O HAITI E A RESISTÊNCIA À OCIDENTALIZAÇÃO ARAÚJO, ADRIANO ALVES DE AQUINO (1); OLIVEIRA, ADRIANA CAPUANO DE (2

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O HAITI E A RESISTÊNCIA À OCIDENTALIZAÇÃO ARAÚJO, ADRIANO ALVES DE AQUINO (1); OLIVEIRA, ADRIANA CAPUANO DE (2)

1. UFABC. Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas Av. dos Estados, n. 5001 – Bangu – Cep:09210170 - Santo André, SP [email protected] 2. UFABC. Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas Av. dos Estados, n. 5001 – Bangu – Cep:09210170 - Santo André, SP [email protected]

RESUMO O Presente artigo aborda de um ponto de vista histórico a formação da cultura haitiana e os processos de resistência à ocidentalização observada no país até os dias atuais. Desde o nascimento do país, as intervenções estrangeiras foram uma constante em sua história, cumprindo sempre o papel de conduzir o futuro do país a partir de uma ótica ocidental. A classe popular foi por muitas vezes induzida e até mesmo forçada a abdicar de sua própria cultura em nome da civilização, o que não se deu, nem se dá sem resistência. Para grande parte do povo do Haiti, o passado vencedor na luta por independência, a língua crioula e a religião vodu são partes de uma cultura à qual se sentem orgulhosos e não abrem mão. A partir da dicotomia ocidentalização-modernização se operam os principais dilemas que confrontam esta sociedade frente ao ocidente. Palavras-chave: Haiti. Ocidentalização. Cultura.

II CONINTER – Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades Belo Horizonte, de 8 a 11 de outubro de 2013

HAITI – CONTEXTUALIZAÇÃO

O Haiti, localizado no mar do Caribe, é o país mais pobre das Américas e possui um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano do mundo. A população estimada do país para 2013 é de 9.893.934 milhões de pessoas, sendo que mais de dois terços da força de trabalho não possui emprego formal, situação agravada após o terremoto de janeiro de 2010 (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2013). As línguas oficias do Haiti são: o crioulo, falado pela grande maioria e o francês, sua composição étnica é de: 95% negros e 5% brancos. A população é predominantemente católica (80%), porém o Vodu é praticado por mais de 50% dos habitantes, num sincretismo religioso com bases históricas (Ibidem). A ilha batizada de Hispaniola (cuja atualmente o Haiti divide com a República Dominicana) foi descoberta por Colombo e sua esquadra em 1492. Colonizada inicialmente pelos espanhóis, teve sua população nativa, os Tainos, quase que inteiramente dizimada nos primeiros vinte e cinco anos de exploração - com exceção de pequenos grupos que conseguiram se dispersar e se refugiar nas montanhas (ARISTIDE, 1992).

Os espanhóis, considerados o povo mais avançado da Europa naquela época, anexaram a ilha, introduziram o cristianismo, o trabalho forçado nas minas, o assassinato, o estupro, os cães de guarda, doenças desconhecidas e a fome, forjada pela destruição dos cultivos para deixar os rebeldes sem alimentos. A população nativa ficou reduzida, de cerca de meio milhão ou talvez até 1 milhão, a 60 mil em 15 anos (SADER, 2004 apud SILVA et al., 2006, p. 2).

Em 1697 os espanhóis concederam a parte ocidental da ilha “atual Haiti” para a França, que, em pouco tempo transformou a colônia na mais produtiva do Caribe, o que somente foi possível através da importação maciça de escravos africanos, que se dedicavam à produção de açúcar e extração florestal para exportação. Em 1804 o Haiti obteve sua independência da França, tornando-se a primeira República negra do mundo e o primeiro país americano a abolir a escravidão (ARISTIDE, 1992).

A Revolução haitiana se transformara no maior movimento negro de rebeldia contra a exploração e a dominação colonial das Américas. [...] O país foi a primeira colônia latino-americana a conseguir a independência e abolição da escravatura sendo que todo processo de revolução e libertação foi conduzido pelos próprios

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escravos [...]. O acontecimento singular derruba por terra a idéia defendida à época pelas potências imperialistas de que as populações negras não pudessem se organizar por si só. Com a Revolução, o Haiti se torna a primeira república negra do mundo. (SILVA et al., 2006 p. 4).

