O homem de bem: uma interpretação da dádiva em três grupos católicos de Fortaleza/CE - Emanuel Oliveira Braga

May 25, 2017 | Autor: Emanuel Braga | Categoria: Gift Exchange, Roman Catholicism, Social Differentiation
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Universidade Federal do Ceará Centro de Humanidades Departamento de Ciências Sociais e Filosofia Curso de Ciências Sociais

O ―HOMEM DE BEM‖: UMA INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA EM TRÊS GRUPOS CATÓLICOS DE FORTALEZA/CE

EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

Fortaleza, junho de 2005

EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

O “HOMEM DE BEM”: UMA INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA EM TRÊS GRUPOS CATÓLICOS DE FORTALEZA/CE

Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais do Departamento de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Aprovada em: 14/06/2005

______________________________________________________ Profa. Dra. Simone Simões Ferreira Soares (Orientadora) Universidade Federal do Ceará

______________________________________________________ Profa. Dra. Peregrina Fátima Capelo Cavalcante (Examinadora) Universidade Federal do Ceará

______________________________________________________ Prof. Me. Carlos Silveira Versiani dos Anjos Júnior (Examinador) Universidade Federal do Ceará

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Desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinarem e crescerem com as colheitas. Jean-Jacques Rousseau

Qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz? Marcelo Yuka

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Índice

Resumo Introdução Parte I: Caridade x Solidariedade: abrindo veredas entre as palavras e as coisas 1.1. As representações sociais 1.2. Entre as palavras e as coisas 1.3. Hierarquia social e parceria 1.4. O enigma da dádiva: altruísmo ou individualismo? Parte II: O ethos católico-carismático: notas sobre a formação do ―homem de bem‖ 5.

O carismático

6.

O ―homem de bem‖ e o ―homem cordial‖

Parte III: A relação caridoso x carente e o sentido das doações 7. O ―sopão‖ 8. Um carisma na miséria 9.. Crítica ao assistencialismo: séculos XVIII e XIX 10. Crítica contemporânea e a lógica da dádiva Conclusão: a interpretação da dádiva Bibliografia Índice Onomástico

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Resumo: O ―HOMEM DE BEM‖ A sociedade ocidental inicia o século XXI com os mesmos elevados índices de pobreza, violência e desigualdade social presentes em outras épocas. Apesar do uso de diversas terminologias (―solidariedade‖, ―responsabilidade social‖, ―cidadania‖), as soluções elaboradas para resolver esses problemas convertemse, quase sempre, no mesmo tipo de prática: as doações de produtos ou serviços às classes mais pobres. Analisando as práticas de caridade em três grupos católicos de Fortaleza (CE), o texto traça um quadro geral da formação da ideologia da generosidade, comumente, influenciada pelo imaginário cristão. A filantropia, a preocupação com o sofrimento alheio, deixou de ser apenas uma antiga moral da dádiva religiosa para ser preconizada como um princípio de justiça social da sociedade laica. A generosidade, dessa forma, não deve ser entendida como ―instinto‖, ―predisposição‖, ou como parte necessária da psique humana; ela é, fundamentalmente, um fenômeno cultural.

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INTRODUÇÃO ―A sociedade se compõe de duas classes: uma que tem mais apetite que jantares. Outra que tem mais jantares que apetite.‖ Machado de Assis ―Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou o sino que tine.‖ I ao Coríntios 13,1

Grande parte da população brasileira tem os ensinamentos da fé católica como referência para suas ações no meio social. Um bom católico deve seguir as premissas de sua Igreja, tanto no plano espiritual como no plano material, no mundo dos deuses e no mundo dos homens. Além de participar dos encontros religiosos, da missa dominical e dos rituais próprios da doutrina, ele não pode esquecer de suas obrigações filantrópicas para com a sociedade de que faz parte. As práticas de caridade inspiradas em sentimentos religiosos estão presentes constantemente no cotidiano do brasileiro. No entanto, não podemos negar que as doações e a preocupação com o próximo, de condição social inferior, também fazem parte de princípios de justiça social da sociedade laica. É só percebermos à nossa volta o quanto estamos pressionados a sermos benevolentes com os mais pobres ou, se somos a maioria, o quanto estamos pressionados a pedir ajuda financeira a quem, na nossa opinião, tem dinheiro sobrando. A caridade está viva e se revela nos sinais de trânsito, nos terminais de ônibus, nas calçadas, no local de trabalho, nas periferias, nas praças, principalmente dos grandes centros urbanos. Também está presente nos programas e nas propagandas da mídia em geral. Ela representa um fato ―naturalizado‖ na cidade de Fortaleza e em outros lugares porque já faz parte do dia-a-dia corriqueiro das pessoas.

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Apesar

das

constantes

recusas

em

dar

esmolas,

existe

algo

impulsionando as pessoas a fazer as doações, a estar dispondo de parte de suas propriedades para ―ajudar o próximo‖. Quais são esses fatores que estimulam os católicos, especificamente os católicos carismáticos, a agir dessa forma é um dos questionamentos que tento responder no decorrer deste trabalho. Parece realmente óbvio que existem práticas de filantropia incentivadas por outras religiões cristãs ou não-cristãs, mas como grande parte da população fortalezense é formada por pessoas ligadas ao catolicismo, fica evidente que a influência do discurso desses religiosos tem relevante poder sobre o imaginário da cidade. Até porque os próprios dogmas de outras crenças cristãs, como o espiritismo e o protestantismo, receberam vasta adaptação do universo simbólico dos católicos, nem que fosse para contradizê-lo. Além disso, o trabalho de pesquisa ficaria demasiadamente grande se, audaciosamente, eu tivesse a pretensão de dar conta de todos os fenômenos que estejam relacionados às ações de benevolência material1. As pessoas entrevistadas durante todo o período da pesquisa foram as que mais contribuíram para a construção da minha interpretação sobre esse complexo fenômeno social. Este estudo refere-se às práticas filantrópicas dos integrantes da Renovação Carismática Católica, especificamente às doações materiais, e às implicações dessas ações em um meio social de profundas desigualdades sócio-econômicas, como é o caso da capital cearense. O objetosujeito da pesquisa é a ―gente comum‖, que dá esmola quando um mendigo bate na porta de casa, que dá trocados na igreja ou que faz doações num sinal de trânsito, ou que participa dos chamados ―sopões‖, distribuindo alimentos aos indigentes moradores de ruas, integrante ou não de organizações de cunho filantrópico. 1

A expressão “benevolência material” é aqui usada no intuito de esclarecer o “recorte” do tipo de caridade que desejo debruçar-me mais detalhadamente neste estudo. Ele refere-se à caridade econômica, ou seja, as doações “propriamente ditas”, de cunho material, que diz respeito aos “objetos da filantropia” (comida, água, roupas...). No decorrer do texto, veremos que a caridade possui um sentido bem mais amplo em muitas passagens da Bíblia. O que interessa ao presente trabalho, porém, são as representações sociais produzidas pelos católicos carismáticos acerca do fenômeno e a maneira como eles processam essas representações através da práxis.

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Os informantes são geralmente pessoas engajadas em movimentos religiosos, grupos de oração, ou nas chamadas comunidades discipulares 2. Foram três os grupos católicos analisados: a Comunidade Católica Obreiros da Tardinha (COT), de inspiração carismática, com sede no centro da cidade e filiais em vários bairros; o grupo de orações da Casa Deus Conosco, também de inspiração na Renovação Carismática, situado na Parquelândia; e a Legião de Maria, comunidade formada por mulheres católicas de várias correntes religiosas, situada no bairro São Gerardo. Seguirei as pegadas de Clifford Geertz (2001), em sua busca de significados em relação ao que carismáticos costumam fazer, o que eles pensam que estão fazendo e o que eles pensam que estão pensando. Dessa forma, vou passar grande parte deste estudo discursando sobre o sistema interpretativo dos católicos carismáticos. Quando falo em ―sistemas interpretativos‖, significa dizer a maneira como esses religiosos vêem os fenômenos que os rodeiam. Por exemplo: quais suas opiniões sobre violência urbana, sobre a miséria, sobre a fome, etc. Refere-se também aos seus mitos, criados para a explicação do funcionamento das relações sociais mundanas. São paradigmas geertzianos que ajudarão na construção da minha interpretação sobre as interpretações dos católicos carismáticos em relação às suas práticas de caridade. Entendo, como Geertz, que as religiões são grandes sistemas culturais, que abarcam e influenciam grande parte das explicações e das ações sociais dos religiosos. As religiões são auto-suficientes, assim como as ciências e as filosofias, tornando-se grandes ideologias e produzindo arquétipos de como se viver ―neste mundo‖. Elas, historicamente, sempre foram as formas mais comuns de explicar as coisas que cercam os homens. Servem, por isso, para ―dar sentido‖ às suas vidas. A preocupação com a questão da transcendência, com a relação finitude x infinitude, sempre esteve presente no imaginário religioso. 2

Comunidades discipulares, segundo os informantes da Comunidade Católica Obreiros da Tardinha (COT), são grupos religiosos “bem desenvolvidos”, que já criaram uma certa independência em relação à sede oficial da religião, no caso a Igreja Católica tradicional, e que, por isso, têm autonomia suficiente para atuar religiosamente em diferentes áreas, como na educação de jovens, lazer, encontros espirituais, “ações sociais”, “manifestações culturais”, etc.

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Essa preocupação, que é quase uma necessidade dos homens de ―não estarem convencidos da morte‖, interfere no comportamento e nas ações sociais das pessoas religiosas. As alterações do espaço social e dos padrões de conduta também costumam influir nos sistemas simbólicos de cunho religioso de várias sociedades. Existe sempre uma relação dialética entre o universo das coisas místicas e míticas e o universo das coisas concretas. São modelos comportamentais do universo simbólico católico que contribuem para as ações sociais dos carismáticos. Esses modelos oferecem uma espécie de instrumentalização de como deveria agir um ―bom católico‖ e constroem, assim, um habitus, tomando emprestado o conceito de Pierre Bourdieu (1989), do homem de bem. Assim, o padrão comportamental de dar esmolas é um modo de operar aprendido para que o praticante possa agir ou reagir segundo as situações e o espaço social apresentado no momento da ação. Max Weber, com muita maestria, já demonstrou, em A ética protestante

e o espírito do capitalismo, como são tênues as fronteiras entre a esfera religiosa e a esfera sócio-econômica, defendendo a tese de que as virtudes advindas do ―mundo sobrenatural‖ podem sim, influir, e muito, nas relações de ordem material das sociedades. Ele assegura: ―as forças mágicas e religiosas e as éticas de dever nelas baseadas têm estado sempre entre as mais importantes influências formativas de conduta‖ (2001: 30). É importante salientar que Weber não afirma que o modo de vida calvinista foi a única causa do sucesso do sistema capitalista no Ocidente; ele apenas relata um dos fatores que possibilitaram, dentre tantos outros, a assimilação do espírito burguês de atuar no mundo social. Contudo, como o próprio autor atesta (Weber, 2001), a Reforma Protestante não implicou numa eliminação total do controle da Igreja Católica sobre a vida cotidiana. Acrescentaria ainda que esse controle não foi eliminado e nem plenamente substituído por uma nova forma de controle, como ele dá a entender. Podemos dizer que essa argumentação weberiana toma grande fôlego se considerarmos que, no caso da sociedade brasileira, de predominância

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católica, ainda persistem, de maneira saliente, relações pessoais e patriarcais definidas a partir de laços familiares, convivendo harmonicamente com relações racionais de cunho burguês (cf. Buarque de Holanda, 1996; DaMatta 1979; Lanna, 1995). Fortaleza, cidade de múltiplas contradições sócio-econômicas, parece buscar formas de resolver, ou, pelo menos, de amenizar as desigualdades produzidas

constantemente

pelo

mercado

capitalista.

O

meio

urbano

fortalezense, de certa forma, herdou (herda) a tradição de religiosidade transmitida, principalmente, pelos migrantes sertanejos que aqui chegaram. No entanto, a expressão da religiosidade nem sempre foi ou é um fenômeno mais presente no campesinato, pois, segundo Weber, historicamente a racionalização das religiões se processou em ambientes urbanos. Em regra, os camponeses possuem uma religiosidade ―irregular‖, ―pontual‖.

―O fato de

justamente o camponês ser considerado o tipo específico do homem piedoso e grato a Deus é, sem dúvida, um fenômeno moderno‖ (1994: 322). O processo de colonização trouxe, ao lado de interesses econômicos, as ideologias cristãs para povoar o imaginário nativo das Américas. Inicialmente, a

religiosidade

européia,

ressemantizada

variavelmente

pelos

cultos

ameríndios e afros, estava presente de maneira mais ou menos homogênea, tanto no campo, como nas pequenas cidades que surgiam no território recentemente desbravado. Como o processo de modernização do século XIX atingiu, principalmente, o meio urbano, as novas ideologias, as ciências e o ideal de cidadania secular tiveram que se adaptar aos constantes contingentes de pessoas vindas do pobre sertão com sua ―religiosidade arcaica‖ e já bastante re-apropriada pelos encontros transculturais próprios do processo histórico brasileiro. O Ceará, historicamente, representa um Estado que sempre conviveu intensamente com as experiências religiosas. Desde as romarias, ainda bastante presentes principalmente no interior, passando pelas ações pastorais, até a organização de grupos filantrópicos com referencial místico, o Estado

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sempre buscou nas crenças religiosas uma maneira de resolver suas ―questões sociais‖. Segundo estudos do historiador Sebastião Rogério Ponte, no século XIX, momento em que as principais cidades brasileiras passaram por uma série de intensas reformas sociais e urbanas, resultantes dos anseios da ideologia dominante de modernização aos moldes do ―padrão de civilização‖ dos grandes centros urbanos europeus, Fortaleza também teve de se adaptar a um processo de remodelação urbana. Uma das principais medidas político-administrativas da belle époque foi a criação de diferentes tipos de asilos, com o objetivo de ―limpar‖ a cidade dos grupos sociais indesejados e improdutivos para a racionalidade capitalista. Um desses grupos sociais que sempre representaram motivo de repugnância por parte das elites eram (são) os grupos de mendigos. Por meio de uma análise foulcaultiana, S. R. Ponte lucidamente afirma: As

tentativas

de

controlar

o

crescente

contingente

de

pobres

intensificaram-se com campanhas de erradicação da mendicância urbana, novas instituições assistencialistas, organização de policiamento específico para Fortaleza, e de colônias penais para a recuperação da delinqüência adulta e infantil pelo trabalho ao ar-livre ou em oficinas. (Ponte, 2001: 16)

Mais adiante, ao falar do florescimento da sociabilidade burguesa no seio das classes mais abastadas de Fortaleza entre os séculos XIX e XX, o historiador acrescenta: Entretanto, à medida que transformavam a zona central da capital em palco para sua sociabilidade elegante, as elites se inquietavam com o cortejo de desempregados e miseráveis que se multiplicavam pelas ruas. Vista como uma série ameaça à segurança e à moralidade públicas, essa massa de excluídos foi o alvo de inúmeras técnicas de controle social. (Idem, p. 18)

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Vê-se, dessa forma, em que medida a mendicância era, já no século retrasado, percebida como um entrave esteticamente feio ao ideal de modernização das cidades. Foi, no século XIX, que as políticas laicas, juntamente com a Igreja, formaram as primeiras Casas de Caridade (germens das atuais organizações filantrópicas) com o intuito de produzir efeitos disciplinadores no emergente foco de miséria, mendicância e violência da capital cearense. Voltando um pouco para a questão da tradição religiosa do estado do Ceará, poder-se-á dizer que a valorização das práticas místicas parece ser também o resultado do difícil acesso da maioria da população às ideologias consideradas modernas como, por exemplo, a ciência. Porém, não podemos negar a existência de um demorado acesso a tais sistemas interpretativos em decorrência do aumento quantitativo de pessoas dentro das escolas brasileiras no final da década de 1990, conseqüência de medidas paliativas do governo FHC. Mas, esse ingresso a uma modernização é apenas de fachada, feito de maneira bem superficial, sem nenhum efeito qualitativo no que diz respeito à transferência, ou, principalmente, à adaptação para outras ideologias, como acontece nos países classificados como desenvolvidos. Em cada bairro de Fortaleza, podem ser encontradas instituições religiosas, de credos vários, sejam cultos de umbanda, encontros espíritas, cultos evangélicos e igrejas católicas. E, se não há conflitos declarados, como acontece na Irlanda, os embates verbais são intensos. O tema foi escolhido com o objetivo de desconstruir o conceito de caridade, apregoado com carga valorativa em nossa sociedade, para, com isso, desvendar causas econômicas e religiosas que possam estar relacionadas a essa atitude de ―compaixão pelo próximo‖. Para saber até que ponto uma virtude advinda do ―mundo sobrenatural‖ pode influir na vida material das pessoas envolvidas nas ideologias carismáticas.

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Como as práticas de caridade já se tornaram fato generalizado no cotidiano do fortalezense, tal qual em outras cidades brasileiras, são muitas as representações sociais do senso-comum formadas a partir desse fenômeno. Essas interpretações serão trabalhadas de maneira mais aprofundada logo no primeiro capítulo, intitulado ―Caridade x Solidariedade: abrindo veredas entre as palavras e as coisas‖. Quero fazer, neste momento, alguns esclarecimentos acerca do meu objeto-sujeito de estudo: na terceira parte do trabalho, vou tentar destrinchar os vestígios das ações caritativas, ou seja, as origens dessa prática. Isso não significa dizer que esteja assumindo uma postura evolucionista. Desvendar origens não representa estabelecer estágios de desenvolvimento social. Ajuda somente entender, através da história, o que está acontecendo no presente e oferece indícios do que provavelmente poderá acontecer no futuro. A minha maior dificuldade no trabalho de campo, sem dúvida, residiu no fato de já ter um certo contato anterior com meu objeto-sujeito de estudo: o catolicismo, os católicos e seus sistemas interpretativos. Isso contribuiu para que eu passasse por maus momentos até conseguir, de fato, ―estranhar‖ os fenômenos sociais que abarcam a análise. Eu precisei muito mais ―estranhá-lo‖ do que ―me familiarizar‖ com ele. E, como grande parte dos trabalhos metodológicos e etnográficos produzidos por cientistas sociais é feita com base na ―cultura do outro‖, no paradigma ―tornar familiar‖, poucos são os ensaios que orientam o dificílimo ato de estranhar a si mesmo. Sou de opinião que a tal ―crise‖ dos paradigmas nas ciências sociais refere-se, principalmente, ao fato de nós, pesquisadores, não aceitarmos ou não enxergarmos a complexidade do ―outro‖ e nem admitirmos a possibilidade de uma simplificação na análise das relações sociais do grupo do ―eu‖. Costumamos analisar as outras culturas, não-ocidentalizadas, de maneira totalizante, muitas vezes por meio da lente maussiana do conceito de fato social

total, ou através do sistema funcionalista de Malinowski, quando estabeleceu o ―kula‖ como sendo a instituição máxima de algumas tribos da Nova Guiné,

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tentando abarcar, numa única pesquisa etnográfica, várias relações, talvez muito mais complexas do que concebamos ser. Por outro lado, também costumamos, principalmente na Antropologia, descartar a possibilidade de analisar o nosso Ocidente tecnologicamente sofisticado por meio de um modelo estrutural, totalizante, ―generalizante‖. Buscamos sempre fragmentar ao máximo a abrangência dos temas abordados nas relações sociais ocidentais. E isso é uma atitude prudente que tomamos porque já temos idéia da nossa própria complexidade, sabemos o quanto somos complexos. Mas, por que negar essa complexidade às outras culturas? Somente com a superação desse entrave epistemológico entenderemos que não existem sociedades ―complexas‖ ou ―simples‖, mas, sim, que há diferentes formas de vivenciar as culturas. Como diria sabiamente Roberto DaMatta (2000), toda metodologia de pesquisa e toda teoria antropológica será inválida se o cientista social não levar em conta que os nativos, e isso vale para os ―nossos nativos‖, possuem uma perspectiva própria, que seus conhecimentos produzidos são suficientes e, na maioria da vezes, satisfatórios para a construção de suas lógicas e, principalmente, de sua dignidade enquanto membros do grupo social. Fazendo uma breve apresentação da interpretação dos católicos carismáticos

sobre

suas

práticas

e

sobre

o

catolicismo,

podemos,

primeiramente, salientar o fato de que os adeptos dessa religião, na imensa maioria das vezes, sempre fizeram parte, direta ou indiretamente, do universo de relações das doutrinas católicas. São sempre estimulados e trazidos para a religião pelos próprios pais e familiares. Dificilmente os católicos fizeram parte, no passado, de outras crenças, ou passaram a freqüentar igrejas e a compartilhar rituais por conta de ―pregações‖ de padres ou de outros integrantes do catolicismo. Muito pelo contrário, é o catolicismo que, ao passar dos anos, ―perde‖ cada vez mais adeptos para as doutrinas protestantes e pentecostais em diversas cidades brasileiras. Os informantes dizem que o catolicismo perdeu a capacidade de conquistar adeptos no ―meio de suas

trajetórias de vida‖, ou seja, trazer para a doutrina pessoas já adultas com

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outra formação religiosa. Isso acontece por causa do advento do protestantismo que, no final do século passado, alcançou status de ―religião‖ e não mais de ―seita‖. Pois, segundo alguns deles, nas crenças evangélicas, cada integrante representa um sacerdote e deve ―pregar a palavra de Deus‖ às outras pessoas, principalmente àquelas que estão ―ganhas pelo mundo‖. Conforme suas próprias palavras: Para isso [para que os católicos conquistem adeptos], é preciso uma mudança na ―filosofia‖, de postura e atitude sobre o mundo, coisa que já vem sendo feita por algumas pessoas da Renovação Carismática. (Maria de Lourdes, dizimista da Igreja São Gerardo e participante do grupo de orações da Casa Deus Conosco)

Infelizmente, eu tenho que lhe dizer que os católicos estão perdendo a capacidade de conquistar as pessoas, porque a gente fica ali tudo na missa, parece que ninguém tem mais fé. As pessoas têm vergonha de andar com a Bíblia na mão. Todos nós somos missionários de Deus, não é só o padre! (Joanita Albuquerque, integrante da Legião de Maria)

Como foi dito anteriormente, nas crenças inspiradas no protestantismo, cada integrante da religião representa uma espécie de sacerdote, e, não só pode, como tem o dever de ―pregar a palavra de Deus‖ para outras pessoas, tendo o papel fundamental (isso nas seitas de origem luterana) de conversão das ―almas pecadoras‖, que são aquelas que ainda não se tornaram evangélicas e, por isso, ―não sabem a verdade‖. Já para os católicos, esse papel ficou reservado mais aos sacerdotes legítimos: padres, frades, bispos, freiras, etc. Esses, na maioria dos casos, não saem à procura de ―almas perdidas‖, mas as esperam em seus locais de fé. Assim, os fiéis católicos, historicamente, não foram incentivados a ―pregar‖ suas verdades aos outros, até por terem se acomodado com sua super-hegemonia (em quantidade de adeptos) até meados do século XX, quando então se processou efetivamente a secularização, pelo menos na teoria, do Estado brasileiro. A partir da década de 1970, a Igreja Católica foi perdendo aos poucos o poder que tinha sobre a polícia e a instituição do Estado, que, em outros momentos, facilmente se apelava no caso de suspeita de cultos e

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cerimônias indesejadas realizadas pelas chamadas ―seitas‖ em sentido pejorativo: ―macumba‖, ―bruxaria‖, ―magia negra‖. Nesses casos, a polícia estava autorizada a ―baixar o sarrafo‖. Para a grande maioria dos entrevistados, as grandes particularidades da fé católica em relação às outras doutrinas cristãs são o sacramento da Eucaristia3 e a valorização da figura de Maria, ―Nossa Senhora‖, ―a mãe de Deus‖, como uma das principais ―entidades‖ formadoras do imaginário cristão. Um dos meus principais questionamentos diz respeito às interpretações que os informantes têm em relação à ―lógica de vida‖ de um integrante da religião católica. Perguntava sempre como seria, para eles, um ―católico ideal‖. As respostas, apesar de bastante variadas, convergiam, em muitos dos casos, para o mesmo ponto: o ―dever amar as pessoas incondicionalmente‖. No segundo capítulo da dissertação, intitulado ―O Ethos Católico-Carismático‖, vou falar de modo mais esmiuçado sobre o conceito de amor segundo a concepção dos integrantes da Renovação Carismática. Para Dona Maria de Lourdes (Casa de Orações Deus Conosco), por exemplo, a ―lógica de vida‖ de um fiel da religião católica deve centrar-se, principalmente, no ―dever e querer amar‖. Para ela, a palavra ―amor‖ está se desviando atualmente do seu ―sentido original‖, que seria o de representar um sentimento mais divino, de total doação daquele que o tem e o pratica. Dessa forma, um católico ideal seria aquele que ―se doasse plenamente em suas ações sociais‖. Segundo palavras de outros informantes: Acho que o ―católico ideal‖ deve ser, principalmente muito coerente com aquilo que prega, sabe, a palavra de Deus, a mensagem de ―amor‖ que ele sempre nos lembra. Eu acho que é isso: a gente tem que fazer o que a gente prega. (Germano de Oliveira, professor de música da COT)

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Eucaristia é o sacramento em que, segundo o imaginário católico, o corpo, o sangue e a divindade de Jesus Cristo estão presentes sob as formas de pão e vinho no momento da comunhão dos fiéis com Deus.

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Um ―católico ideal‖, pra mim, deve se dedicar plenamente a uma vida religiosa, à palavra de Deus. Não existe esse negócio de ―católico praticante‖: ou é ou não é. (Josinete, participante do grupo de orações da Legião de Maria)

Um cristão deve ver como Deus vê, quer dizer, o interior, a essência das pessoas. Sempre se deve ver algo de bom nas pessoas, mesmo que aparentemente pareçam, muitas vezes, perversas. (Nazareno Teotônio, professor de música da COT)

Quando foram indagados sobre qual o principal problema social do país e da cidade de Fortaleza na atualidade, as opiniões divergiram um pouco. As respostas foram desde ―corrupção dos políticos‖, passando pela ―crescente violência no país‖, até ―a presença do homossexualismo‖; mas a grande maioria afirmou que a causa primordial desses ―problemas secundários‖ é a extrema desigualdade social que assola o Brasil há séculos. Problema, segundo eles, de difícil solução: São vários os problemas sociais na cidade e no Brasil como um todo, e são todos problemas de difícil solução. Mas, na minha opinião, todos eles: a fome, violência, a própria falta de uma fé em Deus, de uma espiritualidade maior, são o resultado da má distribuição de renda no país. (Germano de Oliveira)

Emanuel, são tantos os problemas do país, que eu não consigo nem apontar só o principal para você. Mas vamos ver... A má administração pública é um grande problema nosso, pois com a corrupção, o governo, por mais bem intencionado que ele esteja, ele não consegue acabar com a miséria do país. (Fátima Bertini, psicóloga da COT)

Com certeza, o principal problema social da nossa cidade, e também do Brasil e do mundo, são as grandes diferenças que existem por aí. Olha, a gente vive numa cidade que a miséria só faz crescer, que a fome só faz aumentar, é gente pedindo esmolas, é gente roubando, é a violência crescendo. Tudo isso é o resultado da falta de Deus no coração dos homens, mas também das diferenças entre ricos e pobres. E o pior é que eu não vejo muita solução não. Mas a gente tem que fazer a nossa parte. (Maria de Lourdes)

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Percebe-se por meio desse primeiro contato com o discurso dos informantes, quais as argumentações que podem ser trabalhadas na presente monografia, almejando relacionar, de modo dialético, as práticas filantrópicas dos grupos carismáticos e as crescentes desigualdades sociais da cidade de Fortaleza, aliando, para isso, fatores religiosos, políticos e econômicos presentes no sistema cultural da Renovação Carismática Católica (RCC) e nas representações sociais dos participantes desse movimento de transformação da Igreja. É importante salientar que o trabalho de pesquisa levantará, no decorrer dos capítulos e dos assuntos abordados, diversos questionamentos, dos quais tentarei responder da maneira mais clara possível, juntamente com o auxílio de cientistas sociais que já pensaram e problematizaram a temática. Isso não significa dizer que vou conseguir dar conta de todas essas indagações, mas o importante é tê-las, pelo menos, lançado para futuras objeções e conclusões. Percebi, através da observação participante (a técnica de pesquisa utilizada no presente estudo), que os carismáticos são normalmente benquistos dentro do catolicismo, até porque eles, de certa forma, revitalizaram dogmas católicos, como a valorização da figura de Nossa Senhora e os sacramentos da eucaristia. Além disso, os carismáticos, seguindo o exemplo dos evangélicos, buscaram aproximar as entidades divinas aos fiéis. Para eles, qualquer pessoa é apta a ―levar a mensagem de Deus, da Bíblia‖, desde que ela seja ―tocada no coração‖ pelo Espírito Santo e receba o ―dom de falar por Deus‖; pois a entidade sobrenatural que está atuando no momento, desde a ressurreição de Jesus Cristo, segundo eles, é o Espírito Santo. Dessa forma, não existe mais a absoluta necessidade da intermediação de um sacerdote legítimo, mas começa a se processar, paulatinamente, em alguns segmentos católicos, uma maior ―informalidade‖ da expressão da espiritualidade dos fiéis. Isso não quer dizer que essa informalidade na relação entre os religiosos e o divino seja uma mera conseqüência da ideologia individualista ocidental, mas, muito pelo contrário, os ritos continuam sendo realizados coletivamente. Entre os carismáticos,

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sempre é mais eficiente a oração grupal, a socialização da fé, porque nesses grupos sociais existe um forte viés identitário, constantemente afirmando e reafirmando um sentimento de pertença àquela coletividade religiosa. Além disso, ao mesmo tempo em que os carismáticos transformaram as práticas tradicionais dos católicos, tentando informalizar a expressão da ―espiritualidade‖ das pessoas, deixando-as mais próximas das entidades divinas sem precisarem constantemente da intervenção de sacerdotes legítimos, eles também estão, freqüentemente, re-afirmando valores do chamado catolicismo tradicional, como, por exemplo, o incentivo ao uso de vestimentas ―adequadas‖ ao convívio religioso, tanto para homens como para mulheres, e o incentivo ao uso de palavras e de expressões ―mais apropriadas‖ para o ambiente sagrado, sem a pronunciação dos chamados ―palavrões‖. Essa verdadeira reviravolta por que passam determinados segmentos do catolicismo é uma tentativa de aproximação às práticas dos cultos evangélicos, cuja expressividade religiosa conquista mais e mais adeptos dentro do cristianismo brasileiro, principalmente entre aqueles católicos ansiosos por uma reanimação de sua ―espiritualidade‖ e por uma livre expressão de sua fé. Apesar da Renovação Carismática estar incessantemente salientando a preponderância, abertamente hierárquica, de questões de ―ordem espiritual‖ sobre ―questões sociais‖, no primeiro Fórum Nacional da RCC, afirma-se a importância de se transformar ―a injusta realidade em que vivemos‖. Segundo os carismáticos: A opção preferencial pelos pobres não é uma opção de uma escola teológica, de uma escola de pensamento, mas enraizada na Sagrada Escritura e absolutamente assumida pelo magistério da Igreja em todos os seus níveis. [...] João Paulo II, em visita a um bairro pobre, na ocasião do encontro de Puebla disse: ―Eu desejei vivamente estar neste encontro convosco, porque me sinto solidário convosco. Porque, sendo pobres, tendes direito ao meu particular cuidado e o motivo é só esse: o papa vos ama sobretudo porque sois os prediletos de Cristo‖. Os pobres são os prediletos de Deus. [...] São Vicente de Paulo: ―Não temos de avaliar os pobres por suas vestes e sua aparência, nem pelos dotes de espírito que possam ou não ter. Na maioria das vezes são ignorantes, curtos de inteligência, rudes (e a gente pode acrescentar: insistentes, arrogantes, insaciáveis e, também, violentos). Mas se

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considerarmos à luz da fé então perceberemos que estão no lugar do Filho de Deus, que escolheu ser pobre...‖. (A Dimensão Social da RCC, 1999: 14, 15 e 17)

Podemos ver, nos três fragmentos do livro, quais são as formas de influência intelectual recebida pelos carismáticos para agirem no mundo social. A opção da Igreja Católica é pelos pobres e não pela pobreza, como atesta o luxo de sacerdotes de hierarquia superior. Em História da riqueza do homem, o economista e historiador Leo Huberman, falando sobre o domínio da Igreja no medievo, deixa claro que o sacerdote católico, ―ao mesmo tempo que suplicava e exigia ajuda dos ricos, para fazer sua caridade, tomava o maior cuidado em não sacar muito profundamente de seus próprios recursos‖ (1976: 24). Huberman observa ainda que, se a Igreja não tivesse explorado em demasia seus servos, cobrando todo o tipo de impostos e vendendo indulgências e terrenos no céu, não haveria tanta precisão de caridade. Mas, ―os pobres são os prediletos de Deus‖ e, obrigatoriamente, devem existir. Os indigentes, historicamente, sempre foram uma necessidade da Igreja. A religião católica permite, dessa forma, a existência de práticas sociais exteriores à própria instituição, como é o caso do incentivo às práticas de caridade no cotidiano das pessoas, para que, por meio dessas expressões de religiosidade, possa captar mais pessoas para o universo simbólico da crença, afirmando e re-afirmando uma identidade de valores já dispersos pelo advento de outras doutrinas e pela laicização da sociedade. O presente estudo constará de três partes: A primeira parte, ―Caridade x Solidariedade: abrindo veredas entre as palavras e as coisas‖, trata da diferenciação etimológica e científica dos termos ―caridade‖ e ―solidariedade‖ para, depois, se fazer um paralelo entre o discurso científico e as representações sociais formuladas pelo senso-comum, em especial pelos integrantes dos três grupos católicos analisados. Também tentarei trabalhar com os conceitos de altruísmo e individualismo para auferir

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argumentos sobre a ambigüidade das práticas de caridade em relação a essas duas formas de atuar e de ver as coisas. Na segunda parte, ―O Ethos Católico-Carismático: notas sobre a formação do homem de bem‖, vai ser esmiuçado o que seria o ethos católicocarismático na interpretação dos informantes (usando a conceituação weberiana), que serve de referencial para as práticas e a vivência social, em geral, dessas pessoas. Procurarei saber também em que medida esse referencial produz o ―homem samaritano‖. Aliado a esses objetivos, pretendo trabalhar ainda o conceito de homem cordial, criado por Sérgio Buarque de Holanda para explicar o fato dos brasileiros agirem mais de modo emocional, quando atuam no mundo social, do que de uma maneira pragmática, ―racional‖. Sendo assim, a referente parte do trabalho, em última instância, busca saber se existe ―cordialidade‖ ou ―praticidade‖ nas ações caritativas dos católicos carismáticos. A terceira e última parte do trabalho, ―A Relação ‗Caridoso x Carente‘ e o Sentido das Doações‖, trata de uma etnografia analítica sobre a relação entre o filantropo carismático e o carente, procurando sempre definir qual seria o sentido dessas doações e o que impulsiona as práticas de caridade entre as pessoas do grupo estudado. Serão também analisadas as representações sociais que os nativos têm sobre eles mesmos, sobre o que eles pensam, sobre o que pensam que estão pensando sobre suas ações caritativas. Em todas as três partes, evidenciar-se-á o fato de que no Brasil, como em outros países do Ocidente4 tecnologicamente sofisticado, principalmente, aqueles

onde

predominam

fortes

desigualdades

sociais,

a

caridade

(conceitualmente trabalhada por Marcel Mauss como prestações sociais totais) deixou de ser uma antiga moral da dádiva cristã, ou mesmo judaica e islâmica, para ser preconizada como um princípio de justiça social da sociedade laica. 44

Para melhor entendimento, o que chamo de “Ocidente tecnologicamente sofisticado” são as populações européias, americanas, uma parte da África e os países do Oriente que passam por um processo de “ocidentalização”, como é o caso da Austrália, que vivem sob o regime democrático-republicano no modo de produção capitalista, sobretudo aquelas que exaltam os ideais apregoados pela Revolução Francesa. Essa observação também pode ser aplicada para o uso geral da palavra “ocidental” e seus derivados em todo o texto.

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PARTE I: CARIDADE X SOLIDARIEDADE: ABRINDO VEREDAS ENTRE AS PALAVRAS E AS COISAS ―O homem é a abertura a partir da qual o tempo em geral pode reconstituir-se, a duração escoar, e as coisas, no momento que lhes é próprio, fazer seu aparecimento.‖

Michel Foucault

Como foi dito na parte introdutória da monografia, um dos principais objetivos do presente trabalho consiste em desconstruir as idéias e as práticas que cercam o fenômeno social da dádiva entre os católicos carismáticos. Esta primeira parte, de certa forma, um complemento à Introdução, procura analisar o padrão interpretativo no discurso dos informantes entrevistados nos três grupos católicos analisados e no discurso expresso nas conclusões do primeiro fórum nacional da Renovação Carismática Católica. O tema do fórum nacional abordava a ―dimensão social‖ das práticas carismáticas, interessando ao meu estudo, principalmente, as abordagens concernentes às doações benevolentes. Paralelamente ao estudo das interpretações carismáticas sobre suas próprias ações e pensamentos, no segundo capítulo, trato da questão lingüística relativa à formação e uso das palavras ―caridade‖, ―solidariedade‖ e outros termos correlatos, salientando a importância que o ato de nomear as coisas tem para a construção do conhecimento e, conseqüentemente, para a formação das representações sociais. A história das palavras traz, com efeito, o conjunto de interpretações, preconceitos e valores de uma sociedade, podendo, muitas vezes, esconder ou modificar as coisas que são nomeadas, variando-se o sentido dos vocábulos para a satisfação de diversos interesses, dos quais destaco os de ordem política. Num terceiro momento, procuro considerar as análises de autores como Émile Durkheim, Mauss e Karl Polanyi sobre como se processam relações sociais de cunho caritativo e sobre como se manifestam as organizações sociais 22

solidárias, buscando sempre relacionar a formulação de cada autor com as interpretações dos informantes e com o uso geral que as pessoas fazem das palavras ―caridade‖ e ―solidariedade‖. No capítulo quatro, abordo a questão da intencionalidade das dádivas. Apresento um estudo introdutório sobre os interesses que movem as pessoas quando estão fazendo suas oferendas. Afinal, é possível agir socialmente sem pensar que os resultados da ação possam beneficiar a si mesmo? Existe ação social sem sentido teleológico? Eventos estão apenas ali e acontecem, como diria Weber, ou um evento, uma relação social, não é somente um acontecimento no mundo; é sempre uma analogia entre um acontecimento e um dado sistema simbólico (cf. Sahlins, 1990)? Não tenho respostas prontas a tais perguntas, mas poderíamos tentar pelo menos situá-las antropologicamente, fundamentando a possibilidade de respondê-las. Traço, dessa forma, um apanhado geral do conjunto de representações sociais relacionadas às práticas de filantropia, aliando o discurso dos informantes católicos fortalezenses, a opinião geral da população leiga e os estudos de cientistas sociais sobre o assunto, abrindo veredas pelas quais podemos caminhar mais à vontade quando falarmos das coisas e das palavras que representam o fenômeno social da dádiva.

