O grande massacre de propriedades e outros episódios de história cultural coariense

June 2, 2017 | Autor: Ygor Cavalcante | Categoria: Historia, Historia Cultural, Psicanálise e Política
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O grande massacre de propriedades e outros episódios de história cultural coariense. Ygor Olinto Rocha Cavalcante* No último dia 14 de janeiro de 2015, a cidade de Coari acordou como um vulcão em plena erupção. Tudo começou em frente à Câmara Municipal com uma manifestação de moto-taxistas que reivindicavam a criação de uma lei que permitisse o aumento da passagem de moto-taxi de R$ 2,00 para R$3,00. Rapidamente, cidadãos que acompanhavam os protestos se uniram aos manifestantes aumentando a aglomeração na Praça da Igreja Matriz. Foi quando, ironicamente, os “representantes do povo” e o “povo” foram às vias de fato. Um vereador foi agredido e não houve contingente policial capaz de conter a população. A manifestação tomou ares de revolução. Móveis e portas de vidro da Câmara foram destruídos. Dalí, uma multidão de curiosos, miseráveis, desempregados, servidores públicos com salários atrasados, trabalhadores contratados pela prefeitura, angustiados com a cruel expectativa de demissão, (uma verdadeira reunião de trabalhadores que Marx chamaria de “lumpemproletariado” referindo-se a diferentes categorias profissionais cuja precariedade seria ainda mais grave do que a exploração vivida pelos proletários das fábricas e indústrias) seguiu para a casa de familiares do vice-prefeito recentemente cassado onde carros, móveis, eletrodomésticos, grades e portões foram destruídos e ritualisticamente queimados na rua. A casa e o carro só não foram incendiados porque o risco de explosão e incêndio nos arredores, afetando a casa de outras pessoas, ficou evidente à multidão revoltada. Uma das propriedades do vice-prefeito cassado, localizada no bairro Nazareth Pinheiro, foi totalmente saqueada, depredada e incendiada. Um carro de luxo também foi incendiado e empurrado no rio. Consta que ações semelhantes atingiram (ou irão atingir nos próximos dias) as propriedades de vários vereadores. Por fim, a população revoltada começou um processo de loteamento das terras onde ficavam as casas das principais autoridades políticas do município.

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Mestre em História Social da Amazônia e Diretor do Departamento de Ensino, Pesquisa e Extensão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas – Campus Coari.

É impossível não fazer um paralelo com “O grande massacre de gatos” do historiador francês Robert Darnton. Nesse livro, o pesquisador analisa a mentalidade popular e interpreta as tradições de trabalhadores urbanos e camponeses da França nos séculos XVII-XVIII. Em um dos capítulos, baseado na narrativa de um operário sobre o dia em que um grupo de trabalhadores resolveu matar vários gatos, dentre os quais a gata de estimação da esposa do patrão, e encenar uma piada que consistia em julgar, condenar, ministrar ritos de morte e pendurar os gatos em forcas, tal como se fazia na época com os criminosos, Darnton explica que o ataque aos gatos poderia ser entendido como um massacre indireto aos patrões, pois os burgueses ofereciam melhores condições de vida aos gatos do que a seus próprios empregados. Por outro lado, o massacre dos gatos expressava uma tradição que via na tortura de animais, especialmente de gatos, uma fonte de divertimento. O massacre passa a fazer mais sentido se lembrarmo-nos que os franceses acreditavam que os gatos poderiam proteger seus lares, e para isso enterravam os bichanos vivos dentro das paredes. Assim, ao encenar o julgamento dos gatos, condenando grise, a gata pertencente à patroa, pelo crime de feitiçaria, os trabalhadores condenavam a classe burguesa e seus excessos, insultavam seus patrões e faziam duras críticas ao sistema socioeconômico que oprimia a classe trabalhadora francesa. Dois aspectos podem ser facilmente percebidos nas ações protagonizadas hoje pela população de Coari e que permitem uma interpretação dos significados políticos e culturais da revolta. O primeiro é o caráter econômico que os protestos evidenciam. A situação da população da cidade é de penúria e triste miséria. Há pouquíssima circulação de capital, apesar da renda per capita da cidade ser milionária. As diferentes gestões da prefeitura ou foram incompetentes para garantir a circulação de capital ou deliberadamente procederam de tal forma que houve uma extrema concentração de renda. Como consequência, comércios estão fechando as portas, o que ocasiona, evidentemente, um desemprego estrutural. Basta uma rápida visita aos bairros de Coari para perceber os bolsões de miséria que circundam ilhas de riqueza com casas muito bem estruturadas que, se não são lá grandes mansões, são acintosamente mais luxuosas que suas vizinhas. A produção primária é frágil e desamparada pelo poder público. Não há investimento para produção agrícola tampouco qualquer incentivo que possa escoar a produção de hortifrútis na área urbana e nas comunidades interioranas adjacentes. Aliás, não há sequer estradas para que o produtor rural possa trazer à cidade seus produtos.