A partir de então, a história do Haiti foi marcada por embargos econômicos, ditaduras comandadas pelos Duvalier (1957 a 1971), dívida externa, intervenções políticomilitares que passaram a ocorrer a partir da década de 1990 e atualmente pela ONU através da MINUSTAH1 (VALLER FILHO, 2007). O Brasil, por meio de força militar, comanda, desde o ano de 2004, a MINUSTAH: missão de paz criada pela ONU, com o intuito de restaurar a ordem democrática no Haiti após a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide, que gerou um período de revoltas e insurgências populares (ONU, 2012). A MINUSTAH sofre atualmente de impopularidade no Haiti, o que se constata através de denúncias de truculência por parte dos soldados, além da epidemia de cólera, iniciada em outubro de 2011, disseminada pelos soldados do Nepal, que compõem a missão de paz (GOMES et al., 2011). Em 2010 terremotos assolaram a capital Porto Príncipe e os arredores o que causou o colapso da já precária oferta de serviços públicos, instaurando o caos social no país. Segundo o governo haitiano o número de mortos chegou a 200 mil e o de desabrigados 1,2 milhões (THOMAZ, 2011). A partir daí coyotes2 passaram a atuar no país oferecendo traslado a haitianos que quisessem ir a outros países em busca de melhores condições de vida. Dentre os países escolhidos está o Brasil, que desde 2010 recebeu mais de 10.000 imigrantes haitianos.

A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA HAITIANA E A RESISTÊNCIA À OCIDENTALIZAÇÃO

A sociedade haitiana é formada majoritariamente por negros, cujos ancestrais passaram a ser importados da África em 1503 pelos espanhóis, num comércio de seres humanos que se perdurou até 1804, quando os haitianos conquistaram a independência de sua então metrópole: a França. Uma porção minoritária de mestiços também existe, fruto da miscigenação entre negros e brancos de diversas origens (JEAN PIERRE, 2009). 1 2

Sigla francesa para Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti. Atravessadores ilegais de pessoas.

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É importante salientar que, embora grande parte da mão de obra africana presente no Haiti fosse “buscada” no Reino do Daomé (atual Benim), isso não lhes tornava um grupo culturalmente homogêneo, pois, provinham de inúmeras tribos que falavam por muitas vezes línguas ininteligíveis entre si, sendo assim tiveram de se adaptar culturalmente para que pudessem viver em grupo (Ibidem). O sistema escravocrata haitiano, assim como em outras partes da América onde a mão de obra negra foi utilizada, possuía como estratégia a desagregação cultural dos escravos. Agrupava-se sempre que possível, cativos de tribos diferentes, evitando contatos mais profundos e possíveis insurreições. As relações entre os escravos, além disso, eram sempre vigiadas por funcionários contratados pelos proprietários. Desta forma, as assimilações culturais mais profundas do período préabolicionista, só foram possíveis nas marronages, comunidades formadas nas montanhas a partir de escravos fugitivos. Além de estabelecerem laços culturais entre si, esses grupos travaram contato com indígenas sobreviventes do genocídio espanhol. Essa cultura compreendeu elementos como religião, língua, farmacologia e espírito comunitário, tendo influências africanas, pré-colombianas e europeias, uma vez que, africanos e descendentes absolviam elementos da cultura do explorador (JEAN PIERRE, 2009). Segundo Hall (1992), a formação de culturas nacionais tendeu a criar historicamente padrões culturais homogêneos que levaram à manutenção de instituições, como por exemplo, a escola, que dentre tantas outras tornou-se característica-chave da industrialização nacional e dispositivo da modernidade. Entretanto, no Haiti, a cultura formada pela população a partir da fusão dos elementos africanos, europeus e indígenas foi historicamente reprimida ou manipulada, sendo impedida de se desenvolver abertamente e com isso criar e manter instituições com características próprias, dispositivos da modernidade, como apontado por Stuart Hall. Segundo Aristide (1992) após a independência o controle sob a cultura do povo não sessou, os próprios líderes da revolução haitiana defendiam a aculturação da população à moda ocidental, uma vez que, os mesmos receberam educação francesa, e, a partir daí, entraram em contato com os ideais revolucionários. Desta forma, acreditava-se que a modernização era pré-requisito para o bom funcionamento da república, o que somente poderia ser feito a partir dos moldes conhecidos: os europeus, que possuía a França como vanguarda.