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CAPÍTULO I: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

Sabendo-se que a miséria, desde o século XIX, alastra-se na capital cearense e atualmente faz parte do semblante da cidade, a população, conseqüentemente, desenvolveu um longo processo de ―normalização‖ da presença da classe indigente. Com efeito, não temos o costume de nos horrorizar ao ver mendigos que perambulam pelas ruas, pedintes enfermos, agonizantes na sombra das calçadas, gente faminta que se engalfinha pedindo esmola nos transportes urbanos, nos terminais de ônibus, nas praças, nos ambientes públicos e privados. Enraizando-se conjuntamente com a pobreza, em meio aos pedidos, às recusas, aos constantes assaltos, encontra-se, confusa no cotidiano do fortalezense, a prática da caridade. É como se esses atos de benevolência material sempre tivessem existido e desde tempos pretéritos estivessem presentes em todos os recantos do planeta. Na medida em que as doações se repetem, o tempo encarrega-se de transformar as representações sociais da população geral, formadas a partir desse fenômeno, em verdades incontestes, em evidências naturais. Algumas representações ultrapassam o universo religioso para fazer parte do discurso secularizado das pessoas. Muitas delas estão encravadas profundamente no seio da sociedade, como as gigantescas raízes de um baobá. Na história desse valor social, nota-se a tentativa de definição do termo, relacionando-o com a idéia de sentimento de benevolência, compreensão e compaixão pelo próximo. Porém, esse sentimento não pode ser entendido apenas como um ato de sentir, ou uma sensibilidade, mas, como um conjunto de qualidades morais que constituem a ―honra‖, a ―nobreza da alma‖, a ―elevação do caráter‖, etc. Pois, a caridade não é interpretada somente através da idéia de ―bondade em potencial‖, mas também sua definição implica a práxis na materialidade das relações sociais. Assim, para que um indivíduo seja 24

considerado caridoso, não basta que ele seja católico, ou fazer parte de outra religião qualquer, ou mostrar-se potencialmente benevolente; ele deve, sobretudo, agir de maneira filantrópica ―gratuitamente5‖, ―ajudando o próximo‖, dando esmolas, etc. A caridade recebeu por meio das doutrinas cristãs (assim como no mundo islâmico) o status de virtude, e, com isso, transformou-se num dos preceitos mais valorizados em grande parte do mundo ocidental. Aclamada pela imprensa e pela mídia de entretenimento de maneira quase unânime, através de programas televisivos que arrecadam dinheiro por ―telefones de doação‖ e de documentários que elogiam exaustivamente as biografias de homens e mulheres que dedicaram (ou dedicam) seu tempo e economias às ações de benevolência material, dificilmente algum indivíduo atuante no catolicismo, atualmente, tem a coragem de levantar uma só opinião contra a caridade. Contudo, existe uma questão de fundamental importância sobre esse fato, que será mais aprofundada no decorrer de todo o trabalho: a caridade é aclamada por todos, laicos e religiosos, jornalistas e ―pessoas comuns‖, na condição de que essas práticas sociais não sejam nomeadas pelo termo ―caridade‖. O sentido valorativo somente toma fôlego quando as doações são ―revestidas‖ por outras palavras

como

―filantropia‖,

―ajuda

humanitária‖

e,

principalmente,

―solidariedade‖. É também importante observar que essas palavras de ―melhor sonoridade‖, usando a expressão de alguns membros da Casa de Orações Deus Conosco e da COT, são bem aceitas principalmente por leigos, aqueles não envolvidos pelo universo simbólico cristão. Entre os católicos, tanto o termo ―caridade‖ como ―solidariedade‖ possui status de valor social; sendo que, quando fazem a diferença entre as duas coisas, ―caridade‖ sempre está em nível

5

O sentido de “gratuito” usado aqui remete à falta de interesses explicitamente declarados. Pois, pelo menos idealmente, a caridade (tanto na sua forma cristã como na islâmica) só é caridade quando a doação, ou a ajuda, realiza-se “de graça”, desinteressadamente, sem esperar algo em troca. Adiante, será trabalhada essa questão.

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valorativo mais elevado. Porém, muitos deles não fazem sequer a distinção entre os dois fenômenos. Mais do que uma simples qualidade moral, a caridade, quando envolta pela palavra ―solidariedade‖, converteu-se numa regra de vivência adequada às condições de extrema desigualdade social do país. Considerada uma das três virtudes teológicas, juntamente com a fé e a esperança, pelo catolicismo e por outras crenças cristãs, a caridade também representa um habitus do bom católico. As doações são realizadas por meio do controle irrefletido da percepção e do preceito. Podemos até refletir sobre as implicações imediatas de causa e conseqüência desses atos, mas não procuramos imaginar o porquê de estarmos fazendo ou não a doação. No caso brasileiro, a caridade não representa somente um modus operandi de cunho pragmático; culturalmente ela está impregnada pelos desígnios da cordialidade, da manifestação de afetos, no sentido proposto por Sérgio Buarque de Holanda6. Para alguns fortalezenses, podemos perceber através da observação participante, a caridade/―solidariedade‖constitui a única forma de ―aliviar‖ os problemas sociais do Brasil, principalmente os relacionados à má distribuição de renda, já que os governos estaduais e federal (os responsáveis legítimos pelo famoso ―estado de bem estar social‖) não estão respondendo às necessidades das populações mais pobres. A caridade está transitando, assim, entre duas ―esferas sociais‖ a priori distintas: a ―esfera religiosa‖ e a ―esfera do campo político e econômico‖. Ela deixou de ser um valor estritamente religioso para fazer parte dos discursos e do

universo

simbólico

da

sociedade

laica

e

até

de

algumas

ações

governamentais que visam à participação do capital privado em projetos sociais, que, em um outro momento, eram de responsabilidade exclusiva das arrecadações estatais. Esses projetos sociais são, geralmente, de cunho assistencialista e buscam apenas remediar momentaneamente a situação

6

Sobre o tema, veremos a análise esmiuçada no sexto capítulo: “O homem de bem e o homem cordial”.

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miserável de parte da população, para com isso, manter durante os mandatos de quatro anos, uma certa ―imagem honrosa‖ nas administrações. Como já foi dito, no século XX, a prática da filantropia começa a sofrer uma espécie de crítica ambígua: por um lado, a beneficência, há tempos enraizada como valor inconteste dentro do universo das religiões cristãs, tornase aclamada também por grupos sociais da sociedade laica, líderes políticos e por intelectuais da envergadura de José Saramago. O escritor português chega a declarar, por exemplo, que três grandes regiões do Ocidente fizeram-se responsáveis em compartilhar com o mundo os ideais da Revolução Francesa: a Europa, juntamente com a Rússia, buscou resolver os problemas sociais concernentes à igualdade de direitos; a América do Norte (EUA) tentou construir um espaço social que oferecesse uma maior liberdade às pessoas; e a América Latina doa ao mundo modelos de ―convivência fraterna‖ através de um ―espírito humanitário‖, que representa o pilar da Fraternidade, alicerçado pelos ideólogos revolucionários do século XVIII. Por outro lado, as doações passaram a ser criticadas negativamente, ao longo de todo o século passado, como sendo soluções superficiais, servindo apenas para amenizar as desigualdades inerentes ao mercado, de efeito paliativo. Partidos de inspiração marxista, cientistas políticos, líderes políticos pragmáticos, analistas de estatística social e grupos esquerdistas dentro da própria Igreja Católica, como a Teologia da Libertação, não mediram esforços para legitimar a idéia de que a ―caridade pura‖ é algo maléfico à sociedade. Aos poucos, essa concepção internalizou-se no senso-comum, na opinião pública. Arraigou-se na mente das pessoas que a caridade não é e nunca foi solução para os problemas sociais brasileiros. No entanto, como veremos mais adiante, a acidez das críticas agora, na abertura do terceiro milênio, só se intensifica quando se usa a própria palavra ―caridade‖ para

nomear

as

doações

e

não

termos

como

―solidariedade‖

ou

―responsabilidade social‖. Esse bombardeio de críticas venenosas, porém, somente agride e modela a estrutura mental e as práticas sociais da parte secular da sociedade

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brasileira. Governantes, Ongs, cidadãos comuns sem grande influência religiosa, buscam evitar, ou pelo menos esconder, ações de cunho caritativo7. Entre os grupos de religiosos, principalmente aqueles de inspiração cristã (no caso brasileiro), tanto as práticas das doações, quanto a palavra ―caridade‖, continuam relativamente imaculadas. Os católicos carismáticos, ponderados no presente estudo, definem ―caridade‖ como sendo a transposição do conceito de ―amor cristão‖ para a prática mundana, a práxis social. Segundo a Bíblia, o livro sagrado dos cristãos, a caridade representa uma virtude de ―suprema excelência‖. Entendida assim, o ethos que adestra o modo de viver dos carismáticos e de outros integrantes do cristianismo, baseia-se no ideal do ―homem samaritano‖, o homem de habitus direcionado a comover-se diante de alguém que pede ajuda, impelido a ―sentirse bem‖ ao fazer doações aos necessitados. A passagem bíblica ―A parábola do bom samaritano‖ resume bem esse padrão de sentimentos que adestra o comportamento social de cristãos e pagãos de educação cristã. A parábola surge quando um ―doutor da lei‖ pergunta a Jesus o que poderia ser feito para herdar a vida eterna. Jesus responde através de alegoria dizendo que certa vez um homem de Jerusalém, ao viajar para a cidade de Jericó, fora surpreendido por ladrões que lhe levaram todos os pertences e ainda espancaram-no quase até a morte. O viajante ficou agonizando na beira da estrada, pela qual depois passaram um sacerdote, um levita e um samaritano. Os dois primeiros fizeram de conta que não viram o moribundo e seguiram caminho. O samaritano, porém, resolveu ajudá-lo de todas as maneiras possíveis. Segundo as palavras da própria Bíblia: Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele [do homem moribundo], e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre sua cavalgadura, levou para uma estalagem, e cuidou dele; e, partindo ao outro dia, 7

Como veremos adiante, o afastamento do “espírito samaritano” se estabelece com a proliferação, em fins do século passado, de termos como “solidariedade”, “cidadania” e “responsabilidade social” pelos outdoors, muros das cidades e pelas propagandas da mídia em geral. Depois, a crítica mantém-se para as ações classificadas como “caridade”.

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tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro e disse-lhes: cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu te pagarei quando voltar. Qual, pois, destes três [referindo-se ao sacerdote, ao levita e ao samaritano] te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse [o ―doutor da lei‖]: o que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: vai, e faze da mesma maneira. (Lucas 10; 33-37)

A Parábola do Bom Samaritano retrata minuciosamente como deveria comportar-se o cristão, ou qualquer pessoa, que almejasse ascender ao ―reino dos céus‖. A pergunta do ―doutor da lei‖ propõe uma troca. Ao indagar ―qual seria a coisa que poderia servir de permuta‖, ele almeja algo que corresponda ao valor de ―alcançar a vida eterna‖. O ―algo‖ seria agir conforme o samaritano citado. A figura do ―bom samaritano‖ serve, desse modo, como arquétipo, direcionando o padrão comportamental dos indivíduos ligados ao universo simbólico cristão. As metáforas extravagantes de Saulo de Tarso, por exemplo, indicam o tipo de visão que pode ser produzido a partir do pedestal no qual a caridade bíblica está elevada: A suprema excelência da caridade: ainda que eu tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse caridade nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria. A caridade é sofredora, é benigna: a caridade não é invejosa: a caridade não trata com leviandade, não se ensoberbece [...] Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta [...] Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e a caridade, estas três, mas a maior destas é a caridade. (I aos Coríntios 13; 2-13)

Vê-se, através do documento oficial do cristianismo, que lugar ocupa a caridade dentro da hierarquia de valores cristãos. Está no ápice da pirâmide de preceitos: acima das profecias, da fé, da esperança, do saber, dos mistérios da vida; talvez, porque a caridade resuma todos os outros valores bíblicos e produza, mais do que todos eles, ―homens de bem‖. A caridade que se fala nesse

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trecho dos Coríntios, contextualizando-se a terminologia da época, deve referirse principalmente a palavras como ―amor‖ e ―bondade‖; observação feita pelo próprio Mauss (1974: 66). Entretanto, essa primeira disparidade entre ―conceito original‖ e prática, não desconstrói o liame das argumentações até aqui referidas, pois o presente trabalho não pretende analisar ―discursos originais‖ e, tampouco, discutir a autenticidade do conceito de ―amor cristão‖. Busco apenas destrinchar fenômenos de ordem religiosa e sócio-econômica a partir das representações sociais e das práticas relativas à dádiva entre os católicos carismáticos na cidade de Fortaleza. De todo modo, é muito interessante para o trabalho a ―escavação‖ de uma pesquisa arqueológica das palavras e das coisas para que, com isso, possamos salientar a importância do simples ato de dizer o que as coisas representam ou o que se deve fazer com elas. Na passagem bíblica citada acima, afirma-se que ―ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse caridade, nada disso me aproveitaria‖. Evidencia-se o fato de que a caridade bíblica não se define somente pelas doações ou pelas ajudas ―sem dinheiro‖, mas aparenta ser uma coisa muito mais ampla, referindo-se ao dever de ―boa intencionalidade‖ em todas as ações humanas. A caridade bíblica representa mais uma predisposição reguladora (ethos) do ―homem de bem‖ do que os atos filantrópicos propriamente ditos. Sob influência dessa ―conceituação oficial‖ da palavra e do que quer dizer o termo ―caridade‖, os católicos dos três grupos religiosos analisados mostramse quase sempre unânimes em classificar ―caridade‖ como sendo um conjunto de sentimentos-ações relativos ao ―amor‖, ao ―amor de doação‖, o ―amor cristão‖. Para a maioria dos informantes, o verdadeiro amor é o ―amor cristão‖. Caridade, para mim, é amar; é dar algo com amor, passar o amor para outras pessoas. As pessoas são mais carentes de amor do que de materiais. Existe também esse lado social da caridade, mas, a maioria dessas doações devem ser feita pelo lado espiritual. (Manoel Roberto, coordenador do Projeto São Francisco da COT)

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Eu acho que a caridade significa, antes de tudo, em amar. Amar as pessoas deve vir primeiro do que as práticas das doações. (Maria de Lourdes)

A primeira palavra que me vem na cabeça quando eu digo caridade é ―bondade‖, é ―solidariedade‖, é fazer por alguém sem pensar num retorno; é fazer para ajudar. Mas, essa é uma concepção muito romântica. A caridade verdadeira é a que possibilita a autonomia do indivíduo. Como aqui na COT nós fazemos. Enquanto Igreja, enquanto comunidade católica, nós tentamos autonomizar as pessoas para que elas possam ser sujeitos de sua história. (Fátima Bertini)

Caridade é amar ao próximo, é doação, é olhar, se preocupar com o outro, em todos os níveis. Um sentimento que vem de Deus. (Amanda Duarte, coordenadora do Projeto Nova Juventude da COT)

A caridade é o amor pleno, de generosidade ao próximo; um amor de doação de amor, é isso. É o próprio amor. (Joanita Albuquerque)

A fala dos cinco informantes acima parece levar sempre à mesma interpretação: o ideal de virtude, de ―suprema excelência‖ da caridade, apregoado pela Bíblia, acabou influenciando a maneira como os fiéis concebem e caracterizam o fenômeno social. A caridade para todos os cinco, e isso pode ser ampliado para quase todos entrevistados, se resume na palavra ―amor‖, em sua conotação cristã. O ―amor cristão‖, assim como a concepção platônica (ressaltando-se a idéia de que na visão grega o amor8 poderia implicar relações particulares), representa um sentimento teoricamente altruísta, ou seja, sem interesse. Ama-se porque se deseja o bem de quem se ama (no caso cristão, a coletividade humana), mesmo que essa pessoa amada não corresponda ao amor, ou não goste, ou mesmo abomine a pessoa que o ama.

8

Platão, O banquete, p. 13 – 43. O sentido da palavra “amor” para os filósofos gregos da época de Sócrates era usado predominantemente para relações privativas, sendo experiência relacional de uma ou mais pessoas, mas, geralmente, não se aplicava a interesses coletivos, ao bem público. Nessa obra de Platão, vários pensadores discursam apologias ao amor. São infindas as conotações apontadas por Fedro, Acusilau, Pausânias, Aristófanes, Sócrates, dentre outros, sobre os diferentes tipos de amor e formas de amar: amor de Afrodite (amor sensual), amor mórbido, saudável, de pai, de irmão, temperante, são alguns exemplos.

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O amor, na forma cristianizada, representa um amor incondicional e, diferentemente do sentimento manifesto nos conflitos shakespeareanos, não implica em uma necessidade de posse da pessoa amada, que é tratada como objeto do desejo. Em William Shakespeare, a relação entre os indivíduos consiste em uma troca onde o ―gostar de alguém‖ em particular é o padrão de emoção idealizado. Nesse caso, gosta-se de alguém porque esse alguém é ―especial‖ em relação a todos os outros e, por isso, ele é passível de ser amado. Além disso, a pessoa amada torna-se o objeto de desejo particular do amante e esse sentimento de posse acaba por gerar ciúmes, intrigas, ou a idéia de que, irremediavelmente, o amante e o amado têm algum tipo de ―afinidade espiritual‖, ―nasceram um para o outro‖. Hoje em dia, costuma-se classificar o padrão de sentimento shakespeareano por meio da palavra ―paixão‖ e, geralmente, passa-se a usar o termo ―amor‖ para sensações mais ―puras‖ e ―duradouras‖, sem interesses explícitos, do qual habituamo-nos a indicar o tipo cristão como melhor exemplo. A forma ideal cristã que modela o conceito de ―amor‖ alcança, assim, um patamar hierarquicamente superior em relação a outras formas de amar, como é o caso da conotação que Shakespeare representa para o sentimento. E é nesse sentido de ser interpretado como algo superior, ―mais puro‖ e ―menos passageiro‖, que a informante Maria de Lourdes, ministra de orações da Casa Deus Conosco, afirma que a ―lógica de vida‖ de um fiel da religião católica deve estar centrada, principalmente, no dever e no querer amar. Para ela, a palavra ―amor‖ está se desviando (desvirtuando) atualmente do seu ―sentido original‖, ou seja, o de ser ―um sentimento mais divino‖ (como vimos, a entrevistada Amanda Duarte, da COT, fala de ―um sentimento que vem de Deus‖) e de total doação daquele que o tem e o pratica. Sendo um ―sentimento divino‖, o amar as pessoas ―deve vir primeiro do que as práticas das doações‖, pois não consiste em regra de homens; é uma regra proclamada pelos deuses. Além disso, para o caso da dádiva entre os cristãos, o sentimento de amar o próximo funciona como um juízo apriorístico para a práxis social; pois, como já foi dito no início do capítulo,

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a benevolência material não pode ser interpretada somente por meio da noção bíblica de ―amor de doação‖ ou ―bondade em potencial‖, mas também sua definição implica em ações propriamente materiais, ou seja, em doações de produtos diversos: roupas, alimentos, remédios; assim como também se refere à ação de cuidar de alguém enfraquecido por uma enfermidade, ou à ação de sarar uma ferida de um leproso, por exemplo. Desde os tempos da Grécia antiga, e muito provavelmente, em épocas mais remotas, os ocidentais vêm construindo concepções do que seja o ―amor‖ e de como ele deve ser sentido e posto em prática. Acusilau, em seu entusiasmado elogio do amor n‘O banquete de Platão, fala dos muitos bens resultantes da capacidade de amar porque o amor é um sentimento representado por um dos deuses mais antigos e mais sábios do mundo: ―aquilo que, com efeito, deve dirigir toda a vida dos homens, dos que estão prontos a vivê-la nobremente, eis o que nem a estirpe pode incutir tão bem, nem as honras, nem a riqueza, nem nada mais, como o amor‖ (2002: 13). Numa outra passagem do livro, encontramos uma provável influência para a idéia do sacrifício no amor cristão: ―E quanto a morrer por outro, só o consentem os que amam, não apenas os homens, mas também as mulheres‖ (2002: 13). Ou ainda, na fala de Pausânias: É, com efeito, norma entre nós que, assim como para os amantes, quando um deles se presta a qualquer servidão ao amado, não é isso adulação nem um ato censurável, do mesmo modo também só outra única servidão voluntária resta, não sujeita a censura: a que se aceita pela virtude. Na verdade, estabeleceu-se entre nós que, se alguém quer servir a um outro por julgar que por ele se tornará melhor, ou em sabedoria ou em qualquer outra espécie de virtude, também esta voluntária servidão não é feia, nem é uma adulação. (Platão, 2002: 18)

Agatão, na sua fala, ao contrário de Acusilau, elogia o amor por ser o ―mais novo dos deuses‖ e, por isso, aqueles que o experimentam são mais

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felizes. Interpretado como novo ou velho, de todo modo, o amor era visto quase sempre como uma coisa bela pela filosofia antiga grega. Em sua apologética, Sócrates, usando sempre da virtude que mais lhe agradava, a temperança, lançou argumentos através do uso de uma retrospectiva de diálogos que tivera com Diotima, uma sofista. Ele pergunta, por exemplo, quem teria sido o pai e mãe do Amor. Ela responde: Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso embriagado com o néctar ─ pois vinho ainda não havia ─ penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deitase ao seu lado e pronto concebe o Amor. [...] E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente, ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão... (Idem, p. 35)

É bem interessante o arquétipo de moralidade que é recontado através dos tempos por essa pequena estória da mitologia grega no texto de Platão. Primeiro, porque o trecho começa a desconstruir grande parte da exacerbada apologia feita pelos filósofos que antecederam o discurso socrático, que colocavam o amor como virtude máxima e imaculada. Não sejamos, porém, iludidos. Sócrates não deixa de usar toda a manipulação de argumentos para também distribuir louvores ao amor; porém, ele trata primeiro de ―humanizálo‖, no sentido de ―tentar colocá-lo no seu devido lugar‖, mostrando seus ―defeitos‖, mesmo que isso seja feito por meio de contos mitológicos como o citado acima. Com efeito, o amor, em Sócrates (ele concorda com a sofista

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Diotima), deixa de ser perfeito e belo para tornar-se ―duro‖, ―pobre‖, ―sem lar‖. Em segundo lugar, esse conto traz a fantasiosa origem do Amor (com certeza, baseada em aspectos de experiências reais), que surge da união entre o Recurso e a Pobreza. Ora, o ―amor cristão‖, idealmente altruísta, opera-se também dessa forma, através da caridade ligando ―quem tem algo a oferecer‖ a ―quem não tem recursos‖. Como veremos no terceiro capítulo, as práticas de caridade somente se realizam em contextos sociais com diferenciações entre classes abastadas e classes pobres, entre o Recurso e a Pobreza. Assim, o amor já nasce, na mitologia grega, ao lado da caridade, sendo representado pela fórmula ―amor de doação‖, depois presente na parábola do Bom Samaritano9. Em último lugar, é interessante saber que Sócrates, ao ―humanizar‖ o amor, não estava degradando-o. A pobreza (mãe) e o recurso (pai), por estarem atrelados ao ―deus do amor‖ (filho), foram transformados em virtudes, ou pelo menos, em ―coisas não-maléficas‖10. O mito de Diotima, uma transposição da estrutura social dos homens para o mundo dos deuses, legitima a existência de ricos e pobres (pois, até no plano divino, indivíduos ―com recurso‖ e ―sem recurso‖ estão presentes), concebendo a existência de um vínculo (filial) entre eles por meio do amor. Na maior parte dos grupos cristãos, a concepção fatalista sobre a existência das desigualdades sociais no mundo pode ser justificada por meio da ótica agostiniana da predestinação pela fé11. Assim, segundo tal concepção, algumas

pessoas

vivem

na

miséria

porque

somente

―passando

por

necessidades‖ elas alcançariam o reino dos céus. E, da mesma maneira, outras pessoas podem usufruir bens materiais porque Deus sabe e determina que 9

Na segunda parte, “O ethos católico-carismático: notas sobre a formação do „homem de bem‟”, analisaremos o processo de transformação do ideal semita de justiça, apropriado pela doutrina maometana e pelo cristianismo, tornando-se práticas de esmola, conforme análise maussiana. 10 Da mesma forma, o cristianismo passou a encarar o sacrifício e a resignação como virtudes humanas. 11 Veremos essa argumentação de modo mais detalhado na terceira parte: “A relação caridoso x carente e o sentido das doações”. Seria prudente, porém, lembrar que tanto a filosofia da predestinação de Santo Agostinho, quanto a idéia do “livre arbítrio” disseminada pelo tomismo desde o medievo, figuram de maneira bem presente no imaginário católico e cristão em geral (capítulo II) sem que, por isso, entrem em contradição, como observaremos melhor nas citações dos informantes.

35

assim o seja; para que elas façam a devida caridade e conquistem a salvação. Pois, o deus dos cristãos sabe da índole de cada um dos seus súditos, distribuindo riquezas aos naturalmente generosos e permitindo a pobreza dos naturalmente avarentos. A idéia de que aqueles que doam parte de suas riquezas têm a gratidão dos deuses não representa um fenômeno presente estritamente no imaginário cristão. Ao discursar sobre a dádiva presente entre os esquimós do Alaska, Mauss observa: As trocas de presentes entre os homens, homônimos, ―name-sakes‖ de espíritos, incitam os espíritos dos mortos, os deuses, as coisas, os animais e a natureza a serem ―generosos para com eles‖. A troca de presentes produz abundância de riquezas — explicam. (Mauss,1974: 60)

Mesmo que a caridade não seja uma autêntica troca material, no sentido aplicado acima por Mauss, a ação de desfazer-se de parte da propriedade privada para doá-la a pessoas carentes não deixa de ser também uma forma de investimento. Os filantropos doam na certeza de uma retribuição divina. A desigualdade de riquezas entre os homens representa algo divino na medida em que funciona como uma espécie de mola propulsora do amor cristão. ―Homens de bem‖ são produzidos em grande escala, dada a condição de que existem grupos de homens apresentando necessidade de vários bens (materiais e simbólicos), principalmente básicos, e na medida em que, paralelamente, existem instituições sociais pressionando os grupos de nível social superior a agirem filantropicamente. A relação intrínseca entre a dádiva, os espíritos e os deuses, evidencia-se ainda mais quando observamos o fato de que a caridade idealizada pelos carismáticos deve ser feita, sobretudo, ―pelo lado espiritual‖, como defende o informante Manoel Roberto, da COT. Da mesma forma que o amor cristão é considerado sentimento superior às ―paixões mundanas‖, o lado espiritual ganha, na interpretação da Renovação Carismática, um status mais elevado do

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que o ―mero materialismo do lado social‖. ―Não adianta dar só o pão, se o espírito está necessitando de Deus‖: tal afirmação representa um dos principais jargões entre os participantes da Deus Conosco, da COT e da Legião de Maria. Percebe-se a desvalorização dos carismáticos em relação às ajudas puramente materiais quando, por exemplo, aplica-se o termo ―solidariedade‖ pejorativamente

para

designá-las.

A

informante

Amanda

Duarte,

da

Comunidade Católica Obreiros da Tardinha, ao ser indagada sobre qual a primeira coisa que pensava ao ouvir a palavra ―caridade‖, fala que ―caridade é amar o próximo, é doação, é olhar, se preocupar com o outro, em todos os níveis. Um sentimento que vem de Deus‖. Mas, quando peço para fazer a diferenciação entre ―caridade‖ e ―solidariedade‖, diz que a última representava somente ―as práticas de filantropia material, as doações de alimentos, roupas, etc‖. O informante Nazareno Teotônio, também dos Obreiros da Tardinha, assume a mesma postura pejorativa em relação à palavra ―solidariedade‖, quando afirma que a caridade diferencia-se das ―práticas de solidariedade‖ na medida em que a primeira deve ser ―doação de amor‖, sem que essa ação venha a público. Entendida assim, a solidariedade representa uma forma de sociabilização incompleta, já que seu conceito não traduziria a melhor solução para os ―problemas dos homens‖ (solução por meio da fé). Além disso, vínculos solidários são menosprezados pelo imaginário pentecostal católico, por serem consideradas dádivas movidas por interesses particulares. Como já foi dito no início do capítulo, a caridade, dentro do círculo religioso cristão, continua protegida das críticas ao assistencialismo e, de certo modo, consiste em um sentimento-ação hierarquicamente superior às representações produzidas a partir do vocábulo ―solidariedade‖. Essa valorização das questões espirituais da Renovação Carismática, do ―ter fé pela própria fé‖, não indica, porém, um total abandono de discursos voltados para os problemas de ordem material. Quando indagados sobre quais os problemas sociais eles consideravam os mais agravantes do país, os informantes dos três grupos analisados apontavam, geralmente, ―questões

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sociais‖ (fome, miséria, violência, desemprego e os diversos tipos de exclusão social) como fontes causadoras ou conseqüências do subdesenvolvimento nacional e não, ao contrário do que se poderia imaginar, a ―falta de Deus no coração dos homens‖ ou a ―ausência de fé, amor e bondade‖ (ver p. 10 da Introdução). Mas, o que de fato torna-se cada vez mais evidente é a tentativa dos carismáticos de acoplar o ―lado espiritual‖ ao ―lado social‖ como sendo a ―mais sensata solução‖ para resolver os graves problemas sociais do Brasil. É muito difícil separar a fé do próprio homem. Se o meu irmão não está bem, como eu vou estar bem com Deus? O incentivo a uma prática voltada para as ―questões sociais‖ ou para a fé individual vai depender da fidelidade ideológica do sacerdote. (Nazareno Teotônio)

Levanto, pois, a questão: o(a) senhor(a) percebe, quando freqüenta as missas ou os encontros religiosos, discursos que estimulem atitudes voltadas para as ―questões sociais‖ como desemprego, fome, violência, miséria, desigualdades sociais, etc; ou o(a) senhor(a) nota que o catolicismo, atualmente, está mais ligado aos próprios dogmas cristãos, espirituais, de ―ter fé pela própria fé‖? Vejamos duas opiniões acerca do questionamento. Percebo sim. Muitas vezes eles [os padres] tocam no assunto das ―questões sociais‖. Sempre eu vejo eles falando dessas coisas nos sermões feitos depois da leitura da palavra. Existe uma preocupação muito grande da Igreja, principalmente por parte dos carismáticos, com relação aos problemas sociais do país como desemprego, fome e violência. (Maria de Lourdes)

Eu acho que o catolicismo, ele é diversidade de orientações e de modos de entender o sentido da religião. No Brasil, aconteceu o colonialismo, o catolicismo imposto. Mas, a questão do assistencialismo é uma questão que não vem diretamente do catolicismo. Paralelamente ao catolicismo, aliada a uma orientação econômica, de dependência colonial, foram desenvolvidos modos de resolver as questões sociais sem querer resolvêlas na raiz. E ai, o desdobramento disso é uma ação assistencialista. Isso é uma coisa histórica dentro do Brasil e dentro de nossa Igreja também. Agora, como eu dizia, existe uma diversidade de modos de entender o catolicismo. Dentro da Igreja, existem vários movimentos. Na década de 1980 foi o auge; apareceu a Teologia da Libertação [...] Martin Baró; ele

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usou a Teologia da Libertação, das teorias da psicologia sócio-histórica para transformar a realidade. Então, o modo como ele entendeu a questão social dentro da Igreja fez com que ele atuasse de forma diferente numa perspectiva de transformação social. (Fátima Bertini)

O discurso da informante Fátima Bertini, da COT, graduada em psicologia, é importante por representar uma voz crítica dentro da Renovação Carismática. Serve para nos lembrar que mesmo dentro de movimentos relativamente coesos como os grupos pentecostais, podem existir diferentes perspectivas

e

interpretações

singulares

sobre

diversos

assuntos.

A

Antropologia representa uma ciência inovadora justamente pelo fato de desacreditar a soberania do ―eu penso‖ para abrir reflexão às possibilidades de outros pensamentos. Pois, com efeito, ao analisar os grupos humanos, precisamos sempre salientar a importância das variantes idiossincráticas dos sistemas culturais. Fazendo um discurso quase apologético às práticas sociais da Teologia da Libertação, Fátima Bertini assume um posicionamento autocrítico em relação ao padrão comportamental dos carismáticos. Já a publicação A dimensão social da RCC, de certa forma representando o discurso oficial carismático, revela vários pontos de incongruência entre a visão da Renovação Carismática e a visão dos teólogos da libertação, assentados na Conferência de Puebla de 1984. O oitavo capítulo do livro, intitulado ―A promoção humana – dimensão privilegiada da evangelização‖ consiste em uma ácida crítica às ―ações políticas deficientes‖ da Teologia da Libertação, escrita pelo padre João Carlos Almeida, de Taubaté (SP). Cito, agora, uma parte dos argumentos do padre, por entender que assim o fazendo, estarei também delineando as representações sociais da RCC, sobre o que eles pensam que estão pensando. Veio a Conferência de Puebla. Entre Medellín e Puebla foi o período de ouro da Teologia da Libertação, das CEB‘s e o período nascente da RCC, tímida, com medo de colocar o nome carismático nos grupos. Acusada pelos atuantes da Teologia da Libertação, com medo de os EUA desarticularem a ação libertadora

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latino-americana, de serem ―demônios‖ que descem do norte. Os próprios teólogos da libertação perceberam depois que não era assim e que precisavam estudar a questão com mais seriedade. [...] Ultimamente nós descobrimos que o pentecostalismo norte-americano, a RCC não nasceu no meio dos ricos, mas entre os pobres e os negros batistas. O pentecostalismo é expressão do pobre. [...] Puebla, e depois Santo Domingo, coloca um fundamento mais profundo do que a libertação, que é a comunhão. Puebla fala de comunhão e de participação, resgata o sinônimo de salvação que Lumem Gentium havia apontado no Concílio Vaticano II12: salvação é comunhão dos homens com Deus e dos homens entre si. Gutierrez13 diz isso nos livros da Teologia da Libertação. Mais profundo que o instrumental semântico da libertação é o instrumental teológico da comunhão. (A Dimensão Social da RCC, 1999: 105 – 107)

Sem querer adentrar no interesse político-ideológico explícito na citação acima, podemos observar, contudo, o elevado grau de animosidade alcançado, em fins do século XX, entre o pensamento esquerdista da Teologia da Libertação e o conservadorismo disfarçado da Renovação Carismática. Como

procurei

mostrar

na

parte

introdutória

do

trabalho,

os

carismáticos não surgiram para revolucionar antigos dogmas católicos, mas para

pintar

com

cores

mais

vistosas

práticas



empoeiradas

pela

implacabilidade da história do cristianismo ecumênico. Paralelamente às transformações suscitadas pelos carismáticos na relação entre fiel e sacerdote, que deixou de ser algo intransponível (revelando um lento processo de ―informalização‖

da

expressão

da



e,

conseqüentemente,

gerando

independência dos participantes leigos em relação aos profissionais da religião), a RCC procura também revitalizar os preceitos tradicionais do catolicismo apostólico romano como, por exemplo, estimulando o uso de expressões e

12

O Concílio Vaticano II foi um conjunto de encontros realizados pela Igreja Católica, com os bispos de todo o mundo, entre 1962 e 1965 em diversas sessões na cidade do Vaticano. O concílio foi convocado pelo Papa João XXIII e encerrado pelo Papa Paulo VI. O objetivo desses encontros era repensar as práticas da Igreja, em várias áreas de atuação, objetivando modernizar a religião católica para se adequar ao mundo que se transformava intensamente no século XX. 13 Gustavo Gutierrez é o mentor político e intelectual da Teologia da Libertação. Sacerdote peruano, organizou diversas conferências em 1968, na cidade de Chimbote, na qual abria caminhos para o surgimento do movimento social e religioso dos teólogos da libertação. A teologia latino-americana veio propor a quebra do ideal de imparcialidade da Igreja frente às questões sociais, colocando o cristianismo na vanguarda dos movimentos políticos de esquerda, procurando lutar pela transformação das sociedades subdesenvolvidas em um ambiente social mais justo.

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palavras ―mais apropriadas‖ ao convívio religioso ou propagando o costume de rezar mais ave-marias do que pai-nossos. A Renovação Carismática, muito mais do que concorrer com o Protestantismo em uma disputa por ovelhas, almeja reconquistar os católicos para dentro do catolicismo. Consiste numa tentativa desesperada de adiar o processo de diminuição dos católicos; já que, desde a perda do poder total sobre o Estado e sobre os aparelhos policiais, a Igreja não dispôs mais de instrumentos eficazes para doutrinar adeptos no ―meio de suas trajetórias de vida‖, ou seja, conquistar pessoas adultas que fazem parte de outras religiões, indivíduos agnósticos ou ateus. Na citação do livro A dimensão social da RCC, padre João Carlos afirma que o pentecostalismo é ―expressão do pobre‖ e, conseqüentemente, as práticas sociais dos adeptos da Renovação Carismática devem estar também direcionadas para os anseios dos grupos indigentes. No final da Introdução, observamos, através da leitura do trecho do capítulo ―A opção preferencial pelos pobres‖, das Conclusões do 1˚ Fórum Nacional da RCC, que a Igreja Católica, preocupada com a ascensão da Teologia da Libertação, decidiu engajar-se mais intensamente na luta contra os bolsões de miséria presentes em todo o mundo. Contudo, como afirmei na oportunidade, os indigentes, historicamente, sempre representaram o foco de atenção da Igreja. Os aparelhos policiais postos ao lado da Igreja, desde que o bispo de Roma passou a ser chamado de papa, passando pela época das grandes Cruzadas do medievo, funcionaram de modo mais eficaz quando empreenderam o adestramento dos grandes contingentes de pobreza aglomerados pelo planeta. Quando a Conferência de Puebla decidiu-se por transferir o instrumental teleológico da palavra ―libertação‖, usada pelos líderes da Teologia da Libertação, para, então, se apropriar da idéia de ―comunhão‖, estava restituindo o ideal conservador das práticas católicas. O objetivo final de cada cristão, que é a salvação (passagem para a vida eterna), deixou de basear-se na luta pela libertação ―terrena‖ das mazelas das classes miseráveis, através de

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um engajamento político aos moldes da esquerda revolucionária, para direcionar-se à antiga moral cristã de repartir as coisas entre ricos e pobres, sem, contudo, alterar a estrutura de má distribuição de renda da sociedade, já que, segundo a mitologia cristã (como veremos na terceira parte), Deus organizou os grupos humanos de maneira desigual para que assim, conforme sua sabedoria, pudessem ser salvas as duas fatias do bolo. Quando a informante Josinete, integrante das legionárias de Maria, do bairro São Gerardo, assevera que ―só nas pessoas carentes podemos servir a Jesus, só nelas nós conseguimos mostrar nosso verdadeiro e essencial amor‖, ela apenas está transportando um discurso que vem sendo propagado pelo grupo sacerdotal católico desde o Concílio Vaticano II. O ―verdadeiro e essencial amor‖ de que fala Josinete consiste no ―amor de doação‖, o padrão sentimental que funciona como um juízo apriorístico para a práxis social do ―homem de bem‖. O padrão sentimental estruturado pela fórmula ―amor de doação‖ direciona o modo de sentir e agir dos carismáticos (e da maior parte dos cristãos) e acaba por produzir o hábito de dar esmolas. Vemos, pelas argumentações seguidas até o presente momento, que a caridade representa, tanto no sistema interpretativo dos fiéis católicos, como no discurso oficial dos intelectuais da RCC, a concepção de ―amor cristão‖ e de ―bondade em potencial‖ somada à conotação implícita de representar uma tentativa de sanar, de alguma maneira, as desigualdades sociais presentes no ―mundo dos homens‖. Resumindo,

nós

podemos

dizer

que

existem

basicamente

duas

representações sociais já estabelecidas e arraigadas no senso-comum sobre as práticas de caridade: primeiramente, elas são vistas como um modelo de conduta social resultante de uma das maiores virtudes doutrinadas pelo Deus cristão: o ―sentimento inerente‖ ao ser humano de ―amar o próximo‖ (observando a conotação tomada pela palavra ―amor‖ no universo simbólico cristão). Assim, um indivíduo que não praticar atos de benevolência, na visão dos católicos carismáticos, estará até fugindo dos seus próprios ―instintos‖. No

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campo secular, em alguns dicionários, por exemplo, encontra-se como antônimo de ―caridade‖ a palavra ―desumanidade‖. E, num segundo plano, a caridade representa uma solução político-administrativa14 objetivando, pelo menos, amenizar a extrema desigualdade social dos países subdesenvolvidos, ou como querem alguns, ―países em via de desenvolvimento‖.

14

Observação: a caridade representa uma solução político-administrativa do final do século XX e início do século XXI, desde que, inserida na práxis social laica, esteja transvasada pelo termo “solidariedade”.

