um consenso entre os grafiteiros: não é permitido entre a gente um cobrir o outro. A não ser que tenha autorização do próprio. O pichador não. Quando fazemos um graffiti na rua tiramos logo a foto porque sabemos que no próximo dia 7

estará pichado” (SOUZA, 2007, p.20).

27 Já em Salvador a realidade é diferente como nos conta Afro: “Aqui rola muito a questão assim, lá fora é muito normal um cara fazer um graffiti agora, e vim outro e apagar, não vai rolar nenhuma treta, aqui tem a questão do respeito, tem lugares que a gente grafita e o cara que pixa não vai pixar, tem lugares que estão pixados e que não vamos grafitar por respeito” (2011).

3.4 Riscando a cidade como obra

A cidade de Salvador, como metrópole, carrega um visgo da normatização, planejada pelas instituições, principalmente o Estado e as firmas, que transformam o espaço urbano em lugares homogeneizados, a cidade se tornando um reflexo (e uma condição) das relações de produção. Para Henri Lefebvre (1991), a cidade é uma mediação das mediações, entre as ordens próximas e as ordens distantes, desta forma a cidade é vista como obra: “Se há uma produção da cidade, e das relações sociais na cidade, é uma produção e reprodução dos seres humanos por seres humanos, mas do que uma produção de objetos” (1991, p. 47). Deste modo, os grafiteiros e pichadores, ao se apropriarem da cidade, sendo parte da ordem próxima, criam a cidade como obra, e seus graffitis e pixações se inscrevem na cidade a partir de suas práticas. Segundo Lefebvre:

se considerarmos a cidade como obra de certos agentes históricos e sociais, isto leva a distinguir a ação e o resultado, o grupo (ou os grupos) e seu produto sem com isso separá-los. Não há obra sem uma sucessão regulamentada de atos e ações, de decisões e de condutas, sem mensagens e sem códigos. Tampouco a obra sem coisas, sem uma matéria a ser modelada, sem uma realidade prático sensível, sem um lugar, uma natureza, um campo e um meio. As relações sociais são atingidas a partir do sensível; elas não se reduzem a esse mundo sensível e, no entanto, não flutuam no ar, não fogem na transcendência. Se a realidade social implica formas e relações, se ela não pode ser concebida de maneira homóloga ao objeto isolado, sensível ou técnico, ela não subsiste sem ligações, sem se apegar aos objetos, às coisas (LEFEBVRE, 1991, p.48-49).

Assim, a cidade é criada tanto pelos agentes aqui estudados como pelos agentes hegemônicos, que ditam padrões e normas ao espaço urbano, transformando-o em um campo de disputas. A cidade é palco das ações humanas, assim como dos conflitos, e essas artes se movem entre essas duas searas, da ação e do conflito. O grafiteiro Matias, por exemplo, tenta transformar em seus graffitis a cidade:

28 Pra mim é uma coisa que seja positiva, que o povo goste mesmo, que além de você querer se expressar, eu acho importante, também deve ser consciente que as pessoas vão estar vendo, você tem que saber qual é seu propósito, qual é a sua ideia no graffiti, eu acho bem importante que seja uma coisa que curte, as pessoas tem outras ideias, tem a pixação, eu acho importante porque tem outras ideias, faz uma coisa diferente, e também pra fazer uma coisa um pouco das pessoas mesmo, eu também gosto de fazer uma coisa para mudar o ambiente, para uma coisa melhor, eu acho importante o grafitteiro fazer isso (MATIAS, 2011).

É interessante perceber que a cidade para esses sujeitos só tem significado quando pixada ou grafitada, que suas ações constroem esse espaço, a cidade recebendo novos significados, representações e sentimentos. Quando o pixador Beck vê a cidade pixada com suas pixações sente prazer, em suas palavras: “Oxe, uma sensação gostosa que nem gozar”. Ao mesmo tempo, a ausência destas artes na cidade faz com que ela perca seus encantos, como complementa o mesmo Beck: “Se a cidade não estiver pixada e grafitada é horrorosa, é ou não é!?, se não tiver um Pixe, um graffiti Salvador não vai ter graça”. O grafiteiro Marcos Costa vê a necessidade da cidade “ter arte”, quando nos diz a respeito do papel do graffiti no espaço urbano: “Dar mais alegria para a vida das pessoas, a cidade cada vez mais poluída merece ter mais graffiti, quanto mais a cidade está poluída, mais necessidade de colorir a gente tem. E também cidade sem graffiti não é cidade, eu acho que tem que ter arte na rua mesmo. A cidade sem muros riscados não tem graça nenhuma!”(2011). O espaço urbano como campo simbólico, mas não somente, como campo de lutas sociais, carrega múltiplos significados (CORREA, 1997), o espaço vivido é um contínuo de experiências, campo das representações e da afetividade. São notórias as experiências e afetividades criadas pelos grafiteiros e pixadores ao riscar a cidade, que passa assim a se fazer presente na vida destes sujeitos, a cidade interferindo no sujeito e o sujeito interferindo na cidade.

3.5 A cultura da rua e seu poder na cidade

Ao escolhemos pesquisar essas artes na cidade, estamos na realidade analisando culturas, de modo que existe uma estreita relação entre cultura e poder como defendido por Denis Cosgrove (1998). A cultura como forma coletiva de experimentar e interpretar o mundo manifesta claramente essa dimensão de poder, porque as possibilidades de cada grupo para viver sua cultura não se dão em igualdade de condições. Assim, segundo o mesmo autor, existem culturas dominantes e

29 subdominantes ou alternativas. Com certeza afirmamos que o graffiti e a pixação, como práticas culturais urbanas, se classificam como culturas alternativas, pois os valores que as fundamentam são essencialmente diferentes daqueles correspondentes ao padrão dominante e oficial.

Figura 11 – Graffiti da série “O grito” na Ladeira do Garcia, dialogando com o lugar. Fonte: Google Maps, acesso 25 de setembro de 2012.

Isso mesmo que hoje exista uma abertura e aceitação do graffiti por parte dessa cultura dominante, ao colocar essa arte em museus e galerias, enquadrando-o dentro de uma logica mercantil, da qual o graffiti, desde suas origens, nunca fez parte. Como nos lembra o grafiteiro Denissena, “a essência do graffiti é a rua”. Deste modo há uma contradição dentro desta cultura alternativa, que não ocorre com a cultura da pixação, a qual dificilmente será mercantilizada, por sua essência de transgressão e de contravenção, e por ter uma estética pouco enquadrada nos padrões hegemônicos do “belo”. Para Serpa, apoiando-se em Santos, “a cultura é um motivo de conflito de interesses nas sociedades contemporâneas, um conflito pela sua definição, pelo seu controle, pelos benefícios que assegura” (2011, p. 142). Essas grafias nas/das cidades, ao se contraporem às culturas dominantes, geram novas formas de sociabilidade: o graffiti e a pixação se configuram como a expressão de um movimento político, pois os lugares dos grafiteiros e pixadores – periferias pobres, conjuntos habitacionais, bairros populares – estão presentes em cada pintura e em cada ação (MONTEIRO, CORDEIRO, 2011).