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O general Dessalines, coroado imperador do Haiti após a independência, confiscou propriedades e meios de produção da população branca e intentou comercializar com o exterior as monoculturas que já vinham sendo produzidas na época colonial, no entanto, o país amargou um forte embargo comercial por meio da França e seus aliados escravagistas europeus e estadonidenses. Este embargo durou sessenta anos e levou os camponeses a praticar essencialmente a agricultura de subsistência, igualando-se às sociedades tradicionais, o que contrariava o desejo da elite política (Ibidem). Em busca do reconhecimento internacional do Haiti como país livre, lideranças políticas haitianas buscaram acordos com a França intencionando o fim do embargo econômico, o que se deu com a condição de que o país pagasse uma indenização de 150 milhões de francos pelo prejuízo causado, quantia essa paga através de empréstimo tomado dos Estados Unidos, para quem o Haiti passou a dever (ibidem). A partir daí, a presença de norte-americanos interessados em acordos comerciais com o Haiti passou a ser constante, resultando em alianças com grupos específicos de haitianos. Esses grupos, que mais tarde comporiam as duzentas famílias mais ricas do país, são acusados pelos locais de facilitar a exploração da população e das riquezas naturais, renegando miséria e subdesenvolvimento à grande maioria da população (ARISTIDE, 1992). Marco divisor da sociedade, a classe social configura-se como um estigma no Haiti e assim como em outras localidades, divide a população em bairros, escolas, ofícios, língua falada, locais frequentados, etc., mas, particularmente e, sobretudo o quão aliada aos “brancos” estrangeiros (tidos como descompromissados com o bem estar geral da população haitiana) essa classe é.

O estigma da classe social

Segundo Goffman (1988) o termo “estigma”, foi criado pelos gregos para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar algo extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Esses sinais eram feitos através de corte ou fogo no corpo. Atualmente, o termo é utilizado de maneira um tanto quanto semelhante ao sentido literal original, porém, mais aplicado à desgraça do que à sua própria evidência corporal. A sociedade estabelece meios para categorizar as pessoas e o total de atributos considerados comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias: Os 5

ambientes sociais estabelecem os tipos de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontrados, e fugindo do diferente, os grupos procuram viver próximos de seus pares (GOFFMAN, 1988). Em Porto Príncipe a preocupação da classe dominante em se afastar da classe popular haitiana, assim como também proporcionar esse afastamento aos estrangeiros, foi uma constante do regime ditatorial de Papa Doc. Essa preocupação foi levada ao extremo máximo na construção de Duvalierville, uma cidade planejada, com infraestrutura e urbanização inspiradas nos países desenvolvidos, e onde viveria a elite do país (GREENE, 1966). Valler Filho (2007) afirma que a educação no Haiti ao longo de sua história foi liderada por órgãos e entidades norte-americanas e/ou francesas, chegando sempre a minorias nas cidades e no campo, onde até a década de 1990 vivia 80% da população do país. Rosa (2011) dá conta de que no Haiti educação e instrução representam a cisão entre dominantes e dominados; escola e família são inimigas e atuam em forças opostas, enquanto a primeira cumpre o papel de “ocidentalizar” a população, a segunda, tenta arraigar-se na cultura e tradições ancestrais. O povo haitiano resiste fortemente às investidas colonialistas, que por diversos momentos históricos tentaram impor padrões culturais, ignorando a cultura popular haitiana, que possui língua, religião, e signos diversos próprios, caracterizando uma cultura híbrida, que