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CAPÍTULO II: ENTRE AS PALAVRAS E AS COISAS

Tendo estabelecido as duas principais, mas não as únicas, representações sociais acerca da dádiva entre os três grupos católicos analisados e sabendo-se das conclusões iniciais do primeiro fórum nacional da Renovação Carismática, pretendo agora me arriscar em campos do conhecimento um tanto estranhos, mas que deveriam ser bem mais familiares, às Ciências Sociais. Estou me referindo à Lingüística e à Etimologia. Essas duas ciências, com efeito, podem e devem servir de apoio a muitas análises sociológicas e antropológicas, uma vez que, de certa maneira, nossos pesquisadores geralmente trabalham com representações sociais, com estudos sobre a visão de mundo de grupos sociais, de sociedades não-ocidentais, desconstruindo sistemas interpretativos de diferentes culturas do planeta. Muitas vezes, esquecem-se, porém, que somente podem ter acesso à visão de mundo que explica o modo de vida dos grupos sociais por meio das suas linguagens: falada, escrita, gestual, artística, etc. A linguagem e o modo como as culturas engendram os idiomas consiste em um importante instrumento empírico para a pesquisa na área das Ciências Sociais, principalmente aos estudos referentes à análise do discurso. Além da interdisciplinaridade sempre bem-vinda com áreas afins, como a Lingüística e a Etimologia, procuro também me debruçar sobre o trabalho de teor arqueológico-filosófico de Michel Foucault, intitulado As palavras e as

coisas. Esse denso estudo traz, com genialidade, a constatação de que a forma pelo qual o homem ocidental pensa as coisas que o cerca, inclusive ele próprio, e os resultados conclusivos que toma como verdade sobre tais coisas, geralmente expostos ao universalismo, é conseqüência do tipo de injunções que ele faz com as palavras colocadas à sua disposição. Assim, pensar por meio das

semelhanças que existem entre as coisas, como faziam os intelectuais do século XVI, produz um tipo de pensamento diverso daquele cujo método de injunções

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das palavras implica a identidade, as diferenças, entre as coisas. Do mesmo modo, nomear, classificar ou usar noções como ―estrutura‖, ―taxionomia‖, ―função‖ ou ―representação‖ condiciona o conteúdo do conhecimento dos homens. De fato, os seres humanos já nascem presos às teias sociais e semânticas confeccionadas pelo acúmulo de conhecimento dos seus ancestrais e pela forma com que relacionam as palavras e a realidade. Somos livres somente na medida do espaço em que podemos nos mover nesse emaranhado de relações construídas e reproduzidas por nossa história. Foucault constata no prefácio de

As palavras e as coisas: Os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar. (Foucault, 1995: 10)

Além de prescindir de uma enorme aparelhagem biofísica, as linguagens humanas representam, acima de tudo, um fato social porque classificam de um modo ou de outro os sujeitos que a expressam. As próprias línguas retratam muito da vivência e dos hábitos de um povo. A maneira de se comunicar oralmente indica, muitas vezes, onde a pessoa trabalha, de onde ela veio, de que classe social é, se ela está nervosa, é ou está tímida, agressiva, e muitas outras coisas. Com efeito, as linguagens são culturalmente produzidas e acabam por indicar o tipo de sociabilização de um povo. Como afirma a lingüista Margarida Petter: Como realidade material – organização de sons, palavras, frases – a linguagem é relativamente autônoma; como expressão de emoções, idéias, propósitos, no entanto, ela é orientada pela ―visão de mundo‖,

45

pelas injunções da realidade social, histórica e cultural de seu falante. (Petter, 2002: 11)

No século XVI, pensadores como P. Ramus e Claude Duret, analisavam a linguagem humana não como um sistema arbitrário, mas como se ela estivesse incrustada nas próprias coisas. O mundo do fim da Idade Média, ao mesmo tempo, escondia e manifestava seu enigma através dos vocábulos porque as palavras se propunham aos homens como coisas a decifrar (cf. Foucault, 1995). Um conjunto de palavras confusas no emaranhado de coisas e de informações do século XXI, também parece reclamar a necessidade de serem ―decifradas‖ por estarem envolvidas por múltiplos interesses. Refiro-me ao grupo de designações relacionadas às ações filantrópicas. ―Caridade‖, ―Solidariedade‖, ―Ajuda humanitária‖, ―Responsabilidade Social‖ representam palavras e expressões que sugerem querer dizer a mesma coisa, mas, se olharmos com um pouco mais de atenção, seu uso vai depender do contexto social e da intenção com que são pronunciadas, podendo ter ou não o mesmo sentido, entrar e sair de moda e estarem ou não na estante onde a sociedade guarda seus mais estimados valores. Neste capítulo, analiso somente as implicações e as representações sociais formadas a partir das palavras ―caridade‖ e ―solidariedade‖, para que, então, possamos começar a situar a posição que as práticas das doações, com e sem reciprocidade material, ocupam no arcabouço de preocupações sociais dos três grupos católicos analisados. A problematização sociolingüística que aqui pretendo desenvolver já foi primariamente esmiuçada no início do trabalho. Como disse anteriormente, a caridade se tornou, através da ótica cristã, um valor social; transformando-se, assim, em uma virtude de grande prestígio na maior parte do mundo ocidental. Passou a ser proclamada como algo importante também pela parte laica da sociedade. Por meio da imprensa em geral, ganhou status de prática social inconteste. Proliferaram os programas de televisão que mostram pessoas

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carentes sendo auxiliadas financeiramente por grandes empresários, artistas com grande poder aquisitivo. Foram também produzidos programas televisivos destinados somente à prática da filantropia, que são rodados uma vez por ano, como é o caso do Teleton (organizado por várias corporações midiáticas e franqueado para ter divulgação em todos os canais abertos) e do Criança Esperança, um grande empreendimento beneficente organizado pela Unicef e de marketing exclusivo da Rede Globo. Todos eles foram formatados para que o público telespectador pudesse fazer doações através de telefonemas, ou da transferência de dinheiro por meio de conta corrente. No entanto, o mais interessante é que as práticas de filantropia são aclamadas por todos, laicos e religiosos, jornalistas e ―pessoas comuns‖, na condição de que essas ações sociais estejam sob a designação de ―solidariedade‖, ―ajuda humanitária‖, ou mesmo ―responsabilidade social‖. No universo interpretativo cristão, porém, a palavra ―caridade‖ ainda mantém a áurea de algo imaculado e representa um valor religioso e social superior ao sentido proposto para o termo ―solidariedade‖, como já demonstrei através das citações dos informantes da Legião de Maria, da COT e da Deus Conosco. Ao que parece, em algum momento do entremeado dos séculos XVIII e XIX, após as fervorosas críticas que essas práticas filantrópicas receberam (de intelectuais geralmente), o termo ―caridade‖ passou a ser tratado de forma pejorativa por segmentos sociais não abarcados diretamente pelo imaginário cristão e mesmo por grupos dentro do catolicismo, como é o caso da Teologia da Libertação. O mais importante, contudo, é que, ao baixar a poeira das primeiras críticas às ―ações de cunho assistencialista‖ (como foram então chamadas), apenas a palavra ―caridade‖ ficou sendo motivo de troça dentro de meios intelectuais e mesmo no centro dos debates de opinião na imprensa e no público geral. No entanto, apesar da crítica negativa, essas práticas filantrópicas não se extinguiram e até intensificaram-se em alguns casos (o aumento das doações

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dentro da mídia televisiva: Criança Esperança, Teleton, já mencionados, entre outros). Pelo exposto nos parágrafos anteriores, poder-se-á afirmar que a desaprovação dessas práticas filantrópicas se dissolveu diante de uma poderosa, ―incontestável‖ e valorosa palavra: ―solidariedade‖. Mesmo que o que agora denominamos ―solidariedade‖ seja nada mais e nada menos do que as velhas práticas assistencialistas, que outrora recebera a classificação de práticas de ―caridade‖; antes sendo o termo bastante aplaudido e agora sendo vaiado por intelectuais, jornalistas e pelo público em geral, exceto por aqueles efetivamente engajados em religiões cristianizadas. A questão que se propõe no momento, e que, ao mesmo tempo, mostra-se mais complexa e instigante, consiste em saber: por que nos meios de comunicação de massa em geral e entre as conversas diárias do senso-comum, costuma-se desaprovar as práticas de caridade material quando essas são denominadas de ―caridade‖ ou de ―assistencialismo‖? Por que o mesmo tipo de prática filantrópica, estando envolta pela palavra ―solidariedade‖, não é mais submetida a uma avaliação negativa da sociedade? Tal questionamento permitirá uma melhor apreciação do fenômeno social da dádiva em geral, além de sugerir um dos fatores que contribuem para que as práticas de caridade continuem a se reproduzir em nossa sociedade ao longo do tempo. Como veremos mais adiante, o fato de que as mesmas ações sociais persistam ao longo dos tempos através de uma mera mudança de designação verbal, que é o caso da benevolência material, indica o processo de adaptação pelo qual certas práticas sociais estão impelidas a passar. Isso acontece, no geral, em conseqüência da ancestralidade acentuada característica dessas práticas sociais, por elas terem uma generalização da sua manifestação em diversos sistemas culturais e por elas estarem envolvidas em múltiplos interesses de ordem política, econômica e cultural. No século XVI, época em que se pensava que as coisas misturavam-se naturalmente entre palavras, o signo designava justamente aquilo que ele

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significava. Assim, o vocábulo ―inseto‖ estava naturalmente ligado ao ―conjunto de animais invertebrados, possuindo em geral seis patas, tórax, cabeça e abdômen e que sofrem metamorfoses ao longo de sua existência‖. A partir do século XVII, essa concepção mimetista da nomeação das coisas vai ceder espaço à idéia da representação e, já na idade moderna, à interpretação dos significados. As coisas e as palavras vão se separar: ―o discurso terá realmente por tarefa dizer o que é, mas não será mais que o que ele diz‖ (Foucault, 1995: 59). Dessa forma, o pensamento clássico desmitificara o sentido mágico pelo qual as palavras caracterizavam as coisas. ―Inseto‖, ―voador‖, ―metamorfose‖, ―caridade‖, ―solidariedade‖, puderam então se ver livres dos objetos e dos sujeitos que representavam para se transmutar em meio aos interesses dos homens, para fazerem parte do seu imaginário. Foucault, falando da concepção de linguagem para a época clássica, afirma: Se, no fundo de si mesma, a linguagem tem por função nomear, isto é, suscitar uma representação ou como que mostrá-la com o dedo, ela é indicação e não juízo. Liga-se às coisas por uma marca, uma nota, uma figura associada, um gesto que designa: nada que seja redutível a uma relação de predicação. (Foucault, 1995: 121)

A partir do advento das análises interpretativas, porém, a linguagem humana tornou-se, ao mesmo tempo, uma indicação e um juízo, um discurso subjetivo. Montaigne, com entusiasmado senso crítico, já tinha ajuizado, no final do século XVI, que havia mais a fazer interpretando as interpretações que interpretando as coisas; e mais livros sobre os livros que sobre qualquer outro assunto. Assim, nós não fazemos mais que nos entre-glosar. A indagação foucaultiana que se segue serve, de modo satisfatório, para resumir as preocupações lingüísticas da época de De Brosses, derivadas da observação de Montaigne:

49

Como ocorre que as palavras que, em sua essência primeira são nomes e designações e que se articulam do modo como se analisa à própria representação, possam afastar-se irresistivelmente de sua significação de origem, adquirir um sentido vizinho, mais amplo ou mais limitado? Mudar não somente de forma, mas de extensão? Adquirir novas sonoridades e também novos conteúdos?... (Idem, p. 127)

Com

poucas

adaptações,

eu

poderia

muito

bem

transferir

o

questionamento citado acima para o caso da problemática abordada neste momento da monografia quanto à adequação da palavra ―solidariedade‖ para as práticas de filantropia, objetivando o encobrimento de antigas críticas negativas direcionadas às ações de cunho puramente assistencialista. Essas adequações entre as palavras e as coisas só puderam ser aplicadas no momento em que as palavras também puderam ser historicizadas. As palavras começaram a fazer parte da História na proporção em que se tornavam ―livres‖ dos objetos e dos sujeitos que representavam. Com efeito, as palavras, sejam elas escritas ou faladas, têm uma história e, de certo modo, as palavras também produzem a história. As palavras parecem surgir para responder a alguns questionamentos, a certos problemas que se mostram em determinadas épocas e em contextos sócio-culturais específicos. Nomear é ao mesmo tempo evidenciar um problema, e de certa maneira, já resolvê-lo. Nomear, como diria sabiamente Foucault, é ter poder sobre a coisa nomeada, é criá-la. Algumas expressões ajudaram a transformar ou estabelecer os acontecimentos históricos, ora revolucionando, ora mantendo a situação vigente. ―Faça-se luz‖, ―Brasil, ame-o ou deixe-o‖, ―quem sabe faz a hora, não espera acontecer‖ são exemplos de frases que tiveram grande impacto nas épocas em que foram produzidas. Além disso, dependendo do tipo de sociedade que se esteja falando, as palavras são, muitas vezes, instrumentos de controle social, como é o caso das ―profecias auto-realizáveis‖. Às vezes, no nosso meio social, a fofoca e os boatos adquirem maior repercussão do que a

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realidade dos fatos. Um exemplo disso é uma rede bancária que está indo muito bem nos negócios, com muitos clientes, depósitos, transações, empréstimos, etc. Mas uma concorrente, que perdera grande parte de sua clientela, justamente para essa referida empresa, decide por quaisquer meios anunciar a falência da cruel adversária. O que vai acontecer?

Ora, as pessoas que depositaram

dinheiro na rede bancária caluniada vão imediatamente retirá-lo com medo de perdê-lo junto com a suposta quebra. Com a saída de grande parte do capital, o banco, que ia ―de vento em popa‖, fali. E os ―profetas‖ concorrentes, que estavam à beira de um colapso, erguem-se vitoriosos e ricos. As ―profecias auto-realizáveis‖ representam apenas uma das facetas em que as palavras puderam se envolver desde que conseguiram infiltrar-se nas veredas da História. A tese estruturalista de Foucault, quanto à tamanha reviravolta que as palavras sempre estão dispostas, ao constante processo de adaptação, às mudanças de interpretação de idênticas terminologias ao longo do tempo, consiste na idéia de que: (...) se as línguas têm a diversidade que constatamos, se, a partir de designações primitivas que, sem dúvida, foram comuns por causa da universalidade da natureza humana, não cessaram de se desenvolver segundo formas diferentes, se tiverem cada qual sua história, seus modos, seus hábitos, seus esquecimentos, é porque as palavras têm seu

lugar não no tempo, mas num espaço onde podem encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se sobre si mesmas, e desenvolver lentamente toda uma curva: um espaço tropológico15. (Idem, p. 132)

Seguindo o raciocínio de Foucault, poderíamos dizer que as palavras e as terminologias surgem em determinadas épocas para satisfazer as necessidades e os interesses presentes no momento. Então, no caso da temática aqui 15

Neste sentido, “tropológico” refere-se aos espaços sociais, lócus, presentes nas estruturas sociais das diferentes culturas, permitindo a formação das “coisas”: línguas, religião, mercado, etc.

51

abordada, salienta-se o fato de que um dado espaço tropológico permitiu a substituição da palavra ―caridade‖, na sua conotação material, pela palavra ―solidariedade‖, sem, por isso, admitir em tal mudança morfológica uma transformação no conteúdo da realidade em que o primeiro termo embasava-se. Questiono, então, qual o contexto social que permitiu tal trocadilho e por quais motivos

se

deu

essa

mudança.

Respondo

tal

indagação

com

outro

questionamento, cuja nova resposta daria outra monografia: Depois da queda do muro de Berlim, da derrocada do chamado ―socialismo real‖, a prática de caridade, revestida pela embalagem ―solidariedade‖, passou a ser considerada a única

maneira

de

concorrer

com

a

onda

neoliberal

do

capitalismo

contemporâneo? Ao que parece, a partir da década de 1990, o discurso a favor do ―espírito solidário‖ da humanidade como solução para os problemas de violência e miséria, deixou de fazer o papel de concorrente a alternativas mais ―ativistas‖, para se tornar o monopólio ideológico, a galinha dos ovos de ouro, o oráculo que poderia finalmente dizer como acabar com as teimosas mazelas da sociedade capitalista. A Queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, e o conseqüente baque tomado pelo ―socialismo real‖, pode ter suscitado o aparecimento de novas tentativas de solucionar a questão das extremas desigualdades sociais, sem o apelo para técnicas revolucionárias esquerdistas, ou para modelos sócio-econômicos paralelos ao sistema capitalista. As práticas de filantropia puderam, assim, mostrar livremente toda a sua força ideológica, principalmente, quando elas se revestiam do invólucro ―solidariedade‖. A terceira via, o último paradigma da Revolução Francesa, a Fraternidade, passou então a dar as cartas. A História do Ocidente, que já tinha dado espaço para as utopias relativas aos paradigmas da Liberdade e da Igualdade, agora, oferecia um campo assaz fértil para o exercício da caridade, da solidariedade e de todos os tipos de ―responsabilidades sociais‖, estimulando a formação de ―homens de bem‖, de ―cidadãos‖, dos ―honnetes gens‖. Voltando para Foucault e a questão do espaço tropológico, sem grandes danos à teoria, podemos ampliar a argumentação do filósofo francês e afirmar

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que a mudança apenas no significante do vocábulo ―caridade‖ para o vocábulo ―solidariedade‖ indica, como observei em outro momento, a adaptação das práticas caritativas a uma nova época e a um novo espaço social. Esse processo adaptativo é impelido pela constante reprodução das práticas de benevolência material em diversos macro-sistemas filosófico-religiosos como o cristianismo, o budismo, o islamismo, a maçonaria, dentre inúmeros, e, além disso, é respaldado por ações assistencialistas de administrações públicas que também querem uma solução ―mais cômoda‖ para aliviar os problemas sociais. Trocando em miúdos, o termo ―solidariedade‖ permite que as práticas de assistência social continuem a se reproduzir na sociedade brasileira, engendradas tanto pelo grupo governante, por religiosos engajados e pela grande massa da população, sem que elas sejam massacradas pela crítica intelectual ou esquerdista. O sucesso das ações de filantropia não pode ser explicado por meio de uma ótica pragmática, pois, como sabemos, elas não costumam impedir a proliferação da miséria nos grupos de indigentes. Também não se pode limitar tamanho impulso de ―fazer o bem‖ à simples justificativa de que a caridade representa um meio para a expiação de pecados em diversas religiões e um meio ―mais prático‖ de buscar resolver os problemas sociais (fatores que também contribuem para as doações). Na terceira parte, intitulada ―A relação caridoso x carente e o sentido das doações‖, através do discurso dos informantes, lanço a hipótese de que a constante reprodução das práticas de benevolência material entre os católicos carismáticos se deve ao fato de que elas funcionam como ―coisas que dão sentido à vida‖, revelando um ―senso de ética‖ daqueles que fazem as doações, criando um vínculo entre os homens e a ―vontade de Deus‖, motivando o orgulho dos filantropos por estarem fazendo aquilo que realmente deveriam estar fazendo. E, como já mostrei na parte introdutória, a caridade transita em duas ―esferas sociais‖ a priori distintas: a ―esfera religiosa‖ e a ―esfera do campo político e econômico‖. Talvez, desde a época da Poor Law Reform, no início da

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Revolução Industrial inglesa16, ela deixou de ser um valor estritamente religioso para fazer parte dos discursos e do universo simbólico da sociedade secular, encabeçando projetos sociais por meio de abonos salariais patrocinados pelo grupo paroquial e do estabelecimento dos famosos albergues ingleses que enclausuravam a crescente classe dos miseráveis, que estava se amontoando já na fase embrionária do capitalismo. A certeza de que ―estavam fazendo o certo‖, ao agirem de maneira filantrópica, transbordou do imaginário cristão e impregnou-se no ideal de justiça da sociedade laica. Estando o ideal de filantropia impregnado no campo religioso cristão, através do invólucro ―caridade‖, e no campo secular da sociedade, através do invólucro ―solidariedade‖, as práticas sociais ligadas à benevolência material assumiram a forma de experiências sociais comuns. Sobre fato similar, a proliferação dos conceitos de ―civilização‖ e ―cultura‖ na França e na Alemanha dos séculos XVIII e XIX, é analisada pelo sociólogo alemão Norbert Elias 17 nos seguintes termos, que podem adequadamente servir para o caso das diferentes classificações da dádiva: Tornaram-se palavras da moda [os termos civilization e kultur], conceitos de emprego comum no linguajar diário de uma dada sociedade. Este fato demonstra que não representam apenas necessidades individuais, mas coletivas, de expressão. A história coletiva neles se cristalizou e ressoa. O indivíduo encontra essa cristalização já em suas possibilidades de uso. Não sabe bem por que este significado e esta delimitação estão implicadas nas palavras, por que, exatamente, esta nuance e aquela possibilidade delas podem ser derivadas. Usa-as porque lhe parece uma coisa natural, porque desde a infância aprende a ver o mundo através da lente desses conceitos [...]. Os termos morrem aos poucos, quando as funções e as experiências da vida concreta da sociedade deixam de se vincular a eles. Em outras ocasiões, eles apenas 16

Ver Polanyi, A grande transformação, p. 99 – 108. Veremos essa questão de modo mais detalhado terceira parte. 17 Ver Elias, O processo civilizador, p. 20 – 63.

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adormecem, ou o fazem em certos aspectos, e adquirem um novo valor existencial com uma nova situação. São relembrados então porque alguma coisa no estado presente da sociedade encontra expressão na cristalização do passado corporificada nas palavras. (Elias, 1994: 26)

Com efeito, as palavras encontram sua lucidez e sua caduquice nos espaços que os processos históricos dão para que elas possam expressar seus significados, nuances e interesses. As representações sociais do senso-comum acerca de como usam, mudam e re-habilitam as palavras reflete, na maioria das vezes, os sistemas culturais em que os indivíduos estão inseridos. Dependendo da ―visão de mundo‖ e do padrão de conduta social condicionado, as pessoas estabelecem a escala de valores para suas interpretações sobre diversos vocábulos. Quando indagava os informantes da Legião de Maria, da Deus Conosco e da COT sobre como poderiam diferenciar práticas de caridade e solidariedade, eles, em quase todos os casos, como já afirmei em outra ocasião, costumavam colocar a ―caridade‖ em um pedestal mais elevado que a ―solidariedade‖. Pois, por ser uma palavra já entregue aos ditames do mundo laico, ―solidariedade‖, passou a ser vista como algo não-religioso, não-espiritual, e, por isso, uma coisa não-impulsionada por dogmas cristãos, sendo considerada uma prática movida por ―interesses humanos‖. Enquanto isso, ―caridade‖ permanece ainda imaculada, principalmente, se for realizada aos moldes cristãos. Ela traz, ainda, toda uma conotação mística, pois, quando praticada ―sem interesses‖, produz um vínculo entre os homens e Deus. Vejamos o que os próprios informantes dizem sobre o que pensam das práticas de caridade e da solidariedade: Solidariedade [...] Eu acho que a solidariedade está no coração de todo o ser humano, né: estar solidário aos outros, a alguma causa. E, na caridade, não devemos querer receber nada em troca. A solidariedade é mais um sentimento humano, de pena. (Manoel Roberto)

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Caridade é amar ao próximo, é doação, é olhar, se preocupar com o outro, em todos os níveis. Um sentimento que vem de Deus. E, solidariedade, para mim, são as próprias práticas de filantropia material, sabe, as doações de alimentos, de roupas, de água, etc. É o lado mais material da coisa mesmo. (Amanda Duarte)

A caridade é o amor pleno, de generosidade ao próximo, um amor de doação de amor. A caridade é o próprio amor de que nos fala Coríntios. É uma ação em tempo integral. Enquanto solidariedade é uma ação apenas do momento, daquele momento da ajuda. (Sérgio de Menezes, participante do grupo de jovens da Casa de Orações Deus Conosco)

Na parte da sociedade não ligada diretamente a valores religiosos, esse discurso se inverte. ―Caridade‖ e ―solidariedade‖ ganham dimensões de ações propriamente materiais, ambas, sendo impulsionadas por ―sentimentos de benevolência‖, religiosos ou não. Mas, entre os leigos, são as práticas de ―solidariedade‖ que representam ações de grande estima, sendo interpretada como uma virtude a ser ―cultivada‖ por seres humanos de ―boa índole‖. A palavra ―solidariedade‖, depois do fim do sonho socialista, parece nomear a única atitude que poderá resolver os problemas sociais dos homens. A solução para os problemas ocasionados pelas extremas desigualdades sociais consiste, agora, em ―ações solidárias‖ e não mais naquela ―barbárie revolucionária‖ que ―usa da violência para libertar o povo da opressão‖. Já a palavra ―caridade‖ passou a ser a designação das práticas assistencialistas, condenadas desde o século XVIII por Defoe, Mandeville, Townsend, e depois por Tocqueville, ricardianos e marxistas18 no século XIX, geradoras de desemprego e de miséria, sendo, por isso, ações sociais de ―religiosos fanáticos que não sabem o que estão fazendo‖. Todas as críticas negativas quanto ao assistencialismo foram transferidas para o termo ―caridade‖, que serviu de bode expiatório. Enquanto isso, o mesmo tipo de filantropia comodista cresceu de maneira assombrosa em todo o território nacional enevoado pelo vocábulo ―solidariedade‖ sem sofrer qualquer tipo de desaprovação por qualquer instituição social. 18

Polanyi, A grande transformação, capítulos 9 e 10.

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Veremos, agora, o que anda saindo nos jornais escritos de Fortaleza, na Folha de São Paulo e na internet sobre a palavra ―solidariedade‖. Antes, porém, saliento o fato de que a palavra ―caridade‖, quando colocada em sites de busca pela grande rede, ou então como vocábulo procurado nos jornais on line, não aparece em quase nenhuma das notícias publicadas e, se aparece, é usada para criticar negativamente alguma prática assistencialista. Há frases do tipo: ―a prefeitura de Mombaça não é instituição de caridade para ficar arrecadando alimentos para os pobres‖, ou então, ―não podemos ficar fazendo apenas

caridade, sem saber como os moradores das Goiabeiras estão aplicando o material para construção civil‖. Noticiário da palavra ―solidariedade‖: (29/7/2004) ―‗Cruzada‘-arrecada-alimentos-para-o-Lar-Torres-de-Melo‖ Está aberta, até 5 de agosto, a Cruzada em Solidariedade ao Lar Torres de Melo. Diariamente, de 7 às 18h, na Praça do Ferreira, no Centro, estarão sendo arrecadados alimentos não-perecíveis (exceto sal), roupas, sapatos, roupas de cama, na barraca montada pela Igreja Betel. A campanha também é em prol de famílias carentes dos conjuntos José Walter e Renascer, que receberão cestas básicas. Quem doar dez quilos alimentos terá direito a um bônus para concorrer ao sorteio de aparelhos ortodônticos. De segunda-feira passada-até-ontem,-foram-arrecadados-150-quilos-de-alimentos. ―Não importa a religião, mas o amor no coração de quem colabora com a Cruzada‖, comenta o pastor Sigmund Freud, do Ministério Internacional Betel.A-expectativa-é-que-sejam-arrecadadas-10-toneladas-de-alimentos. Ao final destes 11 dias de campanha, haverá um grande evento, na sexta-feira, dia 6, na Praça Clóvis Beviláqua, também no Centro, às 17h. A confraternização contará com a presença do pastor que mora nos Estados Unidos, Judson de Oliveira, e das cantoras brasileiras Eyshila e Lislanne do grupo Voices. (Jornal Diário do Nordeste, pesquisa feita em 14 de setembro de 2004 no site diariodonordeste.globo.com) (16/8/2004) ―Moradores-de-rua-têm-poucas-opções-de-abrigo‖ A morte do lavador de carros José da Silva Sousa, 43 anos, no último sábado, mostra a violência a que estão sujeitas as pessoas que vivem e dormem nas ruas. José da Silva foi queimado vivo, enquanto dormia na calçada da Rua Joaquim Nabuco, na Aldeota. Segundo testemunhas, o lavador de carros

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passava algumas noites na casa de parentes, mas costumava-mesmo-dormirnas-ruas. Para pessoas que se encontram na situação de moradores de rua, Fortaleza não apresenta muitas alternativas de abrigos provisórios ou permanentes, ou projetos de recuperação e socialização. A maioria das ações de solidariedade é voltada para a criança, adolescente-ou-o-idoso. Há quatro anos, uma das poucas opções de atendimento ao morador de rua na Capital, é o Instituto Filhos e Filhas da Pobreza do Santíssimo Sacramento, mais conhecido por Toca de Assis. Duzentos adultos, entre mulheres e homens, são beneficiados com a ação dos religiosos, que resgata das ruas pessoas com problemas mentais ou dependentes químicos. O atendimento funciona em quatro unidades, sendo três em Fortaleza (duas no Papicu e outra na Avenida João Pessoa) e uma no Eusébio, no Sítio Tão Sublime Sacramento. O serviço prestado aos moradores de rua é voluntário e feito na maioria por jovens. A entidade sobrevive de doações e da ajuda da Sociedade Médica São Lucas,-que-oferece-gratuitamente-assistência-médica-aos-voluntários-e-aosacolhidos (...). (Diário do Nordeste, Idem) (26/12/2004)

―Esperando doação: a solidariedade que não veio‖

Escorada em uma pesada porta na entrada da Catedral Metropolitana de Fortaleza, Maria das Dores Alves da Silva, de 49 anos, esperava pela solidariedade que geralmente acomete as pessoas na noite de Natal. Mas, ao contrário do que podia imaginar, experimentou a indiferença. Postada no local desde o início da noite, aguardava, entre um cochilo e outro, a caridade das cerca de duas mil pessoas que, bem vestidas e aparentemente abonadas, foram assistir à tradicional Missa do Galo. Porém, ao final da celebração, tudo que havia conseguido era uma cédula de um real e copo de sopa, doados por funcionários da igreja. A retribuição estava em um saco plástico: uma rapadura. ―Eles são muito bons para mim, me dão roupas, calçados e uns trocadinhos‖, justificou, com uma expressão cansada, agravada por uma virose que a abateu há oito dias. Das Dores vive sozinha, de favor em um estacionamento no centro da cidade. Tem oito filhos, mas não os vê nem sabe onde estão. Seu desejo é melhorar da doença e montar a tão sonhada barraca de vender churrasquinhos, para não mais depender da caridade alheia. Jamais foi casada, mas sabe o significado da palavra amor. ―Muita gente passa por mim e diz: ‗Maria, Jesus te ama. Se segura na mão de Deus que tu não cai‘. Eu sei disso‖, diz (...). Nas escadarias da suntuosa Catedral, Rita do Espírito Santo, 58, também contava com a solidariedade alheia. Com a neta Beatriz, de 10 meses, no colo, estendia a mão a um e outro que passava. Ao término da celebração, nenhum centavo. Ostentava apenas uma boneca que a neta ganhou. Mas ela não desanima. Vai ficar até a noite do dia 25 na rua, esperando ―um quilo de arroz ou uma lata de óleo‖. ―Quando a gente estende a mão e a pessoa dá 10, 20 centavos, a gente fica muito grata. Mas tem pessoas que a gente pede e nem olham‖.

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A missa do Galo foi presidida pelo arcebispo de Fortaleza, dom José Antônio Tosi, que lembrou o nascimento e a ressurreição de Jesus Cristo e destacou a importância do amor ao próximo. ―Nós o vemos (Jesus) em cada pessoa humana e o amamos pela caridade‖, disse. A celebração foi encerrada ao som de ―Noite Feliz‖. (Jornal O Povo, pesquisa feita em 13 de janeiro de 2005 no site noolhar.com) (1/1/2005) ―Ajuda para países afetados por maremoto na Ásia chega a US$ 1 bilhão‖ O terremoto mais forte dos últimos 40 anos desencadeou além dos tsunamis,-uma-onda-de-solidariedade19no-mundo-todo,-tanto-de-ordem-públicacomo-privada. As contribuições oscilam atualmente entre US$ 1,1 e 1,2 bilhão, afirmou Jan Egeland, coordenador das tarefas de ajuda da ONU. O governo dos Estados Unidos aumentou sua ajuda, que passou de US$ 35 milhões para US$ 350 milhões. As autoridades chinesas anunciaram que oferecerão mais US$ 60 milhões, superando os valores oferecidos pelo-Reino-Unido-e-Suécia. Na maioria dos países da região e muitas cidades do mundo, foram canceladas-festas-de-Ano-Novo. O secretário de Estado americano, Colin Powell, reuniu-se com o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, para coordenar a ajuda. Um encontro para discutir a tragédia na Ásia será realizado em 6 de janeiro, na Indonésia, que já têm confirmadas as participações da Austrália e do Japão. (Folha On Line, pesquisa feita em 13 de janeiro de 2005)

Como se vê, existe uma nítida inversão no uso valorativo das palavras ―caridade‖

e

―solidariedade‖.

Os

informantes,

engajados

nos

grupos

carismáticos, não medem esforços para elogiar tudo o que se refere às práticas enredadas pelo termo ―caridade‖. O noticiário dos jornais e da internet, que se pretende secularizado, usa predominantemente a palavra ―solidariedade‖ para os acontecimentos que envolvem ações de filantropia. No entanto, as práticas de filantropia relatadas no noticiário jornalístico e as doações dos católicos carismáticos da Casa Deus Conosco, da Legião de Maria e da COT, consistem 19

No caso desse último noticiário citado, pode-se realmente falar de “solidariedade global”, “solidariedade entre os povos”, quando o objetivo do apoio moral ou das doações é a coesão social, ou então, quando os Estados-nacionais estão preocupados com possíveis catástrofes que possam assolar sua população e estão almejando a reciprocidade das nações que foram auxiliadas moralmente e materialmente por eles. No entanto, a ação individual de um empresário brasileiro, por exemplo, que doa R$ 10.000 para ajudar na reconstrução das cidades tailandesas destruídas pelo tsunami, é uma ação beneficente, pois ele não está inferindo a cooperação dos povos e, por isso, não vai receber a contraprestação dos serviços oferecidos (no plano material).

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no mesmo tipo de ação social: o oferecimento de regalias motivado por um sentimento de benevolência, cuja concretização se realiza em um meio social profundamente hierárquico20, ou seja, com grandes desigualdades sócioeconômicas, e cujos interesses abarcam tanto a satisfação espiritual (desejo de ―salvação‖ em um paraíso celestial ou de ―sentir-se bem‖ por estar ―fazendo a coisa certa‖) como a satisfação social (desejo de harmonia social, de impedir a violência e de ―sentir-se bem‖ por estar ―resolvendo os problemas sociais‖, ―sendo cidadão‖). Como afirma Foucault, no capítulo ―Trabalho, vida, linguagem‖ de As

palavras e as coisas: Tornada realidade histórica espessa e consistente, a linguagem constitui o lugar das tradições, dos hábitos mudos do pensamento, do espírito obscuro dos povos; acumula uma memória fatal que não se conhece nem mesmo como memória. Exprimindo seus pensamentos em palavras de que não são senhores, alojando-as em formas verbais cujas dimensões históricas lhes escapam, os homens, crendo que seus propósitos lhes obedecem, não sabem que são eles que se submetem às suas exigências. (Foucault, 1995: 314)

De fato, a palavra ―solidariedade‖ parece não estar mais sob o controle dos desejos dos homens, ou dos interesses de ordem política que porventura, no início de seu uso para classificar as práticas de caridade, pudessem estar envolvidos nesta mudança morfológica. Ela tornou-se parte do linguajar dos jornalistas, das pessoas em geral, dos intelectuais, sem que eles saibam, ou nem sequer cogitem, a que dimensão histórica o termo está submerso. Contudo, não podemos dizer que as pessoas pronunciarão a palavra ―solidariedade‖, tendo em mente o significado de doação entre desiguais, para todo sempre. A dimensão histórica nunca escapa totalmente das mãos dos homens; há sempre 20

A relação entre práticas de caridade e hierarquias sociais será analisada no capítulo III: “Hierarquia social e parceria”.

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uma fenda pela qual eles conseguirão dar seus gritos e exprimir suas vontades, onde poderão fazer funcionar a roda da história num processo incessante, transformando, coletivamente, as estruturas sociais de que fazem parte, até se perceberem já envolvidos profundamente por outras estruturas, onde amarrados por outras teias sociais de preconceitos, resolverão de novo o que fazer. Da grande dificuldade de, nos séculos XX e XXI, se compreender, de se chegar a alguma conclusão do que as palavras realmente querem dizer, de saber quais seus significados exatos, que assegurarão ao falante a certeza de não passar vexame ao pronunciá-las, é que floresceram com toda intensidade as técnicas de exegese. Não é à toa o sucesso da Antropologia geertziana (semiótica) e da Análise do Discurso na área das Ciências Sociais e da Etimologia no campo da Lingüística Social. Isso se deve ao fato da linguagem ter retomado a densidade enigmática da época renascentista (cf. Foucault, 1995). Como já defendi aqui, os ocidentais se voltaram novamente para a decifração das palavras e das coisas, com a diferença de que, atualmente, não imaginamos mais a existência de uma ligação mítica entre os vocábulos e os objetos que eles designam, mas temos a consciência da existência de processos históricos

impulsionando

a

produção,

o

desaparecimento,

a

mudança

morfológica e semântica, as alterações gramaticais e o ―dito e o desdito‖, as nuances, das palavras. Temos a consciência histórica de que ―o homem [...] é esse ser vivo que, do interior da vida à qual pertence inteiramente e pela qual é atravessado em todo o seu ser, constitui representações graças as quais ele vive e a partir das quais detém esta estranha capacidade de poder se representar justamente a vida‖ (Foucault, 1995: 369). Podemos concluir, então, que a importância que as ciências sociais atribuem ao estudo das representações sociais e da linguagem deve-se ao fato delas constituírem um instrumental empírico eficiente, pois são nessas duas dimensões que os homens costumam guardar seus mais estimados valores

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sociais, aqueles que alicerçam seus sistemas culturais. A análise das relações sociais ganha status de ciências humanas na medida em que: ... se busca definir a maneira como os indivíduos ou os grupos se representam as palavras, utilizam sua forma e seu sentido, compõe discursos reais, mostram e escondem neles o que pensam, dizem, talvez à sua revelia, mais ou menos do que pretendem, deixam desses pensamentos, em todo o caso, uma massa de traços verbais que é preciso decifrar

e

restituir,

tanto

quanto

possível,

à

sua

vivacidade

representativa. (Foucault, 1995: 370)

Segundo o filósofo francês, o simples ato de nomear uma coisa representa um ato de manifestação de poder, de controle, sobre a coisa nomeada, pois se estabelece, através da nomeação, as fronteiras semânticas até onde o conteúdo nomeado poderá se mover. Além das palavras exalarem poder, essa faculdade própria dos seres humanos de expressar idéias por meio da articulação de sons ou de sinais gráficos, que é a palavra, costuma também transcender a realidade. Os nossos vocábulos muitas vezes retratam coisas que não estão restritas àquilo que já pensamos conhecer, ou seja, às nossas certezas. Émile Durkheim, em As formas

elementares da vida religiosa, lucidamente afirma que ―freqüentemente um termo exprime coisas que nós jamais percebemos, experiências que nunca fizemos parte ou das quais jamais fomos testemunhas‖ (1978: 236). Palavras como ―puro‖, ―amor‖ e ―mal‖, por exemplo, são palavras demasiadamente vagas para se tentar estabelecer coisas concretas que as representem de fato. Os exemplos que são criados para representar tais palavras são, na verdade, idealizações dos homens, não condizendo com a existência cognitiva. O mesmo acontece com os termos ―democracia‖ e ―justiça‖. Se formos pesquisar a significação ―enciclopédica‖, oficial, desses vocábulos, vamos perceber, por meio da simples associação de fatos, que eles não condizem com a nossa história política, mesmo nos contextos onde foram criados. Tais palavras foram 62

inventadas por dois principais motivos: para servirem de arquétipos, como se fossem metas que as sociedades ocidentais quisessem seguir, mesmo de longe, sem nunca terem vivenciado experiências análogas. E, também, pelo simples fato de não existirem outros vocábulos que possam substituir essas utopias já em uso cotidiano. Com efeito, não podemos chamar de totalitários os governos atuais na maior parte do Ocidente, mas classificá-los como ―democracia‖ é, no mínimo, um exagero semântico. Levando-se em consideração as argumentações sobre as propriedades dos vocábulos e a análise seguida até o momento sobre as representações sociais dos termos ―caridade‖ e ―solidariedade‖, podemos concluir que as palavras têm o poder de nomear, classificar, criar e, também, de ―camuflar‖ a realidade, funcionado como verdadeiros invólucros que recobrem o conteúdo das coisas nomeadas, dependendo de diversos interesses, muitas vezes de ordem política. Então, ampliando-se a assertiva durkheimiana sobre a existência de termos que indicam experiências das quais nunca fizemos parte, podemos também dizer que existem experiências reais das quais somos testemunhas, mas que ainda não inventamos nenhum nome de melhor exatidão para batizá-las. Esse é o caso da confusão gerada a partir dos termos ―caridade‖ e ―solidariedade‖. Apesar dessas palavras terem sentidos denotativos diferentes, costumam ser usadas para nomear a mesma prática social. É somente através dos estudos das representações sociais e do uso cotidiano da linguagem que podemos perceber que o termo ―caridade‖ tornou-se bastante desgastado depois dos vários insucessos das práticas assistencialistas no país e em grande parte do mundo ocidental. Dessa forma, também podemos perceber a ascensão do termo ―solidariedade‖ para se nomear o mesmo tipo de dádiva de benevolência gratuita e hierarquia social. Com a nova ―sonoridade‖, a história muda o matiz crítico, poucos são os julgamentos desfavoráveis da sociedade para as mesmas doações. Essa poderosa palavra se internalizou positivamente de tal maneira na mente das pessoas que, dificilmente, alguém consegue sequer esboçar uma postura de desaprovação diante de uma ação

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filantrópica, quando ela está enevoada pelo vocábulo ―solidariedade‖. A palavra ―solidariedade‖ consiste em um rótulo mais novo, bonito, com cores vistosas, modernas, atraentes. No entanto, a garrafa em que anexam tal rótulo é velha, muito antiga, talvez nem possamos saber quando e quais sociedades começaram a usá-la.