30 Capítulo IV DESVENDANDO AS GEOGRAFIAS DA PIXAÇÃO E DO GRAFFITI

Caminhando pelas ruas de Salvador, as cores e os desenhos dos graffitis, e os traços fortes das pixações, como um conjunto de símbolos que eu não conhecia, chamavam minha atenção, e fiquei intrigada para decifrar o que ali estava escrito. Quem eram os sujeitos/agentes que faziam da cidade uma verdadeira galeria popular? Assim transformei minhas inquietações num objeto de pesquisa, ao mesmo tempo em que conhecia essas práticas e começava a desenvolver meus graffitis e pixações na cidade. Isso permitiu uma relação próxima e de confiança com esses agentes aqui analisados, que no meu cotidiano são verdadeiros parceiros e inspirações para minha ação no espaço urbano. Neste capitulo, apesar de o texto ser uma elaboração individual, o conhecimento e o discurso se constituíram enquanto uma produção coletiva, fruto de minha experiência com esses agentes, através de conversas e entrevistas livres e posteriormente sistematizadas. O capítulo que se segue representa, portanto, um espaço de diálogo no qual esses sujeitos/agentes tiveram voz ativa. Para melhor compreensão dividiremos em dois subcapítulos, um sobre os pixadores e suas pixações e outro sobre os grafiteiros e seus graffitis.

4.1 Pixadores: seus trilhos na cidade

No reconhecimento do outro, a partir da identificação, conheci no curso de geografia da UFBA o pixador Bongos, também estudante de geografia, que abriu os caminhos e estabeleceu pontes com outros pixadores. Um dia conversando sobre a pixação e do meu interesse sobre o assunto, Bongos me convidou para participar do Baba do Pixe, um encontro aos domingos de manhã na praia do Jaguaribe, entre pixadores para bater um baba. Passei a frequentar esse baba, e comecei a conhecer esses pixadores, assim como o universo da pichação em Salvador.

31

Figura 12 - Pixe demarcando o local do “Baba do pixe”. Fonte: Julia Monteiro.

A maioria dos pixadores são homens, encontrei nesses encontros duas ou três meninas, e apenas uma era pixadora, a Tata. Consegui realizar entrevista com nove pixadores, de diferentes bairros de Salvador, e com experiências distintas na pixação. No quadro 1, podemos observar quem são esse pixadores entrevistados.

Quadro 1- Perfil dos pixadores entrevistados Tag

Idade

Anos

Bairro de morada

Etnia/cor

Ocupação

Indígena

Vigilante

Pixando

Boys

26

12

Cajazeiras

Skim

18

3

Baixa de Quintas

Negro

Desempregado

Nelp

17

3

San Martin

Negro

Estudante

Beck

23

12

Itinga

Negro

-

Neghet

23

5

“Segredo”*

Negro

Trabalha

Smol

16

1

Novo Horizonte

Negro

Estudante

Mito

26

11

São Cristóvão

Negro

Repositor de Mercado

Sano

28

12

São Cristóvão

Negro

Trabalha

Menos AL

23

10

Itinga

Negro

Motorista

Fonte: Trabalho de Campo, 2012. *resposta dada pelo pixador que não revelou o bairro de moradia.

32 Podemos perceber a diversidade entre os pixadores, mas algumas semelhanças: a faixa etária é dos 16 aos 28 anos, todos os lugares de moradia são bairros populares de Salvador e Região Metropolitana, todos se auto identificaram como negros, exceto um que se identificou como indígena. Cinco destes pixadores trabalham, outros dois estudam, e dois estão desempregados, derrubando o estigma que esse agentes são “vagabundos e desocupados”. O tempo de experiência na pixação também é diverso, com os mais experientes com 12 anos de prática e os menos experientes com um a três anos de pixação nas ruas. Apesar da diversidade nota-se uma identidade comum entre os pixadores, todos são jovens, residentes de bairros periféricos, em sua maioria afrobrasileiros.

Figura 13 – Pixação na Avenida Tancredo Neves coma frase “Favela é favela e pra mim é uma terra!” Fonte: Google maps, acesso em 25 de setembro de 2012.

Mas quais são os motivos que levam esses jovens a riscar a cidade? Skim coloca a pixação como forma de lazer que “tira o estresse da correria do cotidiano”. O pixador Nelp aponta esta prática como um meio de socialização entre os colegas, e o “fator adrenalina”, quando diz: “Porque eu gosto, eu gosto da adrenalina, de sair com os caras pra riscar”. Beck acrescenta: “Por que eu pixo? Porque eu amo pixar mesmo. A motivação eu não sei, eu acho que é vendo um dia a pós dia, um risco na parede, assim eu fico mais contente na minha vida”. Ao dizer isso, nos coloca a importância de se ver na cidade e como essa expressão artística lhe traz felicidade. A seguinte reflexão foi feita por Neghet: A gente é pixador, pixador é um vândalo, um cara fora da lei, aí vem os outros e pergunta, por quê? Se é vandalismo por que eu estou fazendo? É porque, na verdade, eu acho aquilo livre, liberdade de expressão, e não é só

33 porque tem gente que não gosta e que não é apoiado, é que vamos parar. (....) Por que? Sinceramente eu não sei, eu sei porque não parar! Porque é aquela coisa, as pessoas gostam muito de ir com o sistema, o sistema gosta muito de controlar, controlar o que fazer e não fazer, eu acho errado, porque como eu falei, nós somos livres, e a gente pode fazer o que quer, tipo tudo bem que tem alguns pixadores que, como a pixação é vandalismo, passam do limite, atingindo algumas pessoas, eu tento o máximo não fazer isso, (...), mas, pixo tudo que tiver pela frente, prédio, não paro porque se eu tiver que parar, outros talvez também parem, e se morrer a pixação...