não

representa

nem

sociedades

tradicionais

africanas,

nem

sociedades

tradicionalmente ocidentais (THOMAZ, 2011). Parece óbvio que a cultura híbrida haitiana não represente as sociedades tradicionais europeias, nem africanas, mas, segundo Jean Pierre (2009) essa identidade formada no Haiti sempre foi muito confusa até mesmo para os haitianos, em especial para as elites e classes urbanas, que, por vezes, se identificava mais com a cultura do colonizador, afirmando que o Haiti era a França negra, e por vezes voltavam-se às raízes africanas, como no chamado movimento pró-negritude ou indigenismo (a partir da década de 1930). As intervenções externas presentes na história do Haiti sempre tentaram desqualificar a cultura do povo, incutindo-lhes a ideia de que sem a cultura ocidental não seriam respeitados internacionalmente, sendo assim, tentou-se principalmente através da Igreja Católica ignorar o povo, introduzir elementos em sua cultura e desagregar outros tidos como deploráveis, como no caso da religião vodu, numa forte estrutura de poder disciplinador. 6

Segundo Foucault o poder disciplinador tem seu foco primordial na regulação e vigilância de forma a governar a espécie humana, ou populações inteiras e, em segundo lugar o indivíduo e seu corpo. Seus locais são as instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX, que policiam e disciplinam a população, como escolas, hospitais, prisões e etc. Seu objetivo básico é transformar o ser humano em um corpo dócil (FOUCAULT, 1975 apud. HALL, 1992) Do ponto de vista sociológico, toda a identidade é construída, valendo-se de diversas “matérias-primas” culturais, que são processadas de forma que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço (CASTELLS, 1999). Uma vez que a construção social identitária sempre ocorre num contexto marcado pelas relações de poder, o autor propõe uma distinção entre algumas formas e origens de construção de identidades, das quais apresentaremos duas, sendo elas a identidade legitimadora e a identidade de resistência. A identidade legitimadora é aquela introduzida pelas instituições dominantes no intuito de expandir e racionalizar sua dominação. Já a de resistência é criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permeiam as instituições da sociedade, ou mesmo opostas a estes últimos (CASTELLS, 1999). No caso haitiano fica evidente que a identidade legitimadora é representada pela classe dominante ocidentalizada, que é minoria. A identidade de resistência é representada pela grande maioria do país, na figura dos camponeses e migrantes provenientes de êxodo rural, que vivem nas periferias das grandes cidades e reorganiza as formas de solidariedade e práticas culturais vivenciadas no campo, como Jean Pierre deixa claro no trecho a seguir:

O Rara é uma importante manifestação cultural do camponês haitiano. O termo refere-se ao mesmo tempo a uma música, uma espécie de orquestra e a uma época do ano. Na direção de um grupo de Rara há sempre um sacerdote do vodu [...]. É uma atividade querida e valorizada por certas regiões do país, mas com o êxodo para as cidades e com a nova configuração espacial da capital, com as múltiplas favelas, os grupos de Rara soam hoje em todos os cantos de Porto Príncipe (JEAN PIERRE, 2009, p. 122).

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O Haiti pode ser considerado atualmente uma sociedade predominantemente tradicional. O trecho a seguir mostra as características desse tipo de sociedade na concepção dos autores em questão:

Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência das gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes (GIDDENS, 1990, apud HALL, 1992, p. 3).

Essa valorização do passado e do tradicional é vivida de forma diferente pelas classes sociais haitianas, sendo que os estigmas que separam pelos opostos as classes no Haiti levam-nos a levantar a hipótese de que os mesmos podem dificultar a ascensão social e econômica da grande massa haitiana assolada pela pobreza, uma vez que os grupos historicamente se repelem. Desta forma, para as classes populares, ascensão econômica pode vir acompanhada de inúmeros outros componentes (inaceitáveis) associados à ocidentalização, que os tornaria uma minoria estigmatizada pela grande maioria, que é sua origem.

APONTAMENTOS

SOBRE

A

INEFICÁCIA

DA

AJUDA

INTERNACIONAL

Atualmente a lógica de impor e tentar legitimar valores culturais tem sido praticamente a mesma, organizações internacionais e Ong´s de ajuda humanitária introduzem

experiências

no

país

através

de

fórmulas

pré-concebidas

que

não

necessariamente se adequam à realidade local, fato este que tem sido a principal causa do malogro de inúmeros projetos internacionais que visam dar assistência ao país (ROSA, 2011). Para Corbellini (2009) é possível afirmar que as missões de paz da ONU no Haiti (quatro missões de 1993 a 2000), não foram bem sucedidas. Segundo a autora a própria necessidade da existência da MINUSTAH (a partir de 2004) demonstra isso. As possíveis razões para o fracasso encontram-se na crise política, social e econômica instaurada no país nas últimas décadas do século XX e início de século XXI. 8