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CAPÍTULO III: HIERARQUIA SOCIAL E PARCERIA

Nos capítulos anteriores, procurei, do modo mais detalhado possível, analisar as representações sociais formadas por vários setores da sociedade a partir dos fenômenos sociais ligados às doações caritativas. Observamos as opiniões dos participantes de três grupos católicos da cidade de Fortaleza e analisamos os pontos de congruência entre o discurso da grande massa dos fiéis carismáticos e o discurso ―oficial‖ do primeiro encontro nacional de autoridades da RCC. Depois, para não perdermos de vista a complexidade da dádiva em que nos detemos, o liame da pesquisa obrigou-se a atentar para as questões da linguagem. Com a ajuda de Foucault, pudemos observar um inteligente jogo de palavras envolvendo as doações benevolentes: as críticas implacáveis ao assistencialismo levaram a palavra ―caridade‖ para o uso estritamente religioso, enquanto se resguardava nos altares laicos o mesmo tipo de prática de beneficência, agora maquiada pelo saboroso vocábulo ―solidariedade‖. No sentido bíblico, como vimos, a palavra ―caridade‖ possui uma conotação de sentimento de benevolência, de amor ao próximo. O termo ―próximo‖ refere-se à humanidade em geral e, em termos mais amplos, ―todas as coisas criadas por Deus‖. Representa, pois, um posicionamento radicalmente altruísta. O conceito de amor cristão já foi exaustivamente delineado: consiste em um sentimento-ação de ―fazer o bem‖, sem interesses pragmáticos, diferindo-se, por isso, de Eros e de Philia (assemelhando-se, porém, à Ágape21) da mitologia grega e da acepção de ―amor mundano‖ em Shakespeare22. 21

Três palavras definem o amor na Grécia Antiga: a palavra “Eros” significava uma espécie de amor estético ou romântico. A palavra “Philia” traduzia afeição íntima, amizade, amor aos amigos. A terceira palavra “Ágape” tinha por sentido a boa vontade, o amor “transbordante que redime e que nada espera em troca” Enfim, Ágape tem o significado do amor em plenitude, adaptando-se ao amor do Deus cristão pela sua criatura. 22 Ver Sena, A literatura inglesa, capítulo IX sobre vida e obra de W. Shakespeare, especificamente p. 99 – 105; amor patético (trágico) – peças: Romeo and Juliet, A midsummer night’s dream, Hamlet, Antony and Cleópatra, etc.

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Em vários dicionários, encontramos ―caridade‖, do latim caritate, com a mesma definição bíblica: amor de Deus e do próximo, benevolência, bondade, ―bom coração‖, compaixão; acrescentando-se como segundo significado, os termos ―beneficência‖ e ―esmola‖23. Na Bíblia, pouco se fala do termo ―solidariedade‖, que possui uso mais freqüente na parte secularizada da sociedade. No sentido denotativo, ―solidariedade‖ indica a qualidade de solidário, o estado ou condição de duas ou mais pessoas que repartem entre si igualmente as responsabilidades de uma ação, ou empresa qualquer, respondendo todas por uma e cada uma por todas. Entende-se daí o mesmo radical da palavra ―sólido‖, indicando a propriedade de algo que é coeso, consistente, duradouro. Podemos encontrar nos dicionários, definições tais como ―mutualidade de interesses e deveres‖; ―laço ou ligação mútua entre duas ou muitas coisas dependentes umas das outras‖; ―condição grupal resultante da comunhão de atitudes e sentimentos, de modo a constituir no grupo unidade sólida, capaz de resistir às forças exteriores e mesmo de tornar-se ainda mais firme em face da oposição vinda de fora‖; e ―consistência interna de uma agregado social, coesão social‖24. Todas descrições convergem para o mesmo sentido: referem-se à reciprocidade. Alguns intelectuais já se arriscaram mexendo nesse teimoso formigueiro sociolingüístico, convergindo, na maioria das vezes, para a mesma definição lexical. Em Da divisão do trabalho social, por exemplo, Durkheim pretende analisar, através do que chama método científico, qual seria a função da divisão do trabalho presente em algumas sociedades, ou seja, procura saber se existe alguma necessidade desse tipo de organização social se constituir da maneira como se constitui e não de outra forma, sem a repartição das tarefas sociais. Com certo esforço, podemos classificar a perspectiva metodológica adotada por Durkheim de funcionalista. Logo no início do trabalho, o autor estabelece o eixo 23 24

Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, São Paulo, Encyclopaedia Britannica, 1987. Idem.

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crucial da sua argumentação afirmando: ―... somos conduzidos a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Neste caso, com efeito, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa ao lado do efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade‖ (1978: 27). Nesse trecho extraído Da divisão do trabalho social, Durkheim começa a conceituar o que seria ―um sentimento de solidariedade‖. Para ele, ―solidariedade‖ é uma espécie de senso de coletividade, um sentimento de pertença a determinado grupo social. Indivíduos solidários são aqueles que têm a consciência que só podem ter todas as ―mordomias sociais‖ se concordarem com a idéia de que existe uma necessária dependência aos demais participantes do grupo social e com o fato de que a realidade que está sendo construída naquela sociedade é o resultado de um trabalho coletivo. Solidariedade, assim, seria o vínculo estabelecido por lei, ou por moral, que produz uma vivência social harmônica através das trocas sociais realizadas por determinado agrupamento. Segundo

Durkheim,

a

―solidariedade

social

é

um

fenômeno

completamente moral que, por si mesmo, não se presta à observação exata nem, sobretudo, à medida‖ (1978: 31). É prudente ressaltar que a divisão do trabalho social é também, e fundamentalmente, um fato de ordem econômica (cf. Smith, Marx, Huberman25, entre outros). Para Huberman, não é na chamada ―vocação‖ ou ―dom‖ que vamos encontrar a origem da divisão do trabalho no Ocidente. Seguindo a tese marxista, ele procura a origem de tal especialização nas tarefas industriais à própria formação do modo de produção capitalista. A emergente classe burguesa procurava, por todos os meios possíveis, uma fórmula para aumentar os lucros de suas fábricas. As técnicas de produção deveriam ser constantemente melhoradas a fim de que colocassem 25

Ver, por exemplo, Smith, A riqueza das nações; Marx, Trabalho assalariado e capital; e Huberman, História da riqueza do homem. Obs: por “divisão do trabalho”, Smith entendia, já em 1776, o mesmo que entendemos hoje: especialização, manter o trabalhador na mesma função até que se torne um perito nela.

67

mais produtos em circulação, ampliando assim os horizontes do mercado. O economista William Petty, no século XVII, já tinha percebido como as industrias têxteis barateavam o custo da produção por meio de uma especialização da mão-de-obra. ―A fabricação da roupa deve ficar mais barata quando um carda, outro fia, outro tece, outro puxa, outro alinha, outro passa e empacota, do que quando todas as operações mencionadas são canhestramente executadas por uma só mão‖26 No entanto, devemos ter em mente, antes de tudo, o que Durkheim quer dizer com ―fenômeno completamente moral‖. Quando Durkheim fala que a solidariedade é um fenômeno puramente moral, está se referindo à qualidade de sentimento representada por ela. Dessa forma, indivíduos solidários são aqueles que têm uma ―consciência moral‖ da importância da solidariedade em sua sociedade. Mas, perguntar-se-ia: esse vínculo social de solidariedade existe apenas no âmbito do sentimento ―de saber que se depende dos outros‖? Responderia que não. Ora, esse sentimento, ou consentimento, ―de saber que se depende dos outros‖, não surge à toa; é o resultado de uma necessidade material dos indivíduos integrantes de um grupo, esteja ou não presente nele a divisão do trabalho. Assim, a solidariedade não é puramente simbólica, no sentido de abstrata; suas causas e conseqüências são, geralmente, de ordem sócio-econômica, como bem salienta Marcel Mauss no seu Ensaio sobre a

dádiva. A troca de coisas entre os homens traz sempre a abundância de riquezas materiais. Durkheim busca enfatizar que a moral imbricada nas diversas formas de solidariedade representa o resultado da coação de instituições jurídicas. Lança, em vários momentos do livro, a hipótese de que ―o direito (legítimo) reproduz as formas principais de solidariedade social‖. Entretanto, as relações sociais no Brasil exemplificam diversos casos de solidariedade local ou vicinal que não são

26

W. Petty, Economic writings, vol. I, p. 260, Cambridge University Press, 1899. Extraído de Huberman, L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar, 1976.

68

reguladas pelo aparelho judiciário legítimo27, mostrando a fragilidade da argumentação durkheimiana. Poderíamos, então, indagar qual tipo de socialização o sociólogo francês classifica como ―formas principais de solidariedade‖. Para esclarecer esse ponto, devemos nos atentar para o fato de Durkheim considerar como forte (principal) elo de solidariedade social aquele cuja desobediência consiste em crime. Dessa forma, ele nos fala dos mecanismos de coesão respaldados pelas leis do direito repressivo (cf. Durkheim, 1978). Tal

forma

de

solidariedade

social

definida

por

Durkheim,

definitivamente, não é o caso das ―solidariedades comunitárias‖ e, muito menos, representa as ações filantrópicas, cujas relações sociais pretendo me debruçar

mais

detalhadamente

na

presente

monografia.

O

tipo

de

solidariedade que procuro diferenciar nesta primeira parte do trabalho consiste na mesma forma de socialização presente em agrupamentos bem definidos, como é o caso das comunidades de bairros dentro das grandes cidades, das parcerias vicinais entre pequenas vilas rurais, grupos sociais homogêneos, como é o caso dos hippies, das associações de religiosos, das chamadas comunidades alternativas, e também dos agrupamentos de ameríndios sem diferenciações sócio-econômicas. Todos eles representam comunidades de vivência social mais ou menos ―coesa‖, onde há trocas sociais igualitárias entre os membros do grupo. Podemos observar esse tipo de socialização, que denominaremos ―parceria‖, entre os camponeses paulistas dos arredores do município de Bofete, no Estado de São Paulo, etnografado brilhantemente por Antonio Candido em

Os parceiros do Rio Bonito. Para melhor se adaptarem ao espaço hostil criado pelas condições deficientes de trabalho e de produção de mercadorias, os caipiras paulistas foram obrigados a tentar organizar formas de solidariedade

27

Ver, por exemplo, Candido, Os parceiros do rio bonito, p. 66 – 77.

69

que oferecessem aos moradores do interior um certo conforto na vida econômica. Grande parte dos membros de cidades como Jundiaí e Campinas, em meados do século XIX, participavam de ações comunitárias com trabalhos de ajuda mútua. Era considerado membro do bairro quem convidava e era convocado para tais atividades. Tanto as atividades da lavoura como da indústria doméstica constituíam oportunidade para as práticas de ajuda comunitária. O chamado ―mutirão‖ consistia em um pacto entre os moradores, para que, no caso de qualquer um deles precisasse de ajuda na lavoura, na construção de uma casa ou na fiação, todos os demais contratantes pudessem cooperar. Não havia para esses serviços prestados pagamento de espécie alguma, a não ser a obrigação leal e moral em que ficava o beneficiado de corresponder aos chamados ―eventuais‖ daqueles que o ajudaram. Todos os pedidos eram atendidos porque era impossível um só lavrador dar conta de toda a mão-de-obra doméstica. Existia também um grande impulso religioso movendo essas ações de solidariedade vicinal no município de Bofete, assim como acontece no caso dos filantropos

carismáticos

estudados

no

presente

trabalho.

Segundo

o

testemunho de Antonio Candido: ―um velho caipira me contou que no mutirão não há obrigação para com as pessoas, e sim para com Deus, por amor de quem serve o próximo; por isso a ninguém é dado recusar o auxílio pedido‖ (1977: 68). O mutirão, no caso acima, enquadra-se perfeitamente na definição do termo ―solidariedade‖ apresentada no início. Ele não é um simples ato de socorro, é, antes de tudo, um ato de amizade recíproca, um motivo para alegria, uma maneira atraente de cooperação para executar rapidamente um trabalho qualquer. O complemento dessa espécie de solidariedade vicinal se dava no conjunto de atividades religiosas organizadas pelos caipiras paulistas. Esses itinerários entre as capelas dos bairros e as cidades contribuíam para a comunicação e o compromisso no mutirão através das promessas aos santos.

70

Mas, voltemos novamente para a análise Da divisão social do trabalho quanto à questão da relação entre os elos de solidariedade social com a moral e o direito. Durkheim, com efeito, não deixa de demarcar fronteiras conceituais entre a solidariedade social estimulada pelos mecanismos repressivos do direito legítimo e aquilo que chama de sentimentos de piedade e de compaixão. No segundo capítulo do livro, intitulado ―Solidariedade Mecânica‖28, Durkheim diferencia os dois tipos de ―sentimentos‖: Se, em geral, os sentimentos protegem sanções simplesmente morais, isto é, difusas, são menos intensos e menos solidamente organizados do que aqueles que protegem penas propriamente ditas; existem, todavia, exceções. Assim, não há nenhuma razão para admitir que a piedade filial média ou mesmo as formas elementares de compaixão pelas misérias mais aparentes sejam hoje sentimentos mais superficiais que o respeito pela propriedade ou pela autoridade pública; entretanto o mau filho e o egoísta, mesmo o mais endurecido, não são tratados como criminosos. Portanto, não é suficiente que os sentimentos sejam fortes, é preciso que sejam precisos. (Durkheim, 1978: 40)

28

Para não me alongar muito no texto, faço aqui, em nota de rodapé, o esclarecimento da diferenciação feita por Durkheim da “solidariedade mecânica” em oposição ao que classifica como “solidariedade orgânica”. Segundo sua teoria, a solidariedade é mecânica quando “a consciência individual [...] é uma simples dependência do tipo coletivo, que segue todos os seus movimentos, assim como o objeto possuído segue aqueles que lhe imprime seu proprietário”. “Ela é produzida por meios mecânicos e artificialmente” (p. 69). “É completamente diferente a solidariedade produzida pela divisão do trabalho [„solidariedade orgânica‟]. Enquanto a precedente implica que os indivíduos se assemelhem, esta supõe que difiram uns dos outros. [...] A segunda é apenas possível se cada um tem uma esfera de ação que lhe é própria, por conseguinte, uma personalidade, [...] quanto mais extensa esta região, tanto mais forte é a coesão resultante desta solidariedade. Por outro lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido é o trabalho, e, além disto, a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais especializada”. (p. 70) O importante nisso tudo é o conceito de “solidariedade” em si. Não pretendo usar essa diferenciação entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica empregada por Durkheim, pois elas não se adaptam ao meu objeto de análise. A “solidariedade” que pretendo conceituar é a que chamo “solidariedade comunitária”. Nessa concepção, quando sou solidário a outrem, ou a uma causa, significa dizer que estou “potencialmente pronto” e se houver algum “problema”, eu posso interferir nele de alguma forma. Solidário é quem tem interesses e responsabilidades recíprocas. É quem participa de uma causa, de um empreendimento, ou de uma opinião de outrem. O conceito de “solidariedade” refere-se a uma relação entre partes feita multilateralmente. É uma relação social presente entre “os iguais”, àqueles que possuem equivalente poder real ou simbólico.

71

Ainda na mesma página, ele completa o argumento anterior afirmando que as regras do Direito Penal são notáveis por sua evidência e exatidão, enquanto as regras puramente morais, como os ensinamentos religiosos, têm um alto grau de instabilidade, sendo imprecisas as suas diretrizes. E, por isso mesmo, fazem com que, freqüentemente, seja trabalhoso estabelecer fórmulas fixas: ―podemos dizer, de uma maneira muito geral, que se deve trabalhar, ter piedade do outro, etc.; mas não podemos fixar de que maneira nem em que medida‖ (1978: 40). Durkheim, nesse ponto, acertadamente, refere-se à ―instabilidade‖ dos chamados ―direitos morais‖, que é o caso da obrigação de doar coisas aos pobres, um dever de ética religiosa, e, quando essas práticas são rotuladas pelo nome ―solidariedade‖, um dever ético da sociedade laica. Quero salientar, entretanto, que as regras morais adestradoras de uma conduta religiosa só parecem ―imprecisas‖ ou ―instáveis‖ para quem está fora do universo religioso. Para quem está imerso no universo de práticas e regras religiosas, ou seja, para os fiéis de uma religião, para os integrantes da COT, da Legião de Maria e da Casa Deus Conosco, essas normas são tão ou mais precisas, estáveis e relevantes do que as regras do ―direito real‖. O Pentateuco, por exemplo, principalmente para os judeus, pode ser muito mais coercitivo do que as leis dos países onde existem pessoas que seguem os ensinamentos desse conjunto de livros. Como o próprio Durkheim salienta: ―são as ofensas à sociedade que os deuses vingam pela pena, e não a dos particulares; ora, as ofensas contra os deuses são ofensas contra a sociedade‖ (1978: 47). No terceiro capítulo, intitulado ―A Solidariedade Orgânica ou devida à divisão do trabalho‖, Durkheim chega a um dos principais pontos que desejo esmiuçar no trabalho: a diferenciação feita por cientistas sociais entre práticas de caridade e solidariedade. Ele afirma: Com efeito, o contrato é, por excelência, a expressão jurídica da

cooperação. Existem, é verdade, os contratos ditos de beneficência, aos

72

quais apenas uma das partes está vinculada29. Se dou a outrem algo sem condições, se me obrigo gratuitamente a um depósito ou a um mandato, resultam para mim obrigações precisas e determinadas. Entretanto, não existe concorrência propriamente dita entre os contratantes, visto não haver obrigações, senão de um lado. Todavia, a cooperação não está ausente do fenômeno, é apenas gratuita e unilateral. O que é, por exemplo, a doação, senão uma permuta sem obrigações recíprocas? Esses tipos de contratos são, portanto, apenas uma variedade dos contratos verdadeiramente cooperativos. [...] são muito raros; pois é apenas excepcionalmente

que

os

atos

de

benfeitoria

se

incluem

na

regulamentação legal30. (Durkheim, 1978: 66)

Mesmo sem citar expressamente a palavra ―caridade‖, Durkheim fala em termos idênticos ao sentido apropriado pelo dicionário e pelo senso-comum: ―doação benevolente e gratuita‖. Além disso, o autor consegue de maneira muito lúcida demarcar conceitualmente a diferença entre o ―contrato de cooperação‖ (solidariedade) e o ―contrato de beneficência‖ (caridade), onde apenas uma das partes está vinculada, a parte filantropa, doadora. Por isso, podemos chamar as práticas de caridade de ―gratuitas‖ e ―unilaterais‖, pois, pelo menos aparentemente, não se espera nada da parte que recebe a doação como contraprestação contratual. A doação é, de fato, uma ―permuta sem obrigações recíprocas‖. Já o que Durkheim chama de ―contratos verdadeiramente cooperativos‖ são aqueles que levam as sociedades a formarem um senso de solidariedade. ―Para que isto seja assim, é preciso ainda que o contrato de sociedade coloque todos os associados no mesmo nível, que suas contribuições sejam idênticas, que suas funções sejam as mesmas...‖ (1978: 68). O que é mais importante em tudo isso, é o fato de Durkheim ter ―descoberto‖ o caráter voluntário, teoricamente livre e gratuito desse tipo de 29

Os grifos são todos meus. Observação: são raros no chamado direito legítimo, mas como obrigação social ou religiosa estão presentes abundantemente em nossa sociedade. 30

73

dádiva. Mais tarde, porém, Mauss, falando da principal característica das prestações sociais de algumas tribos da Polinésia, Melanésia e do Noroeste americano, atestará a complexidade do fenômeno das trocas de coisas entre os homens e entre os homens e os deuses. Mauss, ampliando a análise formulada pelo tio, vai dizer claramente que o caráter voluntário das doações é, na verdade, contraditoriamente, imposto e interessado – existe a reciprocidade

obrigatória (cf. Mauss, 1974). Assim como no caso da troca de regalias entre os membros das tribos analisadas por Mauss, as doações caritativas dos adeptos da Renovação Carismática são realizadas muito mais por interesse de ―doar, receber e retribuir‖ do que por imposição propriamente dita, ou seja, não existe lei secular, um código de regras sociais com mecanismos de advertência, estabelecendo a obrigação de dever filantrópico, de dever ajudar os outros materialmente. Isso já foi observado pelo próprio Durkheim (1978), quando fala das relações sociais embasadas no direito pessoal. O que existe de fato, entre os carismáticos, é uma obrigação religiosa, uma tentativa de adestrar as ações para uma práxis caritativa, de tentar despertar um sentimento de benevolência, de ―amor de doação‖, nas pessoas. Quanto aos interesses relativos a essas ações, eu os considerarei mais adiante, principalmente na terceira parte. O economista e cientista social Karl Polanyi pode, por enquanto, nos oferecer trilhas seguras sobre quais interesses estariam envolvidos nas organizações sociais de cunho solidário. Polanyi, em A grande transformação, estuda detalhadamente o processo histórico e econômico que possibilitou o aparecimento do mercado como instituição independente das demais esferas da vida humana, passando a dominá-las pela transformação da terra, do dinheiro e do trabalho em meras mercadorias. Analisa, para isso, os sistemas econômicos das sociedades tribais e tecnológicas, comparando o tipo de organização do mercado em diversas sociedades e delineando as particularidades do modo de produção capitalista.

74

Falando

dos

modelos

econômicos

das

sociedades

―arcaicas‖,

de

organização social solidária, Polanyi afirma:

O interesse econômico individual só raramente é predominante, pois a comunidade vela para que nenhum de seus membros esteja faminto, a não ser que ela própria seja avassalada por uma catástrofe, em cujo caso os interesses são ameaçados coletivamente e não individualmente. [...] a manutenção dos laços sociais é crucial. Primeiro porque, infringindo o código estabelecido de honra ou generosidade, o indivíduo se afasta da comunidade e se torna um marginal; segundo porque, a longo prazo, todas as obrigações sociais são recíprocas31, e seu cumprimento serve melhor aos interesses individuais de dar-e-receber. (Polanyi, 2000: 6566)

Nesse ponto, o autor entra em sintonia com o conceito durkheimiano de ―solidariedade mecânica‖.

Para Durkheim, as sociedades tribais possuem

vínculos sociais de caráter ―globalizante‖. Tais vínculos são criados por meio da semelhança das atividades sócio-econômicas dos indivíduos. Assim, em uma comunidade desse tipo, não existe divisão social do trabalho. Cada membro do grupo sabe fazer todas as coisas que os outros fazem de maneira mais ou menos eficiente. Todos aprendem as técnicas para pescar, para produzir remédios, confeccionar vestimentas, preparar alimentos, etc. Sendo uma sociedade amplamente holista, os códigos morais de generosidade e de solidariedade costumam ser bastante coercitivos, pois os interesses individuais confundem-se quase sempre com os interesses coletivos. Polanyi avalia que a história de todos os grupos humanos conhece pelo menos uma das quatro espécies de economia existentes, denominados por ele de ―princípios de integração econômica‖: o mercado propriamente dito, onde se permite o ajuste entre a oferta e a procura de bens e serviços, tendo como 31

Grifo meu.

75

finalidade a troca com a ajuda de equivalentes simbólicos, que são as moedas; a

redistribuição, em que a produção é conduzida a uma autoridade central, sendo armazenada e posteriormente distribuída aos integrantes do grupo social; a

reciprocidade32, que obedece ao princípio básico da dádiva, ou seja, a contraprestação de presentes (uma pessoa oferece uma regalia a outra pessoa e esta retribui uma coisa de equivalente valor à primeira); e a domesticidade, onde existe a produção e o armazenamento dos produtos para o consumo particular de determinado grupo. Dos quatro princípios de integração econômica fundamentados por Polanyi, só interessa ao presente trabalho dois: a redistribuição e a

reciprocidade. Esses dois conceitos podem ajudar na diferenciação entre ações sociais de cunho caritativo e ações sociais que se baseiam na solidariedade. O que Polanyi chama de ―reciprocidade‖ é o caráter implícito na dádiva, na troca de presentes conceituada por Mauss. A dádiva, para Mauss, implicaria necessariamente em uma contra-dádiva. Conforme a análise do economista austríaco, a oferenda de dádivas tem um efeito social relevante, podendo assumir um caráter particular (doação interpessoal) ou geral (doação a uma coletividade). O fundamento da dádiva é que os objetos não são dissociados de quem os oferece, pois eles representam, em última instância, os produtos de um comportamento social. Já o termo ―redistribuição‖ indica que a sociedade tenha um centro, ou centros, que reparta os recursos depois de os ter recebido. O autor afirma: 32

A concepção de “reciprocidade” de Bronislaw Malinowski em Crime and custom in savage society: Reciprocidade: “a maioria, senão todos os atos econômicos pertencem a alguma cadeia de presentes e contrapresentes recíprocos que, a longo prazo, chegam a um equilíbrio e beneficiam igualmente ambos os lados [...] O homem que desobedecesse persistentemente às regras da lei nas suas transações econômicas logo se veria à margem da ordem social e econômica ─ e ele está perfeitamente consciente disso” (p. 310, notas de rodapé de K. Polanyi, A grande transformação). O conceito de “solidariedade” implica necessariamente na acepção de “reciprocidade” de Malinowski e de Thurnwald, quando diz: “a dádiva de hoje será recompensada pela retomada de amanhã. Esta é a conseqüência do princípio da reciprocidade, que permeia todas as relações da vida primitiva...” (p. 312, em notas de rodapé de K. Polanyi, A grande transformação). Podemos encontrar também a mesma definição em Durkheim, em Da divisão do trabalho social, quando se formula o conceito de “solidariedade mecânica” das sociedades arcaicas. 24 Grifo do autor.

76

A reciprocidade e a redistribuição são capazes de assegurar o funcionamento de um sistema econômico sem a ajuda de registros escritos e de uma complexa administração apenas porque a organização das sociedades em questão (as sociedades tribais) cumpre as exigências de uma tal solução com a ajuda de padrões tais como a simetria e a

centralidade33. (Polanyi, 2000: 68)

Enquanto a reciprocidade produz majoritariamente34 relações sociais de simetria entre seus atores, a redistribuição estabelece necessariamente relações sociais baseadas em uma centralidade. O que Polanyi classifica como ―centralidade‖, eu prefiro denominar ―hierarquia social‖ ou ―estrutura hierárquica‖. Através dessa mudança de terminologia, procuro tornar mais claro para o leitor a diferença entre ―reciprocidade‖ e ―redistribuição‖ e, assim, estabelecer as definições científicas de ―solidariedade‖ e ―caridade‖. O caráter de reciprocidade está presente na solidariedade entre os membros de um grupo qualquer. A ação de dar presentes (materiais) ou a ação de ―ajudar de alguma forma‖ outra pessoa com equivalente poder aquisitivo, ou participante da mesma situação social (partido político, grupo de oração, associação comunitária, etc.), representa uma ação solidária. Por exemplo: quando um morador do Lagamar, bairro pobre de Fortaleza com organização comunitária, resolve ajudar um vizinho com um quilo de açúcar que esse estava precisando naquele momento, ele está sendo solidário. Pois, ele não está somente dando esmolas, sem esperar nada em troca da parte ajudada. Não é 33

Grifos do autor. É o modelo institucional da centralidade que permite a redistribuição. A centralidade supõe uma autoridade e uma divisão do trabalho entre os representantes dessa autoridade e os outros membros do grupo, podendo as relações entre o grupo dirigente e os subordinados diferir consoante o poder político instituído. Por seu lado, a simetria facilita o comportamento da reciprocidade, estando muito presente nos povos “tribais”. Esse modelo é favorecido pela circulação de bens e serviços sem a produção e repartição de bens e serviços 34

Polanyi demonstra-se partidário da idéia de que as relações sociais recíprocas são necessariamente simétricas. Seria prudente, contudo, salientar a contribuição da análise maussiana. Victor Karady, na “Présentation de l‟édition” da coletânea número 1. Oeuvres: les fonctions sociales du sacré, afirma: “La réciprocité n‟est pas toujours l‟égalité” (p. xlv).

77

um ato de benevolência gratuita, pois tanto o doador como o receptor estabelecem uma espécie de contrato de troca de regalias. Quando, porventura, o morador que ―deu‖ o quilo de açúcar para o vizinho estiver precisando de alguma coisa, alguma ajuda, o vizinho estará à sua disposição porque sabe da dívida que tem para com ele e se presta a serviços equivalentes já pensando em uma nova precisão que possa ter no futuro. A reciprocidade, nesse caso, está explícita, não representando um fenômeno que precisa ser desvendado. Um tipo de redistribuição35 bem comum, porém não retratada com ênfase nas estatísticas e nas análises econômicas, são as doações de grupos filantrópicos. Com efeito, a organização filantrópica, religiosa ou não, objetiva arrecadar doações da sociedade em geral, acumulando e organizando os produtos adquiridos, para assim poderem redistribuí-los para os grupos indigentes. Essa ―racionalização‖ da caridade, como podemos chamar tal forma de redistribuição, intensifica-se na medida em que se torna muito mais cômodo para o filantropo doar indiretamente seus benefícios, pois assim pode evitar atos de violência ou animosidade dos carentes e também tem a certeza de que suas doações estão ―em boas mãos‖ e vão chegar a quem realmente está precisando. O caráter da redistribuição resulta de uma hierarquia social pelo simples fato dos doadores terem maior poder aquisitivo do que os carentes, sendo muitas vezes empresas privadas que estão ―fazendo a parte delas‖. Essas empresas recebem, em muitos casos, a nomeação de ―empresas cidadãs‖, ―empresas responsáveis socialmente‖ ou ―empresas solidárias‖. Com tal nomenclatura, elas atraem mais clientes com ―consciência política‖ e podem, até mesmo, chamar a atenção do capital estrangeiro.

35

Observando, é claro, que o conceito de “redistribuição”, em Polanyi, é bem mais amplo que o exemplo a ser citado no parágrafo. O economista fala do conceito em termos gerais, englobando todas as instituições sociais de um dado grupo. No caso aqui referido, adaptamo-lo à micro-economia, às relações sociais corriqueiras, às práticas assistenciais de cunho particular, ou seja, à caridade pessoal. Além disso, a redistribuição não se refere necessariamente ao assistencialismo social. Grupos sociais podem escolher um centro para arrecadar os produtos que todos produzem somente para facilitar a repartição dos bens.

78

Ainda no capítulo ―Sociedades e sistemas econômicos‖, Polanyi cita alguns exemplos de relações sociais de redistribuição. Com isso, ele analisa resumidamente o tema:

Como regra, encontramos o processo de redistribuição como parte do regime político vigente, seja ele o de uma tribo, de uma cidade-estado, do despotismo ou do feudalismo, do gado ou da terra. A produção e a distribuição de mercadorias são organizadas principalmente através da arrecadação, do armazenamento e da redistribuição, sendo o padrão focalizado o chefe, o templo, o déspota ou o senhor. (Polanyi, 2000: 72)

Ao observarmos a descrição acima, vemos em que consiste o conceito polanyiano de redistribuição. Podemos então dizer que as práticas de caridade representam uma espécie de economia marginal, que concebe a existência de hierarquias de cunho econômico e, cuja presença, exprimi-se tanto no âmbito da micro-política e da micro-economia (meu objeto-sujeito de estudo), como no âmbito dos grandes projetos sociais das administrações públicas, ou mesmo das grandes organizações multinacionais. Assim, estou adaptando o conceito de Polanyi à minha abordagem da dádiva entre os católicos carismáticos, pois sabemos que não existe lei qualquer do poder legítimo, nem mandamento secular, nem outorga de algum déspota coibindo o ato ou a idéia de não fazer oferendas, de não presentear, de agir de modo avaro. As leis e os mandamentos existentes quanto ao valor de ser prestativo, de agir de maneira altruísta, referem-se à própria experiência social e histórica dos povos. Eles dizem respeito, geralmente, a ensinamentos religiosos e ditos populares; não havendo, por isso, instituições policiais adestrando ou punindo a não-obediência dessas diretrizes. Resumindo as argumentações até aqui trabalhadas, podemos dizer que as ações sociais caritativas estão presentes nos casos em que existe hierarquia

social entre as partes contratantes: o doador e o receptor; não existindo uma 79

reciprocidade36 explícita, material, pois somente uma das partes oferece a regalia, a esmola. A caridade caracteriza-se pela unilateralidade e pela gratuidade da sua ação, em termos materiais. O fenômeno social da solidariedade ocorre quando há cooperação entre as partes contratantes, quando, explicitamente acontece a troca de regalias. Presenciamos atos de solidariedade em grupos sociais homogêneos economicamente (simétricos), onde há possibilidade das pessoas estabelecerem uma parceria que as ajudem a viver melhor do que elas viveriam se não compactuassem. As cooperativas de produção representam um excelente exemplo de organização social solidária. Além disso, historicamente, as práticas de caridade imbuíram-se de uma ética religiosa, enquanto as experiências solidárias foram, na maioria das vezes, o resultado de sucesso econômico e (ou) de organização social. Grosso modo, usando expressão maussiana, a caridade, no geral, é ―um presente feito aos deuses‖ e a solidariedade consiste em ―um presente feito aos próprios homens‖. Na caridade dos carismáticos não existe reciprocidade explícita, uma obrigação de dar e retribuir entre os atuantes que fazem as doações e aqueles que recebem, como no caso da análise de Mauss. Ela não representa uma atividade comercial, a natureza da ação é outra. As pessoas que praticam as doações sabem que não vão receber nada diretamente em troca daqueles indigentes, só o agradecimento, que já lhes é suficiente. Não é uma troca de presentes, não há solidariedade. Aqueles que recebem sabem que dificilmente terão como retribuir. Ambos contam apenas com o ―olhar‖ das entidades divinas, que poderão julgar, e ai sim, recompensar ambas as partes. De certa forma, há uma ―reciprocidade‖, mas é uma reciprocidade indireta, simbólica, com a intervenção de atores sobrenaturais. As frases proferidas pelos indigentes: ―Deus te dê em dobro‖, ―Deus te abençoe‖, ―uma esmola (uma caridade) pelo amor de Deus‖, atestam o apelo à divindade e à religiosidade do doador. 36

Na terceira parte, veremos como se processa a reciprocidade simbólica nas relações sociais entre carismáticos e carentes.

80

CAPÍTULO IV: O ENIGMA DA DÁDIVA: SENTIMENTO ALTRUÍSTA OU INDIVIDUALISMO?

Este capítulo serve como um apêndice da análise até aqui trabalhada acerca da demarcação de fronteiras entre as relações sociais cooperativas, inspiradas na solidariedade, e as relações de reciprocidade não explícita, que é o caso da beneficência. Pretendo agora complexificar uma idéia que deve parecer assaz óbvia para a maioria das pessoas: a caridade, a solidariedade e as ações filantrópicas, em geral, consistem em ações altruístas. Altruísmo, no seu sentido denotativo, é o sentimento de quem põe o interesse alheio acima do seu próprio. Nos tempos atuais, tal definição ganha contornos de algo extremamente utópico. Quem, em mundo dominado pelo individualismo burguês, consegue pensar realmente no outro sem estar pensando em si mesmo? Zygmunt Bauman, no excelente Amor líquido, comenta a tese freudiana dos instintos egoístas humanos, dizendo: A invocação de ―amar o próximo como a si mesmo‖, diz Freud (em O mal-

estar na civilização), é um dos preceitos fundamentais da vida civilizada. É também o que mais contraria o tipo de razão que a civilização promove: a razão do interesse próprio e da busca de felicidade. (Bauman, 2004: 97)

De fato, o padrão de felicidade ocidental está direcionado para o imediatismo da satisfação dos interesses individuais.

81

Observemos, antes de tudo, o que se quer dizer com a expressão ―interesses individuais‖. O que representa para o Ocidente tecnologicamente ―sofisticado‖ o ethos do individualismo? O termo ―individualismo‖ serve para designar a maneira egoísta de agir e ver as coisas. Uma pessoa individualista é aquela que põe seus interesses privados acima de outros objetivos. Ela deixa transparecer sua personalidade única em volta do social. A personalidade individual sobrepõe a coletividade. Todos os seus atos, mesmo que aparentemente estejam com finalidade de influir no todo, acabam por beneficiar, ou até mesmo prejudicar a si mesmo. Como diria Geertz, quando nos habituamos com uma nova idéia, após ela fazer parte de nossa vivência prática e de ser usada como nosso instrumento teórico, passamos a fazer nossas ações sociais com um maior equilíbrio quanto às suas reais utilizações e ficamos tão familiarizados com essas idéias que acabamos por popularizá-las em nosso cotidiano. Assim aconteceu com o individualismo, pois foram necessárias condições históricas para fazê-lo surgir como idéia, abstração essa transformada numa prática social. Desde os primórdios da humanidade, várias culturas surgiram, mantiveram-se e extinguiram-se sob a égide de diferentes formas de produzir e de construir visões do mundo social. Algumas sociedades foram extremamente coletivizadoras de suas atividades e a importância, o status social, do individuo mensurava-se através de sua integração com o conjunto; outras, porém, exaltaram em suas histórias, a individualidade dos indivíduos, o que cada ser tem de ―especial‖ em relação aos outros. Criou-se o conceito de competência. Alguns indivíduos seriam mais competentes numa atividade do que a maioria do grupo e eles poderiam ter uma posição de destaque na sociedade. O status social, nesse caso, era (é) medido segundo as habilidades consideradas ―inatas‖ desses indivíduos. Analisando a organização social do Egito Antigo, por exemplo, não se nota o surgimento de práticas egocêntricas. A sociedade egípcia constituía o que se denomina servidão coletiva. O ―Estado‖ apropriava-se dos excedentes da

82

produção, utilizando mão-de-obra gratuita para construção de depósitos de armazenagem. A sociedade estruturava-se hierarquicamente com o faraó e sua família, uma aristocracia sacerdotal e a grande massa camponesa. Os escravos prisioneiros de guerra não eram considerados como parte da sociedade. Ora, numa sociedade verdadeiramente37 hierárquica, com todos os ―lugares sociais‖ previamente definidos, é impossível surgir uma ética individualista, pois para que um grupo social seja egocêntrico torna-se necessária a existência de mobilidade entre as classes de pessoas. No Egito, um camponês nunca poderia se tornar um faraó, então, com que finalidade esse indivíduo praticaria atos para seu próprio interesse pessoal? Nas culturas hebraicas, assimiladas por nós ocidentais através do cristianismo, já podemos encontrar alguns vestígios do que se poderia chamar de prática individualista. Isso porque apesar da antiga sociedade hebraica ter parte de seu sistema agrícola coletivizado, existiam grandes porções de terra privatizadas. Esses proprietários de terras tinham, sem dúvida, outros objetivos que se confrontavam com o campesinato, pois buscavam acima de tudo o bem estar próprio e familiar, além de sentirem-se independentes em relação aos outros. Poderíamos também discutir a questão da identidade religiosa judaica. O judaísmo/cristianismo, através de sua mitologia, pressupõe a existência de um único deus (monoteísmo) e profetiza o messianismo, isto é, a vinda de um messias libertador na luta contra a dominação estrangeira. Como bem salientou Weber, a religião é o meio mais prático e direto para se entrar no inconsciente dos indivíduos por ser formada basicamente por dogmas. A psiquê dos ocidentais está repleta de valores judaicos e o nosso egocentrismo tem origem também no cristianismo. Um sistema mitológico que possui um único deus, independente e todo-poderoso, além de ter um único messias, imortal,

37

O “verdadeiramente” serve para esclarecer o tipo de hierarquia egípcia, onde não havia nenhuma forma de mobilidade social. Mais adiante, veremos que Marcos Lanna, em A dívida divina, analisa a ambigüidade contemporânea da sociedade brasileira, que acomodou a estrutura hierárquica aristocrática e rural, resultante da colonização lusitana, à nova ordem ideológica moderna do individualismo ocidental.