Nesta reflexão de Neghet fica evidente que uma das motivações é a liberdade de expressão, a vontade de se expressar socialmente e de se contrapor ao sistema, que impõe a homogeneização da vida. Nesta perspectiva Smol afirma que

Eu sou diferente da maioria, porque se eu pudesse em todo pixo meu, eu deixaria uma frase, ou de incentivo, ou de protesto, incentivando a população a pensar mais no que eles estão fazendo, para tentar sair dessa vida tipo que “normal” sabe?! Porque o sistema oprime a gente de toda e qualquer parte, e se a pessoa parar para pensar vai ver que está tudo errado. Tem que mudar o seu jeito de agir, tem que pensar mais nas coisas.

O pixador Mito expõe sua admiração pela arte da pixação como uma das motivações, assim como o fato de nunca ter pensado no porque fazer. Neste ponto essa pesquisa pode dialogar com os sujeitos fazendo o exercício do pensar na pixação, nos porquês dessa atividade: “Rapaz acima de tudo porque eu admiro a arte mesmo, das letras da pixação, dos letrarios, aqui de Salvador, eu acho bonito, e pela adrenalina também. As motivações, rapaz, eu risco porque... nunca parei para pensar nisso. Porque é divulgado, eu gosto de riscar e depois passar num ônibus e ver meu nome na parede me dá uma... qual é mesmo a palavra, eu fico alegre de ver meu risco”. Este último ponto levantado por Mito também está presente no discurso de Sano quando diz que “às vezes é pelo ego de você passar e ver seu risco lá, e falar „aquele ali é meu‟, os caras respeitam seu trabalho, eu fico viajando quando vejo um risco meu, e às vezes por protesto também, desestressa da semana, motivação da hora mesmo”. São várias as motivações levantadas pelos pixadores para riscarem as ruas da cidade do Salvador, sendo assim, o que é que esses jovens escrevem, o que dizem essas pixações que modificam as paisagens urbanas? Antes de responder essas perguntas é necessário compreender como esses pixadores se organizam. A maioria dos pixadores participa de uma gangue, CREW ou bonde, que são coletivos de pixadores que assumem uma identidade, baseada no nome desse coletivo, que será riscado por todos os integrantes desse grupo juntamente com sua tag. Utilizo esses três termos, CREW,

34 Bonde e Gangue, porque há divergência em relação à nomenclatura, pois alguns pixadores relacionam gangue à criminalidade, “ao ladrão”, preferindo ser chamado com outros termos. Para fazer parte de um CREW é muito importante o diálogo com os fundadores. Mito ressalta essa questão do diálogo: “Rapaz, a gente vai se conhecendo, vai trocando ideia, vendo que tem coisa em comum, e forma”. Outro ponto refere-se às tintas, às vezes é um critério para participar, ou seja, o pixador que quer entrar deve dar para o grupo algumas latas, mas essa relação é diferente de CREW para CREW. O pixador Neghet nos conta um pouco desse ritual de entrada:

As gangues sempre têm um líder, primeiro pra entrar tem uma certa, não burocracia, mas tem um sistema para você entrar, você conversa com quem está na linha de frente, mas tem um sistema pra você entrar, umas você tem que dar uma lata pra entrar, hoje em dia é mais fácil, você tem alguém que conhece essa pessoa e tal, e te coloca na pixação. E tem outra coisa que às vezes acontece, que é a união, que é uma coisa rara, tem a 163, que é a reunião de todas as gangues, a gente conversa.

Essa gangue(família) 163, a qual se refere Neghet, é uma associação de várias outras gangues, CREW e bonde sendo eles LE, CV, ID, CE, 40L e RQ, que se reuniram e, através do diálogo, criaram esse coletivo de coletivos,. E atualmente em Salvador vem crescendo o número de pixações com essa marca: 163. Ë interessante perceber a capacidade de organização e coletividade que unem esses pixadores. Sano coloca a importância da associação entre as gangues para que elas tenham visibilidade: “E se tiver como coligar com uma sigla fica mais fácil de ficar conhecido, se não você tem que riscar mesmo para ser percebido, ter destaque”. Os entrevistados participam dos seguintes coletivos, que podem ser identificados nas pixações soteropolitanas: OCP - Os Caras de Pau; F13; FB - Fogo na Bomba; OSG da Estrada Velha, Os Sem Gratidões; TEV- Terroristas Da Estrada Velha; EAV Expressão Artístico Visual; OSM - Auxilio Da Maconha; R15 submisso; 40 L - 40 ladrões(Figura 14); RQ - Reação Química; FBE; CE - Comando Eterno; LE - Liberdade de Expressão; OL - Os loucos; APS - Arte Protesto e Sobrevivência; ARC - Arte Crew; 163.

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Figura 14 -Pixação de Neghet, identificando as gangues 40L e 163. Fonte: Neghet.

Essas são as siglas que, acompanhadas das tag dos pichadores, expressam os discursos desses agentes, no entanto muitas pixações estão acompanhadas por frases de protesto, como disse Smol em citação anterior. Algumas frases chamaram minha atenção durante essa pesquisa como a presente na pixação do viaduto do Politeama, que dizia: “enquanto eu estou no tráfico o filho do boy está surfando”. Na pixação de Mito, no bairro de São Cristóvão, no momento que construíam mais um shopping em Salvador, a pixação dizia: “não queremos mais shopping, queremos cultura”. Na figura10, temos uma tag de Smol com frase contra o sistema.

Figura 15 - Tag de Smol, acompanhada da frase “O sistema me abala mas não me intimida” - Av. Bonocô. Fonte: Lucas Silva.

36 A pixação com essas frases torna os espaços públicos lugares para se fazer politica, para Smol: “se dependesse de mim o propósito da pixação seria só protesto”. É certo que nem todas as pixações apresentam frase de cunho político, como afirmaram diferentes pixadores; Mito, por exemplo, admite que: “muitas das vezes a gente protesta, mas não vou mentir, eu não sou muito protestante na atualidade não, eu simplesmente faço pela pura arte, não estou muito ligando pelo protesto, não”. Outrora, como afirmaram alguns de nossos entrevistados, havia mais frases de protesto, e que isso hoje vem diminuindo nas pixações. Sano fala “Sim, tem sim, ultimamente eu não tenho visto muitas frases, mas já aconteceu várias frases políticas na pixação, para pessoas, político, governador, a frase para sociedade passar e ver o que é a pixação também”. Essas frases demonstram também a dimensão política desta arte, que não se limita somente à frase direta de protesto, mas abrange também a atitude de chamar atenção da sociedade para esses sujeitos “invisíveis”. Nesta perspectiva, Beck aponta que “com certeza (é política), não sei nem como te explicar, como reflete, sei que faz diferença, é um modo que expressa mesmo, chama atenção de muitas pessoas”. Segundo Gitahy, a pixação, ainda que desarticulada da luta política organizada, é uma prática que apresenta também aspectos políticos:

Não é por acaso que a pichação surge e se intensifica nos grandes centros urbanos, mesmo nos países menos desenvolvidos. A pichação aparece como uma das formas mais suaves de dar vazão ao descontentamento e à falta de expectativas. (...) É uma guerra feita com tinta, todos se conhecem e se identificam pelo tipo de código pichado. Um grande abaixo-assinado para a posteridade, no qual cada um que participa deixa sua marca (GITAHY, 1999, p. 24).