A ineficácia da ajuda internacional no Haiti é detalhadamente exposta pelo professor Omar Ribeiro Thomaz, que estava em pesquisa de campo junto a um grupo de estudantes no país em 12 de janeiro de 2010, data em que terremotos arrasaram a capital, Porto Príncipe e os arredores, e cujos números estimados pelo governo haitiano foram de 200 mil mortos e 1,2 milhões de desabrigados. Segundo Thomaz (2011), após o terremoto, numa situação que se estendeu por dias, os representantes das entidades de ajuda humanitária permaneceram isolados dentro de hotéis ou rondavam Porto Príncipe em carros fechados. Os estrangeiros temiam o clima de “instabilidade” gerado entre os habitantes locais, que se organizavam através de redes de cooperação para distribuir a água e o alimento que possuíam, retirar sobreviventes dos escombros e abrir caminhos para locomoção, o que era feito sem equipamentos e sem ajuda internacional. Ao serem interrogados se não se revoltavam com a falta de ajuda internacional, mesmo ela estando presente no país, os locais respondiam que já estavam acostumados a esse tipo de situação, pois nas horas em que realmente precisavam, os brancos não se faziam presentes, de qualquer forma não demonstravam necessitar da ajuda dos brancos e se esforçavam por fazer tudo sozinhos (THOMAZ, 2011). É necessário que o Haiti se reinvente, e que a população decida que desenvolvimento querem, em quais moldes e o mais importante, se já existe algum modelo vigente que poderia ser por ela aceito. Os governantes sempre tenderam no país a uma política opressiva e ditadora, hora do lado da cultura popular, ora defendendo valores ocidentais presentes na burguesia, sempre massacrando uma parcela da população. A falta de confiança entre a elite, e o restante da sociedade, acabou exigindo sempre a coerção de terceiros na tentativa de manutenção da ordem pública. O caos político faz/fez com que, por diversas vezes, órgãos internacionais trabalhassem para a manutenção da democracia no país, fazendo-o por meio de força e criando novas ditaduras. Segundo Putnan (1993), as sociedades que enfatizam demasiadamente o uso da força tendem a ser menos eficientes, mais sacrificantes e menos satisfatórias em relação àquelas onde a confiança é conservada por outros meios. No Haiti ora o poder coercitivo entre as camadas da população é feito pelo Estado, ora por organismos internacionais, em ambos os casos, existem indícios de que as forças em momentos diversos desertaram e usaram o poder constituído para outros meios.

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No trecho a seguir Putnan ressalta os benefícios de uma sociedade civil forte, ou seja, em essência aquela com alto grau de confiabilidade entre seus membros:

A superação dos dilemas da ação coletiva e do oportunismo contraproducente daí resultante depende do contexto social mais amplo em que determinado jogo é disputado. A cooperação voluntária é mais fácil numa comunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de reciprocidade e sistemas de participação cívica. [...] o capital social é produtivo, possibilitando a realização de certos objetivos que seriam inalcançáveis se ele não existisse (PUTNAN, 1993, p. 177).

Há de se ater ao fato, de que, solidariedade e confiabilidade existem no Haiti. Essa é inclusive uma característica da classe popular haitiana, maioria numérica do país. Autores, como Omar Ribeiro Thomaz e Jean Gardy Jean Pierre trataram profundamente e com propriedade acerca das formas de cooperação existentes entre a classe popular. Mas, a cooperação e solidariedade se dá via de regra intra-classe, num sistema onde as classes abastadas, fechadas em seus ciclos mantêm suas fortunas e aumentam seus lucros, e a classe popular continua empobrecida, sem recursos e com pouco à partilhar, embora o faça.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resistência à ocidentalização é uma constante na vida da classe popular haitiana, tornou-se escudo de defesa de sua cultura e tudo o que for apresentado como cultura ocidental, ou conter elementos da mesma, é repelido pela população. Essa aversão da população se dá pela associação entre cultura ocidental e dominação, que se repetiu em diversas fases da história do país. Dentre essas fases é possível identificar quatro bem demarcadas, explicadas a seguir. Fase da escravidão: A cultura ocidental era manifestada através dos colonizadores franceses, que escravizavam e oprimiam a população. Os valores ocidentais eram tidos como o padrão humano e deveriam ser observados por aqueles que assim queriam ser tidos. Como os negros eram tidos como não humanos, não era esperada a aculturação total dos mesmos, no entanto, alguns elementos europeus eram introduzidos como forma de 10