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independente, detentor da única verdade possível e salvador do mundo dos pecados e das mentiras é, entre outras coisas, individualista. O antropólogo francês Louis Dumont, em seu livro O individualismo:

uma perspectiva antropológica da ideologia moderna, atesta o fato do individualismo pragmático contemporâneo estar engendrado pelo arcabouço ideológico do cristianismo primitivo. O cerne do egocentrismo cristão encontrase na idéia de que ―todo esforço no sentido da perfeição estava (entre os primeiros cristãos) voltado para o interior, como convém ao indivíduo-fora-domundo‖ (1985: 51). Dumont observa, em um outro momento do trabalho, que o calvinismo foi a primeira tentativa de transferir esse individualismo extramundano para as preocupações de interesses pessoais mundanos (cf. Dumont, 1985). Nas sociedades feudais, o cristianismo fora desenvolvido sob uma perspectiva diversa da sua vertente hebraica e da sua nova concepção filosófica no mundo contemporâneo. O cristianismo feudal era extremamente autoritário e legitimava a sociedade estamental. Além disso, os servos, constituídos pela maior parte da população camponesa, tinham plena consciência da sua posição social e, como bons cristãos, eram submissos, tanto à Igreja, como aos senhores feudais. Os servos não tinham como despertar um espírito egocêntrico em uma sociedade com uma estratificação apoiada pela própria religião. Envolto pelo idealismo religioso, o clero transmitia a população uma visão de mundo que lhe era conveniente e adequada ao período: um mundo dividido em estamentos, necessariamente desiguais. Com a queda da imensa maioria das sociedades feudais e dos antigos regimes absolutistas, retorna-se à idéia da exaltação ao individualismo. Foram os filósofos da Renascença, os escritores românticos e, principalmente, os pensadores do Iluminismo, os responsáveis por esse ressurgimento do espírito egocêntrico, pelo menos nas sociedades ocidentais contemporâneas. A filosofia ilustrada conseguiu legitimar a visão de mundo individualista na nova ideologia da época considerada moderna: a ciência. Para John Locke, 84

os homens possuem a vida, a liberdade e a propriedade privada como direitos naturais. Não vejo premissas melhores para fazer surgir o ethos individualista. Das idéias de Jean-Jacques Rousseau, herdamos os conceitos de ―soberania do Estado‖, ―direito de ir e vir‖, ―direito à vida‖, ―direito do mais forte‖, e ―religião civil‖, que estão presentes na nossa consciência como verdades incontestáveis. Conquistar mercados, empresas, lucros, negócios, mulheres, homens, espaço, tempo, status, esse é o sentido teleológico do mundo contemporâneo, esse é o rumo da história capitalista. Podemos também buscar a existência do ethos individualista em sociedades que não desenvolveram a escrita. Na famosa etnografia de Bronislaw Malinowski sobre os habitantes das ilhas do Pacífico Ocidental, é revelado que as tribos da Nova Guiné possuem um sistema totêmico de parentesco, ou seja, sua hierarquia familiar classifica-se segundo objetos e animais a que certos grupos dedicam veneração, e um sistema matrilinear de organização social. No oriente desse arquipélago, a autoridade política está legitimada nos nativos mais velhos de cada aldeia. Dessa forma, todos os indivíduos têm consciência da sua submissão tradicional à classe dos homens mais antigos, e sabem que só ao chegar a certa idade avançada vão ter poder sobre as decisões tribais. Não há como surgir numa comunidade com uma hierarquia etária espíritos egocêntricos. Segundo os estudos etnográficos do antropólogo Edward EvansPritchard, que analisou os nilotas da África Oriental, especificamente os grupos sociais Nuer e Dinka, foi descoberto que esses povos não possuem um governo organizado e que o seu Estado pode ser descrito como uma anarquia relativamente ordenada por gradações etárias: ―embora os Nuer tenham consciência de sua identidade social, eles não possuem funções corporativas‖ (1978: 12). Ou seja, as tribos Nuer não têm a capacidade de perceber a relação superior X inferior segundo os moldes de uma perspectiva individualista. Nos Nuer, não manda quem pode porque sabe e tem competência, mas quem está numa posição social já estabelecida na tribo. Tanto nas sociedades tribais do 85

arquipélago da Nova Guiné, como nos nilotas da África Oriental, não se encontram as condições necessárias para a formação de um espírito verdadeiramente egocêntrico. Voltando para o caso do individualismo pragmático contemporâneo, podemos encontrar também no campo das construções materiais nosso ethos individualista. A maioria dos nossos prédios, das nossas cidades, dos nossos transportes, enfim, de toda nossa arquitetura é individualista. Sempre valorizamos o que os arquitetos criam de novo. A sua ―competência‖ está em se

diferenciar dos demais em seus traços, técnicas e produções. Como resultado, temos cidades deformadas, coloridas, mal organizadas e com as mais variadas técnicas de estética. Na cidade de Fortaleza, por exemplo, nos acostumamos a ver edifícios enormes em orlas marítimas, onde deveriam ser construídas casas comuns. Tal contra-senso geográfico-arquitetônico contribui para que os habitantes tenham a sensação térmica de ―abafamento‖, elevando a temperatura nas periferias. No universo das produções literárias e científicas, existe um pensamento egocêntrico. Quando um pesquisador ou escritor produz um trabalho, uma obra, ele não está somente querendo fazer ciência e encontrar uma verdade antes escondida, ele também quer ser o primeiro e o único a descobrir aquela idéia, ou pelo menos deseja ser o melhor autor a sintetizar ou analisar determinado assunto. O cientista almeja, acima de tudo, o reconhecimento. Esses atores sociais que buscam incessantemente uma posição de

destaque na sociedade estão motivados pelo poder, ou pelos micro-poderes que a vida social oferece. Para Michel Foucault, nos textos de Microfísica do poder, o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. ―Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas e relações de poder‖ (1981: 25). Claro que nada está isento do poder, como nos lembra Foucault, mas convenhamos que o poder de um grupo de pessoas que conseguem movimentar as pernas é bem maior, bem mais coator, do que o poder que um grupo de 86

aleijados têm de formar forças para um exército. E, nessa desigualdade das relações de poder, os indivíduos de ―sucesso‖ pretendem ficar no cume da pirâmide social, sempre dispostos e ―competentes‖ ao movimentar suas peças do jogo. Como diria sabiamente Foucault: o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do saber e do poder. O capitalismo consegue produzir

características

para

cada

individualidade,

desde

os

desejos,

comportamentos e hábitos, até as próprias necessidades pessoais. A educação adestradora do sistema capitalista consegue construir até um padrão de individualizar: A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isto faz com que apareça pela primeira vez na história esta figura singular, individualizada – o homem – como produção do poder. (Foucault, 1981: 22)

Ao mesmo tempo em que existe uma singularização do indivíduo, existe uma padronização da forma de individualizar. Dessa forma, o ocidental tem um certo leque de opções, uma verdadeira prateleira cultural de egocentrismos. Na concepção bíblica, a caridade, esse ―amor de doação‖, a virtude máxima do cristianismo, confronta os ditames do arcabouço ideológico do individualismo. O ―amar o próximo como a si mesmo‖ pretende-se desprovido de interesses, pelo menos de interesses pessoais, pragmáticos. Segundo Mauss, porém, as dádivas consistem em relações sociais gratuitas e obrigatórias ao mesmo tempo. Acrescenta ainda que elas são trocas interessadas e impostas. ―Recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra; é recusar-se a aliança e a comunhão‖ (1974: 58). O ―dar‖ acarreta o ―receber‖ e o ―receber‖ acarreta o ―retribuir‖ em um eterno círculo, como na troca de colares e braceletes do Kula das ilhas Trobriand.

87

Bauman afirma, no capítulo ―Sobre a dificuldade de amar o próximo‖38, que a obrigação de amar os outros, na sua conotação cristã, talvez tenha menos possibilidade de ser obedecida do que qualquer outra, pois consiste em uma espécie de negação do instinto de sobrevivência do homem e, por isso, pode ser considerada a moral por excelência. Para Bauman, o amor não escapa aos interesses individuais das pessoas: ―o que amamos é o estado, ou a esperança de sermos amados. De sermos objetos

dignos do amor39, sermos reconhecidos como tais e recebermos a prova desse reconhecimento‖ (2004: 100). A caridade dos integrantes dos três grupos carismáticos estudados é feita impulsionada por um ―amor de doação‖, mas também pede em troca o amor dos outros e o reconhecimento de estarem fazendo a coisa certa. As ações de filantropia produzem e mantêm o status social dos doadores de serem e saberem que são ―homens de bem‖, pessoas dignas de reconhecimento. Tal reconhecimento manifesta-se pela idéia de que: Eu ―faço a diferença‖ para os outros além de mim. O que eu digo e faço e sou tem importância − e isso não é apenas um vôo da minha fantasia. O mundo à minha volta seria mais pobre, menos interessante e promissor se eu subitamente deixasse de existir ou fosse para outro lugar. (Bauman, 2004: 101)

O discurso acima representa a mola mestra do ethos individualista ocidental. ―Ser importante‖ e, principalmente, ―ser especial‖, representa o ―óvulo‖ da felicidade pelo qual os homens se movem e se contorcem em busca da fecundação. Bauman, citando a conceituação de Anthony Giddens sobre a idéia do ―relacionamento puro‖, escreve:

38 39

Ver Bauman, Amor líquido, p 98. Grifos do autor.

88

O ―relacionamento puro‖ tende a ser, nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano, na qual se entra ―pelo que cada um pode ganhar‖ e se ―continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que estão proporcionando a cada uma satisfações suficientes para permanecerem na relação‖ (Bauman, 2004: 111)

As formas de relacionamento afetivo tendem, cada vez mais, a fugir dos sentimentos altruístas de fraternidade, doação e cooperação. No entanto, percebe-se na descrição de Giddens a troca declarada de interesses individuais. Afinal, as duas partes, os dois amigos, ―vendem‖ e ―compram‖ suas satisfações. Existe, em última instância, reciprocidade na relação. Como vimos nos tópicos anteriores, a solidariedade está presente onde existe a reciprocidade, a troca explícita de coisas. O ―relacionamento puro‖ pode ser apenas um novo tipo de socialização solidária, onde os desejos egocêntricos eclodem de maneira muito mais livre. Segundo Knud Logstrup, comentado por Bauman, os sentimentos morais não nascem da pura negação dos instintos. Para ele, a moral se revela no altruísmo humano, nas atitudes de ―amor ao próximo‖. Analisa, então, o fato da verdadeira atitude de compaixão ser ―sem intenção‖ e ―sem reflexão‖. Defende: ―a compaixão é espontânea porque a menor interrupção, a menor maquinação, a menor diluição para que sirva a algum outro propósito provocam sua destruição total – na verdade, transformam-na em seu oposto, a desumanidade‖ (2004: 114). Vê-se

na

tese

de

Logstrup

novamente

a

valorização

do

ato

―desinteressado‖, em que a caridade bíblica é colocada como estandarte maior, em detrimento das ações ―interessadas‖, em que os sentimentos mundanos e, contraditoriamente, chamados ―desumanos‖, têm a sua representatividade. ―Amor de doação‖ sobrepõe-se aos outros ―amores‖: sensual, amizade, paixão, etc; caridade sobrepõe-se à solidariedade; compaixão sobrepõe-se aos interesses egocêntricos.

89

Entretanto, tais hierarquias estão presentes e ganham força lógica apenas no imaginário das pessoas. Depois de Mauss, as ações sociais ―desinteressadas‖ não encontraram mais espaço nas caracterizações do bichohomem. De certo modo, o ―dar, receber e retribuir‖ maussiano deixou o ser humano muito mais ―maquiavélico‖ do que até então poderíamos imaginar. Polanyi, historicizando os paradigmas propostos por Mauss, deixa claro que a proliferação do ethos individualista-pragmático é um fenômeno da modernidade ocidental, tese já amplamente difundida nas ciências sociais, principalmente por Dumont. Ele afirma: O ―selvagem‖ individualista, que procura alimentos ou caça para si mesmo ou para sua família, nunca existiu. Na verdade, a prática de prover as necessidades domésticas próprias tornou-se um aspecto da vida econômica apenas em um nível mais avançado da agricultura. Mesmo então, ela nada tinha em comum com a motivação do ganho, nem com a instituição de mercados. (Polanyi, 2000: 73)

Essa questão é de fundamental importância, pois a partir dela podemos auferir o fato de que o homem é esse ser ―maquiavélico‖, que sempre está interessado em algo quando age socialmente; mas, os interesses podem variar segundo a época e o espaço, o ambiente social, em que ele se insere. Os interesses do homem individualista-pragmático-ocidental não são os mesmos que movem os homens envolvidos no Kula de Nova Guiné, ou no Potlatch polinésio. O antropólogo Marcos Lanna chama a atenção para as peculiaridades do ―individualismo à brasileira‖, buscando diferenciar, segundo o pensamento dumontiano, o que caracterizaria as estruturas sociais hierárquicas das estruturas sociais de cunho individualista-pragmático. Ele lembra: ―... a hierarquia, definida como o englobamento de contrários, surgiria assim da proximidade entre grupos diferentes. O individualismo, por sua vez, se caracteriza por relações de igualdade num contexto de separação‖ (1995: 44). 90

Gostaria apenas de observar o fato de que, no caso do processo histórico brasileiro, as hierarquias sociais, mesmo com os peculiares ―lugares sociais previamente definidos‖ (que vez ou outra se abre a exceções), convivem mais ou menos harmonicamente com um ethos individualista aos moldes do Ocidente tecnologicamente ―sofisticado‖ que, paulatinamente, adentra nos universos simbólicos nacionais e passam, muitas vezes, a condicionar a operacionalidade de certas condutas. A análise do ―individualismo à brasileira‖ também pode ser encontrada na obra-prima Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda sob os conceitos de personalismo e patrimonialismo. A sociedade brasileira é personalista porque grande parte da população é formada de pessoas e não de indivíduos. O que se quer dizer com isso? O indivíduo como ser é aquele que tem a vida no particular, é organizado em si próprio, está longe dos outros seres, é o sujeito ordinário, o fulano, está quase alheio à sociedade. A população dos países escandinavos representa um belo exemplo de uma sociedade formada de indivíduos. A maioria das pessoas está sempre compenetrada em seus afazeres e não se mistura a esfera particular com a esfera pública. Já Buarque de Holanda refere-se a ―pessoas‖ quando fala do caráter geral da sociedade brasileira. Nesse sentido, ―pessoa‖ é um personagem, faz parte de uma história e de um contexto social, tem suas obrigações na sociedade e intromete-se no meio público. Citando o autor: ―Para o funcionário ‗patrimonial‘, a própria gestão política apresenta-se como assunto do seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos...‖ (1996 : 146). Na sociedade brasileira, comumente, um cargo público é remetido à confiança pessoal de um amigo ou parente relativamente capacitado e não a um individuo especializado no concurso do Estado burocrático. Os governantes, no geral, fazem da administração pública as suas casas com suas famílias,

91

controlam com interesse particular o que é de interesse público, falseando assim a tão estimada ―democracia‖. Sérgio Buarque de Holanda usa a expressão ―patrimonialismo‖ para se referir à organização social e política nacional no sentido de que o homem brasileiro comum utiliza-se do patrimônio da nação como estivesse utilizando mecanismos que compõem a vida particular. Com a transição do meio rural para o meio urbano, processo que vem ocorrendo desde o início do século XX, os grandes proprietários de terras, figuras consideradas as mais preponderantes nas decisões políticas e nas medidas

econômicas

tomadas

pelos

governantes,

foram

transmutados,

plagiados, nas cidades que iam se formando. Do grande conselheiro, patrão fiel, padrinho e patriarca que era o aristocrata caipira nas suas propriedades, transformara-se agora no dirigente político oligárquico, no banqueiro corrupto, ou no bacharel letrado, senhor-deus-todo-poderoso de todas as opiniões públicas. Aquele patrimônio de terras cultiváveis que sua família herdara, o mundo moderno não mais valorizava. Os bens da esfera pública eram os únicos usufrutos que o ―funcionário patrimonial‖ poderia beneficiar-se. Usando exemplos concretos, podemos lembrar dos juizes de direito. Esses seres ―transcendentais‖ e protegidos arbitrariamente pela constituição federal, usam e abusam de sua autoridade perante o poder judiciário. Chegam e saem de suas comarcas a hora que entendem, elegem amigos para os cargos da repartição, aconselham as partes de ofício e mostram suas carteiras profissionais como escudos blindados ou passaportes universais. Outro exemplo da presença do ―caráter patrimonial‖ da sociedade nacional que pode ser citado é a invasão do MST (Movimento dos Sem-Terra) à fazenda do então presidente da república, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, em 2002, como sinal de repúdio à política de abertura externa adotada nos últimos anos e às medidas eleitoreiras com o objetivo da sucessão presidencial. Essa manifestação foi combatida despoticamente através de quinze prisões que feriram o código penal

92

e da utilização do exército nacional na proteção de uma propriedade privada. Trocando em miúdos, o chefe do executivo, aproveitando-se da passividade da população, usurpou um patrimônio público em proveito próprio. A sociedade brasileira, semeada numa colônia de exploração e transformada em república ―democrática‖ sem sequer um suspiro de revolução, é resumida em Buarque de Holanda por meio de três características básicas: patriarcalismo, personalismo e patrimonialismo. Para arrematar esta primeira parte do trabalho, gostaria agora de lembrar que Sigmund Freud, em A civilização e seus descontentes, apresenta o que seria o dilema de toda a vida ―civilizada‖: em primeiro lugar, a dicotomia entre os desejos individuais de auto-realização, de auto-satisfação e os desejos de propiciar o bem-estar aos outros membros da sociedade pelos quais todos

devem se submeter40. Segundo o psicanalista, as disposições hostis ou antisolidárias não se originam de um ―instinto de morte‖, mas na própria ―energia da vida‖41. Dessa forma, o homem passa a ser representado como uma coisa divina, propensa ao ―bem‖, e, ao mesmo tempo, um ser ―instintivamente egoísta‖. Daí, a hipótese durkheimiana de que as instituições sociais, laicas ou religiosas, geralmente, pressionam a existência de vínculos de solidariedade, de harmonia social, objetivando a própria sobrevivência do grupo, libertando-o do ―estado de natureza‖ hobbesiano. Segundo a filósofa Olgária Matos:

Na medida em que nenhum indivíduo é igual a outro, conclui-se que a situação humana primeira é aquela em que um odeia o outro. A sociedade é ―um inferno‖ porque cada indivíduo necessita do outro para a satisfação dos seus desejos, mas ao mesmo tempo o odeia porque ele é independente de si. (Matos, 1993: 35)

40 41

Grifo meu. Ver Olgária Matos, A escola de Frankfurt, “A reificação do desejo”.

93

Todo agrupamento humano, defenderá Freud, não se origina de impulsos altruístas, mas da inveja de uns em relação aos outros. A noção de justiça serve, necessariamente, para que todos sejam tratados de maneira igual. Tal reivindicação parte da idéia da impossibilidade de se conseguir o amor exclusivo dos ―próximos‖. Assim, os ideais de justiça social representam uma compensação parcial a essa ―renúncia‖ de não ter o amor dos outros: ―a raiz do sentimento do dever e da consciência moral significa que, assim como nós mesmos fomos constrangidos a renunciar muitas coisas, os outros também devem viver igualmente sem elas‖ (1993: 35). O sentimento de dever moral camufla um desejo egoísta. O cerne de qualquer justiça é a vontade de negar aos outros aquilo a que tivemos de abdicar, uma recompensa pela renúncia forçada a essas mesmas regalias. Freud, então, afirma que todos nós somos potenciais inimigos da civilização (cf. Matos, 1993). O ethos individualista ocidental caracteriza-se por direcionar as práticas sociais através da ótica dos interesses estritamente privados, particularizados. Representam

exceções,

no

mundo

contemporâneo

capitalista,

atitudes

fundamentalmente altruístas, no sentido de serem totalmente desprovidas de intenções e ações que beneficiem o próprio ator da ação.

94

PARTE II: O ETHOS42 CATÓLICO-CARISMÁTICO: NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DO ―HOMEM DE BEM‖ ―Sabe-se desde muito tempo que os primeiros sistemas de representações que o homem se fez do mundo e de si mesmo são de origem religiosa. [...] o que foi menos notado é que ela (a religião) não se limitou a enriquecer com um certo número de idéias um espírito humano previamente formado; ela contribuiu também para formá-lo. Os homens não lhe deveram apenas uma notável parcela da matéria de seus conhecimentos, mas também a forma segundo a qual esses conhecimentos são elaborados.‖

Émile Durkheim

Em Fortaleza, como em várias outras cidades brasileiras, dizer para um amigo, para um parente, que fulano é ―homem de bem‖, ―pessoa de bem‖, representa oferecer crédito de confiança ao até então ilustre desconhecido. Significa dizer que esse fulano é alguém com quem possamos conversar amigavelmente, estarmos seguros quanto a possíveis hostilidades, sabendo-se da ―integridade moral‖ de sua história de vida. O status social elevado do ―homem de bem‖ garante seu ingresso em todas as instâncias da vida social, seja no trabalho, nas relações conjugais e afetivas. Na história da civilização ocidental, ser honesto, aparentar ser ―gente de conseqüência‖ (cf. Elias, 1994), preocupar-se com os pobres, quase sempre representou e representa um símbolo de status de superioridade de classe, ou, mais especificamente, superioridade de ―estirpe‖. As expressões ―homem de honra‖, ―gentes de bem‖, ou les honnêtes gens no francês, costumam designar as pessoas que agem civilizadamente e adequadamente na vida social. Na França cavalheiresca, elas estavam inseridas como referência aos conselheiros burgueses da nova aristocracia.

42

Para Geertz, “ethos” significa “conjunto de disposições e motivações” (1989: 86). Weber toma o termo como a visão de mundo idealizada, o “dever existir”, construída por um dado grupo social, em que o modo de vida dos seus participantes passa a ser direcionado, orientado, por arquétipos sociais.

95

O que promoveu a formação dos ―homens de bem‖, assim como a proliferação dos ―homens civilizados‖ nas classes mais elevadas da sociedade, foi a paulatina mudança na estrutura de impulsos e emoções. Os ―homens de bem‖, o ―homem civilizado‖, ou os impiedosos ―bárbaros‖ da Antiguidade e da Idade Média, não nascem (nasceram) geneticamente predispostos a agirem da forma como agem ou a pensarem do modo como pensam. Todos esses ―tipos‖ representam produções históricas e sociais. Eles são o resultado do sucesso dos mecanismos de adestramento, de educação cultural e religiosa ministrados segundo a época e o contexto espacial em que apareceram. Seguindo de perto a tese de Elias em O processo civilizador, principalmente

no

capítulo

―Civilização

como

transformação

do

comportamento‖, e observando a pesquisa realizada junto aos carismáticos, podemos dizer que os mecanismos de coação interna aumentam na medida em que se diminui a necessidade de coação exterior (violência, pressão psíquica, estímulos de recompensa), já que houve um acúmulo histórico de ―boas maneiras‖, de ―regras de ética‖, de ―acordos de civilidade‖, juntamente com a ―valorização da bondade‖. Não podemos dizer, por exemplo, que os impulsos de agressividade permaneceram os mesmos desde a época medieval. A coerção interior tornara-se, cada vez mais, principalmente no que se refere à domesticação religiosa, a forma convencional de se harmonizar os conflitos, as raivas e as impiedades. Esta parte do trabalho tem como objetivo central debater o processo de amoldamento e direcionamento das ações dos católicos carismáticos para um padrão sentimental de benevolência. Esse verdadeiro ―processo civilizador‖, no sentido proposto por Elias, que adestra o comportamento individual e social dos integrantes da Legião de Maria, da Comunidade Católica Obreiros da Tardinha (COT) e da Casa de Orações Deus Conosco, é o resultado da assimilação a certos valores sociais formados, historicamente, tanto no âmbito das tipicidades da cultura brasileira, como no âmbito dos dogmas e das manifestações religiosas cristãs, católicas e pentecostais.

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O quinto capítulo tratará do tipo ideal católico-carismático. Partindo do discurso dos informantes entrevistados e da observação participante em vários rituais e cerimônias da COT e da Deus Conosco, passo a delinear o quadro geral dos sistemas interpretativos do ―pentecostalismo católico‖ dos grupos religiosos analisados. As questões etnográficas de Geertz do saber ―o que fazem‖, ―o que pensam que estão fazendo‖ e ―o que pensam que estão pensando‖ continuarão a persistir no intuito quase arqueológico de colecionar evidências, artefatos, monumentos, da vida social dessas pessoas. Depois,

veremos

em

que

medida

os

―homens

de

bem‖,

mais

especificamente os filantropos dos três grupos carismáticos abordados, devem parte da forma e do conteúdo de seus atos caritativos à ancestral exacerbação do afeto apontada por Sérgio Buarque de Holanda como constituinte do ―caráter nacional‖ em Raízes do Brasil.

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CAPÍTULO V: O CARISMÁTICO

Para adentrar no universo da Renovação Carismática, precisaremos, saber, de modo geral, em que contexto maior ela está inserida, o que buscou reformular, adaptar, ou apenas revitalizar. A identidade dos carismáticos é fundamentalmente pentecostal e isso, eles falam com espontaneidade. O Espírito Santo é a entidade divina privilegiada no universo simbólico da RCC. Em quase todas ações dos carismáticos, quando estão fazendo suas orações, expressando as chamadas ―línguas espirituais‖, ou fazendo suas doações, eles não estão agindo por eles mesmos, como ―pessoas físicas‖, mas, estão sendo, momentaneamente, instrumentos do Espírito Santo, que é a entidade sobrenatural (dentre aquelas da Santíssima Trindade) atuante ―nesse mundo material‖ depois da ressurreição de Jesus Cristo. Para entender esse entusiasmo dos carismáticos em relação à manifestação de uma espiritualidade de modo patente, é importante observar as atitudes do catolicismo chamado tradicional, cujos fundamentos eles quiseram salvar do agnosticismo e, principalmente, do protestantismo. A cerimônia estandarte do catolicismo tradicionalista é a missa dominical. Para mostrar um pouco do comportamento desses religiosos, passaremos agora para uma pequena etnografia da missa católica em um domingo de junho de 2004. Sempre considerei bem mais difícil estranhar algo que já me é familiar do que tornar familiar aquilo que me parece exótico. Mais difícil porque um fenômeno cotidiano fica enraizado na memória, no campo perceptivo. Um fenômeno é familiar justamente pelo fato dele estar passando repetidas vezes na nossa mente sem que consigamos parar para pensar naquilo em que estamos pensando, ou fazendo. Assim é a missa dos católicos para mim: um

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fenômeno familiar. Já passei em frente de igrejas várias vezes e já entrei nelas participando de cerimônias algumas vezes. Mas, nunca com um ―olhar etnográfico‖, possuindo toda a carga teórica própria das ciências sociais. Para iniciar essa pesquisa, eu precisei de tal olhar, dessa visão relativista em relação à pessoas, valores, costumes, tradições ou deuses. Um bom exercício para se ter uma idéia da quantidade de pessoas que se pretendem católicas consiste em parar em frente a uma igreja num ―dia comum‖ para os católicos, um dia sem missa. Em cada grupo que passa caminhando, ou nos carros, ônibus, veículos em geral, quase sempre tem alguém fazendo o sinal da cruz como forma de apreço aos dogmas do catolicismo. O sinal da cruz ―em nome do pai, do filho e do espírito santo, amém‖ representa, sem dúvida, um símbolo de afirmação da identidade dos adeptos do catolicismo e é com muito orgulho e confiança que ele se repete no corre-corre de Fortaleza. Vendo de longe as igrejas católicas, tentei compará-las a algo que se assemelhasse em minha mente, para fazer uma analogia qualquer, e percebi que elas não se parecem com muitas coisas, mas sim, algumas coisas é que se assemelham a ela, pois as igrejas já se tornaram referenciais simbólicos por serem instituições milenares e por, durante muito tempo, terem sido o foco do poder legítimo na época medieval. Elas já são, em si, um grande símbolo e apesar das mudanças superficiais nas estruturas arquitetônicas, o significado dos objetos e, das formas ainda é o mesmo. Dos grandes castelos ornamentados com anjos e demônios de ouro e bronze, geralmente possuindo duas grandes torres e uma porta gigantesca para entrada de fiéis, no medievo, as igrejas foram se adaptando às épocas e hoje tentam se adequar à praticidade racional do mundo contemporâneo, sem, contudo, perder sua postura e vontade de ser a doutrina dominante do universo cristão. Hoje em dia, uma torre de concreto bem definida com uma cruz no alto simbolizando a ascensão de Cristo aos ―céus‖ em cima de uma pequena nave central já basta a fiéis ansiosos pela salvação eterna. Altares bem organizados, limpos e com cores mais claras

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buscam ―pacificar‖ o ambiente sagrado ao mesmo tempo em que indicam uma série de estereótipos ligados ao típico pensamento oposicional 43 ―sagrado x profano‖ do imaginário cristão. Santos e anjos, agora de gesso, ou vitrais historicizando a ―saga‖ do povo hebreu dão o ―conforto espiritual‖ necessário aos fiéis. As igrejas católicas se localizam geralmente no centro das praças ou em lugares onde se tenha um grande fluxo de pessoas, nesse caso, elas são cercadas por grandes portões. A igreja principal de uma cidade chamada Matriz, Sé ou Catedral é, muitas vezes, o marco fundador da região. É em torno dela que o espaço urbano irá se delinear e proliferar. Antes de adentrarmos na missa, vemos o ―burburinho‖ das pessoas ao redor da igreja. São, geralmente, jovens católicos, ou de pais católicos, ainda não preparados (interessados) para o mundo denso da fé, e que buscam ali certos prazeres da adolescência, em um local onde têm a confiança e o respaldo de seus parentes. Há também, nos arredores da igreja, esmoléus esperando sabiamente as dádivas de seu infortúnio, em um local onde as pessoas procuram a bondade como ideal. Antes do início da missa, os ―nativos‖ comentam como foi a semana, jovens paqueram, gente que não se vê no dia-a-dia do bairro se encontra e põe assunto atualizado. Alguns olham com certa expectativa para o altar, mas a maioria está totalmente abstraída em seus pensamentos fora do domínio da cerimônia. Parece realmente o momento onde as idiossincrasias se libertam para depois se regrarem na voz do sacerdote e o início do culto. Santos, anjos e quadros representativos da crucificação de Jesus Cristo ornamentam as laterais da igreja e parecem passar uma sensação de tranqüilidade aos fiéis através de seus rostos de olhares serenos e disciplinadores. As roupas usadas pelos freqüentadores costumam não fugir dos padrões ―normais‖ (―certinhos‖) ofertados pelo mercado da moda. 43

Como, por exemplo, bem x mal, sagrado x profano, alto x baixo, direita x esquerda, claro x escuro... Com relação ao pensamento dualista presente principalmente nas representais ocidentais cristãs, ver Hertz, “A proeminência da mão direita: um estudo sobre a polaridade religiosa” in Religião e sociedade, n˚ 6, 1980.

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O padre abre o encontro e passa ministrar a missa de uma maneira rítmica. Sua oratória possui espécies de tons altos e baixos, graves e agudos, formando, com o efeito, uma certa seqüência lógica de entonações. Parecendo, muitas vezes, desconcentrar os ouvintes. Esses estão muito mais atentos e concentrados em outras coisas, agem mecanicamente, adestrados, repetindo os cânticos todos os domingos. Não se percebe entre os católicos uma participação fervorosa durante as liturgias e os atos44 da missa, se comparados a outros devotos de outras religiões, onde se exige um envolvimento muito maior dos membros, que muitas vezes, também são os atores do espetáculo. No decorrer da monografia, veremos em que pontos os carismáticos puderam reformular a ―mecânica‖ dos rituais do catolicismo tradicional. Antes, contudo, seria interessante salientar o fato de já ter sido documentado esse traço do catolicismo à brasileira, que muitos ampliam como sendo próprio do ―caráter‖ da religiosidade nacional. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda afirma que o brasileiro, em geral, possui certa aversão a todo tipo de ritualismo. Por isso, nossa ―religiosidade de superfície‖, em que estamos quase sempre menos atentos ―ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em [nosso] apego ao concreto

e

em

[nossa]

rancorosa

incompreensão

de

toda

verdadeira

espiritualidade‖ (1996: 150). Como veremos nas descrições dos cultos inspirados na Renovação Carismática, a classificação ―religiosidade de superfície‖ não pode ser aplicada para toda e qualquer manifestação religiosa nacional (nem para todos os que se declaram católicos tradicionais), pois as experiências místicas nesses casos são tão ou mais profundas e ―conscientes‖ do que aquelas incitadas em qualquer monastério europeu.

44

Liturgias são as formas cerimoniais que estruturam os ofícios religiosos. Dessa forma, temos no catolicismo a Liturgia da Palavra, referindo-se às preparações ritualísticas para a interpretação do trecho da Bíblia a ser lido e a Liturgia Sacramental, referindo-se às preparações ritualísticas para as tradições dos sacramentos da Igreja. Os “atos” são as aberturas ou encerramentos cerimoniais indicando a solenidade da missa.

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No momento reservado às ―ofertas‖ (doações dos fiéis para ajudar nas reformas da igreja ou para auxiliar os projetos filantrópicos organizados por grupos de ação pastoral), ao som de músicas que estimulam a benevolência material, as pessoas deixam seus ―trocados‖ de maneira que ninguém veja

quanto de dinheiro elas estão dando, seguindo o conselho apregoado em algumas passagens do livro sagrado. A ação de ―dar‖ sem que o conteúdo da ―doação‖ e nem o ato propriamente dito seja visto faz parte do imaginário de diversas religiões e representa a proliferação de uma ideologia da generosidade atrelada a uma ideologia do sofrimento. No quarto capítulo do Ensaio sobre a

dádiva, Mauss fala dos costumes de sacrificar coisas em nome de deuses: ―As relações desses contratos e trocas entre homens e desses contratos e trocas entre homens e deuses esclarecem todo um lado da teoria do sacrifício45‖ (1974: 62). De fato, quanto mais sacrificada for a caridade, ou auto-sacrificada (porque o sacrifício parte de uma abnegação da própria pessoa que faz a doação), mais aplaudida ela vai ser, mais honrada ela vai ser considerada. Na Bíblia, existe uma série de estórias, de parábolas, contando sempre a saga de alguém que renegou as coisas materiais em prol de ajudar aos outros, sendo a principal delas a parábola do bom samaritano. Além disso, as estórias dos santos católicos, na maioria das vezes, retratam esse lado da humildade, do excesso de bondade, valorizando sempre o ato de ―ajudar ao próximo‖. Para os católicos, uma das figuras divinas mais valorizadas fora do eixo sagrada família e da santíssima trindade é a figura de São Francisco de Assis, que dissolveu todas as suas riquezas em atos caritativos. Segue agora o trecho de um cântico de ―preparação das ofertas‖, onde se nota claramente o estímulo às práticas de beneficência: Pai (entidade sobrenatural superior/ Deus), abri nossa mão 45

Veremos no último capítulo toda a problemática suscitada pela análise do fenômeno do sacrifício por Mauss (1969).

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tudo o que tivermos ficará pra trás junto a nós seguirão só a nossa esmola, o nosso amor e a paz... (refrão)

A esmola aqui é gratificada pelo amor retribuído por Deus e pela paz. As dádivas, em várias sociedades, arcaicas ou tecnológicas, serviram quase sempre para estabelecer acordos de paz entre os grupos de homens. Enquanto trocavam presentes, eles se esqueciam da guerra46. No entanto, a prática da caridade, historicamente, não representou sempre uma obrigação de cunho exclusivamente religioso, mas difundiu-se amplamente por meio dos códigos de conduta social.

No século XIII, por

exemplo, a esmola fazia parte de um conjunto de regras para a ―civilidade‖. Vejamos o que diz o seguinte trecho do poema ―Tannhäuser‖47 sobre as maneiras cortesãs: 1. Considero homem bem educado aquele que sempre pratica boas maneiras e nunca se mostra grosseiro. 2. Há muitas formas de boas maneiras e elas servem a muitos bons fins. O homem que as adota nunca erra. 25. Quando comes, não esqueças os pobres. Deus te recompensará se os tratares bondosamente. 41. Os que se levantam e fungam repugnantemente sobre os pratos, como se fossem suínos, pertencem à classe dos animais do campo.

Conforme a tese de Elias, em O processo civilizador, desde o período medieval nota-se um enrijecimento das normas de conduta social direcionando os costumes do cotidiano para certo ideal de civilidade. Na estrofe 25, a troca de favores entre os homens e os deuses é escancarada. É interessante observar que atualmente, pelo menos entre os carismáticos entrevistados, não se percebe um desnudamento de relações de troca entre a prática ascética dos religiosos e a recompensa da salvação retribuída por Deus. Como a caridade bíblica é idealizada como sendo sentimento-ação ―desinteressado‖, existe um cuidado,

46 47

Voltarei a essa questão em outro momento. Tanhäuser, Hofzucht, pp. 195 e segs; extraído do livro O processo civilizador de Norbert Elias, p. 96.

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uma preocupação, por parte de alguns informantes em dizer que não existe uma barganha da esmola pela ―vida eterna‖48. Na estrofe 41, onde há a depreciação dos animais em relação aos humanos, promulga-se a velha idéia de que os homens são seres divinos e, por isso, não poderiam agir como animais. O homem é o único ―ser terreno‖ com a liberdade e, principalmente, com a capacidade de ―fazer o bem‖, de ―fazer a coisa certa‖. Em relação aos grupos carismáticos analisados, existe um forte estímulo à prática da caridade, que exprimiria a divindade do benfeitor. Por exemplo, quando pergunto para os informantes qual seria a ―lógica de vida‖ de um fiel da religião católica, como seria ou agiria, para eles, um ―católico ideal‖ , Manoel Roberto, coordenador do Projeto São Francisco, grupo da COT que leva sopa aos mendigos do centro da cidade todas as madrugadas de quinta para sexta-feira, responde da seguinte maneira: Na minha opinião, o católico ideal, primeiro ele tem que viver os dez mandamentos e depois viver a caridade. Porque tem um evangelho que diz que o senhor pede para que o samaritano..., ele fala resumidamente que não é importante só viver dos mandamentos, mas é importante lembra-se do outro, lembrar-se do necessitado, daquele que realmente precisa, principalmente de Deus. Na minha opinião é essas duas coisas: viver uma vida de temor a Deus e viver na caridade, que é o amor. (Manoel Roberto)

Joanita Albuquerque, do grupo de orações das legionárias de Maria coloca a fé nos dogmas católicos e a expressão espiritual como prerrogativas do ―bom católico‖: O católico deve ser praticante, deve viver fielmente os preceitos da doutrina católica, cumprir os compromissos sacramentais. E deve, sobretudo, tomar essas atitudes por paixão e não por escrúpulos. Deve-se colocar Deus sobre todas as coisas. (Joanita Albuquerque)

48

Voltarei a essa questão no capítulo X.

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Como já foi dito na Introdução da monografia, o ―católico ideal‖ seria aquele que ―se doasse plenamente em suas ações sociais‖, seguindo as diretrizes ideológicas de sua religião. Além disso, as duas falas (Roberto e Joanita) confirmam a hipótese de que do mesmo modo que os católicos carismáticos entendem o ―amor cristão‖ como um sentimento superior às ―paixões mundanas‖, eles também estabelecem um status hierarquicamente mais elevado para o ―lado espiritual‖ da religiosidade em detrimento do que chamam ―mero materialismo do lado social‖. A proeminência do ―lado espiritual‖ sobre o ―lado social‖ revela todo um jogo de hierarquias condizente à dualidade espinhal das religiões: o sagrado x o profano. Na taxionomia tomista, que estabelece uma hierarquia das coisas e dos seres, o homem aparece no meio termo entre a superioridade dos anjos, entidades puramente espirituais, e a inferioridade dos animais, vegetais e minerais, seres puramente materiais. Santo Agostinho, adaptando a concepção platônica de que o homem é um ser espiritual, uma alma que se serve de um corpo, concebe a idéia de transcendência hierárquica da alma sobre o corpo. Todas as funções ativas do corpo físico seriam meras conseqüências da ―vontade‖ da alma: ―atenta a tudo o que se passa ao redor, (a alma) nada deixa escapar à sua ação. Os órgãos sensoriais sofreriam as ações dos objetos exteriores, mas com a alma isso não poderia acontecer, pois o inferior não pode agir sobre o superior‖49 (1999: 15). Agostinho concebe a unidade divina dos cristãos não de modo vago ou estático, mas como algo vivo, dinâmico, sendo a expressão de uma multiplicidade. A entidade Deus forma-se a partir de três pessoas iguais e consubstanciais: Pai, Filho e Espírito Santo. Na teologia agostiniana, ―o Pai é a essência divina em sua insondável profundidade; o Filho é o verbo, a razão ou a verdade, através da qual Deus se manifesta; o Espírito Santo é o amor, mediante o qual Deus dá nascimento a todos os seres‖50 (1999: 19). Para os carismáticos, entretanto, a figura do Espírito Santo tem um papel 49 50

Ver Pessanha, Santo Agostinho – vida e obra, p. 15 – 16. Idem, p. 17 – 20.