Assim, esses agentes trilham a cidade, deixando seus riscos, com uma identidade coletiva e com frases de resistência. Mas como acontece o ato de pixar? Essa foi uma das perguntas realizadas durante a entrevista, que será respondida aqui com base nas respostas dadas e com base em minha pequena experiência na pixação. Era domingo de noite, coloquei na mochila algumas latas3, peguei a bicicleta e percorri a avenida de vale Anita Garibaldi, não havia muitos carros e o movimento estava fraco; parei diante de um ponto de ônibus vazio e risquei com a cor prata o ponto com um desenho e uma frase: Pixar é arte! Olhando atentamente e com muita adrenalina observava se a policia não passava, o movimento foi rápido e minha pixação ali ficou. A

3

Termo utilizado para referir-se às tintas de spray.

37 situação me fez lembrar a primeira vez que pixei, nas ruas de San Jose, Costa Rica, onde deixei o meu primeiro pixe, na ocasião não estava só, mas a adrenalina também foi alta. Subi na bicicleta e fui visitar o pixador Bongos: chegando em sua residência compartilhei uma lata e novamente estava na rua para riscar, a ladeira da Barra foi o pico4 onde Bongos já havia marcado a tela; ele, mais experiente, começou, escreveu sua tag, e eu gritei “olha os homens”5, quando passava um camburão da policia; Bongos logo jogou a lata na casa vizinha, e a adrenalina subiu novamente, sem a lata voltamos para casa, mas a rua foi demarcada. Esse pequeno relato exemplifica como a pixação é realizada, ela pode ser uma ação individual, ou em grupo, com dois, três ou quatro pixadores. Skim resume o ato de pixar com as seguintes palavras: “Adrenalina traduzindo tudo, porque a gente risca aqui hoje, aí toma um bote dos policiais, puxa, é chato? É, mas quando você sai de lá de dentro você quer mais, porque a adrenalina corre no sangue. Quanto mais você faz mais você quer. Eu pixo mais em grupo, sozinho eu ainda não tive essa experiência não”. O pixador Nelp relata sua experiência: “Sai eu e mais um ou dois, nunca só. Não tem hora, quando tá limpo a gente risca”. Nas experiências de quase todo pixador a polícia exerce um papel brutal. Por ser crime, a pixação é muito reprimida pela polícia: foram inúmeras as situações relatadas nas quais houve abuso de autoridade e agressão física aos pixadores. Dos nove entrevistados, apenas Smol, que tem um ano como pixador, nunca foi abordado pela polícia.

Figura 16- Pixação de Mito, Raif, Smol, Saho, questionando “se a policia me para, quem para a policia?”. Fonte: Lucas Silva

4 5

Gíria para referir-se ao lugar que será pixado, assim como lugares altos e de difícil acesso. Gíria para chamar a policia.

38 Trago alguns relatos sobre essa abordagem policial partindo das falas dos pixadores, quando indaguei se já haviam sido abordados pela polícia:

Várias vezes, rapaz, eu já fui parado, eles levaram minhas tintas, teve outra vez que nem foi a polícia foram os soldados, que me levaram preso, meus pais foram me tirar e tal. Fora que a gente sai muito no claro, é raro a gente sair de noite, tenho muito amigo meu que já rodou , tem um da ASP, que tem a boca cheia de afta, porque pintaram a boca dele com spray. Eles já me pintaram, pintaram meu chapéu, pintaram roupa, pintaram tudo. Taí abuso de poder (NEGHET, 2012). Já sim, várias vezes, já fui preso, foi de uma maneira..., muitas vezes eles dão conselho dizem que aquilo não tá certo, mas muitas vezes eles agridem as pessoas, oprimem, pelo simples ato de estar fazendo a arte, eu acho desnecessário (MITO, 2012). Já, várias vezes, já tomei uma coroada, já tomei spray de pimenta, o último rodo que tomei o cara colocou spray de pimenta no meu rosto, mas também o risco foi dado, já entrei na viatura várias vezes, mas nunca assinei, já tomei um bocado de pau, já perdi lata de spray varias vezes (SANO, 2012).

Percebemos assim como o Estado, com (ou pelo) os braços da polícia, se relaciona com esses sujeitos, tratando-os como marginais e se utilizando da força física e do poder para desrespeitar os direitos humanos, tendo em vista que a maioria das ações não está em consonância com a lei. Mesmo com tantas intempéries, os pixadores não deixam de agir, mas quais são os lugares de preferência para demarcar a cidade? Qual é a espacialidade dessa arte na cidade? O centro da cidade é o principal lugar de ação dos pixadores, sendo o lugar onde se concentram visualmente as maiores e mais diversas pixações, e, como veremos mais adiante, o graffiti também. A fala de Sano é bem esclarecedora neste sentido: “No centro onde passa a maior parte do pixadores, e todos os bairros, alguém tem que passar pelo centro, o centro é o lugar mais pixado da cidade, centro e Comércio. Porque nesses lugares você passa a ser reconhecido rápido, como eu disse lugares que passam mais gente, pixadores passam para estudar ou trabalhar, no centro” (SANO, 2012). O Centro tem na pixação o papel de centralidade também, como ponto estratégico para ganhar notoriedade nesse meio, e, consequentemente, ser mais visto (e em alguns casos escutado) socialmente. Além do centro, os picos mais altos também são lugares de destaque para a pixação, quanto mais alto e mais difícil o acesso, maior será a divulgação e admiração entre os pixadores. Para o pixador Skim,

39 Hoje em dia mesmo, o que eu procuro, só não tenho aquela coragem, é de fazer pico, pico veio, subi no terceiro andar de um prédio, bagaçar lá em cima, é o que eu procuro, mas não tenho aquela coragem ainda, fico meio cabreiro. Por que são os lugares de mais divulgações, porque riscar no chão todo mundo risca, tem uma parede ali, do hospital, chega ali todo mundo risca, o pico não, o pico são raros, o pico só faz mesmo quem gosta mesmo, quem é barril, o cara sobe e faz mesmo. (2012)

Figura- 17 e 18- Lugares considerados picos pixados por diferentes pixadores e pela gangue 163. Fontes: 163 e Scank.

