O Homem Cordial e a Administração Pública brasileira: há mais de Império em nossa República do que ousamos imaginar

May 30, 2017 | Autor: Mariana de Siqueira | Categoria: Public Administration, Direito Administrativo, Droit administratif
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24 de julho de 2016

O Homem Cordial e a Administração Pública brasileira: há mais de Império em nossa República do que ousamos imaginar? Mariana de Siqueira 24/07/2016

Diariamente realizo a leitura de textos jornalísticos para me manter atualizada a respeito do que acontece no Brasil e no mundo e não raras vezes me deparo com notícias que expõem abusos e ilícitos praticados junto à Administração Pública brasileira. São muitos os casos de apropriação indevida de recursos, fraudes às licitações e aos concursos públicos, compras de itens luxuosos para satisfação de caprichos pessoais de parcela ínfima dos agentes públicos... Dentre os ilícitos do cotidiano da Administração, é do nepotismo que irei aqui falar. Antes, todavia, considero importante conversar um pouco sobre Sérgio Buarque de Holanda e seu Raízes do Brasil. Há aproximadamente oitenta anos, Sérgio Buarque de Holanda dava início à redação das linhas textuais que juntas conformariam obra de referência para a compreensão da sociologia brasileira. Influenciado por Max Weber, Sérgio realizou em escritos uma detalhada análise da formação do Brasil, de modo a explicar aquilo que nos tornamos a partir do que outrora fomos. Raízes do Brasil,

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cuja primeira edição data de 1936, é o resultado material de tal empreender intelectual. O Homem Cordial, expressão que parcialmente batiza o título do texto que aqui se apresenta, diz respeito à exata nomenclatura do capítulo quinto da obra. A despeito da grandiosidade de todo o livro, é exatamente a esse trecho que irei me ater com mais afinco e dedicação, justamente por ser ele o mote ensejador de minha inspiração para pensar criticamente o nepotismo, sua prática e combate. Ressalte-se, desde já, que se faz extremamente importante esclarecer um equívoco comumente associado ao capítulo que mencionei. A cordialidade descrita por Sérgio Buarque não é sinônimo absoluto de simpatia e cortesia, não deve, pois, ser compreendida como uma espécie de alusão exclusivamente elogiosa à gentileza do povo brasileiro. O foco é outro e a abordagem da cordialidade não soa como um enaltecimento à amabilidade dos nacionais. A descrição do tema pelo autor é especialmente recheada de apontamentos críticos e a ideia converge de modo mais preciso para a exposição da tradicional e infeliz confusão entre o público e o privado que há muitos anos estremece e enfraquece as bases da Administração Pública brasileira. Em suas palavras inaugurais, assim se apresenta o capítulo quinto de Raízes do Brasil: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.” (2013, p. 141) A leitura do trecho acima e a conclusão imediatamente derivada de tal ato cognitivo de pronto me fazem lembrar com certo pesar do nepotismo, prática inconstitucional ainda hoje conectada à Administração Pública brasileira. O nepotismo, em uma simples e talvez superficial descrição, pode ser compreendido como o ato de colocação de pessoas em atribuições laborais junto ao Poder Público, não por serem elas habilitadas e competentes para tal, mas sim por questões de ordem unicamente pessoal, de afeto e familiares. O sujeito ocupa cargo sem a prévia aprovação em concurso público e consegue esse benefício por ser “apadrinhado” por alguém que trabalha junto ao Estado.

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Há no nepotismo, como bem se pode notar, confusão entre o público e o privado e a utilização de poder para fins de interesse pessoal. O nepotismo nega e contraria a lógica exposta por Sérgio Buarque, especialmente por fazer da Administração Pública uma espécie de “puxadinho do lar” do gestor que o pratica. Essa modalidade de confusão entre o público e o privado carrega consigo marcas que remetem a um patriarcalismo que deveria ser pertencente apenas a um longínquo e distante pretérito e não ao nosso presente. Nos primeiros dias de vigência da Constituição Federal de 1988 já era possível compreender que o nepotismo se fazia por ela ontologicamente proibido. Os escritos que desde então estão explícitos no texto do art. 37 e a crença teórica na força normativa da Constituição são apenas alguns elementos que viabilizam esse entendimento. Com a prática do nepotismo inúmeros dos princípios constitucionais atualmente direcionados à Administração são violados, a exemplo da impessoalidade, eficiência e moralidade. Uma singela explicação pode desdobrar melhor as considerações acima feitas. Se impessoalidade é máxima administrativa a ser necessariamente seguida pelo Poder Público, não há coerência em preencher unidades laborais junto ao Estado por motivações de ordem unicamente pessoal. Se o que determina o preenchimento é algo de foro sentimental e não a habilidade intelectual do sujeito a laborar junto ao Poder Público, certamente a eficiência administrativa também corre risco de lesão com tal atuação. Apesar de clara a incompatibilidade do nepotismo com os escritos da Constituição de 1988, tal prática não se dizimou da realidade estatal nacional com a simples publicação do texto constitucional. Quem dera a simples positivação de textos legais fosse plenamente habilitada a promover efeitos dessa ordem! Desconstruir repetições históricas equivocadas e lesivas ao interesse público requer muito mais do que a simples positivação de leis. É necessário empenho cotidiano, foco e planejamento do Poder Público rumo à concretização dessa ordem de desconstrução. Em se tratando do nepotismo, por ser ele algo secularmente introduzido nos espaços públicos nacionais, ainda mais dificultoso e longo se revela o caminho viabilizador do encontro de seu efetivo fim.