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um pouco diverso da formulação do filósofo medieval. Ele não representa apenas o amor por meio do qual Deus dá nascimento a todos os seres; ele é o elemento ativo do universo cristão, é o único do momento; ele é o próprio Deus agindo depois da ressurreição do Filho; está, por isso, presente em nossas orações, na cura das nossas doenças e quando fazemos caridade. Para demonstrar a importância da figura do Espírito Santo para o universo simbólico da Renovação Carismática, passaremos agora a uma pequena narrativa da observação participante realizada junto aos integrantes da Casa de Orações Deus Conosco. Veremos também quais preceitos do catolicismo tradicional, os carismáticos buscaram inovar objetivando a reabilitação dessa religião milenar. Sempre que chegava para participar dos cultos da Deus Conosco era muito bem recebido. Não só por aqueles que diretamente ministravam as orações, mas por todo o grupo participante do encontro. Isso também acontecia na Comunidade Católica Obreiros da Tardinha e na Legião de Maria. Todas aquelas pessoas eram potenciais ―agentes do evangelho de Cristo‖ e, por isso, faziam questão de tratar bem os neófitos que adentravam, ou pelo menos demonstravam interesse em fazer parte do grupo. O culto propriamente dito é dividido em vários cerimoniais onde se revezam momentos evasivos e reflexivos. Primeiramente, reza-se o tradicional terço católico e repetem-se os pai-nossos e as ave-marias sem grande entusiasmo. Depois, as pessoas entoam os cânticos, geralmente já conhecidos daquela comunidade, com muita alegria. Se houver banda, os ―hinos de louvor‖ são acompanhados pelos instrumentos musicais. Dependendo do dia da semana51, celebram-se as orações carismáticas de ―pregação da palavra‖, ou os cultos em agradecimento às dádivas recebidas, ou, então, os cultos em homenagem ao santo do dia. Oram para pedir mais fé, para pedir ou testemunhar curas de doenças, ou somente para expressar uma fé individual, 51

Na Casa Deus Conosco e na COT, existe uma divisão semanal das “intenções” da oração: há o dia da reunião dos jovens, o dia das curas, o dia dos seminários de fé, etc.

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ou ainda, para manifestar todas essas intenções conjuntamente. A prece representa o momento crucial do culto carismático. Mauss, em seu ensaio intitulado La prière, observa que a prece consiste, sobretudo, na manifestação da palavra, uma comunicação. A linguagem (cf. Mauss, 1969) é um movimento que tem um objetivo e um efeito; ela é um instrumento para ação. Falar, é ao mesmo tempo agir e pensar: voilà pourquoi la prière ressortir à la fois à la

croyance et au culte (1969: 358). O antropólogo francês, no intuito de conceituar o fenômeno social da prece, escreve ainda: En premier lieu toute prière est un acte. Elle n‘est ni une pure rêverie sur le mythe, ni une pure spéculation sur le dogme, mais elle implique toujours un effort, une dépense d‘energie physique et morale en vue de produire certains effets. Même quand elle est toute mentale, qu‘aucune parole n‘est prononcée, que tout geste est presque aboli, elle est encore un mouvement, une attitude de l‘âme (Mauss, 1969: 409)

No momento da prece, os carismáticos, geralmente, oram em pé com os braços erguidos, dizendo o que desejam em voz alta, quase em gritos. Em instantes, todos começam a falar a ―língua espiritual‖. Quando, depois da cerimônia, perguntava o que eles queriam dizer com aqueles vocábulos estranhos, porém, padronizados, eles me respondiam que era uma coisa indecifrável, que somente os anjos saberiam o que significavam, que não era eles que falavam aquilo, mas o próprio Espírito Santo. Depois, dependendo do dia e das intenções, há o momento da leitura da Bíblia. Previamente está escolhido um membro do grupo para fazer a leitura e a palestra. A passagem do livro sagrado também é escolhida antecipadamente, conforme as necessidades do grupo, ou da ocasião em que estão vivendo: Páscoa, Natal, aniversário da comunidade, Eleição de um novo papa, etc. O ―pregador‖ fala com bastante entusiasmo, contrapondo-se à oratória tradicional dos sacerdotes católicos. Todos abençoam o palestrante antes dele, e para ele,

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receber o Espírito Santo. No final, se houver tempo, há um debate entre as pessoas do grupo sobre a temática abordada na ―pregação‖. Para o encerramento do encontro, reza-se um pai-nosso e uma ave-maria. O encontro de orações dos três grupos abordados no presente trabalho (COT e Deus Conosco) processa-se de maneira diferente da ―mecânica‖ da maioria dos rituais do ―catolicismo tradicional‖. Primeiro, porque em um encontro carismático há uma ampliação da figura do ―pregador‖, o palestrante. Um padre, sacerdote legítimo, não é convidado para ministrar essas cerimônias. As pessoas escolhidas para receber e distribuir a mensagem do Espírito Santo são aquelas que passaram por várias etapas de aprendizagem catequética dentro do próprio grupo onde se organizam os encontros de oração (que é o caso da COT), ou são pessoas que, por meio de seminários, de participação na Igreja e da boa convivência com a comunidade, adquiriram dominação carismática (no sentido weberiano) e então puderam ser respeitadas como ―alguém que vale a pena ser ouvido‖. Em segundo lugar, porque existe grande disparidade entre o ―marasmo‖ da manifestação de fé nas tradicionais missas dominicais e a ―vivacidade‖ da expressão de fé nas orações de grupos carismáticos. É interessante observar que os integrantes da COT costumam declarar não serem propriamente carismáticos, apesar de inspirados no movimento da Renovação Carismática. O fato é que suas práticas, seus rituais, seus cultos são manifestações de um catolicismo tipicamente carismático. Manoel Roberto explicou que a COT não pode ser mais entendida como um grupo carismático, pois já cresceu suficientemente para tornar-se independente da ―Renovação‖. ―Nos inspiramos nos carismáticos, mas passamos a ser uma comunidade discipular‖. Levando-se em conta tal declaração, a Renovação Carismática pode ser entendida como um movimento ideológico, disperso, ―irregular‖, que atua por meio de grupos de orações. Esses pequenos grupos podem desenvolver-se institucionalmente e exercer maiores influências dentro do próprio catolicismo como é o caso da Comunidade Canção Nova, da Toca de Assis e também da COT, que são as chamadas comunidades discipulares.

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Existe dentro dessas organizações uma constante produção de identidade e de re-afirmação dessa identidade, desvinculando-se aos poucos da unidade carismática para ser uma comunidade independente, que cria seus ―próprios‖ valores, práticas e códigos, mas ao mesmo tempo não abandona a inspiração da Renovação. Os processos identitários acabam por criar características particulares em cada organização, cada uma dando ênfase a um aspecto da religiosidade cristã. Assim é que os ―cotistas‖ se classificam como aqueles que privilegiam o ―amor de doação‖, enquanto o pessoal da Canção Nova se identifica mais com a ―evangelização‖ e o pessoal da Toca de Assis é visto normalmente como ―preocupados com o lado social‖. Continuando

a

diferenciação

do

modus

operandi

dos

católicos

tradicionais e dos ―pentecostais‖, podemos acrescentar ainda que os carismáticos são estimulados a cantar em tom mais forte as músicas do encontro, manifestam-se mais entusiasmados em discutir as questões propostas pelo palestrante e concentram-se efetivamente durante as orações de cura ou de compartilhamento com o Espírito Santo. É muito comum, por exemplo, alguém chorar ou gritar bastante durante o ritual da oração. Conforme Durkheim observa, em As formas elementares da vida

religiosa, ―... esta refeição moral [as práticas religiosas] só pode ser obtida por meio de reuniões, assembléias, congregações onde os indivíduos, estreitamente ligados uns aos outros, reafirmam em comum seus sentimentos comuns‖ (1978: 230). Essa afirmação durkheimiana aflora, no caso do culto carismático, o porquê dos fiéis se dedicarem tanto ao engajamento em seus grupos de oração, nas práticas filantrópicas, e até o próprio lazer dessas pessoas, parece ser condicionado pelas representações sociais dos católicos e dos carismáticos. Sobre isso, ele também afirma: (...) a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que nascem no seio dos grupos

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reunidos e que são destinados a suscitar, a manter ou a refazer certos estados mentais desses grupos. (Durkheim, 1978: 212)

E acrescenta: (...) quem quer que realmente praticou uma religião bem sabe que é o culto que suscita estas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de entusiasmo, que são, para o fiel, a prova experimental de suas crenças. O culto não é somente um sistema de signos pelos quais a fé se traduz para o exterior, ele é a coleção dos meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente. Que ele consista em manobras materiais ou em operações mentais, é sempre ele que é eficaz. (Idem, p. 223)

Pode-se depreender daí, seguindo uma abordagem durkheimiana, que o culto carismático é o principal instrumento de reprodução constante dos valores religiosos próprios do universo simbólico católico carismático. Sendo assim, é por causa do culto, dentre outros fatores, que as práticas de caridade continuam a se reproduzir nos grupos católicos ao longo da história. Resta saber, porém, como essas práticas sobrevivem por tanto tempo também na parte laicizada das sociedades que valorizam a filantropia. Entre os carismáticos existem certos códigos usados na comunicação interna dos grupos religiosos. No caso da COT, os ―engajados‖ usam palavras de saudação como ―paz‖, ―paz de Deus‖, ―Deus esteja com você‖, ―Deus seja louvado‖. Quando consideram que uma ação, uma pessoa, um fato, ou que qualquer outra coisa seja muito boa para eles, costumam dizer ―é uma benção‖. Utilizam-se do ―amém‖ para agradecer algo da qual precisavam e conseguiram através de suas orações e fé, e quando, mesmo tentando conseguir algo de importância por meio da fé e de suas próprias ações não atingem seu objetivo, eles imploram, ou desabafam, dizendo ―misericórdia‖. Antes dos cultos, das orações, ou no final das cerimônias em geral decoram ―A COT está aqui reunida para o progresso do evangelho, hoje e sempre, amém‖, depois rezam geralmente

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uma ―ave maria‖. Habituaram-se a rezar mais ―ave marias‖ do que ―pai nossos‖ e isso parece indicar a tentativa de afirmar e re-afirmar a identidade católica e, em última instância, a identidade carismática. Algumas palavras são mais adequadas do que outras para se usar no convívio com os carismáticos. Por exemplo: no tratamento usual das pessoas da COT é bem freqüente o termo ―irmão‖. O que não parece comum entre eles é o uso de algumas das gírias corriqueiramente faladas entre os jovens fortalezenses não engajados em grupos religiosos como ―bicho‖, ―macho‖ ou ―fera‖. Eu mesmo fui repreendido por tê-las usado. Talvez, esses termos não sejam benquistos por causa dos seus significados, considerados profanos etimologicamente. Os três remetem à idéia de animalidade, de ―brutalidade‖, que se oporia então ao ideal de ―divindade‖, que segundo eles, seria característica própria dos seres humanos. Grupos religiosos como a Casa Deus Conosco, a COT e a Legião de Maria, não deixam escapar à sua influência nenhuma ―instância‖ da vida dos seus integrantes. Existem até festas religiosas que objetivam substituir (ou concorrer com) festas mundanas tradicionais ou ―de moda‖, como o Fortal e o Dia das Bruxas. Na época do Fortal, o ―pré-carnaval‖ de Fortaleza, onde normalmente há muita violência, drogas, sexo sem compromisso, os efetivos da COT organizam o chamado Fort-Louve. Essa festa tem a mesma ―roupagem‖ do Fortal, possuindo músicas com ritmos de axé, arranjam-se blocos, camisas dos blocos, mas, tudo isso com a conotação da religiosidade carismática. As letras das músicas, por exemplo, falam de Deus, do amor cristão, do Espírito Santo, da Paz, etc. O Dia das Bruxas, o Halloween dos estadunidenses, mesmo não tendo ainda penetrado no quadro festivo brasileiro, parece causar revolta entre os carismáticos por causa da alusão ao ―mal‖, da vontade de fantasiar bruxas, monstros, demônios, pestes de todo o tipo, a morte, o nefasto, o macabro. Para substituí-lo, para afastar a todo preço qualquer interesse que a juventude católica possa ter em relação a tais coisas abomináveis, a COT criou a Festa dos Anjos. Agora, ao invés de ir fantasiado de vampiro, de lúcifer, de bruxa malvada, o sujeito teria a ―oportunidade‖ de trajar-se em coisas belas, ―puras‖,

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usando tons mais claros que lembrem a paz. Podem então desfilar de São Francisco de Assis, de anjo Gabriel, de Virgem Mãe Santíssima ou de Papa. Essa mudança de perspectiva no conteúdo das festas, transformando as coisas

profanas

em

coisas

sagradas,

articula

―salvar‖

as

pessoas,

principalmente os jovens, do ―mundo‖. Para Durkheim, a função de qualquer religião, le métier religieux, entra em conflito com o ideal intelectual das ciências. Geertz, incorporando o legado durkheimiano da análise dos fenômenos religiosos,

acrescenta

o

fato

de

que

a

perspectiva

mística

implica

necessariamente no sentido da realidade factual das coisas. As atividades simbólicas da religião, na verdade, servem para produzir, intensificar e proteger esse universo do ―verdadeiramente real‖ de toda e qualquer lógica secular, profana, discordante. Durkheim prescreve: Eles [os religiosos] sentem, com efeito, que a verdadeira função da religião não é fazer-nos pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência representações de uma outra origem e de um outro caráter, mas a de fazer-nos agir, auxiliar-nos a viver. (...) Ele [o religioso que teve algum contato com seu deus] está como que elevado acima das misérias humanas porque ele está elevado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, sob qualquer forma, aliás, que ele conceba o mal. (Durkheim, 1978: 222)

Tendo-se em mente a conceituação durkheimiana sobre a ―função social‖ das religiões como ―sistemas de regras da vida e para a vida‖, podemos dizer que o cristianismo, como outras religiões que compartilham da mesma cosmovisão, produziu valores que direcionam o modo de viver dos cristãos, retratados, principalmente, na construção de um sentido para a existência do sofrimento humano. O sistema interpretativo cristão estabeleceu um conforto para algo, cujas implicações todos nós, pelo menos os ―ocidentais‖, estamos fadados a viver: o sofrimento. Como afirmou Friedrich Nietzsche em O

anticristo, o cristianismo transformou o sofrimento em uma virtude humana. 112

Esse sofrimento, segundo os psicanalistas, é causado por nossa ―incompletude‖, nossa ânsia de felicidade, nossos conflitos pessoais e sociais. O pensamento cristão ensinou o ―ocidental‖ a lidar com suas angústias de um mundo em constante mudança. Geertz observa no capítulo ―A religião como sistema cultural‖ em A interpretação das culturas, o fato de que: Como problema religioso, o problema do sofrimento é, paradoxalmente, não como evitar o sofrimento, mas como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da impotente contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável – sofrível, se assim podemos dizer. (Geertz, 1989: 76)

No século XX e início desse século, o homem ocidental-cristão se deparou (depara) com uma complexa ambigüidade: ora volta-se para o ideal consumista de uma sociedade neoliberal-pragmática-individualista e a conseqüente ―obrigatoriedade‖ de ter prazer e fazer sucesso, ora volta-se para um ideal cristão de uma ―disposição para a resignação‖, de uma valorização dos sentimentos altruístas, do ―amor de doação‖, da ―caridade sofredora‖. Muitas vezes essas tendências concorrem (no sentido de correr junto) e se resemantizam, adaptando-se uma a outra. O conceito de ―relacionamento puro‖ de Giddens (1993) traduz bem a dicotomia ―eu x outro‖ do mundo contemporâneo. Segundo o autor, os nossos atuais laços afetivos, amizade ou relacionamentos conjugais, se processam de maneira muito mais ―aberta‖ do que em outros tempos. Não temos mais tanta preocupação em manter um casamento por causa do apego às tradições, ou por respeito ao desejo de outrem (familiares, etc.). O que importa agora é a satisfação pessoal de cada parte envolvida. Fico com você até o momento em que a sua presença não me dá mais prazer e vice-versa. Sendo assim, existe um contrato social declarado, um acordo entre partes. Ao mesmo tempo, contudo, existe a preocupação ―altruísta‖ de não enganar a pessoa com a qual se relaciona, ou, pelo menos, enganá-la até

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um certo limite, para que, enfim, possamos desfazer o contrato e seguirmos nossos ―próprios caminhos‖. O fato é que existe esse paradoxo nos sentimentos e interesses do homem ocidental. Para simplificar, podemos até classificá-lo como ―paradoxo ‗individualismo‘ x ‗altruísmo‘‖, presente entre tantos outros na ―pós‖-modernidade fragmentária da qual estamos inseridos.

114

CAPÍTULO VI: O ―HOMEM DE BEM‖ E O ―HOMEM CORDIAL‖

Uma das teses de Sérgio Buarque de Holanda no capítulo intitulado sugestivamente ―Trabalho e aventura‖ de Raízes do Brasil refere-se à histórica ausência de práticas sociais verdadeiramente solidárias no Brasil. Ele afirma, com razão, que uma das conseqüências do regime escravocrata e da esmagadora presença de lavouras de latifúndio na nossa estrutura sócioeconômica foi a ausência, senão, pelo menos, a deficiência, de qualquer esforço sério de cooperação nas atividades econômicas aos moldes das organizações produtoras da Europa e de outros lugares. Escreve sobre o tema: ―Pouca coisa existiu, entre nós, comparável ao que se refere um historiador peruano a respeito da prosperidade dos grêmios de oficiais mecânicos já existentes no primeiro século da conquista de Lima‖ (2004: 57). A ausência de práticas verdadeiramente solidárias no Brasil é uma herança, ainda segundo Sérgio Buarque de Holanda, do culto da personalidade, próprio ao ―caráter nacional‖ dos ibéricos: ―para eles, o índice de valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste‖. Ora, já vimos nos outros capítulos que as ações solidárias se traduzem por meio de trocas explícitas de favores e de regalias, exigindo dos participantes um pacto de dependência recíproca. Se, a tese buarquiana sobre o caráter personalista do povo brasileiro estiver correta, então podemos compreender a nossa dificuldade de estabelecer vínculos cooperativos em nosso cotidiano. Daí o apego à ―caridade aventureira‖, ao assistencialismo sem compromissos de reciprocidade. No entanto, a obra-prima de Sérgio Buarque de Holanda entra em contradição quando ao mesmo tempo fala de aversão à solidariedade e de aversão às hierarquias. A idéia de que, historicamente, o ―tipo nacional comum‖ tende a repudiar as hierarquias sociais, facilitando, por isso, o acesso a regimes

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mais democráticos, apresenta-se explícita, por exemplo, no prefácio de Antonio Candido à obra Raízes do Brasil. Os argumentos de Buarque de Holanda retomam, sutilmente, a antiga idéia apregoada por Gilberto Freyre da frouxidão das nossas estruturas sociais, da falta de hierarquia organizada e da relativa ausência dos preconceitos de raça. Se a população de um país de extremos índices de desigualdade social, como é o caso de Brasil, demonstra, historicamente, aversão às práticas de cooperação, se, como Buarque de Holanda afirma, os brasileiros costumam considerar a honra de um homem pela independência econômica em relação aos outros, então, aufere-se daí que o brasileiro apresenta-se conformado com as hierarquias sociais presentes na estrutura sócio-econômica brasileira. O mais estranho ainda é que toda a análise de Raízes do Brasil parece confrontar o ―repúdio às hierarquias típico do brasileiro‖. Ao mostrar que a sociedade nacional estrutura-se através do modelo da família patriarcal e que ―o anel de grau e a carta de bacharel podem equivaler a autênticos brasões de nobreza‖ (1996: 83), Buarque de Holanda está apenas confirmando a existência de uma estrutura profundamente hierárquica impregnando as nossas relações sociais. Não sei a que tipo de ―hierarquias‖ Sérgio Buarque de Holanda se refere quando usa o termo, mas ele não deve conter a amplitude conceitual que Dumont oferece para a palavra52 (1985: 18). O autor de Visão do paraíso talvez conceba ―hierarquia‖ como sendo graus de diferenciação social extremamente rígidos, estáticos, tais como a divisão entre servos e senhores feudais da Idade Média53 ou a repartição de castas na Índia. Entretanto, como mostrei no terceiro capítulo, ―Hierarquia Social e Parceria‖, a mera desigualdade de condições materiais pode produzir relações sociais onde haja a dualidade 52

“Hierarquia”, para Louis Dumont refere-se ao termo “interação” opondo-se ao usual “dominação”. A relação hierárquica elementar existe entre um todo e um elemento desse todo. Ela é, pois, bidimensional na sua estrutura (Ver “Léxico” in Dumont, O individualismo, p. 279. 53

Sérgio Buarque de Holanda, ainda no capítulo Fronteiras da Europa, usa o termo “hierarquia” para designar os “graus de beatitude” da filosofia tomista, por exemplo (p. 34).

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superior x inferior, em que o indivíduo de superioridade econômica tem poderes efetivos para estabelecer as ―diretrizes‖ do andamento das trocas materiais ou simbólicas. O indivíduo ―inferiorizado‖ não tem, por exemplo, a liberdade de recusar um favor a alguém que já lhe ajudou várias vezes, emprestando-lhe dinheiro sem juros, ou mesmo fazendo a doação de uma cesta básica. Mesmo sem querer, ou sem poder ajudar, ele vai ter que retribuir, mostrando-se, pelo menos, ser prestativo, atencioso. Lanna, analisando a patronagem e as trocas de favores no Nordeste brasileiro, afirma que: (...) no Brasil, o capitalismo não é apenas ―burocrático‖, como mostra Martins Rodrigues (1994), mas assume também uma forma patronal, ou burocrático-patronal. Ou, ainda, essa burocracia não é apenas, nem primordialmente, ―racional‖, no sentido de Max Weber, mas caracterizase muito mais por ser ―hierárquica‖, no sentido de Louis Dumont. (Lanna, 1995: 30)

Os argumentos trabalhados até o momento na monografia não podem deixar de concordar com Lanna, quando o autor fala da ambigüidade do sistema capitalista, historicamente adaptável, maleável, às organizações sociais ―arcaicas‖, patriarcais, onde existem múltiplas formas de hierarquias. O mesmo Lanna, dissertando sobre uma conclusão de Raymundo Faoro acerca da formação histórica e econômica da sociedade brasileira, afirma: ―Faoro (1979) mostrou de modo definitivo a importância das dádivas de terra feitas pelo rei português, assim como por seus representantes na colônia, na formação de nossa estrutura social‖ (1995: 85). Por ―estrutura social‖ Faoro pretendia designar toda uma gama de relações sociais, econômicas, políticas que foram desencadeadas pelo estabelecimento de uma dependência dos primeiros proprietários de terra brasileiros com o reino português nos séculos XVI e XVII. Dependência essa que nem de longe era sentida pelo bolso do grande fazendeiro, mas, sobretudo, era expressa no suor do pequeno lavrador e, 117

principalmente, na agonia cotidiana do escravo e dos primeiros trabalhadores ―livres‖ e pobres. A contradição buarquiana entre a presença ou não de apego às hierarquias por parte do brasileiro chega no ápice quando, no capítulo ―Novos tempos‖, fala do ―regime democrático brasileiro‖:

A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semi-feudal tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no velho mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. (Holanda, 1996 : 160)

Essa organização social foi legitimada e até protegida pelo povo. A exaltação das hierarquias sociais quase sempre faz parte do imaginário popular. O brasileiro, no geral, tem a opinião de existirem indivíduos superiores, quase ―predestinados pela fé‖, que podem tudo na sociedade, tem mais direitos e devem ser melhor remunerados. Esses seres fantásticos foram representados primeiramente pelos desbravadores das terras coloniais, depois pelos senhores de engenho e hoje são representados pelos advogados, médicos, acadêmicos, grandes empresários e pelos profissionais liberais ―de sucesso‖. Na expressão ―você sabe com quem está falando?‖ (DaMatta, 1979) de um general dirigindo-se a um motorista de ônibus no trânsito, quando um juiz estadual fura uma fila de banco porque antes do almoço ele ainda vai presidir várias audiências, ou quando um delegado de polícia, Doutor Fulano (ele é apenas graduado), libera um rapaz que estuprou uma jovem favelada, porque ele é filho do Dr. Beltrano, desembargador, porque afinal, a classe média está mesmo pervertida com esses filmes hollyoodianos, podemos então perceber quão hierárquica é a sociedade brasileira.

118

O fato de sermos personalistas ou ―cordiais‖, ou seja, de tratarmos as pessoas pelo nome e não pelo sobrenome, de buscarmos intimidade mesmo no desconhecido, não anula o fato de que apreciamos e até veneramos as hierarquias sociais. Acertadamente, porém, Sérgio Buarque de Holanda aponta um dos principais traços característicos do ―tipo brasileiro comum‖: a cordialidade. Aproveitando a expressão do escritor Ribeiro Couto, o autor chama esse tipo de o ―homem cordial‖. ―Cordial‖, no sentido buarquiano, refere-se à emotividade em oposição ao pragmatismo do individualismo europeu, diz respeito à exacerbação do afeto presente em nossas relações cotidianas. O brasileiro comumente ―pensaria e agiria com o coração‖ e não de modo ―racional‖. ―O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com facilidade‖ (1996: 148). O ―homem cordial‖ não seria, porém, aquele de boas maneiras, atitudes ―civilizadas‖, virtudes cavalheirescas. Muito pelo contrário: a cordialidade buarquiana implica necessariamente em um desapego às normas de conduta social da civilization. O padrão de convívio humano do ―homem cordial‖ desemboca quase sempre em ações consideradas ―irracionais‖, ou pelo menos ―irresponsáveis‖. Também não podemos confundir ―cordialidade‖ com ―bondade‖. Em nota de rodapé54, Sérgio Buarque de Holanda fala da confusão feita por Cassiano Ricardo ao definir cordialidade como ―uma bondade mais envolvente, mais política, mais assimiladora‖. O ―homem cordial‖ difere categoricamente da expressão ―homem de bem‖ usada no presente estudo. Enquanto o conceito buarquiano pode abranger tanto sentimentos positivos como negativos, desde que eles estejam motivados por afetividade, o ―homem de bem‖ é fruto, ou é o tipo ideal, de um padrão

54

Nota número 6, p. 204.

119

sentimental e comportamental positivo; e, na grande parte dos casos, o termo carrega um forte teor religioso. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos ―grupos primários‖, cuja unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito, ―não é somente de harmonia e amor‖. (Holanda, 1996: 205)

A expressão ―homem de bem‖ pode indicar ao mesmo tempo o caráter de um católico carismático exemplar ou a idealização de um luterano, de um hinduísta ou de um muçulmano exemplar, enquanto o ―homem cordial‖ representa uma categoria regional, nacional, aludindo a certo tradicionalismo. Além disso, ―homens de bem‖ costumam adequar-se perfeitamente ao formalismo, ao convencionalismo social, o que não acontece nas atitudes tipicamente cordiais. Um exemplo da cordialidade do brasileiro que sempre gosto de dar é o do motorista de ônibus urbano. Quando estamos na parada de ônibus à sua espera, ele pode, vez ou outra, passar pelo outro lado da pista para não receber os passageiros, muitas vezes sem sequer olhar para o local da parada. Ele está fazendo isso ―impulsivamente‖, ―sem pensar‖, como costumamos dizer. Está talvez preocupado com o tráfego ou com o atraso de horários, mas, sobretudo, em si mesmo. Em outro momento, nós, passageiros, poderíamos (cordialmente) estar esperando o ônibus fora do local da parada, em uma calçada qualquer, por motivos quaisquer, e o motorista, ao ver darmos o sinal, não se importaria de parar ali, irresponsavelmente, generosamente. Para o motorista típico não há regras, convenções, atos que seguem um pragmatismo; o que há é a esperteza, a irresponsabilidade de escolher sua própria ética, anti-institucional, a frouxidão dos seus sentimentos. Ele não pensa ―racionalmente‖ que existem pessoas que

120

esperam na parada e que precisam daquele ônibus para ir para casa descansar ou para ir ao trabalho, ou outra coisa qualquer e, ao mesmo tempo, no segundo caso, ele pode simplesmente descumprir regras para fazer entrar, fora do ponto do ônibus, uma velhinha, uma moça que ele achou gostosa, ou, simplesmente, para satisfazer o seu ego de ―homem de bem‖. No entanto, para além das fronteiras conceituais, não podemos negar que um brasileiro católico e benevolente, ―homem de bem‖, fuja totalmente das raízes do país onde vive. As suas doações não resultam apenas de objetivos racionais e práticos, mas também de exacerbação de emoções. Se, como sabemos, a simples prática das doações não resolvem efetivamente o problema que se deseja combater segundo o discurso dos católicos55 (fome, miséria, desigualdades sociais), então por que continuamos a ―bater sempre na mesma tecla‖? Por que a caridade é reproduzida ao longo do tempo em Fortaleza, no Brasil? Sobre tal questionamento, lanço a hipótese de que as ações filantrópicas, pelo menos aquelas dos grupos católicos analisados, são ações movidas, principalmente, por impulsos emocionais, por ―cordialidade‖, e não por mero pragmatismo. Esses católicos não têm o habitus de solucionar os problemas de maneira racional-prática. Eles até sabem das possíveis causas econômicas e sociais que produzem a miséria por eles combatida, mas ―não querem se meter com isso‖, ―o que eles podem fazer, eles fazem‖. Por isso, agem remendando as conseqüências, aparando os galhos podres, aliviando a doença onde a ferida mais aparece, escancarada nas ruas da cidade, nas calçadas, sinais de trânsito, os pedintes de casa em casa, as instituições filantrópicas. Antonio Candido, ao buscar destrinchar o ―significado de Raízes do

Brasil‖, observa que o brasileiro, por ter espírito aventureiro, tende a ―resolver‖ as coisas somente através das aparências. É o famoso ―jeitinho brasileiro‖. Escreve:

55

Ver Introdução, p. 10.

121

Ao que se poderia chamar ―mentalidade nacional‖ estão ligados vários traços importantes, como a sociabilidade apenas aparente, que na verdade não se impõe ao indivíduo e não exerce efeito positivo na estruturação

de

uma

ordem

coletiva.

Decorre

deste

fato

o

individualismo, que aparece aqui focalizado de outro ângulo e se manifesta como relutância em face da lei que o contrarie. (Prefácio de

Raízes do Brasil, p. 17)

Como afirmei no início, Sérgio Buarque revela-se bastante enfático ao defender a histórica falta de ―espírito solidário‖ por parte do tipo nacional comum. Isso para ele, na verdade, ressoa como uma constatação. Costumes como o do mutirão, descritos por Candido em Parceiros do Rio Bonito, em que os roceiros ajudam-se mutuamente nas derrubadas de mato, no plantio, nas colheitas, na construção de casas, na fiação de algodão, não seriam corriqueiros, principalmente, se houver a organização ou a legislação de cooperativas (cf. Holanda, 1996). Para Sérgio Buarque, mesmo quando existem essas formas de auxílio recíproco, elas são motivadas por relações de afeto, por causa de amizade ou ―interesse de amizade‖ por exemplo, e não por alguma tendência para a cooperação disciplinada e constante. Com efeito, podemos dizer que o brasileiro, em geral, não possui um padrão comportamental solidário, levando-se em conta a etimologia da palavra ―solidariedade‖, mas sim, apresenta um habitus filantrópico de cunho caritativo. Como o economista Paul Singer demonstra em Introdução à

economia solidária, temos, historicamente, dificuldade de estabelecer vínculos de socialização igualitária, apresentando, por exemplo, deficiências de ordem organizacional ao tentar estabelecer cooperativas, principalmente as de produção. No

Brasil,

até

as

cooperativas,

molas

mestras

da

economia

verdadeiramente solidária, funcionam graças ao assistencialismo:

122

Uma boa parte dos PACs (Projetos Alternativos Comunitários) acabou se transformando em unidades de economia solidária, alguns dependentes ainda de ajuda caritativa das comunidades de fiéis, outros conseguindo se consolidar economicamente mediante a venda de sua produção no mercado. (Singer, 2002: 122)

Como a distância entre as classes sociais é enorme, o grupo dos mais abastados tem certa condescendência para com os mais pobres, desde que estes não ameacem o seu domínio. Quase sempre se torna mais cômodo para nós (e ―cordial‖, no sentido de Sérgio Buarque de Holanda) praticar cotidianamente a caridade individual, dar esmolas a mendigos que dificilmente iremos manter contato afetivo, compartilhar a desgraça. Solidarizar-se efetivamente com uma causa, estabelecer vínculos de reciprocidade com uma comunidade ou fazer parte de uma cooperativa qualquer exige um enorme esforço de participação, que, talvez, não estejamos tão acostumados devido à ambigüidade existente entre os valores do individualismo pragmático contemporâneo e os valores da nossa velha ideologia patriarcal e personalista.

PARTE III: A RELAÇÃO CARIDOSO X CARENTE E O SENTIDO DAS DOAÇÕES ―O rico e o pobre se encontraram: a todos os fez o senhor.‖

123

Provérbios 22, 2

Depois da morte, Lázaro vai para o paraíso de Abraão, onde é recompensado por todas as desgraças que sofreu na terra, ao passo que o rico vai para o Hades, recebendo tormentos, pois já tinha recebido os bens na terra. A moral bíblica, em várias passagens, reclama uma justiça eqüitativa. Todos os homens têm direito a abonança: aqueles que na ―terra‖ beneficiaram-se de regalias profanas, dificilmente podem também almejar os bens do paraíso celestial. Seria felicidade em demasia. É preciso, por isso, dividir entre os homens as dádivas divinas. No entanto, os homens não podem ficar esperando a justiça divina. Em um mundo de tantas desigualdades manifestas, não se deve ficar de braços cruzados. É necessário adiantar o trabalho de Deus, fazendo caridade, aliviando o sofrimento dos pobres até que eles possam, e para que eles possam, usufruir a dádiva celeste. Além disso, ao fazer ―o bem‖, Deus, de infinita misericórdia, poderá ―esquecer‖ que temos certos bens, usufruímos certas coisas profanas, das quais, algumas delas, optamos por doar aos pobres. Assim, mesmo possuindo algumas regalias terrenas, não vamos deixar de alcançar o reino dos céus e todos os seus benefícios, pois, quando os filhos de Deus precisaram, nós estávamos lá para ajudá-los. Marcel Mauss nota que os primeiros registros de que se tem notícia sobre a prática da esmola, simbolizando o ideal de justiça e depois ―amor de doação‖ (amor ―incondicional‖), referem-se aos antigos semitas: etnia precedente dos povos caldeus, árabes, hebreus, etc. A esmola é o fruto de uma noção moral da dádiva e da fortuna, por um lado, e de uma noção do sacrifício, por outro. A liberalidade é obrigatória porque a Nêmesis vinga os pobres e os deuses do excesso de felicidade e riqueza de certos homens, que devem desfazer-se delas: é a antiga moral

124

da dádiva transformada em princípio de justiça; os deuses e os espíritos consentem que as partes que lhes seriam destinadas e que seriam destruídas em sacrifícios inúteis sirvam para os pobres e para as crianças. Contamos aqui a história das idéias morais dos semitas. A sadaka árabe é, na origem, como a zedaqa hebraica, exclusivamente a justiça; e transformou-se em esmola. Pode-se mesmo datar da época mischnaica, da vitória dos ―Pobres‖ em Jerusalém, o momento em que nasce a doutrina da caridade e da esmola que deu a volta ao mundo com o cristianismo e o islamismo. É nessa época que a palavra ―zedaqa‖ muda de sentido, pois não queria dizer esmola na Bíblia. (Mauss, 1974: 66)

Resumo esquemático adaptado da história da esmola em Mauss Justiça │ moral semita; hebreus; árabes antigos

→ ―Amor de doação‖ │ ideal cristão; Bíblico

→ Esmola │ cristianismo; islamismo; difusão

A caridade, o ato de desvencilhar-se de algo de nossa propriedade, ou pelo menos da nossa ―autarquia‖ ou ―responsabilidade‖, para doar a outrem de nível social inferior ao nosso, sempre esteve figurada entre as principais virtudes humanas em diversos sistemas culturais, principalmente, os religiosos. Para o Espiritismo de Alan Kardec, a nossa alma está em perpétua evolução. Os espíritos se desenvolvem até o nível de puros, mas nunca atingem a perfeição absoluta. Quando atingem o status de ―puros‖ eles não precisam mais ficar em permanente estado de adoração a Deus, pois são seus mensageiros e auxiliares, trabalhando na sustentação e organização da vida universal. Uma fé robusta é de suma importância para a alma confiar e alcançar seu futuro, mas esse futuro, somente será atingido com a prática da

125

caridade, tanto a material, quanto a moral, que os carismáticos chamam de ―espiritual‖. No Budismo, existe a idéia de que somos seres carregados de ―bonnö‖, ou seja, paixões mundanas, como por exemplo: ciúme, inveja, gula, egoísmo, apego a bens materiais, etc. O mundo profano impede que vivamos sempre em paz. Podemos ter momentos de paz, mas são passageiros. Através do auto-conhecimento, no sentido de ―olharmos para dentro de nós‖, podemos perceber e ―superar‖ as paixões mundanas. Assim, Buda pregou aos indianos de sua época que o ―conhecimento interior‖ era muito importante para a aquisição da sabedoria sobre nós mesmos e para alcançar a paz tão almejada. Como existe uma grande valorização da sabedoria, virtudes como a fé e a caridade, tão fundamentais para o universo judaico, cristão e islâmico, são relegadas a um segundo plano. No entanto, elas não deixam de ser importantes. Para os budistas, o ato de doar é uma forma de dissolver o egoísmo, uma das causas do sofrimento dos seres humanos. Esta parte do trabalho dedica-se à observação do fenômeno da dádiva propriamente

dita,

principalmente

dando

ênfase

às

relações

sociais

estabelecidas entre o caridoso e o carente. No sétimo capítulo, encontram-se várias passagens com o discurso dos informantes da COT, da Legião de Maria e da Casa Deus Conosco, além da descrição de toda a observação participante realizada junto aos integrantes da COT no centro da cidade, onde participei de vários ―sopões‖ durante madrugadas de quinta para sexta-feira. O oitavo capítulo tratará da análise da mitologia cristã sobre a ―desigualdade natural‖ entre os homens no mundo dos homens e ―igualdade natural‖ entre os homens perante Deus, trazendo, para isso, a visão dos carismáticos entrevistados. O nono funciona como um complemento histórico do décimo. Nesse último, ―A crítica contemporânea e a lógica da dádiva‖, retomo a discussão dos capítulos anteriores para traçar, na medida do possível, quais são os atuais mecanismos de reprodução das práticas de caridade e de assistencialismo social

126

e quais novos direcionamentos, rumos, a ideologia da generosidade, laica e religiosa, desenvolve almejando o ―estado de bem estar social‖.