Apesar do centro e os picos serem os lugares preferidos pelos pixadores, as avenidas principais e com grande circulação de pessoas e/ou automóveis são também escolhidos como telas para pixação, como defende Smol: “Via públicas onde passam ônibus, pra mim é onde passa ônibus, porque é maior a divulgação da galera da favela, sabe?! Que passa e vê, e tem picos também, porque picos é só pra quem entende e vai olhar para cima, e vai ver a pixação, isso aumenta a fama e ibope do pixador”. Porém, qualquer lugar pode ser pixado, como diz Beck: “O lugar mesmo é o muro branco, qualquer lugar, estratégia não tem. Olhou, chegou, detonou, já foi”. Para o pixador Mito, a questão da permanência e da visibilidade são critérios para selecionar os picos: “Eu gosto de muro chapiscado que vai durar um tempo, e tinta não é barato não, e também gosto de muros de destaque, muros recém pintados”.

40 Andando pelas ruas de Salvador, dos bairros nobres aos bairros populares, em avenidas de grande circulação, a pixação é um elemento da paisagem urbana, é incrível a espacialidade que um pixador pode desenvolver na cidade, a exemplo de Mito, que tem seus riscos em diversos bairros e áreas da cidade. A pixação faz parte da cidade de Salvador, e logo na entrada da cidade, na BR324, é possível identificar na paisagem essa arte, que se destaca pelas letras e traços em meio a placas, casas, e tudo que existe em uma metrópole. Para finalizar esse subcapitulo, analiso e apresento as identidades do pixador, assim como sua relação com os lugares pixados. O pixador Bongos, no vídeo Psicopapo - Pixação é arte6, ao se referir a uma pixação feita na Universidade Federal da Bahia, disse que “Pixação nada mais é, nesse caso aqui, que pertencimento ao lugar, o se sentir pertencente, o ser visto, de dar visibilidade às pessoas nos espaços públicos, que muitas vezes são privados da gente, a gente que é marginalizado na verdade”(BONGOS, 2011) “A identidade do pixador é colocar seu nome nos muros, participar do movimento, isso é ser pixador”. É assim que Mito se identifica como pixador. Neghet ressalta um ponto importante: Pixador eu sou, só que sou trabalhador, estou fazendo as correrias por fora, mas me considero pixador sim. Eu acho que tipo você inventa um vulgo, cria um vulgo, começa divulgar na parede, conhecer outras pessoas, você fica um tempão parado sem riscar, o dia que você bota um risco na parede uma pessoa vai falar: - Poxa esse cara está vivo que onda, faz um tempão que eu não me bato com ele! Isso já aconteceu várias vezes comigo. Eu acho que a pixação não é só você estar na parede, são várias outras coisas em volta, você conhecer outros lugares, você conhecer a rua realmente como ela é. Então se o cara pixa tem que estar na rua, se tá na rua, tá na veia, se tá na veia até o osso.

A rua é o lugar por excelência do pixador, é nela que ele conhece outros pixadores, que fazem do risco uma arte. Sua ligação com a rua é muito forte, de afetividade e que dá alegria: “Da ânimo, véio, chega arrepiar, você passar e ver seu nome na parede, uma obra que você vez, muito bom, muito bom” (SKIM, 2012). Para Smol, é “orgulho e uma sensação de trabalho feito, sabe?! Pô, consegui pixar, consegui deixar minha marca ali. O ego da pessoa aumenta, vai lá em cima”. Esse ego podemos entender como autoestima, afirmação de sua existência e sua identidade.

6Ver vídeo PSICOPAPO-Johhny, a arte do pertencimento http://www.youtube.com/watch?v=_J0Sy9P0YHY

41 Novamente, pedimos que resumissem o pichador em uma palavra e as seguintes foram proferidas: Satisfeito, corajoso(3 vezes), gaiato, doido, rei, artista e “é vida veio”. A cidade também se torna memória desses sujeitos: “Quando você vê a sua pixação é uma viajem, porque você lembra do dia como foi, pode ter sido um dia de rôle louco, de tomar um rodo, pode ser um dia de lazer com a galera, quando eu vejo eu fico alegre, quando apagam dá vontade de voltar e colocar outro no mesmo lugar” (SANO, 2012). Desse modo, os pixadores traçam suas trilhas urbanas na cidade, deixando os traços que começam nas folhas de cadernos: e são inúmeros os cadernos gastos para aperfeiçoar seu traço e lançar nas ruas o seu risco. É um movimento dinâmico que vem crescendo, estabelecendo novos conteúdos na cidade. Salvador tem um movimento forte de pixação que se diferencia dos traços de outros lugares.

4.2 Grafiteiros: caminhos no urbano.

As cores vivas dos graffitis chamam atenção de qualquer cidadão que caminha atento pelas ruas da cidade, são feitas por mãos que possibilitam outras vivências no espaço urbano soteropolitano. Como já vimos, o graffiti caminha por novos lugares, ainda que sua essência seja a rua. Comecemos conhecendo quem são esses grafiteiros. Para esse trabalho foram entrevistados7 cinco grafiteiros: Marcos Costa, TarcioV, Matias, Afro e Denissena (quadro 2).

É preciso ressaltar que atuam em Salvador muitos mais grafiteiros e

grafiteiras e que a escolha destes grafiteiros foi por aproximação e contatos da pesquisadora. Quadro 2- Perfil dos grafiteiros entrevistado

Marcos Costa

28

Anos no Graffiti 11

Tarcio V

25

10

Artista Plástico

Castelo Branco

Afro

25

12

Artista Plástico

Bairro da Paz

Nome/ Tag

7

Idade

Artista Plástico

Bairro de moradia Cabula

Ocupação

Essas entrevistas também foram exploradas no artigo de MONTEIRO, Julia Oliveira Santos; CORDEIRO, Paula Regina de Oliveira. O cotidiano da cidade de Salvador nos sprays dos grafiteiros. Revista Geográfica de América Central, Número Especial EGAL, Año 2011. ISSN-2115-2563. Heredia - Costa Rica, 2011.

42 Matias

27

-

Artista Plástico

-

Denissena

36

13

Operário cultural

Cabula

Fonte: trabalho de campo /entrevistas.