evitar a perpetuação e comunhão de valores (negros) comuns, a fim de se evitar insurreições. Fase da independência: Nesta fase a manifestação dos valores ocidentais foi empreendida pelos heróis da independência do Haiti e seus apoiadores. Esses heróis, como Toussaint Louverture e Dessalines, foram educados à moda francesa, sendo que a partir dessa educação entraram em contato com os ideais da Revolução Francesa, valores que os inspiraram a lutar pela independência do Haiti. Para esses homens, educação, modernidade e desenvolvimento passavam pelo aprendizado da cultura ocidental, modelo que conheciam, sendo assim defendiam a aculturação à moda ocidental da população do Haiti, que deveria deixar de lado a cultura popular, fruto da fusão de elementos indígenas, africanos e europeus. Essa cultura popular era tida como atrasada e incompleta. Os heróis nacionais queriam provar ao mundo que o povo do Haiti era capaz de absolver a cultura ocidental moderna tal qual um europeu ou estadonidense. Esse era o desejo de resposta aos escravagistas europeus e seus simpatizantes, que defendiam a natureza não humana dos negros, bem como sua incapacidade de se auto-governarem. A terceira fase seria a do pós-embargo comercial (década de 1940), quando norteamericanos passaram a estabelecer alianças políticas e comerciais com grupos de haitianos. Esses haitianos, educados à moda ocidental, que passaram a deter poderes políticos e econômicos, são acusados pela população de ter facilitado a exploração da população e dos recursos do Haiti, relegando ao mesmo a condição de país mais pobre das Américas. A partir daí o estigma da classe social foi reforçado no Haiti e render-se à ocidentalização passou a ser um tabu para as classes sociais. Ocidentalizar-se é igualar-se aos haitianos da elite, que permitem a exploração de seus compatriotas por estrangeiros, ignorando as lutas comuns de seus antepassados. A quarta fase da resistência à ocidentalização, que contém muitos elementos da terceira, inicia-se a partir da década de 1990, com as intervenções externas. A cultura ocidental é nesta fase imposta na forma de ajuda humanitária. Organizações internacionais voltadas aos mais diversos segmentos passaram a se instalar no Haiti com o intuito de “ensinar a fazer”. Ensina-se a plantar, colher, construir, cantar, tocar instrumentos, vestir-se, cozinhar, dançar, jogar, brincar, comprar, vender, higienizar-se, medicar-se, proteger-se de doenças, 11

fazer planejamento familiar, bem como levam outras religiões e formas de sociabilização, ignorando toda a cultura formada há séculos pela população nativa. A partir do histórico do Haiti, fica evidente que o povo requer um desenvolvimento alternativo ao modelo ocidental, onde sua cultura seja dispositivo da modernidade e onde o povo seja protagonista. A ajuda internacional através da ONU deve-se fazer presente para operacionalizar a vontade do povo, e não para introduzir elementos desejados pela elite do país, movida por pressões externas. A ajuda deve ser operacionalizada como forma de indenização ao Haiti por tudo o que seu povo já sofreu devido a interesses econômicos externos.. Os haitianos são capazes de se auto-governarem, o clima de instabilidade no país é fruto das desestabilizações causadas pelas potências estrangeiras desde seu nascimento como país. Sendo assim, é na garantia dos direitos do povo de se auto-governar que o mundo deve se ater. Deve-se garantir o direito aos haitianos de buscar seu próprio caminho à modernização, não se pode tomar os modelos ocidentais como único caminho para isso. Negar esse direito aos haitianos é violar seus direitos como cidadãos e é isso que vem ocorrendo há séculos, desde o descobrimento da ilha.

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