Nesse contexto, a especulação de imóveis é surreal e dificulta o acesso à casa própria – e de qualidade - entre a população. As empresas prestadoras de serviços na área de engenharia e informática, que durante a década de 1990 e nos anos 2000 estiveram presentes no município acompanhando o processo de estabelecimento da plataforma de exploração do gás natural e petróleo de Urucu, pela Petrobrás, já não atuam mais. Diminuindo, assim, as alternativas de emprego para a população. Não fosse a possibilidade de pesca, plantação de mandioca e produção de seus derivados, bem como a caça de animais silvestres para a alimentação e para o comércio oficialmente ilegal, mas culturalmente aceito, o que também é preocupante, a situação seria ainda bem mais grave no que tange à alimentação popular. Nesse contexto, a sofrida população possui pouquíssimas opções para sobreviver, dentre as quais, se submeter à precariedade dos empregos informais, ao mercado de objetos ilegais, em condições degradantes, como vendedores ambulantes nas praças, ou ainda como moto-taxistas, que no seu dia a dia correm de forma ensandecida de um destino a outro para disputar um número cada vez menor de passageiros e, dessa forma, manter ou ampliar seus lucros, garantindo a sobrevivência da família. Ao mesmo tempo, não é de surpreender o aumento no número de assaltos, no consumo de entorpecentes de baixo custo, nos conflitos sociais, dando contornos de barbárie aos problemas urbanos de Coari. É facilmente perceptível, portanto, a situação de aguda exclusão social da maior parte da população e de difícil acesso às riquezas do município. O ataque às propriedades e as inúmeras desapropriações revelam um profundo ressentimento com o enriquecimento daqueles que estão ligados às estruturas de poder político. O segundo aspecto que pode ser destacado na revolta dos coarienses tem a ver com uma compreensão equivocada de cidadania que está entranhada na cultura política local. A prefeitura é vista como uma espécie de mãe que tudo deve prover. E o prefeito, claro está, seria uma espécie de Pai onipotente, responsável pela repartição dos benefícios, garantindo a imagem “sagrada” e “benevolente” que deve cercar um “bom prefeito”. Na gramática que articula o vocabulário político da cidade é possível compreender que, tal como se organizavam os “bandos” no período colonial, as disputas eleitorais são decididas quando as grandes famílias se mobilizam em torno de um determinado candidato. Assim, grupos se beneficiam do poder político enquanto os que pertencem a um grupo político inimigo são rigorosamente retirados da cena, o que

significa que os empregos por contratos da câmara e prefeitura são repartidos entre os correligionários. Esta lógica atravessa a sociedade coariense de alto a baixo: das trabalhadoras domésticas ao grande comerciante. As disputas por cargo e emprego começam tão logo assume o novo prefeito e o corpo de vereadores. A maioria da população acaba por depender de cargos e empregos na prefeitura municipal. O apadrinhamento alimenta-se da situação de miserabilidade da população que, por sua vez, alimenta o apadrinhamento – solapando as condições necessárias para o surgimento de um projeto coletivo de sociedade. Assim, quando a situação começa a ficar pior do que de costume, a responsabilidade é sempre localizada no Outro, isto é, no prefeito e no seu “bando”, excluindo-se, dessa maneira, a compreensão de que os entraves sociais e econômicos da cidade, expressos num abismo entre aqueles que vivem em uma zona de conforto e aqueles que agonizam na miséria, resultam de uma totalidade estruturante de cuja participação o próprio “povo” não pode se eximir. Porém, vejamos “o grande massacre” das propriedades dos políticos da cidade pela ótica psicanalítica de Jacques Lacan, quando analisa um ritual de sacrifício. A fogueira das propriedades foi, assim, um sacrifício. Inicialmente, acreditamos que o ritual de sacrifício realiza uma troca. Sociedades primitivas sacrificavam seres humanos e animais em troca de benefícios divinos: saúde, fertilidade, boa colheita. Contudo, em um nível mais profundo de análise, o sacrifício seria a encenação que se realiza para certificar que há efetivamente algum Outro que possa nos beneficiar e responder nossas súplicas. Lacan segue além ao afirmar que o sacrifício, na verdade, funciona na economia psíquica como uma recusa da impotência do Outro, isto é, mesmo que não seja atendido em minha súplica continuo acreditando verdadeiramente que o Outro é capaz de realizar os meus desejos caso assim o quisesse. Assim, a aparência de onipotência e a própria consistência orgânica da figura daquele a quem se dirige o meu sacrifício permanece preservada. No caso dos rituais de sacrifício das propriedades dos políticos perpetrados pela população revoltada de Coari, precisamos localizar o sentido do ato em um lugar bem mais inusitado. A encenação consiste em convencer o Outro (no caso o prefeito, vereadores e a própria Sociedade) de que o “povo” deseja ser “salvo”, protegido, beneficiado. Resumindo, o “povo” fingiu um querer, uma falta, qual seja, de que os “políticos” façam algo pelo “povo”.

O grande massacre de casas, móveis, carros, incendiados em plena luz do dia, num espetáculo encenado no meio da rua, não guarda algo da angústia histérica de que nos fala Lacan? Um histérico sofre exatamente por não ser capaz de admitir a inconsistência do Outro, a falha, a falsidade e a impotência do Outro. Dessa maneira, essa recusa encenada sustenta a costumeira queixa de que “o prefeito fulano de tal” e os vereadores irão manipular o povo, usá-lo, explorá-lo, roubá-lo. Encena-se a “vitimização”, convence-se a si mesmo de que efetivamente se possui algo que é cobiçado pelo Outro. Com o grande massacre, o “povo” engana a si mesmo, e convence-se de que é “vitima” e de que não pode ser ele mesmo um agente político transformador da realidade social – sem a necessidade de vereadores, prefeitos e secretários. Paradoxalmente, a verdade aterrorizante que se refletiu nas chamas que incendiavam as propriedades é a de que o “povo” secretamente deseja NÃO QUERER SER UM AGENTE POLÍTICO. Por isso, depois de passada a catarse das depredações, protestos e sacrifícios é que começa a verdadeira luta. O que o povo vai fazer para resolver os graves problemas sociais e urbanos de Coari? Qual o projeto de sociedade vai ser coletivamente preservado e conduzido na vida da cidade? Quais as soluções que o povo de Coari vai apresentar para os criminosos déficits educacionais que o município apresenta? As chamas já esfriaram...

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