O graffiti surge na vida desses sujeitos como possibilidade artística de se expressar e muito relacionado com o bairro de residência, como nos conta Tarcio V de sua experiência inicial com o graffiti: Meu bairro na década de 90 , a parti de 97, meu bairro teve muito grafiteiros era uns caras que estavam começando a pintar, LEE7, verme, Eder MunizCalango, e aí eu estudava na escola, era a extremidade da minha casa. Para ir a escola, eu tinha que atravessar praticamente o bairro todo, nesta travessia eu via os graffitis, eu já desenhava desde guri, em 2003 eu mostrei meu desenho para Marcelo que é verme, ele falou isso aí dá para botar na rua, eu fiz meu primeiro graffiti no final de 2003, começo de 2004, a partir daí eu comecei a fazer graffiti no meu bairro, apesar de que meu primeiro graffiti foi na Baixa do Fiscal, no muro que não existe mais, virou empresa, foi assim que eu comecei (TARCIO V, 2011).

O grafiteiro Afro teve sua primeira experiência com o graffiti nas oficinas ministradas por Denissena, a partir de então começou a grafitar as ruas de Salvador. E hoje também ministra oficinas em seu bairro, formando novos grafiteiros: “Em 2005 eu dei oficina no bairro da Paz e ate hoje tem alunos que grafitam e que estão fazendo arte, a arte modifica, a arte transforma de qualquer forma, eu acho sim que tem um poder de transformação” (AFRO, 2011). A fala de Afro mostra o graffiti como possibilidade de inserção social de jovens e crianças através da arte. Já a experiência de Marcos Costa é um pouco diferente: Rapaz, já tem uns 10 anos isso, foi viagem mesmo de adolescente com um grupo da galera que estava afim de fazer algumas intervenções e começou tudo como uma brincadeira, o graffiti nunca foi algo sério, hoje eu trabalho com decorações de ambientes, graffitis nos ambientes, mas eu comecei destilando, mas depois de um tempo eu quis fazer o graffiti para chamar atenção da galera, não queria mais fazer só o meu nome, só siglas do grupo, isso foi bem no começo, depois eu comecei a fazer mais personagens, mensagens e expressões. Assim foi uma parada mais de conscientização mesmo, começou a ter outra conotação pra mim, aí foi massa que a galera foi se identificando, trabalhei com as questões sociais, questão de educação, começou mais pelos bairros do Cabula, Brotas, depois em 2005 eu fui convidado para entrar no projeto Salvador grafita, que na época pra mim foi até legal fazer parte.

Para Matias, o graffiti veio da vontade de fazer alguma coisa artística: eu saquei que na rua é a melhor coisa, além de fazer uma coisa boa para as pessoas verem, é uma coisa prática. Porque fazendo arte na casa ocupa muito espaço, você faz tela e tela e fica em sua casa e ninguém vê, fica aí só de boa, ou seja, eu percebi isso e falei, poxa eu acho que na rua é uma boa coisa, porque não tem que ficar na sua casa ocupando espaço e você pode dar uma coisa para a cidade e para as pessoas.

43

Os lugares mais procurados para grafitar, também como a pichação, estão relacionados com sua visibilidade, como afirma Afro: “tem a relação de dar visibilidade ao seu trabalho”. No entanto, há uma preocupação entre os grafiteiros de realizar sua arte em seus bairros, assim como nos bairros populares. Denissena nos diz que gosta “de pintar muito na minha comunidade, por que? Porque é meu bairro, e as pessoas precisam entrar neste universo, porque há um convite, e cada vez que eu produzo nos muros, nas paredes, as pessoas possam apreciar. Quando eu vou para o meu bairro eu percebo que as pessoas passam a se identificar e entram neste universo”. Afro também prefere pintar em seu bairro: Eu prefiro grafitar no bairro que eu moro, no Bairro da Paz, nos bairros com os colegas e amigos, na terça-feira eu grafitei no Castelo Branco com TarcioV, eu grafito em bairro que eu tenho mais...(relação) e que eu sou aceito, que eu fico mais a vontade de chegar. Na Barra não é público que eu quero atingir, não é o público que eu quero levar algo meu, que modifique o espaço, eu prefiro modificar onde eu convivo mesmo.

Já o grafiteiro TarcioV prefere os espaços abandonados, em suas palavras: “são muros abandonados, para fazer a relação com a ausência do espaço, do espaço mau utilizado na cidade”. Ele também nos conta que não costuma colorir lugares para deixar os lugares mais bonitos: “meu personagem não é uma pintura, ele está passando pelo superfície, ele não é, ele não está colado, ele está passeando por ali, mas ele ficou ali. Sei lá!!” (TARCIO V, 2011).

Figura 19 - Graffiti de TarcioV na saída do viaduto da Politeama. Fonte: saída de campo, 2011.

44 Indagados sobre a relação que têm com os lugares grafitados e os graffitis, se existe uma relação de propriedade, as respostas foram surpreendentes. Por ser uma arte efêmera, alguns grafiteiros não têm relação de propriedade, pertencimento e mesmo de amor com suas obras, como explica Afro: “Não, graffiti é efêmero você não pode fazer um graffiti agora e pegar amor, você faz um graffiti e tira foto, você registrou, acabou. O graffiti é efêmero e passageiro”. Matias compartilha dessa mesma opinião, “Propriedade não, porque a arte do graffiti é efêmera, eu não posso dizer que é meu, se é uma coisa que está na rua, eu estou fazendo uma coisa para colaborar, mas eu não posso dizer que é meu, esse muro não é meu. Eu tou consciente que pode vim alguém e apagar, e aí, paciência , é assim”. Para Marcos Costa, “existe uma relação assim de..., não é propriedade, mas é uma propriedade ilusória, você quando pinta parece que aquilo é seu, um pedaço de você na cidade e aquele pedaço da cidade é seu. Uma apropriação da cidade, agora uma apropriação mentirosa porque qualquer momento pode não estar ali sua obra, pode chegar alguém e pintar”. Apesar do uso da expressão apropriação mentirosa por Marcos Costa, sabemos que há, sim, uma apropriação simbólica da cidade pelos grafiteiros, na medida em que, mesmo que sejam apagados, por algum momento, e esse momento pode durar horas ou anos, esses sujeitos demarcaram a cidade com seus personagens e desenhos, com sua arte.