CAPÍTULO VII: O ―SOPÃO‖

127

Geertz,

apropriando-se

da

concepção

weberiana,

observa

em

A

interpretação das culturas, que as religiões sempre buscam ajustar as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada (1989: 67). As doações feitas pelos carismáticos, em última análise, ―transubstancializam‖ a ordem cósmica cristã para o plano da experiência ―terrena‖. Como já foi dito na Introdução, a religião católica (como a maioria das religiões) consente a existência de práticas sociais exteriores à própria instituição, estimulando, por exemplo, as práticas de caridade no cotidiano das pessoas, para que, através dessas ―manifestações de religiosidade‖, possa assegurar a fé das pessoas no universo simbólico da crença. As esmolas representam, de certa forma, a constatação de que as idéias sobre a desigualdade natural dos homens são realmente verdadeiras. Elas dão uma aura de fatualidade à mitologia que todos apreenderam como realidade. É por isso que alguns dos informantes falam do ―destino de miséria‖ que os mendigos infelizmente estão vivenciando. Daí a importância de dar esmolas, de ajudar os outros, levando uma ―palavra de conforto‖: A importância que eu atribuo a esses atos [doações] é que primeiro nós devemos, como evangelizadores, levar a palavra de Deus para as pessoas miseráveis, que estão lá por causa do destino; não é por culpa delas, não é verdade? A gente deve se preocupar com o outro como se fosse com nós mesmos. A gente deve preservar a vida do outro porque a gente sabe que eles querem viver também, assim como nós. Eu acho que até um pinguinho que seja no oceano já serve. (Manoel Roberto)

Sempre pratico caridade. Sou dizimista na Igreja e, além disso, procuro sempre ajudar as pessoas de alguma forma, nem que seja com uma palavra de conforto. Eu me sinto muito bem fazendo isso, ave Maria! Em todos momentos da vida procuro praticar; toda minha família também procura ajudar o povo. Olha, é muito importante a caridade. Nem que represente uma gota d‘água no oceano de miséria que é o país, mas ajuda a melhorar um pouco a situação. (Maria de Lourdes)

Eu participo de projetos com cestas básicas, brinquedos. Às vezes vou aos bairros mais pobres de Fortaleza junto com o pessoal, a gente leva as

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coisas... Falo também, às vezes, com empresários para saber se eles não podem ajudar de alguma forma...A importância [das doações] está no fato deles [os mendigos] se sentirem um pouco mais valorizados, sabe, porque tem alguém ali, olhando por eles. (Nazareno Teotônio)

Passemos agora para o resumo de um evento bastante significativo para o sistema interpretativo dos integrantes da Comunidade Católica Obreiros da Tardinha, o ―sopão‖, para que tenhamos uma noção mais acertada do grau de valorização das doações no universo simbólico dos carismáticos. O setor da COT responsável pela distribuição de alimentos, roupas e outras necessidades básicas, para os mendigos da área central de Fortaleza nas madrugadas de quinta para sexta-feira, é o Projeto São Francisco, cujos coordenadores são Manoel Roberto e Rosa (a Rosinha). A observação participante que descrevo refere-se a minha primeira viagem com o pessoal do Projeto São Francisco. Quando cheguei no prédio da COT da Rua Padre Mororó, onde o pessoal do ―sopão‖ se concentra antes de partir em busca dos mendigos, encontrei logo Rosa, que já tinha combinado comigo o dia em que eu poderia participar das doações. Recebeu-me muito bem e disse que era um prazer para eles ter a minha presença no grupo. Também disse que talvez não houvesse vagas porque os carros naquele dia seriam poucos, mas ela ia fazer o possível para que eu fosse com eles. Depois de meia hora de espera, encontrei alguns jovens participantes do Projeto e me coloquei a disposição deles para ajudar de alguma forma nos preparativos do ―sopão‖. Havia várias garrafas de refrigerante de dois litros vazias para serem enchidas com água e levadas na viagem. Comecei logo a enchê-las juntamente com os jovens que estavam ali. Eram todos bem simpáticos e animados. Enchemos todas as garrafas e logo fomos buscar os pães e depois trouxeram a sopa, que era guardada em grandes tonéis de plástico. Ofereceram-me a sopa e eu aceitei sem hesitar. Na hora não achei muito boa, mas com o decorrer das participações, que eram cada vez mais constantes,

129

passei a fazer questão de tomar a sopa. Quase todos que trabalhavam no ―sopão‖, provavam da sopa. Os engajados da COT que dormiam por lá mesmo tinham a sopa como a janta. Antes de sairmos do prédio, fizemos uma oração de benção (depois, percebi que aquele momento era de praxe, com o discurso, o Pai Nosso, a Ave Maria e a saudação da COT56). Entrei em um dos carros e percebi logo o entusiasmo do pessoal. Eram, na maioria, jovens universitários, todos envolvidos em projetos da COT. Todos muito voluntariosos em arrumar as coisas para fazer as doações. Os jovens iam cantarolando músicas da COT, fazendo brincadeiras, comentando festas futuras ligadas à religião. O que se percebe é que esses grupos religiosos juntamente com seus ―projetos sociais‖ preenchem a vida das pessoas neles envolvidas. A religião ocupa um lugar fundamental no cotidiano desses jovens, substituindo outras ―distrações‖ como as filiações em diversas tribos juvenis: skatistas, roqueiros, forrozeiros, CDFs, esportistas, etc. O catolicismo e seus grupos de apoio passam a dar um ―sentido‖, um direcionamento, tornando o mundo mais plausível para a juventude carismática. Eles usam o Projeto São Francisco como uma espécie de ―terapia‖, ―desopilando‖ assim o estresse do dia-a-dia. No entanto, isso é apenas uma analogia. Como esses jovens católicos estão impregnados de ―espírito religioso‖, as quintas-feiras franciscanas representam muito mais do que uma ―terapia‖, elas são o sentido de suas vidas posto em prática. No momento do ―sopão‖, não são os carentes que pedem as sopas, mas são os próprios membros da COT que oferecem a dádiva. Muitos mendigos já estavam dormindo quando passamos nos carros, pois o trabalho de distribuição é realizado a partir das vinte e três horas. Muitas vezes, tínhamos que acordálos para que pudessem participar da oração e só depois fazer a doação da sopa e 56

Depois do momento da oração, um integrante da COT não fala somente “amém”; diz: “a COT está aqui reunida para o progresso do evangelho, agora e sempre, amém”.

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dos pães, dizendo-lhes: ―Deus te abençoe‖. A maioria dos mendigos não agradecia verbalmente, talvez pela fome, timidez, ou qualquer outra coisa por mim não percebida. Não se deve dizer que é integrante da COT e não se pode doar roupas com inscrições da comunidade, pois os carentes, sabendo de onde éramos, poderiam aperrear por mais donativos lá na sede dos Obreiros da Tardinha. Os carentes não demonstravam uma alegria entusiástica quando recebiam a sopa, com exceção de Leonardo, um mendigo que dormia nas proximidades do Passeio Público. Leonardo já era bastante conhecido pelos membros do Projeto São Francisco e até sabia de cor as letras das músicas dos carismáticos. Parecia ser bastante extrovertido e, por isso, atraia a atenção dos doadores. Enquanto alguns de seus colegas teimavam em querer dormir, ele tomava as rédeas do encontro, fazendo várias brincadeiras com os membros do grupo, especialmente com as mulheres mais jovens, buscando, inclusive, a iniciativa nos discursos, nas orações e nos cantos. A distribuição de alimentos não era feita de modo igualitário. Quem pedia mais pão e sopa recebia mais quantidade. Não poderia se recusar a dar mais comida. Às vezes, o que acontecia, era escondermos a água e o pão para que em todos os lugares visitados não faltasse o que dar. Aqueles mendigos considerados simpáticos, como era o caso do Leonardo, recebiam mais donativos. Uma velhinha que estava enclausurada numa velha garagem abandonada chegou a ganhar duas sopas e quatro pedaços de pão, além de muitas roupas. Ela parecia ser bastante íntima dos ―sopeiros‖, que chegaram a me nomear (―dando-me a honra‖) para fazer a doação. Esse fato mais uma vez comprova a atualidade da tese de Sérgio Buarque de Holanda em relação à cordialidade característica de nosso povo. Cordialidade que não deve ser entendida como generosidade, mas como exacerbação de afetos. O ―homem cordial‖ age por impulsos emocionais e não de modo ―racional‖, pragmático.

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Os mendigos costumavam usar a esperteza para ganharem mais sopa. Na praça José de Alencar, havia um homem que gostava de tomar todas as iniciativas nas relações entre mendigos e doadores. Ao que parece, ele já sabia das visitas semanais do ―sopão‖. Tratou logo de arranjar uma garrafa de dois litros, cortar a extremidade do bocal e trazer o grande vasilhame para que nós colocássemos bastante sopa. Pediu também mais pão e tratava os membros do projeto São Francisco de maneira nem um pouco amistosa, como se a doação que eles estavam fazendo fosse uma obrigação do dia-a-dia. Os mendigos, muitas vezes, tomavam a liberdade para escolher os pães, as roupas e a sopa, mostrando a malandragem dos que ainda sonham em sobreviver. É importante salientar o fato de que mesmo sabendo que a ―caridade ideal‖ deveria ser feita às escondidas, com ―humildade‖, sem nenhum tipo de orgulho, o pessoal do ―sopão‖ costumava tirar fotos no momento das doações. Talvez isso aconteça porque os participantes do Projeto São Francisco não dizem para os carentes que fazem parte da obra COT e, para eles, o que importa é saber que se deve ocultar o nome dos doadores. Assim, eles dizem apenas: ―somos da Igreja e viemos orar por vocês‖. Não é necessário esconder a caridade deles mesmos, do próprio grupo da qual eles participam e projetam suas vidas. Durante a distribuição dos donativos tira-se várias fotos, de maneira muito entusiasmada e com muito orgulho. Esses registros saem principalmente nos informativos da COT, que são vendidos geralmente dentro da própria comunidade, sendo que outras pessoas também podem ter acesso a esses jornais. O que se percebe é que as fotos, juntamente com outros tipos similares de práticas publicitárias, servem para a autopromoção dos obreiros da tardinha dentro da própria COT, ou no máximo, dentro do catolicismo. Faz parte de um movimento de formação de status, da imagem de ―homens de bem‖, para buscar a identificação dos membros com a obra religiosa, para reafirmar uma identidade comunitária e para a incentivar a vinda de mais

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simpatizantes para compartilharem o mesmo modo de pensar da comunidade discipular. Ao entrevistar alguns carroceiros que dormiam sob a laje de uma loja da av. Tristão Gonçalves e também alguns mendigos da Praça José de Alencar e da Praça do Ferreira, descobri que não só a COT distribuía o ―sopão‖ nesses lugares, mas também outras entidades filantrópicas se encarregavam desse trabalho em outros dias da semana, sempre durante a madrugada. Quinta-feira é o dia dos Obreiros da Tardinha, quarta-feira é a vez da Toca de Assis, sextafeira quem faz as doações é a ―turma do Nonato Albuquerque‖, como disseram. Além disso, várias comunidades espíritas, em vários dias da semana, também organizam ―sopões‖. Parece-me importante também observar a divisão de tarefas que se opera no momento da distribuição do ―sopão‖. Por exemplo, em quase todas as minhas participações, fiquei responsável por distribuir os pães. As mulheres mais jovens, geralmente, integrantes de corais na comunidade, eram designadas a cantar as cantigas religiosas. O dever de pregar a palavra de Deus e de passar uma ―mensagem de amor e paz‖ para os carentes ficava por conta do pessoal mais experiente, realmente engajado no grupo e formado pelo Espírito Santo. Costumava-se designar também um pessoal para proteção do grupo. Ficavam posicionados pelo menos dois homens em cada extremidade da rua ou da praça onde fazíamos as doações, para prevenirem qualquer eventualidade. Quem tinha mais trabalho braçal era o pessoal responsável pela distribuição da sopa: carregavam o tonel até um lugar adequado e quando a fila de indigentes se formava, apressavam-se em facilitar a distribuição do alimento nos copos descartáveis. Toda a organização dos trabalhos estava envolvida por sutis hierarquias em que os grupos designados a levar a palavra de Deus, manifestar a língua

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espiritual57 e confortar os esmoléus, se instituíam como os agentes da ―principal ação‖, da ―verdadeira caridade‖ e do ―papel do verdadeiro cristão‖. A valorização do ―lado espiritual‖ das práticas religiosas também se torna manifesto no discurso dos informantes: O modo como o católico pratica caridade é diferente das outras religiões. Praticamos caridade juntamente com o catecismo. (Germano de Oliveira)

A prática [das doações] dos católicos, ela se volta a uma teologia que não tem o interesse de ―pescar‖ a pessoa pra Igreja. A prática de caridade das outras religiões têm o interesse de conquistar aquela pessoa para a Igreja, de dominar aquela pessoa e aquela pessoa ficar dentro da Igreja. A caridade católica e o próprio católico não tem essa tendência de agir. Ele age por uma questão de amor mesmo... Eu acho que essa é a principal diferença. (Fátima Bertini)

Os católicos, pelo menos uma grande parte deles, a finalidade deles é resgatar [os carentes] mesmo socialmente e, o principal, espiritualmente, para saírem da marginalidade, do mundo das drogas. (Sérgio de Menezes)

Assim como os espíritas e os evangélicos devem exaltar suas práticas sociais em detrimento das ações realizadas por outras religiões, os carismáticos tendem a tratar pejorativamente as doações feitas por outros grupos. ―A sopa dos espíritas é fraca‖, o pessoal da COT costuma dizer. A dádiva, porém, em qualquer contexto social que se esteja falando, implica necessariamente um processo de troca, real ou simbólica. Lanna, em A

dívida divina, observa uma peculiaridade na aliança de trocas de favores (que podem ser doações materiais) entre patrões e empregados no caso do município de São Bento, no Rio Grande do Norte. Ele escreve:

57

Para os adeptos da Renovação Carismática, a língua espiritual representa uma espécie de código usado pelo Espírito Santo para se manifestar para e por meio dos homens. Nesse tipo de “linguagem” normalmente não há a transferência de informações; não há a comunicação de idéias, dados, que poderíamos, ou então, deveríamos saber por meio da graça divina. A manifestação da língua espiritual consiste em uma revelação da fé. O uso e a manifestação dela implicam no exercício da vida religiosa, a experiência das verdades apregoadas, o contato com o sobrenatural.

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A análise destas dívidas deve ser relacionada com o fato de o patrão ter, em toda parte, como um rei, a prerrogativa, mas não o dever, de iniciar quaisquer contatos sociais. Ele age então como se tivesse o monopólio destes, permitindo-se um alto grau de manipulação das trocas. Assim, a relação hierárquica se efetiva não apenas onde há diferença, mas também num contexto de separação e/ou grande distância social. (Lanna, 1995: 50)

Trazendo essa afirmação para o caso da temática abordada no trabalho monográfico, torna-se evidente o fato da relação caridoso x carente produzir um sentimento de resignação e uma ―vontade de retribuir de alguma forma‖ por parte do ―ajudado‖ em relação ao filantropo, criando, assim, um contrato de

dependência. Mas, como já afirmei anteriormente, essa troca de dádivas, na caridade, não representa um contrato econômico; não existindo, na imensa maioria dos casos, uma retribuição material por parte do carente. Não havendo a ―retribuição efetiva‖, mas sim a afetiva, não existe um controle, ―um alto grau de manipulação de trocas‖, na expressão de Lanna, por parte do doador. Ele apenas doa, eventualmente (na maioria dos casos, o filantropo não vê mais aquela pessoa que ―ajudou‖), os alimentos, as roupas ou o dinheiro; e, por isso, por não criar vínculos corriqueiros entre doador x donatário, não pode controlar o contrato estabelecido. Porém, no caso da distribuição dos ―sopões‖ da COT e da Toca de Assis, por exemplo, cria-se, guardando-se as devidas proporções com a relação patrão x empregado do município de São Bento, certos vínculos afetivos, uma certa ―relação cotidiana‖ entre os doadores e os carentes. No caso da COT, que diferentemente da Toca de Assis, o ―pessoal do sopão‖ vai diretamente atrás de pessoas para fazerem as doações todas as madrugadas de quinta para sextafeira, esse vínculo afetivo é quase inevitável. Os ―esmoléus‖ já sabem o dia e, mais ou menos, o horário da sopa e já ficam à espera pela doação. Geralmente, são as mesmas pessoas que ficam cantarolando as músicas religiosas, distribuindo a sopa, a água e as roupas e fazendo as orações e as ―pregações‖ 135

individuais aos ajudados. Os mendigos já conhecem, às vezes, até pelo nome, quem é quem do grupo de filantropos da COT (sem saber, porém, que são da COT). Chegam a travar conversa amistosa e perguntar ―como foi a semana‖. Assim, podemos até perceber algumas tentativas de controle de certas atitudes dos carentes, principalmente em relação ao comportamento. Tentavam, por exemplo, ―trocar‖ a sopa por uma manifestação, por parte dos ―ajudados‖, de uma conduta ―civilizada‖ (em todas as conotações que Norbert Elias apontou ao termo) perante as ―pregações‖ que eram ministradas naquele momento. Tentavam também adestrar os mendigos para se sentarem na calçada todos reunidos próximos uns aos outros para ouvirem quietos as orações e receberem as bênçãos que eram ofertadas. Além disso, muitas vezes, procuravam influir de alguma forma no palavreado ―inadequado‖ que era usado e abominavam o uso de brincos, piercings e outros adornos, que consideravam ―afeminados‖ ou ―de malandro‖. Em muitos casos, dependendo do ―grau de docilidade‖ do carente conseguiam ―tomar‖ o brinco, ou qualquer outro objeto inadequado para o uso de um cristão. Já os beneficentes da Toca de Assis, geralmente, recebem os mendigos nas casas de caridade, onde distribuem as doações. Da mesma forma do ―pessoal da COT‖, troca-se sopa pela manifestação de afabilidade no recebimento dos ―bons conselhos‖ católicos. Isso não quer dizer, em nenhuma das duas comunidades, que não haverá sopa se não houver afabilidade, a demonstração de ―ser um homem de bem‖ por parte dos carentes. Todos, independentemente do seu ―nível de domesticação‖, ganham a sopa. Entretanto, aqueles que se mostram mais amáveis e dóceis chegam a receber o dobro de regalias daqueles que não se comportam dessa maneira. Vê-se, dessa forma, como se dá um verdadeiro ―processo civilizador‖, objetivando a construção de ―homens de bem‖, tanto entre filantropos como também entre os grupos indigentes. Com efeito, o termo ―homem de bem‖ pode servir para caracterizar o sentimento de orgulho por parte dos carismáticos, um sentimento de que estão ―fazendo a coisa certa‖, e, pelo menos em relação ao

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desejo dos caridosos, serve também para caracterizar os ―melhores mendigos‖, aqueles mais pacíficos. O carente deve ser um ―homem de bem‖ para receber mais doações. Sendo assim, por meio da dádiva é possível ―comprar‖ a nãoviolência dos ajudados, estabelecendo-se um acordo tácito de paz. Mauss, sobre a questão da paz originada da troca de dádivas, afirma: ―recusar-se a dar, deixar de convidar ou recusar-se a receber equivale a declarar guerra; é recusar-se a aliança e a comunhão‖ (1974: 58). Nas práticas de filantropia dos carismáticos também existe essa ―obrigação de dar‖, por parte dos religiosos, e a ―obrigação de receber‖, por parte dos mendigos, pois receber significa uma forma de agradecimento e até uma retribuição simbólica àquela doação. Quanto mais se mostram satisfeitos e agradecidos os mendigos que recebem o ―sopão‖ do projeto São Francisco, mais satisfeito e orgulhoso fica o pessoal da COT; quanto mais esses mendigos se envolvem e participam das orações e das músicas, mais sopa, pão, água, eles recebem. Existe uma espécie de adestramento comportamental para que haja um engajamento dos moradores de ruas na ―causa do Espírito Santo‖. Van Ossenbruggen, citado por Mauss, assevera: ―as dádivas oferecidas aos homens e aos deuses têm também por fim comprar a paz para uns e para outros‖ (1974: 63). Eu mesmo já havia percebido no discurso dos entrevistados e nas pregações realizadas nas casas de oração da Deus Conosco, da COT, da Legião de Maria e na própria Igreja, um forte incentivo à paz, à harmonia, à ―solidariedade‖ das pessoas. Isso na verdade não é novo, vem desde os tempos em que Jesus perambulava fazendo suas pregações pelo Oriente Próximo. Essas doações feitas por carismáticos, espíritas e evangélicos também procuram acalentar a violência presente na cidade de Fortaleza, deixando a pobreza de parte dos indigentes em um ―ponto suportável‖ para que eles não irrompam em atos de violência, principalmente o roubo. É um sistema de proteção tanto no âmbito social como no âmbito religioso, pois segundo o discurso dos informantes carismáticos, os pobres não vão partir para a violência se forem conscientizados pela palavra de Deus e se forem acalentados

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por alimentos e roupas. Além disso, Deus, com todo o seu ímpeto de justiça, ―tudo sabe e tudo vê‖ e não vai permitir que aconteça alguma iniqüidade aos seus servos queridos. Como afirma Mauss: ―vê-se como é possível esboçar aqui uma teoria e uma história do sacrifício58 contratual. Este supõe instituições do gênero daquelas que descrevemos e, inversamente, realiza-se em grau supremo, pois os deuses que dão e retribuem estão ali para dar uma grande coisa no lugar de uma pequena coisa‖ (1974: 63). Fazendo uma observação sobre a esmola, o autor também fala de algumas sociedades onde se pratica esses atos e qual poderia ser o impulso dessa prática: ―... entre os haussa do Sudão, quando o ‗trigo de Guiné‘ está maduro, ocorre que as febres se espalham; a única maneira de evitar a febre é fazer presente desse trigo aos pobres‖ (Idem, p. 65). Sobre a troca de presentes entre as tribos australianas, especialmente entre as fratrias Omaha, Mauss salienta: Ademais, o que trocam não são exclusivamente bens e riquezas, móveis e imóveis, coisas economicamente úteis. Trata-se, antes de tudo, de gentilezas, banquetes, ritos, serviços [...] em que o mercado é apenas um dos momentos e onde a circulação de riquezas constitui apenas um termo de um contrato muito mais geral e muito mais permanente [...]. Propusemo-nos a chamar a tudo isso de sistema de prestações totais. (Mauss, 1974: 45)

Esse trecho do Ensaio sobre a dádiva lembra muito a descrição feita por Bronislaw Malinowski sobre o kula, sistema de prestações totais de algumas 58

Em outro trabalho bastante aclamado, Essai sur la nature et la fonction du sacrifice, Marcel Mauss afirma que o sacrifício é um tipo de ritual cuja realização reclama a publicidade da ação. O sacrifício consiste em um evento social: “même quand le sacrifice est fait par um individu et pour lui-même, la société y est toujours présente, au moins en esprit [...]; c‟est elle qui a determiné la victime, donné les moyens de la consacrer, nommé, choisi et convoqué les dieux” (“L‟analyse des faits religiex” in Oeuvres, vol. 1., p. 16). Seria necessário, porém, rever a concepção maussiana de que a dádiva entre homens e deuses representa um “sacrifício contratual”. Para o exemplo das doações dos carismáticos aos pobres de Fortaleza, onde está a figura da vítima sacrificial? Seriam os participantes do grupo filantrópico auto-sacrificadores? O alimento, a sopa e as roupas, os objetos da caridade, advêm de um sacrifício? Trabalharemos essa questão mais adiante.

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tribos da Nova Guiné, os chamados por ele ―os argonautas do Pacífico Ocidental‖. Nas ações caritativas coletivas, como é o caso do ―sopão‖, existe todo um ritual (talvez muito menos pomposo do que as infinidades de trocas sociais e simbólicas retratadas por Mauss nas sociedades que analisou), onde podemos presenciar, juntamente com as doações, o momento das orações entre os carismáticos e os carentes antes da distribuição propriamente dita dos alimentos, onde existe toda uma divisão de tarefas com o coral de músicas religiosas, com o responsável pela oração grupal que fala em nome do Espírito Santo e é abençoado por todos antes da viagem de busca pelos moradores de rua. Também nomeia-se os aconselhadores, que são os responsáveis por levar ―uma palavra de conforto‖, a ―mensagem de Deus‖ para aquelas pessoas carentes. Talvez, os aconselhadores sejam os mais prestigiados do grupo, pois são eles que realizam o principal objetivo das comunidades carismáticas: trazer o conforto, o ―alimento espiritual‖ para os mendigos ―afastados de Deus‖. Esse objetivo, para eles, é hierarquicamente superior ao ―alimento físico‖, como chamam. Em algumas dessas trocas de riquezas e de gentilezas entre clãs, tribos e famílias, descritas por Mauss, podem ainda ser observadas as prestações totais que envolvem os rituais do potlatch. Em poucas palavras, podemos dizer que

potlatch significa o espaço social onde se reúnem pessoas de vários grupos e onde se processam trocas econômicas e culturais, fazendo-se ainda o cumprimento de prestações jurídicas. Nesses encontros, também existe a destruição de riquezas como manifestação de suntuosidade. O objetivo da ―extravagância‖ é rivalizar o acúmulo de bens com outras tribos. Tendo-se em mente a amplitude conceitual do termo, não se pode chegar ao exagero de classificar as ações caritativas coletivas dos carismáticos como um potlatch aos moldes da estrutura social e do contexto histórico-geográfico da cidade de Fortaleza, nem considerar os encontros de filantropia pesquisados como potlatchs em proporções minimizadas. O que se pode fazer nesse caso é

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uma alusão ao fato de Franz Boas59 ter indicado para a palavra o sentido de ―o lugar onde se é saciado‖, pois, de fato, é válido afirmar que esses ―sopões‖ da COT e da Toca de Assis são ocasiões onde as pessoas são saciadas de uma forma ou de outra, fisicamente e espiritualmente, tanto os mendigos como os filantropos.

59

BOAS, F. Kwakiutl Texts, Second Series, Jesup Expedit., vol. X, p. 43, n. 2; citado por Mauss, “Ensaio sobre a dádiva” in Sociologia e antropologia, p. 46 em nota de rodapé.

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CAPÍTULO VIII: UM CARISMA NA MISÉRIA

Vejamos a seguir um discurso do Papa Leão XIII (líder da Igreja Católica de 1878 até 1903) sobre a existência das desigualdades mundanas entre os homens: A Igreja, pregando aos homens que eles são todos filhos do mesmo Pai Celeste, reconhece como uma condição providencial da sociedade humana a distinção das classes; por esta razão ela ensina que apenas o respeito recíproco dos direitos e deveres e a caridade mútua darão o segredo do justo equilíbrio, do bem-estar honesto, a verdadeira paz e prosperidade dos povos. (Papa Leão XIII – Quod Apostolici Muneris)

As hierarquias existentes entre os homens, principalmente quanto à posse de bens materiais, representam a condição necessária para a proliferação das práticas de caridade. Uma doação, idealmente, não deve requerer contraprestação. A reciprocidade obrigatória, a ―descoberta‖ maussiana, fere o princípio teleológico que faz com que uma doação seja uma doação: um ato desprovido de interesses, do desejo de receber de volta aquilo que foi dado. A lógica mitológica do cristianismo, tal qual em outras religiões, concebe a desigualdade social como providência divina, pois essa idéia se adapta perfeitamente ao ideal desinteressado da doação. Dessa forma, o caridoso sabe que ao distribuir os donativos não vai receber nada em troca do esmoléu, aquela pessoa que ele não mantém contato e que não tem condições econômicas de devolver a regalia. Depois Deus decidirá. ―Tudo está nas mãos de Deus‖. O alívio emocional, a ―consciência limpa‖, o sentimento de que ―se está fazendo a coisa certa‖, já revela a reciprocidade simbólica que está escondida por trás daquela doação. O pedinte, o carente, não agradece a regalia recebida dizendo que um dia devolverá o que granjeou; ele diz: ―Deus lhe pague‖.

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Os carismáticos entrevistados, geralmente, não procuraram dissimular a recompensa divina que as pessoas benevolentes estariam fadadas a receber. Alguns informantes afirmaram que essa recompensa era realizada no reino dos céus e outros ampliaram os benefícios também para o mundo dos homens. Emanuel: O católico espera ou recebe alguma coisa em troca quando faz as doações? Josinete (Legião de Maria): Bom, o católico, em sua essência, não era

para ele esperar nada em troca não. Na bíblia, está escrito que a nossa recompensa não é nesse mundo. O próprio Jesus disse que se a tua mão direita dá uma esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que ela está fazendo. Quando tu fores orar, ore em segredo, onde ninguém te veja. Quando tiveres jejuando, mantenha uma boa aparência para que o teu ato de caridade, para que a tua penitência fique com você. Porque não são os homens que vão te recompensar, mas é Deus. Então, o católico mesmo, ele deve se basear nisso, nesse princípio que é trazido pra gente na Bíblia. Então, em suma, não é para ele esperar reconhecimento, ou alguma recompensa aqui. Embora que exista gente que pratica esse tipo de caridade para expiar os pecados, para esconder alguma coisa, até mesmo pra se promover, mas, não é para ele esperar nada em troca. Embora que a própria Igreja recomende, padres, diretores espirituais, pessoas dentro da Igreja; recomende como exercício espiritual, como uma busca de expiação dos pecados, os atos de caridade. Isso é muito feito dentro da Igreja. Mas, o interesse maior daquele católico deve estar mesmo na caridade pelo o que ela é. Emanuel: Então, não é para existir esse interesse ―aqui entre os homens‖. Mas, entre o homem e Deus? Existe uma troca pela salvação? Josinete: Claro que o homem pensa nisso. O que seria do homem...

homem que não faz nada por interesse? Não tem nada de humanidade nele, né? O ser humano, em si, ele já faz as coisas por recompensa. Quando eu digo assim: que o católico não era para esperar nada em troca, isso, eu estou querendo dizer que ele acaba esperando dos próprios homens, quanto mais de Deus, né verdade? É uma relação que existe de troca. Embora, deva chegar um período da nossa vida espiritual que a gente ame a Deus pelo que ele é e faça a vontade de Deus para agradar a Deus, para ser movido por um amor fraterno. Fazer isso em troca da salvação não é o mais correto, embora exista isso e, embora, no início de uma caminhada espiritual isso ainda exista muito. ―Eu amo a Deus porque ele me faz feliz‖, ―eu amo a Deus porque aqui eu encontrei boas pessoas‖: existe esse pensamento. Esse pensamento ainda move muita gente, muita gente. Emanuel: Os católicos costumam esperar ou receber algo em troca quando fazem caridade?

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Manoel Roberto (COT): Recebemos em troca a graça de Deus (...). Olha, o

Senhor disse, em vária passagens Dele, na Bíblia existem vários momentos onde se mostra a recompensa dada por Deus para as pessoas que ajudam os outros. Em Atos dos Apóstolos, capítulo 10, 1, as doações representam louvores para Deus. Não é que Deus precise dessas doações das pessoas, que elas façam isso, mas Deus, na sua infinita misericórdia, pois Deus é fiel, Ele recompensa a gente. Você pode ter certeza: aquilo que você dá para o pobre, Ele vai dar dez mil vezes para você em retorno de felicidade. Porque uma coisa eu te digo: o coração do homem tem desejo de felicidade. Às vezes, o que a gente quer ter não é nem objetos, coisas, riquezas, o que a gente busca mesmo é a felicidade. Você realizando um projeto desses como o Projeto São Francisco, Deus, com certeza, sem nenhuma dúvida, no tempo de Deus, ele vai dar aquilo que você deseja: um bom emprego, terminar uma faculdade, um bom casamento... Emanuel: O católico espera ou recebe alguma coisa em troca quando faz as doações? Fátima Bertini (COT): Acho que não. Talvez ele espere de Deus. Se ele

não conhecer Deus verdadeiramente, se ele fica só no superficialismo, talvez ele espere isso. Talvez ele espere que doando alguma coisa para alguém, Deus possa olhar pra ele melhor. Como as indulgências da Idade Média, não é? Mas isso é relativo pra católicos e católicos. Os católicos que têm realmente uma visão mais firme do que seja um encontro com Deus, eles têm uma visão diferente dessa coisa. Por exemplo, aqui a gente na COT, o Projeto São Francisco: Se doa no PSF porque se tem a consciência de que pode-se ajudar alguém que esteja precisando, mas não é pra receber alguma coisa em troca. As pessoas têm que ver o outro como um irmão dele, que precisa de ajuda. Emanuel: Como você interpreta essa frase da Bíblia Sagrada: ―O rico e o pobre se encontraram: a todos os fez o senhor‖ dos Provérbios 22, 2? Fátima: Vinda da palavra de Deus, são os provérbios, então, é uma

palavra viva, é uma palavra que o próprio Deus inspirou no coração dos profetas que escreveram. Aqui, pode-se entender que Deus permite que uns possam possuir alguma coisa e Deus permite também a situação de carência para outros. Então, Deus tem esse poder. Ele permite também a existência de uns que estão lutando pra ter. não é que Deus determine assim: esse aqui vai ser rico e esse aqui vai ficar pobre. Ele permite, pra própria salvação da pessoa que por algum tempo ela possa ter alguns bens. E permite também, para salvação dessas pessoas, que outras possam também não ter esses bens. Não é que Deus criou as desigualdades sociais, mas, é que Deus conhece a cada um individualmente e ele sabe o que é que vai ser bom pra salvação da alma de uns e o que vai ser bom pra salvação da alma de outros.

No discurso dos informantes, percebe-se a tentativa de estabelecer o paradoxo entre a caridade idealizada, desprovida de interesses, expressa no

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livro sagrado, e a ―caridade usual‖, onde existe a influência dos interesses humanos, a poluição dos desejos mundanos. Como pudemos ver na fala da Josinete, essas duas ―dimensões‖ das ações caritativas podem ser vividas através de etapas, de ―estágios de desenvolvimento‖. A filantropia mundana seria uma coisa natural, afinal as pessoas costumam agir por interesses diversos, mas, ela consiste em apenas uma fase da ―caminhada espiritual‖. Através do contanto com o amor de Deus, nós poderíamos muito bem avançar o processo, fazendo as doações para satisfazer a Sua vontade, sem pensarmos em salvação ou expiação de pecados. Manoel Roberto afirma que não deve haver interesses no momento da doação, mas não se pode negar o desejo de felicidade que move os homens. Mesmo, agindo sem interesses pessoais e, por causa disso, os cristãos ganhariam a recompensa. A retribuição dos deuses é sempre maior do que a oferenda. Como ensina Mauss: ―os deuses que dão e retribuem estão ali para dar uma grande coisa no lugar de uma pequena coisa‖ (1974: 65). Além disso, como podemos ver na fala de Fátima, o Deus cristão conhecendo os seus súditos, permite a posse de bens materiais para uns em detrimento de outros para que todos possam ascender ao paraíso celestial. Tal concepção fatalista pode ser entendida como uma reformulação da teoria agostiniana, em que a graça divina precede todos os esforços de salvação e é seu instrumento necessário. João Calvino vai discordar nesse ponto, afirmando que as ações mundanas dos homens é que indicarão se estão ou não predestinados à salvação. Segundo ele, o sucesso material de alguns homens demonstraria que eles estavam em sintonia com a vontade de Deus. Para Fátima e outros informantes, tanto o sucesso material quanto a miséria, o sofrimento dos indigentes ou desempregados, poderia indicar um sinal da benção de Deus para com seus filhos; já que Ele, na sua infinita sabedoria, conhece a ―personalidade‖ de cada um e sabe qual deles deve padecer com os tormentos da fome e da violência ou qual deles precisa angariar felicidades mundanas e agir para o bem, praticando caridade. Nessa concepção, a entidade divina, Deus, seria a precursora das relações de troca com os homens.

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No quarto capítulo do Ensaio sobre a dádiva, intitulado ―O presente feito aos homens e o presente feito aos deuses‖, Mauss observa: Um dos principais grupos de seres com os quais os homens tiveram que contratar e que, por definição ali estavam para contratar com eles foi, antes de tudo, o dos espíritos dos mortos e dos deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Era com eles que era mais necessário trocar e mais perigoso não trocar. Inversamente, porém, era com eles que era mais fácil e mais seguro trocar. A destruição sacrificial tem precisamente por fim ser uma doação que seja necessariamente retribuída. (Mauss, 1974: 63)

A caridade é, em última análise, um presente feito aos deuses por meio de um presente feito aos homens. Está certo que existem outros fatores estimulando as doações ―gratuitas‖ por parte dos católicos, como a influência de preceitos cristãos de ―amor ao próximo‖, de ―compaixão para com aquele que precisa de algum tipo de ajuda‖, o desejo de, pelo menos, amenizar as desigualdades sociais, e o medo da violência urbana. Porém, mesmo a caridade sendo idealizada como uma ação sem interesses quaisquer, a não ser o de ―amar o outro‖ incondicionalmente (no sentido cristão), o praticante das doações sente-se muito bem no momento de suas ―boas ações‖, sente-se orgulhoso do que está fazendo porque está fazendo a ―vontade de Deus‖, mostrando suas oferendas ao criador, está sendo ―instrumento do Espírito Santo‖ e porque o ―paraíso celestial‖ vai estar à sua espera se assim o fizer. É por causa desse ideal de filantropia ―sem interesses pessoais‖ que a caridade é considerada pelos carismáticos como sendo um conjunto de práticas mais honrosas do que a solidariedade. Quando um esmoléu pede uma ajuda, normalmente, ele diz: ―me dê uma esmola pelo amor de Deus‖, ou ―me dê uma esmola em nome de Deus‖. O presente ofertado pelo caridoso, dessa maneira, não é diretamente para o pedinte, mas para DEUS. O pedinte, com tal pedido, cria uma grande

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responsabilidade do filantropo ou da pessoa que ―ousa‖ recusar-se a dar a esmola, pois o presente é agora para Deus, supremo criador do Universo, de infinita bondade. Além disso, quando recebe a dádiva, o esmoléu agradece principalmente a Deus, na verdade, o ―maior responsável‖ por ter tocado no coração daquele doador. Na verdade, é um duplo agradecimento: a Deus e ao filantropo. Deus é o grande intermediário, o personagem principal, nesse tipo de dádiva. No caso carismático, o Espírito Santo é a divindade primordial. Quando pergunto a Fátima Bertini, psicóloga da COT, se a pessoa caridosa ―sente-se bem‖ quando está envolta dos indigentes, dos mendigos, fazendo suas doações, ela responde que sim, porque é como se elas [os doadores]

ocupassem um papel de salvadora momentânea daquela situação de miséria. Então, isso fortalece nela até a auto-estima de ver que está exercendo um papel social, mesmo um papel social sem qualquer tipo de transformação. Na perspectiva crítica de Bauman, em Amor Líquido, a idéia de que se deve sobreviver aos outros é o tema de filmes famosos como A lista de Schindler de Steven Spilberg, onde um grupo de judeus esqueléticos e moribundos consegue escapar do genocídio e são aplaudidos juntamente com a ―humanidade‖ de Schindler por milhares de espectadores nas salas de cinema, e está presente no arcabouço de valores cristãos e ocidentais. ―Sobreviver a qualquer custo e em qualquer condição, venha o que vier, fazendo o que for preciso fazer‖ (2004: 105). A tentativa dos filantropos carismáticos de resolver os problemas de miséria através do prolongamento da sobrevivência dos indigentes de Fortaleza, custe o que custar, também compartilha esse pensamento. Não parece importante para eles o fato dos mendigos continuarem moribundos, sempre dependentes da ajuda alheia, e que, muito possivelmente morram no mesmo estado de indigência. O mais importante é que as pessoas consigam levar a mensagem de Deus e que elas continuem agir como ―pessoas de bem‖, pois estão fazendo a vontade de Deus, sendo instrumentos do Espírito Santo.

146

Mais uma vez afirmo que é de fundamental importância questionar o fato da maioria dos informantes considerarem as suas práticas de caridade como algo paliativo, que não vai resolver (acabar com) os problemas sociais da cidade (no máximo, dizem, ―podem ajudar no combate à miséria‖); e, paradoxalmente,

eles

continuam

a

reproduzir

essas

ações

quase

cotidianamente. As suas oferendas são aos deuses, não importando muito o uso que os homens fazem delas, nem as conseqüências desses atos.

147

CAPÍTULO IX: CRÍTICA AO ASSISTENCIALISMO: SÉCULOS XVIII E XIX

Não foi gratuitamente que a palavra ―caridade‖ adquiriu sentido pejorativo na parte secularizada da sociedade. A categoria dos intelectuais teve papel preponderante nesse intento. Com o uso de retórica sofisticada, análises econômicas, dados estatísticos, respaldo institucional e poder simbólico, os intelectuais

sempre

foram

agentes

sociais

de

suma

importância

no

estabelecimento de regras de conduta social e na incitação de processos de transformação das sociedades. A ciência, principalmente, é vista como a ―detentora da verdade‖, trazendo as ―boas novas‖ em que podemos nos inspirar e assim poder agir de modo mais plausível. No final do século XX e início do século XXI, passamos a regular nossos hábitos conforme as premissas científicas. Procuramos evitar o consumo de carnes vermelhas, evitamos, ou, pelo menos, criticamos a queima de combustíveis poluentes, e caminhamos preocupados com a nossa postura para prevenir doenças na coluna vertebral por causa das ―descobertas‖ dos cientistas. Historicamente, as ciências sociais, a economia, e a literatura não pouparam esforços para constatar o fato de que o assistencialismo, institucional ou individual, é algo maléfico à sociedade, contribuindo para o aumento ou para o estacionamento das disparidades sócio-econômicas. Elas chamam atenção também para as questões morais e psíquicas que envolvem a atitude de doar e a atitude de receber a doação. Posicionamentos críticos como o de Mauss, quando, na conclusão do

Ensaio sobre a dádiva, preconiza que ―em países anglo-saxões, bem como em tantas outras sociedades contemporâneas, selvagens e altamente civilizadas, os ricos [deveriam voltar] – livremente e também forçosamente – a considerar-se como espécies de tesoureiros de seus concidadãos‖ (1974: 167) são exceções tanto nos séculos XVIII e XIX como no século XX. Seria importante salientar o

148

fato de Mauss usar a expressão ―sentimentos mais puros‖ tanto para o caso das práticas de caridade como para a solidariedade60. Dessa forma, o autor revelase simpatizante dos acordos afetivos próprios do chamado ―direito pessoal‖ e, de certo ponto, chega a desaprovar a especulação do capital empresarial e a usura, práticas características do modo de produção capitalista. A desaprovação das doações aparentemente gratuitas parece ser a disposição mais comum dentro das produções intelectuais. Na literatura, por exemplo, Dostoievski, em Crime e castigo, busca desmitificar a figura do homem benevolente. Nas entrelinhas da novela, a figura do ―homem de bem‖ é retratada através de ―tipos humanos‖ com interesses maquiavélicos. O personagem Piotr Pietróvitch aparentemente age como um benfeitor, ajudando a pobre família Raskólnikov e almejando casar com a irmã do protagonista, mas, na realidade, é um sujeito calculista e inescrupuloso que procura se relacionar com pessoas de baixa renda para angariar as vantagens de uma dependência econômica, colhendo os frutos de seu investimento e ouvindo ―os mais lisonjeiros cumprimentos‖. Em outro romance do mestre do realismo russo, O jogador, a disposição para a generosidade parte da aquisição ―fácil‖ de bens, dinheiro, geralmente. O ―espírito caridoso‖, demonstra o ―etnógrafo‖ Dostoievski, arrebate os jogadores depois de terem ganhado grandes quantias pecuniárias. Como a sorte é considerada uma dádiva, convém distribuir uma parte do prêmio ao recebê-lo. Já em Angústia, de Graciliano Ramos, temos uma análise psicológica do repúdio com que os mendigos são obrigados a receber de outrem o material para a própria sobrevivência. Graciliano mostra o absurdo da necessidade de ajuda alheia dos grupos de indigentes, quando esta se torna a única alternativa para manter-se vivo. O protagonista Luís da Silva, sentado em frente a um balcão de bar no subúrbio de Maceió, vê mendigos estirados na calçada, cobertos de trapos, e pensa consigo: ―felizmente as moscas dormiam, e o homem dos trapos não precisava mandar as almas caridosas para o reino do céu em voz 60

Ver Mauss, “Ensaio sobre a dádiva” in Sociologia e antropologia, p. 167.