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Notem que Sérgio Buarque de Holanda há oitenta anos já ressaltava a necessidade de serem compreendidas como esferas distintas a família e o Estado, que a Constituição de 1988 desde a sua origem, ou seja, há quase trinta anos busca a estruturação de uma Administração impessoal, e que até hoje árduo se faz enxergar os plenos desdobramentos concretos de tais elementares teóricas. O nepotismo está tão agarrado às raízes brasileiras que é visto por muitos como natural, como uma espécie de “capitania hereditária laboral” justificável na contemporaneidade, como verdadeiro privilégio daqueles que possuem uma excelente “network” junto aos detentores de poder. O respeito à vedação ao nepotismo, inclusive, não se iniciou espontaneamente dentro das mais variadas estruturas estatais responsáveis por sua perpetuação ao longo dos anos, muito pelo contrário, veio mais como fruto de controle externo. Foram inúmeras as ações, os processos, decisões judiciais e normatizações infraconstitucionais construídos de forma a compor os ladrilhos da estrada que nos conduz a uma mais significativa trajetória de combate e extinção do nepotismo. Convém aqui mencionar de modo especial a publicação da Súmula Vinculante (SV) nº 13, editada pelo Supremo Tribunal Federal nesse milênio e responsável por oferecer detalhamentos ao que deve ser entendido como nepotismo a ser combatido dentro das estruturas públicas nacionais. A súmula sem dúvidas trouxe significativos avanços dentro do tema, porém, como texto limitado que invariavelmente é, não ofereceu respostas e soluções para todos os casos. Ela é texto e enquanto tal necessita ser interpretada para que possa ser aplicada. Se já é difícil com ela, sem ela certamente seria pior. Ainda nos perguntamos, por exemplo, sobre os limites e possibilidades de aplicação da súmula do nepotismo aos chamados “cargos políticos”, ou se faz sentido falar em nepotismo quando o cargo a ser ocupado por eventual parente de agente público é aquele correspondente à vaga de quinto constitucional. Em síntese, o que posso dizer aqui é que muitas dúvidas permanecem, mesmo diante da consolidação de algumas ótimas certezas ao longo dos últimos anos. O que também posso afirmar diante dessa conjuntura é que mesmo sendo equivocado, inconstitucional e vedado pela normativa, o nepotismo perdura na

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realidade administrativa brasileira. O recente caso apurado ao redor da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte é infeliz exemplo disso. Segundo dados inseridos em reportagem datada de março desse ano e publicada pelo “site” globo.com, dos 3.181 cargos existentes no órgão apenas 552 eram ocupados por servidores efetivos. Tais números já revelam por si só uma nítida afronta à regra do concurso público para fins de preenchimento dos cargos administrativos. Além desse problema, outros se fizeram notar, sendo possível citar a “presença” ausente dos trabalhadores do local (casos típicos de servidores fantasmas), a efetivação de “servidores” sem a devida e anterior aprovação em concurso público e a nefasta prática aqui descrita: o nepotismo. Caminhando para o fim desse texto desabafo, agora já em resposta às perguntas inaugurais desse escrito, devo dizer que aos meus olhos, em determinados eixos temáticos, ainda há sim mais de Império em nossa República do que ousamos imaginar. Nos últimos tempos, inclusive, como ela, a República brasileira, tem sofrido. O nepotismo insistente e persistente é modalidade disso e o agente público cordial que enxerga o seu interesse privado acima do coletivo é o principal mantenedor da inoportuna atualidade dessa prática. Entre o ser e o dever ser que circunda o tema há distância, hiato, espaços a serem necessária e urgentemente preenchidos com o devido respeito à juridicidade. Como nem só de tristezas vivem os juristas preocupados com o respeito à Constituição pela Administração Pública brasileira, devo expor aqui que boas novas parecem surgir no aperfeiçoamento do combate ao nepotismo. Estão buscando racionalizá-lo. Que lindo isso! Diante das demandas que lhe foram direcionadas nos últimos anos, o STF estuda revisar a ideia de nepotismo com vistas a tornar mais perspicaz o seu combate. Uma nova súmula vinculante pode ser editada ao redor do assunto. Aguardemos. Só o tempo nos revelará a excelência da inovação a ser promovida pelo Tribunal. Acompanhemos as cenas dos próximos capítulos com olhares atentos e votos firmes de que o combate ao nepotismo se efetive com racionalidade, respeito às normativas postas, em especial com respeito ao que diz a nossa Constituição.

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