Figura 20- Grafiteiro Afro em sua ação na cidade. Fonte. Super afro

45 Nos discursos dos entrevistados, a felicidade e a alegria ao ver sua obra na cidade está muito presente, de modo que para Marcos Costa essa felicidade se transforma em conquistas de territórios: “é massa passar pela cidade e ver, ah foi eu que fiz, parece que você está conquistando, demarcando territórios”. Os graffitis são realizados de diferentes maneiras, assim como existe uma diversidade muito grande de tipos de graffitis, que não daremos conta de enfatizar aqui, como já feito no trabalho de Tartaglia, (2010). Porém há de se mencionar que cada tipo de graffiti também está relacionado com uma prática diferente. Os mutirões são ações realizadas coletivamente, quando vários grafiteiros se reúnem para elaborar um grande painel, muito presentes em Salvador: há mutirões em bairros populares para grafitar as casas, como no bairro da Gamboa, onde aconteceu uma ação assim; há mutirões também para pintar um ponto específico, como os graffitis no bairro do Politeama, frutos de um encontro de Grafiteiras do Nordeste. Nos mutirões ocorre uma troca muito rica entre os grafiteiros: tive a oportunidade de participar do mutirão que ocorreu no Centro Social Cultural de Pernambués, organizado durante o Encontro de Grafiteiro da Bahia, que ocorreu em 2011, um projeto cultural com financiamento da Secult-BA.

Figura 21- Entrada do Centro Social Cultural de Pernambués com os graffitis frutos do mutirão. Fonte: Google maps, acesso em 23 de outubro de 2012.

46 Além dos mutirões, existem outras formas coletivas de grafitar, uma é o CREW, parecido com o que ocorre na pixação, um coletivo de grafiteiros que fazem intervenções conjuntamente e assinam com uma identidade coletiva. Há também muitas parcerias no ato de grafitar, grafiteiro que muitas vezes pinta com um parceiro. Sem dúvida, nos últimos anos tem havido uma maior aceitação do graffiti em toda a sociedade, de certa forma o graffiti esta na “moda”, e o próprio Estado tem sido um incentivador dessas práticas, apoiando projetos culturais de graffiti. Em Salvador havia um projeto da prefeitura chamado Salvador Grafita, desde 2005, que contratou vários grafiteiros para riscar na cidade, em muros de colégios, centros de saúde, e para minstrarem oficinas de graffitis para jovens e crianças. Com a intenção de diminuir o número de pixações na cidade, apesar das diversas críticas, feitas pelos próprios grafiteiros, esse projeto proporcionou boas oportunidades para esses jovens, e muitos conseguiram viajar para o exterior para apresentar seu graffiti. Dos entrevistados apenas Matias não participou do projeto, enquanto Afro nos conta um pouco de sua experiência no Grafita Salvador: “Eu faço parte, tem seus prós e contras, todo ano eles levam grafiteiros para fora, para irem para outros países como Espanha, Itália, França, tem essa questão, e também tirou esse bloqueio das pessoas, da discriminação”. Afro reconhece a importância do projeto para maior aceitação do graffiti em Salvador. Contudo, uma critica que faço ao projeto, é que usava o graffiti para “tampar, maquiar e esconder” lugares abandonados pelo poder público, assim como construções abandonadas. É o caso dos graffitis nas estações de metrô de Salvador: os maderites grafitados estão ali para esconder uma estação de metrô que não funciona, depois de 13 anos de obras e paralisações (Figura 22). O mesmo ocorre no cinema Excelsior no Pelourinho, há anos fechado, o graffiti escondendo o não uso desse lugar. (Figura 23).

47 Figura 22 - Estação de metro em frente ao fórum Rui Barbosa, com graffiti do projeto Salvador Grafita tampando a saída da estação, e uma pixação na banca de jornal. Fonte: Google maps, acesso em 29/03/2013.

Figura 23 – Cinema Excelsior no Pelourinho, graffiti esconde a entrada do cinema, tornando invisível sua existência. Fonte: Google Maps acesso em 29/03/2013.

No entanto esse projeto não representa a ação dos grafiteiros na cidade como um todo: os graffitis têm uma força política e um discurso em suas representações muito forte. Mas, afinal, o que dizem esses graffitis? Analisamos mais de 200 graffitis na cidade do Salvador, e o que vimos foi uma grande riqueza e muita qualidade artística, imagens de resistência, valorização do povo e de sua cultura, diferentes personagens (Sapos, monstros, vacas), desenhos abstratos ricos em cores, o negro, a mulher, o indígena, os homossexuais, tudo isso encontra representação nos graffitis. Isso é coerente com a fala de Denissena quando ele fala sobre a importância do graffiti como uma “arma de dialogo”: Pra mim a importância é a contribuição estética, é um diálogo, é importante que as pessoas, na verdade meu público são as pessoas, as pessoas precisam acompanhar e é um diálogo, uma linguagem urbana, fazendo com que as pessoas reflitam algumas imagens, a questão política de gerar consciência, combater a questão do racismo, falar da influência indígena-afro, reconhecer e não permitir que nossas raízes morram. Já que o graffiti é uma grande arma, é uma forma de dialogar e politizar as pessoas.

Essa “arma” tem um importante papel na cidade: o de chamar atenção e convidar para a reflexão de temas tão caros a nossa sociedade.

48

Figura 24 - Graffiti de valorização da ancestralidade negra, no muro do colégio Manoel Devoto, Rio Vermelho, Salvador. Fonte: Shanti, 2011.

Outra representação encontrada está relacionada com a questão religiosa e principalmente à valorização das religiões de matrizes africanas (encontramos diversas representações de Orixás na cidade), embora também as igrejas evangélicas se utilizem do graffiti para afirmar sua religiosidade. O próprio grafiteiro TarcioV afirma: “Meu graffiti tem uma relação com a fé e o gestual da figura humana soteropolitana”. Graffitis de Denissena e Marcos Costa também estão relacionados às religiões de matrizes africanas, com elementos desta cultura. O cotidiano de Salvador também é representado nestes graffitis, como ressaltado pelo grafiteiro Matias: “na verdade o que eu faço é uma casa mal feita, que é para representar as pessoas que não têm casas bem feitas, e não esquecer destas pessoas. Então, tem muito a ver com a rua, com as pessoas que moram na rua, que não têm casa, tem afinidade com as ruas”. Além de ser presentado com arte, o cotidiano vira fonte de inspiração. Denissena comenta: “Muros, encostas, são suporte que não precisamos pedir licença, o cotidiano revela diversas situações e vira isso, é uma inspiração pra gente e há diversas intervenções que as pessoas fazem”.

49

Figura 25- Representação da mulher negra. Fonte Shanti, 2010.

Figura 26- Graffiti de Omolú, Marcos Costa, na comunidade de São Lazaro. Fonte: Julia Monteiro.

A geografia realizada pelos grafiteiros é formada por lugares de resistência, com representações de um cotidiano vivido, e não há como negar que essa prática tem um caráter contra hegemônico. Concluímos esse capítulo com uma citação de Santos: Através do entendimento desse conteúdo geográfico do cotidiano poderemos, talvez, contribuir para o necessário entendimento (e, talvez, teorização) dessa relação entre espaço e movimentos sociais, enxergando na materialidade, esse componente imprescindível do espaço geográfico, que é, ao mesmo tempo, uma condição para a ação; um convite à ação (SANTOS, 1996, p.257 apud MONTEIRO, CORDEIRO, 2011).

50 CONSIDERAÇÕES LONGE DE SEREM FINAIS

Partindo da curiosidade e da vontade de analisar e compreender o que dizem os graffitis e pixações que enriquecem a cidade de significados, desenvolvi essa pesquisa, ao mesmo tempo em que aflorou na pesquisadora uma vontade de riscar a cidade. No entanto é importante considerar que essa aproximação da pesquisadora com seu objeto de estudo não faz desta pesquisa um processo investigativo imparcial, revelando um compromisso político e ideológico, de caráter subjetivo da pesquisadora com os sujeitos/agentes aqui pesquisados. O discurso da ciência com neutralidade é considerado aqui como algo ultrapassado, partindo-se então de um lugar conhecido de fala e de concordância com as práticas analisadas. Recorremos ao início da história do homem para entender essa prática atual de grifar a cidade, como na análise das pinturas rupestres feitas pelos hominídeos há mais de 35 mil anos atrás, que têm semelhanças de intencionalidades e de práticas com os grafismos realizados pelos grafiteiros e pixadores hoje em dia: não uma relação direta de estilo e forma, mas como momento de expressar seus cotidianos, demarcando os lugares, assim como demonstra a antiga capacidade humana de representar e de abstrair o concreto em simbologias. Vimos que alguns movimentos artísticos tiveram importância e uma influência forte no desenvolvimento destas artes, assim como os movimentos políticos que se utilizaram das pixações como formar de protestar, demostrando o cerne político destas artes. Partindo das conceituações de graffiti e pixação, entendemos as diferenças e semelhanças existentes entre essas práticas, do tempo rápido das ações dos pixadores ao tempo lento dos grafiteiros e, assim, as analisamos enquanto duas manifestações diferentes, que se projetam e se apropriam de forma distintas da cidade. Percorrido esse caminho entendemos como os traços coloridos e pretos feitos pelos grafiteiros e pixadores riscam a cidade como obra, construindo o espaço urbano nas dimensões simbólica e material, fazendo da rua o lugar da politica. Enquanto culturas têm seu poder na cidade, demarcando os lugares com um discurso próprio, que revela o lugar de seus sujeitos/agentes na cidade. A periferia é assim representada, exposta nas vias públicas de grande circulação e no centro. Na periferia essas artes e, principalmente, o graffiti, se tornam importantes ferramentas de valorização da autoestima da população. Como vimos, os graffitis discutem em suas representações questões de grande importância social, colocando em evidência a imagem da mulher, da

51 favela, dos marginalizados e questões como a fome, a pobreza e a violência, as religiosidades. Ao conhecermos esses sujeitos ficou evidente de onde vêm essas falas, de que lugar falam esses agentes que se apropriam do espaço urbano para levar às ruas suas identidades e suas artes. Conclui-se que esses agentes têm uma espacialidade muito complexa, que corresponde a um emaranhado de lugares grifados por seus traços. Encontramos seus riscos nas áreas mais abastadas economicamente, no centro da cidade, nas avenidas de vale, nos bairros populares, nos picos vertical e horizontalmente, de modo geral na cidade inteira, por vezes também nos municípios da região metropolitana. No entanto, esse trabalho não esgota a temática, abordando de forma introdutória esse tema na cidade de Salvador, gerando novas questões de pesquisa. Aqui trabalhamos somente com as falas dos sujeitos que fazem a ação, ficando de fora a opinião das pessoas que vivenciam essas grafias como receptores, o que leva à elaboração de novas perguntas como: o que acham os transeuntes da cidade desses graffitis e pixações? Quais os significados que eles compreendem dessas artes? Da mesma forma, também não buscamos a fala dos agentes do Estado, tanto da policia como da secretaria de cultura, para entender como eles compreendem e projetam suas ações em concordância com ou de repressão essas/dessas práticas. Na sociedade contemporânea, em que a apatia social parece tomar conta das ações dos cidadãos, e a monocultura da mente, aqui entendida como uma forma única de pensar, parece crescer ainda mais, essas culturas se revelam a nós como práticas rebeldes e de resistência. A pixação, com suas tags e nomes de coletivos, demarcam os territórios, num prática criminosa aos olhos da lei, vândala em alguns casos, passando por cima de propriedades privadas, de monumentos públicos com seu caráter ideológico, monumentos que raramente referenciam ao povo, mas sim aqueles que do povo se aproveitaram. É certo que o limite do vandalismo não foi analisado aqui, mas há de se reconhecer que na cidade embutida de propagandas, construída com um caráter ideológico dos dominantes, a pixação foge desses padrões, se rebelando contra um Estado presente em sua omissão, que muitas vezes defende os interesses da elite. A pixação, com seus riscos, grita a voz de um povo, de um lugar, que em muito é marginalizado, estigmatizado e que fica de fora das politicas de Estado. As pixações confrontam a sociedade que torna tudo mercantil, tirando a riqueza dos lugares, transformando-a em produto, e faz do lucro a sua máxima. Definitivamente o pixe na

52 cidade contemporânea é uma voz dos de baixo, que gritam, que buscam seus espaços, que se fazem ver, que estão presentes nos lugares, onde talvez não teriam entrada. O graffiti como “uma linguagem transgressora” (Denissena), de essência da rua, vem agradando os olhares da sociedade, ganhando reconhecimento e valorização artística, democratizando as artes, levando às periferias uma opção de cultura. Seus agentes fazem de sua arte uma verdadeira arma de transformação social, através da qual as emoções e paixões deixam marcas na paisagem urbana. E sua expressividade artística cria uma cidade mais viva, na qual cores e desenhos resistem à homogeneização dos lugares. Contudo, o reconhecimento desses universos (graffiti e pixação) na cidade de Salvador mostra a necessidade de aprofundamento de estudos de uma geografia dos lugares, na qual as emoções e vivências dão sentidos novos às análises geográficas. Assim convido aos leitores e interessados na temática em investigar essas artes na cidade, inclusive a realizarem uma cartografia dessas manifestações, que não conseguimos ainda aprofundar nessa etapa de nossas pesquisas.

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