149

alta, para a casa do diabo em voz baixa. Agora não havia esmolas e o homem da perna entrevada conversava com os outros quase naturalmente‖ (p. 115). No campo da filosofia e da economia política, pensadores como Defoe, Mandeville, Townsend, Burke, Mantoux, Ricardo e Tocqueville buscaram delinear as causas sociais e as conseqüências materiais, como distribuição de riquezas, o aumento do desemprego ou da produtividade, implicadas nas práticas de assistencialismo. No capítulo ―Pauperismo e utopia‖ de A grande transformação, Polanyi faz uma abordagem histórica sobre a visão que cada época produziu sobre a presença dos pobres na sociedade. Ele escreve: ―enquanto os pobres, na metade do século XVI, representavam um perigo para a sociedade, sobre a qual desciam com exércitos inimigos, no final do século XVII, eles constituíam apenas uma carga para os impostos‖ (1980: 130). Até o fim da Idade Média, os pobres não representavam um problema, algo que tinha que ser resolvido, mas, a existência de pobres em detrimento da riqueza de outros fazia parte da condição humana. As desigualdades sociais eram explicadas e justificadas pela sapiência do deus cristão, assim como, atualmente, alguns informantes carismáticos discursaram nas entrevistas realizadas no presente trabalho. Apenas no século XVII, é que se inicia, pelo menos, a preocupação em se pensar a questão: A partir dessa época, as opiniões sobre o pauperismo começaram a refletir uma concepção filosófica, como ocorrera anteriormente com as questões teológicas. As opiniões sobre os pobres espalhavam cada vez mais as perspectivas em relação à existência como um todo. Daí, a variedade e a aparente confusão dessas opiniões mas, ao mesmo tempo, seu interesse primordial para a história da nossa civilização. Os quacres, pioneiros na exploração das possibilidades da existência moderna, foram os primeiros a reconhecer que o desemprego involuntário devia ser o resultado de algum defeito na organização do trabalho. (Polanyi, 1980: 130)

150

Mas, foi somente a partir do século XVIII que intelectuais e alguns líderes políticos e empresários começaram a se perguntar: o que fazer então com a classe dos indigentes? Polanyi, sobre isso, afirma:

Foi exatamente um século mais tarde [século XVIII] que Jeremy Bentham, o mais prolífero de todos os projetistas sociais, formou o plano de usar indigentes, em grande escala, para pôr em funcionamento a maquinaria para trabalhar madeira e metal projetada por Samuel, seu irmão, ainda mais inventivo. [...] O plano Panopticon, de Bentham, pelo qual as prisões seriam projetadas de forma a tornar barata e efetiva a sua supervisão, já existia a alguns anos, e ele decidira agora simplesmente aplica-lo a sua fábrica que funcionava com prisioneiros ― o lugar dos prisioneiros seria assumido pelos pobres. (Idem, p. 132)

Existia, por toda a Europa, uma forte tendência à crítica negativa em relação a todo tipo de prática assistencialista, que eram vistas, na maioria dos casos, como as grandes responsáveis pela geração de desemprego.

Não deveria haver mistério quanto à razão econômica porque não se podia fazer dinheiro com os indigentes. Ela já havia sido fornecida há quase 150 anos por Daniel Defoe, cujo panfleto, publicado em 1704, fora o pretexto para a discussão iniciada por Bellers e Locke. Defoe insistia em que se os pobres fossem assistidos socialmente eles não trabalhariam por salários; e se eles fossem obrigados a manufaturar bens em instituições públicas eles apenas criariam um maior desemprego nas manufaturas privadas. [...] As ácidas críticas de intelectuais como Daniel Defoe e Mandeville não foram, contudo, unanimidades nos debates econômicos que se seguiram pelo século das luzes, pois havia também uma concordância geral quanto

151

às vantagens da mão-de-obra barata, pois só com ela as manufaturas podiam prosperar. Além disso, se não fossem os pobres, quem tripularia os navios e iria à guerra? Todavia, permanecia a dúvida se o pauperismo não seria um mal, afinal de contas. (Idem, p. 134 – 135)

Contudo, essa desconfiança quanto às vantagens e desvantagens da existência de indigentes, do lupem, parece ter sido esquecida na segunda metade do século XVIII. Em todas as grandes obras de Economia desse período não se encontra qualquer menção honrosa à questão da pobreza e, muito menos ainda, à assistência social. Nem mesmo no badalado A história da riqueza das

nações de Smith, podemos encontrar análise mais aprofundada sobre a temática. A caridade ao pobre não era mais encarada como um problema. Somente nos últimos suspiros do século das luzes, podemos encontrar em Townsend, com a sua Dissertation on the Poor Laws, uma maior atenção dirigida ao fenômeno social. Polanyi observa:

Hobbes argumentara sobre a necessidade de um déspota porque os homens eram como animais; Townsend insistia que eles eram

verdadeiramente61 animais e que, precisamente por essa razão, só era preciso um mínimo de governo. A partir deste ponto de vista novo, uma sociedade livre poderia ser vista como se consistisse de apenas duas raças: proprietários e trabalhadores. O número desses últimos era limitado pela quantidade de alimento e a fome impeli-los-ia ao trabalho, enquanto a propriedade estivesse em segurança. Não havia necessidade de magistrados, pois a fome era um disciplinador melhor que o magistrado. Apelar para ele, observava Townsend pungentemente, seria como ―um apelo da autoridade mais forte para a mais fraca‖. (Idem, p. 141)

61

Grifos do autor.

152

Um conto de Franz Kafka intitulado ―O artista da fome‖ pode muito bem servir de ironia invalidando a tese ―naturalista‖ de Townsend. A estória é a de um artista de circo que trabalha jejuando enclausurado em uma jaula em troca de trocados dados pelo público, costume presente nos espetáculos circenses até o início do século XX. Nesse caso, a sobrevivência não era incitada para eliminar a inanição, mas para protelá-la. Além disso, Townsend não levou em conta as práticas assistenciais das classes mais abastadas que amenizam a fome dos indigentes. Assim, a inanição não poderia servir de ―disciplinador‖ direto para o equilíbrio econômico da sociedade. Edmond Burke, fugindo da perspectiva ―naturalista‖ de Townsend, tratou o tema do pauperismo a partir do ângulo estrito da segurança pública. O episódio presenciado nas Índias Ocidentais parece tê-lo convencido do perigo de manter uma grande população escravizada, sem condições adequadas para a garantia de proteção dos ricos europeus, sobretudo porque, muitas vezes, se tolerava o uso de armas de fogo pelos escravos (cf. Polanyi, 1980). A solução pensada por Burke para evitar esse acirramento de animosidades entre ricos e pobres era o aproveitamento, pelas autoridades locais dos países colonizados e dos empresários urbanos, do contingente de carentes. Assim, unia-se o útil ao agradável: ao mesmo tempo em que se evitava a crescente violência dos miseráveis, os lucros das manufaturas poderiam ser elevados pelo baixo custo da mão-de-obra livre e pobre. Bentham, no mesmo período, analisava a questão da indigência de uma maneira ao mesmo tempo sistemática e fatalista:

Bentham acreditava que a pobreza era parte da opulência: ―no estágio mais elevado da prosperidade social‖, dizia ele, ―a grande massa dos cidadãos provavelmente disporá de poucos outros recursos além do seu trabalho diário e, conseqüentemente, estará sempre a um passo da indigência...‖. Daí recomendar ele ―organizar-se uma contribuição

153

regular para as necessidades da indigência‖, embora, com isso, ―a necessidade decresça, em teoria, e atinja, portanto, a indústria‖. Esse acréscimo ele o fazia com pesar uma vez que, do ponto de vista utilitarista, a tarefa do governo era aumentar a necessidade a fim de tornar efetiva a sansão física da fome. (Idem, p. 144)

Com esses argumentos, Bentham estabelece um divisor de águas nas abordagens sobre a temática até o momento. Primeiro, seus argumentos são importantes por colocar o problema da miséria de modo intrínseco ao progresso da

sociedade

capitalista.

Em

segundo

lugar,

por

nomear

a

função

assistencialista do Estado, sendo classificado como responsável por solucionar os problemas sociais ocasionados pela existência da grande disparidade entre as posses de ricos e de pobres. E, em último lugar, por estabelecer uma polêmica entre o que chama de ―tarefa do governo‖: o Estado, historicamente, buscou ou não diminuir as necessidades do povo pobre?62 Apesar

de

crítico

ferrenho

do

assistencialismo

institucional,

principalmente as ajudas vindas das administrações públicas, Townsend, o ―naturalista‖, não se manifesta contrário ao ―assistencialismo voluntário‖, que poderíamos denominar ―caridade espontânea‖. Segundo palavras de Polanyi sobre a teoria de Townsend: É claro que a assistência social aos pobres deveria ser abolida imediatamente. As Poor Laws ―provêm de princípios que raiam o absurdo, sob o pretexto de cumprir aquilo que é impraticável à própria natureza e constituição do mundo‖. Deixando os indigentes à mercê dos ricos, quem poderia duvidar que ―a única dificuldade‖ seria restringir a impetuosidade da benevolência desses últimos? E por acaso os sentimentos de caridade não são mais nobres do que aqueles que se originam de obrigações legais inflexíveis? ―Pode haver coisa mais bela na 62

Veremos no último capítulo a análise feita pelo sociólogo Francisco de Oliveira em relação ao histórico assistencialismo do Estado brasileiro.

154

natureza do que a suave complacência da benevolência?‖ Alegava ele, contrastando-a com a fria impessoalidade da ―caridade paroquial‖ que não conhecia as cenas da ―expressão natural de uma gratidão sincera por favores inesperados...‖ (Idem, p. 145)

Mais uma vez encontramos, nas entrelinhas do pensamento ocidentalcristão, a valorização dos ―atos desinteressados‖, no qual podemos indicar a prática da beneficência como exemplo máximo. Segundo Townsend, o assistencialismo institucional, de Estado, e mesmo o empresarial, não deve ser confundido com a ―espontaneidade‖ da benevolência da caridade individual. Esse tipo de assistência social resultante de frias leis, impessoal, movida por interesses profanos, está em um patamar inferior na escala dos valores sociais. O analista de história econômica P. L. Mantoux também se apresenta como avesso às práticas assistenciais dos governos nacionais. Ele comenta as conseqüências da implementação das Poors Laws, escrevendo: (...) aqueles que recebiam assistência social da paróquia estavam dispostos a trabalhar por um salário mais baixo, o que tornava a competição impossível para os que não recebiam ajuda paroquial. O resultado paradoxal a que se chegou foi que o assim chamado ―imposto dos pobres‖ significava uma economia para os empregados e uma perda para o trabalhador diligente que não contava com a caridade pública. Assim, a interposição impiedosa de interesses transformou uma lei caridosa num grilhão de ferro. (Polanyi, 1980: 149)

Vê-se que dimensão já tomava a crítica econômica negativa em relação às práticas de assistência social no final do século XIX. Tal reprovação tenderia a aumentar no século posterior com a ascensão dos políticos e intelectuais de esquerda durante todo o transcorrer da Guerra Fria. Argumentos morais (a idéia de que o assistencialismo institucional é impessoal e profano) e ―racionais‖ (por meio de análises econômicas) contribuíram para que a

155

caridade, e principalmente o vocábulo ―caridade‖, não pudesse mais ser exposto nas prateleiras dos valores seculares da sociedade ocidental. A crítica ricardiana ao assistencialismo social não deixa dúvidas sobre o malefício que as ações caritativas poderiam trazer para a economia, principalmente no que se refere a geração de mais miséria. Dessa forma, o efeito dessas práticas seria o exato oposto do almejado: uma solução para as crescentes desigualdades sociais. O fato de a Poor Law ter que desaparecer era parte dessa certeza [a necessidade de um mercado livre]. ―O princípio da gravidade não é mais certo do que a tendência de tais leis de mudar a riqueza e o vigor em miséria e fraqueza até que, finalmente, todas as classes sejam infectadas pela praga da pobreza universal‖, escreveu Ricardo. Ele seria, com efeito, um covarde moral se, sabendo disto, deixasse de encontrar forças para salvar a humanidade de si mesma através da cruel abolição da assistência social aos pobres. Sobre este ponto havia o consenso geral de Townsend, Malthus e Ricardo, Bentham e Burke. (Idem, p. 154)

Falando sobre as conseqüências da Poor Law Reform (Lei dos Pobres) de 1834, na Inglaterra, o próprio Polanyi chama a atenção do leitor para observar que em toda a nossa história moderna jamais houve um ato mais inconseqüente de reforma social do que esse conjunto

de ―medidas

trabalhistas‖: ―ele esmagou multidões de vidas enquanto pretendia apenas criar um critério de genuína indigência com a experiência dos albergues‖ (1980: 105). Aléxis de Tocqueville, em 1835, buscou analisar a problemática da pobreza através de duas obras: Memória sobre a pobreza e Segundo artigo

sobre a pobreza. Influenciado pelas teorias da Fisiologia Social da época, que utiliza a analogia entre corpo biológico e sociedade (corpo social), Tocqueville (cf. Rodríguez, 1998) pretende dividir o estudo do tema em três abordagens: a

156

definição da ―sintomalogia‖ da pobreza; o ―tratamento‖ errado dado ao problema; e o ―tratamento‖ correto para o mesmo. Para o autor de A democracia na América, à medida que a humanidade suplanta a ―etapa primitiva da luta pela sobrevivência‖ e passa a viver da terra, tende a acumular um ―supérfluo‖ que permite aos homens a satisfação de necessidades menos imediatas, tais como a fome, a sede, etc. O ―progresso da civilização‖ distancia os homens de seus ―estado de natureza‖, conceito formulado pelos contratualistas. Tocqueville afirma que os povos bárbaros (não greco-romanos) foram os grandes responsáveis pela expansão do espírito aristocrático por terem continuado o projeto do Império Romano de estabelecer a legitimidade das hierarquias sociais, das vantagens concedidas a certos grupos de indivíduos e do direito à propriedade privada a uma minoria da população. Com a ampliação das necessidades e o desejo de satisfazer os mais caprichosos gostos, pôde surgir no seio de sociedades tradicionais, grupos de pessoas ―empobrecidas‖, conforme a moderna concepção do termo. No entanto, segundo o pensador normando, a pobreza é um fenômeno relativo, dependendo do ―grau de desenvolvimento‖ das sociedades: ―daí decorre o fato de que [no século XIX] o pobre da Inglaterra parece quase rico em relação ao pobre da França, e este ao indigente espanhol. Aquilo que falta ao inglês nunca foi objeto de posse do francês‖63. Ao mesmo tempo em que o ―progresso da civilização‖ produz novas necessidades e, conseqüentemente, traz a situação de pobreza, esse ―estágio social‖ humano não pode conviver com a presença da miséria. Pois, o ideal de civilidade também preconiza o alívio das necessidades dos que se sentem carentes. Em uma nação onde as pessoas devem se vestir bem, morar em lugares salubres e alimentar-se bem, não pode haver indivíduos maltrapilhos e famintos.

Segundo

Tocqueville,

em

um

universo

social

católico,

tradicionalmente, a solução da miséria coube a caridade privada. No entanto, 63

Extraído de Tocqueville, Oeuvres I. Paris, Gallimard, La Plêiade, 1991; citado em Rodríguez, A democracia liberal segundo Alexis de Tocqueville, p. 49.

157

em países de tradição protestante, como a Inglaterra, o caminho para resolver os problemas sociais se deu através da caridade pública, o assistencialismo estatal. Isso contribuiu para que houvesse uma desvalorização da ética do trabalho onde havia a forte doutrina ascética do labor capitalista. Por isso, no seu entendimento, a caridade, principalmente a caridade pública, deveria ser arduamente combatida. Ela arrefece as necessidades de viver e de ―vencer na vida‖ naturais ao homem. Além disso, o assistencialismo contribui para a degradação moral dos carentes. O direito concedido ao pobre de poder receber gratuitamente a assistência do Estado não dignifica ―o coração do homem‖ que o usufrui, mas o rebaixa, contrariando a verdadeira função dos direitos. Mesmo na caridade individual (cf. Rodríguez, 1998), o pobre reconhece e afirma a sua situação de inferioridade ante o resto de seus semelhantes. O direito à assistência pública, porém, é concedido em razão de uma inferioridade reconhecida por lei. No caso das práticas das doações dos carismáticos analisados no presente estudo, a questão pode ser avaliada de outro modo: no discurso dos informantes, o direito à assistência, institucional ou particular, refere-se à uma deficiência do sistema social, dos governos e da humanidade como um todo e não por culpa da ―inferioridade dos carentes‖ ou por força de uma lei que legitime essa condição. Tocqueville enfatiza, sobretudo, a crítica negativa à assistência apoiada pelos Estados-nacionais. A filantropia estatal tornou os pobres, dependentes dela, meros animais que ignoram as circunstâncias dos seus destinos. Segundo Ricardo Rodríguez, Tocqueville combate a ―caridade legal‖ pelo fato dela degradar o homem retirando-lhe o que há de mais valor em seu espírito: a liberdade. O pobre que depende do sustento do Estado retorna a sua condição de servo da gleba. A dependência do carente mortifica a sua dignidade humana. No entanto, ao observarmos o comportamento dos mendigos de uma cidade como Fortaleza, vamos perceber a ―naturalização‖ de seus atos. Eles se conformaram com o fato de serem o que são: pedintes. E, ao que parece, não

158

têm vergonha alguma de ficar por aí aperreando os outros por comida, dinheiro, roupa, etc. Tocqueville se mostra sempre cético quanto à utilidade prática das doações estatais, rebelando-se contra qualquer forma de assistencialismo público. Para ele, essas medidas administrativas nada resolvem, muito pelo contrário, elas agravam o problema da miséria. Estou profundamente convencido de que qualquer sistema regular, permanente, administrativo, cuja finalidade seja assistir as necessidades do pobre, fará nascer mais misérias do que as que pode sanar, depravará a população que deseja assistir e consolar, reduzirá com o tempo os ricos simplesmente ao papel de funcionários dos pobres, acabará com as fontes da poupança, parará acumulação de capitais, deterá o progresso do comércio, entorpecerá a atividade e indústria humanas e terminará por conduzir a uma revolução violenta no Estado, quando o número dos que recebem esmola for quase do tamanho dos que a pagam e quando o indigente, não conseguindo tirar dos ricos empobrecidos o necessário para satisfazer suas necessidades, achará mais fácil espoliá-los de uma vez por todas de seus bens do que solicitar os seus auxílios. (Tocqueville,

op. cit, p. 1176 – 1177; citado em Rodríguez, 1998: 57)

Entretanto, nem mesmo Tocqueville, ferrenho liberal, poderia escapar a sacralização do ato ―voluntário‖ da beneficência particular: ela é, ao mesmo tempo, ―a mais natural, a mais bela e a mais santa das virtudes‖. Aqui, mostrase mais equilibrado: ―mas penso que não há princípio tão bom cujas conseqüências não possam ser todas admitidas como boas‖64. O autor defende que a solução da problemática da pobreza, aos moldes democráticos, deve partir da caridade veiculada pela iniciativa individual, mas lembra que ante o desenvolvimento progressivo das classes industriais e o agravamento dos

64

Tocqueville, Id. Ibid., p. 1177 – 1178; extraído de Rodríguez, A democracia liberal segundo A. de Tocqueville, p. 57.

159

―males típicos da civilização‖, a filantropia particular e pontual parece bem fraca do ponto de vista utilitário. Para a resolução de problemas tão graves, o pensador francês propõe a associação das pessoas caridosas, regularizando, assim, os auxílios e sistematizando a atuação contra a miséria. Não podemos deixar de comparar tal empreendimento ao tipo de caridade pública desaprovada pelo mesmo autor. Ora, a institucionalização e a organização da prática de doações têm a mesma função, tanto no campo estatal ou privado: ambas almejam a ―racionalização‖ do combate à pobreza, intensificando e coordenando as estratégias assistenciais. No entanto (cf. Rodríguez, 1998), a proposta política tocquevilliana para a problemática da pobreza também abrange a educação dos pobres, o estímulo à propriedade fundiária dos camponeses e o estímulo à poupança dos operários das indústrias. O volume de críticas negativas dos intelectuais dos séculos XVIII e XIX e a decisão dos ricos de não mais ajudarem os trabalhadores pobres e os indigentes, em países como a Inglaterra, não contribuiu para que houvesse um maior desenvolvimento social, para que aparecessem mais vagas no mercado, nem para a existência de melhores condições de trabalho, o chamado ―estado de bem estar social‖. Polanyi mostra um quadro geral da população inglesa após o avanço do capitalismo e o processo de desativação do meio rural, antigo centro de produção econômica. O autor observa: Na ocasião que foi revogada [a Speenhamland Law], grandes massas da população trabalhadora pareciam mais espectros de um pesadelo do que seres humanos. A unidade tradicional de uma sociedade cristã cedia lugar a uma negação de responsabilidade por parte dos ricos em relação às condições de seus semelhantes. As Duas Nações assumiam a sua forma. Para espanto dos pensadores da época, uma riqueza nunca vista passou a ser a companheira inseparável de uma pobreza nunca vista. Os estudiosos proclamavam, em uníssono, a descoberta de uma nova ciência

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que colocava além de qualquer dúvida as leis que governavam o mundo dos homens. Em obediência a essas leis, a compaixão não habitava mais os corações e a determinação estóica de renunciar à solidariedade humana, em nome da maior felicidade para um número maior de pessoas, adquiriu a dignidade de uma religião secular. (Polanyi, 1980: 127)

Polanyi retrata nesse trecho a origem dos pobres e dos ricos ―livres‖ para o mercado, o começo das desigualdades sociais aos moldes do capitalismo. A negação de ajuda material dos ricos para os grupos miseráveis se deve ao fato das teorias dos economistas da época tenderem a naturalizar a existência de crises sociais momentâneas, que seriam cruciais para a construção de uma sociedade mais justa. Pois, o próprio mercado, com o passar dos anos, trataria de equilibrar a economia gerando os empregos necessários para a estabilização da

disparidade

entre

ricos

e

pobres,

impulsionando

o

consumo

e,

conseqüentemente, o comércio, a indústria e a agricultura. A famosa ―mão invisível‖ do mercado não deixaria os indigentes sofrerem de inanição por muito tempo.

161

CAPÍTULO X: A CRÍTICA CONTEMPORÂNEA E A LÓGICA DA DÁDIVA

No século XX, quando, através da própria experiência histórica, tornouse manifesta a fantasia da tese de Adam Smith sobre a ―mão invisível‖ do mercado, as preocupações com o crescimento exorbitante da miséria, principalmente na periferia das grandes cidades dos países subdesenvolvidos, ganharam foco no debate econômico e social. O papel do Estado reviveu com toda a força, sendo o complexo da administração pública o grande responsável pelo estado de bem estar social das populações, principalmente servindo de suporte de sobrevivência das classes mais pobres. As classes médias e abastadas passam, então, a se resguardar o máximo possível dos tentáculos institucionais do Estado, ajeitando-se em colégios particulares, hospitais particulares, condomínios fechados, usufruindo todo o tipo de bens privados, enquanto os bolsões de miséria e os ―batalhadores‖ se acumulavam nas filas da previdência social, nos hospitais públicos, nos colégios públicos de ensino fundamental e médio, aproveitando o que podiam dos impostos do Estado e das políticas públicas oferecidas. Entretanto, o Estado das nações subdesenvolvidas não conseguiu e não está conseguindo dar conta de tanta miséria. Pelo acúmulo de dívidas junto aos bancos internacionais, pela irresponsabilidade fiscal dos governos e pela corrupção de muitos líderes políticos, a instituição oferece serviços públicos cada vez mais debilitados, não atendendo satisfatoriamente grande parte da população pobre. A crescente situação de miséria ou de indigência gera uma alarmante violência, principalmente nos grandes centros urbanos. Os pobres enfermos, as crianças esqueléticas, todo o tipo de gente faminta se engalfinha pelas ruas das grandes cidades, disputando o espaço público, fazendo graça,

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imitando estátuas, competindo pelo show de maior infortúnio, querendo, sobretudo, mais esmolas. A violência urbana, a visão costumeira da miséria e o impulso de caridade das religiões contribuem para que não só mais o Estado tenha a responsabilidade de assistir os pobres. Também os ricos (descritos por Polanyi como avarentos no século XIX) e, principalmente, os diversos matizes da classe média, sentem-se então impelidos à filantropia. As leis para os pobres, os albergues e as bolsas para o sustento dos indigentes puderam enfim ser substituídos, ou pelo menos auxiliados, pela beneficência privada. Multiplicaram-se as Casas de Caridade, as Ongs com projetos sociais, as esmolas de todo tipo. As empresas, agora, não poderiam mais cuidar somente dos seus interesses privados, o acúmulo de lucro, o capital de giro, a rotatividade do trabalhador. Deveriam também se preocupar com ―questões sociais‖, com os indigentes que batiam nas janelas dos carros nos sinais de trânsito, com a menina de nove anos que se prostituía nas avenidas escuras, com o tráfico de órgãos das crianças pobres para a Europa e Estados Unidos. Todo um palavreado surge então para exprimir esse novo tipo de ―solidariedade‖/caridade: ―responsabilidade social‖, ―corrente para o bem‖, ―empresa solidária‖, ―empresa cidadã‖, ―corrente de solidariedade‖. Tanto os albergues criados pela Poor Law Reform como os retiros voluntários da Parliamentary Reform Bill, na Revolução Industrial inglesa, representam ancestrais das casas de caridade, com a diferença de que os primeiros serviam apenas para a população economicamente ativa dos países onde eles marcaram presença, seja ela desempregada, semi-empregada ou já em atividade operária, enquanto as legítimas Casas de Caridade abrigaram e abrigam os grupos realmente marginalizados, indigentes, mendigos, enfermos inválidos, etc. Sobre a presença das Casas de Caridade nas grandes cidades brasileiras, sabemos, através de trabalhos recentes, que a belle époque fortalezense foi marcada por um conjunto de medidas político-administrativas visando a

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remodelação do espaço urbano e a disciplinação do meio social. No entremeado dos séculos XIX e XX, conforme a pesquisa do professor Sebastião Ponte (2001), o olhar clínico das elites intelectuais da capital cearense determinou para os loucos e os mendigos, considerados inúteis para a racionalidade produtiva do capitalismo da época, a construção de instituições filantrópicas em distritos longínquos da área central da cidade. (...) não eram poucas as assistências à pobreza na capital. A articulação delas com a polícia (mediante acordos para a erradicação da mendicância), além da promoção de palestras, conferências e campanhas filantrópicas, demonstra a existência de um dispositivo institucional apontado para o reajustamento disciplinar da massa de despossuídos em Fortaleza. Eis algumas organizações que os assistiam e internavam e que a pesquisa pôde compilar: para pobres e mendigos: Dispensa dos Pobres (1885), o antigo Asilo de Mendicidade (1886) e o novo, patrocinado pela maçonaria (1905); para menores abandonados: Patrocínio dos Menores Pobres (1903), Escola para Menores Pobres (1908), Dispensário Infantil (1914); para moças desvalidas: Patronato de Maria Auxiliadora para Moças Pobres (1922) e Asilo Bom Pastor (1928), destinado à ―conversão de mulheres arrependidas‖, segundo almanaque do Ceará para o ano de 1929. (Ponte, 2001: 163)

Sebastião Ponte vê tal intervenção remodeladora como um dos mecanismos para a proliferação da ―higiene social‖ e dos valores da ―vida civilizada‖. O assistencialismo, dessa forma, pode ser entendido através da ótica funcional do controle policial sobre as camadas mais pobres da população. Mais uma vez, a tese maussiana, referente à troca de dádivas por uma situação de não-violência, torna-se patente. Podemos, então, questionar qual o padrão das práticas filantrópicas realizadas agora, no início do século XXI, na capital cearense? As nossas dádivas ainda são articuladas por meio do aparelho policial, objetivando uma

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―urbanidade salubre e disciplinada‖? O número de mendigos, ―desocupados‖, loucos e subempregados presente nas ruas fortalezenses é muito maior que nos séculos passado e retrasado, mas a proporção em relação à população é mais ou menos a mesma65. Em fins do século XX, a população da capital cresceu assustadoramente chegando atualmente a cerca de dois milhões e meio de habitantes. As periferias da belle époque, os ―arrabaldes do Jacarecanga e da Praia de Iracema‖, atualmente, são regiões da área central da cidade. O que hoje pode ser considerado periferia, no ano de 1910 era considerado interior do estado do Ceará. As preocupações com a higienização e com a disciplina ainda estão bem presentes em nosso meio social. As regras de etiqueta da civilization não conseguem abranger toda a população, mas ainda são encaradas como metas dos nossos dirigentes. A imundície dos logradouros e das praças da cidade continua sendo combatida pelas administrações públicas. Antigas preocupações morais com a proliferação de bordéis e zonas do meretrício foram substituídas pelo combate à prostituição infantil e ao tráfico de mulheres, ―escravas do sexo‖, para a Europa. A presença de mendigos, de loucos e de doentes engalfinhados pelas calçadas e os pedidos por esmolas nos ônibus, nas casas e nos sinais de trânsito parece ter sido ―naturalizada‖ pela maioria da 65

Até mais ou menos 1845 não se tem notícia em todo o Ceará da presença de instituições de beneficência ou mesmo de hospitais para abrigo de pobres acometidos por epidemias presentes abundantemente na época (varíola, sarampo, tuberculose, etc.), como manifestam os presidentes da Província em seus relatórios ao Império. A população total da Província do Ceará em 1838 era de aproximadamente 223.554 habitantes. Em 1857, esse número é mais que dobrado: 486.208 habitantes, quase meio milhão. Neste período, não consta nos autos dos relatórios oficiais expedidos pelos dirigentes da Província, números exatos de mendigos, loucos e doentes abandonados. No entanto, representa quase unanimidade a reclamação dos presidentes, entre eles José Martiniano de Alencar e Joaquim Martins de Souza, quanto à necessidade de “Casas de Caridade” ou, pelo menos, Hospitais Beneficentes na região, pois era grande o número de miseráveis na época. O Asylo Para Alienados e Mendigos só seria, precariamente, posto em funcionamento no ano de 1878, após a implacável seca de 1877 que perduraria três anos. Contudo, já havia desde a década de 1860, a Santa Casa de Misericórdia, hospital geral que também funcionava como abrigo para os indigentes adoentados. Em 1868, por exemplo, a Santa Casa abrigava mais de 802 enfermos pobres. São datados também dessa época o Collegio de Orphãs, criado pelo bispo diocesano, com 60 meninas internas, e o Collegio de Educandos Artífices, sob a direção do reverendo padre-mestre Florêncio de Almeida Pinto, com 69 alunos. Obs: No relatório do “excelentíssimo sr. Tenente-Coronel de engenheiros” João de Souza Mello e Alvim, presidente da Província do Ceará de 1864 à 1867, falando sobre o Collegio de Orphãs, apresenta-se um parecer sobre os “bons costumes” da época: “... a índole do nosso povo é eminentemente dócil e propensa para o bem; a nossa tendência característica, como já tive occasião de enuncial-o em outra parte, é para o aperfeiçoamento da natureza.” (Relatório de posse de administração ao futuro vice-presidente da Província do Ceará no dia 6 de maio de 1867, por J. de Souza Mello e Alvim, p. 13).

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população. De fato, não presenciamos mais o apelo de revistas de ―coluna social‖ como a Jandaia ou a Ba-Ta-Clan, famosas no início do século XX, com manifestos de repúdio à miséria espalhada nas vias da cidade e aos mendigos que aperreiam dia e noite por esmola. Chegou-se ao consenso, pela persistência da situação dos indigentes urbanos, de que não há solução para o problema da mendicância. Para dizer de outra forma, o fenômeno considerado ―anormal‖ até meados do século XX foi acoplado ao padrão de normalidade da sociedade. Também poderia ser discutido aqui o fato de que na sociedade brasileira, assim como em outros grupos sociais de realidade sócio-econômica desigual, o papel de doador, do caridoso, do responsável pelas mazelas sociais da fome e da miséria, ficou nas mãos das classes médias com baixo poder aquisitivo. As pessoas mais pobres têm contato mais direto com o cotidiano de indigência das grandes cidades. Os grupos sociais mais abastados conseguiram manter um certo isolamento social e espacial dos focos de miséria urbana: periferias, centros abandonados pela administração pública, terminais de ônibus, etc. Normalmente, ―quem tem condição‖ costuma andar em automóveis com vidro fumê, portas travadas, ar-condicionado. Isso ajuda a diminuir a probabilidade de ocorrência de situações de violência e também elimina a possibilidade de fazer doações, ou mesmo, de recusar a fazê-las. Não há como um mendigo se dirigir e pedir ajuda a uma pessoa que ele não vê. Voltando para a questão da estética urbana, podemos ainda acrescentar o fato das nossas atuais instituições filantrópicas não estarem mais atreladas a um projeto de embelezamento da cidade, pois a mendicância já se tornou parte do ―cenário normal‖ de uma grande metrópole como Fortaleza, de um meio urbano subdesenvolvido. O principal interesse dessas instituições reside em princípios de cunho religioso e não secular. No entanto, ainda podemos perceber (a observação participante pôde comprovar) o medo da violência impulsionando a prática das doações. No caso da caridade individual, ―espontânea‖, as doações funcionam como um micro-poder, no sentido foucaultiano, que institui, ou ajuda a

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instituir, uma normalidade política por meio de uma ―utilidade econômica‖. A normalidade política se estabelece através dos contratos sociais, ―acordos de paz‖, que são incitados pelas doações. Não há conflito de classes, os interesses se tornam homogêneos, e assim pode-se observar a estabilidade, uma ―segurança‖, nas relações de poder, seja no campo das práticas cotidianas, seja no campo das decisões político-administrativas dos governos. Existe uma ―utilidade econômica‖ na prática da esmola na medida em que há a distribuição, aquisição e consumo dos produtos doados, e na medida em que as pessoas que sobrevivem das doações podem manter o status quo de mendigos, sabendo da dificuldade de se tornarem ativas para o mercado. É justamente em relação ao conformismo dos grupos de indigentes e às desigualdades sociais geradas por esse tipo de situação que vão se concentrar as críticas contemporâneas ao assistencialismo. O industrial britânico Robert Owen já observava, ainda no século XIX, que há um efetivo empobrecimento da sociedade, quando o Estado passa a concentrar grande parte de suas forças nos problemas de miséria dos excluídos da atividade econômica, os desempregados e indigentes (cf. Singer, 2002). As medidas de assistência social transferem o dinheiro do desenvolvimento público para tentar, desesperadamente, acabar com a pobreza. O sistema capitalista se reproduz, entre tantos outros fatores, graças aos grandes exércitos de reserva da massa dos potenciais trabalhadores, de que fala Karl Marx (1977), dos desempregados e subempregados. Os miseráveis lembram constantemente os trabalhadores comuns de que eles estão em uma condição favorável e, por isso, não podem ensaiar uma manifestação de desacordo, uma greve ou um planejamento cooperativista, pois, abaixo deles existe uma massa de famintos comendo das migalhas caídas, sempre disposta a trocar suas horas de trabalho pelo mínimo de salário que o empregador oferece. O capitalismo destruiu os sistemas particularistas (modos ―mais práticos‖) de satisfação de necessidades, tendo suscitado uma pluralidade de valores e, conseqüentemente, a expansão das carências. Desde Adam Smith (cf. Cartaxo,

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1995), o mínimo para a satisfação humana deveria incluir as necessidades sociais, variáveis no tempo e no espaço: ―necessários são não apenas os produtos indispensáveis à manutenção da vida, mas todos aqueles cuja carência representa uma situação indecente ou indigna, de acordo com o costume do país, para pessoas dignas ainda que da mais baixa extração social‖ (1995: 100). Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, a história do modo de produção capitalista é marcada pela prática da ―doação‖, principalmente quando ela se realiza na forma de financiamento público de um Estado: (...) toda a vasta gama de subsídios e auxílios públicos é constitutiva do próprio capitalismo, não sendo marca específica do Estado-providência. [...] De fato, a formação do sistema capitalista é impensável sem a utilização de recursos públicos, que em certos casos funcionaram quase como uma ―acumulação primitiva‖ desde o casamento dos tesouros reais ou imperiais com banqueiros e mercadores na expansão colonial até a despossessão das terras dos índios para cedê-las às grandes ferrovias particulares nos Estados Unidos, a privatização de bens e propriedades da Igreja desde Henrique VIII até a Revolução Francesa; e, do outro lado, as diversas medidas de caráter caritativo para populações pobres, de que as ―Poors Houses‖ são bem o exemplo no caso inglês. Contra esse caráter pontual, que dependia ocasionalmente da força e da pressão de grupos específicos, o financiamento público contemporâneo tornou-se abrangente, estável e marcado por regras assentidas pelos principais grupos sociais e políticos. (Oliveira, 1998: 20)

Oliveira (2004) afirma que nos países subdesenvolvidos há uma ―funcionalização da miséria‖, ou seja, os miseráveis passaram a ter uma função na nossa sociedade. O próprio mercado e alguns governos (involuntariamente ou voluntariamente), por causa de suas ações assistencialistas, costumam deixar a pobreza em um ponto suportável para que as classes subalternas não

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se revoltem com sua situação de miséria ou não façam parte de trabalhos considerados ―desonestos‖ como o tráfico de drogas, quadrilhas de roubo, seqüestros, entre outros. Ou seja, para que esses grupos fiquem numa marginalidade segura, pacata. A chamada ―funcionalização da pobreza‖ também pode ser produzida, no plano da macroeconomia, sob a forma de empréstimos financeiros, muitas vezes em troca de juros, concedidos pelos países desenvolvidos aos países pobres nas relações político-econômicas internacionais. Conforme a hipótese do autor, o Estado brasileiro, seguindo o exemplo de outros países subdesenvolvidos, não pretende (ou não pretendeu até agora) aumentar a precariedade material das classes indigentes, mas sim controlar os índices de inanição, na medida do possível, criando involuntariamente uma

funcionalização da miséria. Dessa forma, o lema dos Estados-nacionais subdesenvolvidos se resume na expressão: ―a pobreza existe, não podemos fazer nada quanto a isso. Mas a fome deve ser controlada‖. Além de críticas de cunho exclusivamente econômico, as práticas assistencialistas também recebem a desaprovação de análises inspiradas na moral, na filosofia e na psicologia. Quando fala da dificuldade contemporânea de se estabelecer vínculos afetivos, Bauman escreve que ―a vitimização dificilmente humaniza suas vítimas‖. ―Ser vítima não garante um lugar nos píncaros da moral‖ (2004: 107). O filósofo relata: (...) numa carta pessoal em que fazia objeções ao meu exame da possibilidade de romper a ‗cadeia cismogenética‘, que tende as vítimas em

vitimadores,

Antonina

Zhelazkova,

a

etnóloga

intrépida

e

singularmente perspicaz, dedicada exploradora do aparentemente impenetrável barril de pólvora étnico e de outras animosidades que são os Bálcãs, escreveu: Eu não aceito que as pessoas estejam em posição de

combater o impulso de se tornarem assassinas depois de terem sido

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vítimas. É exigir demais das pessoas comuns. É freqüente que a vítima se transforme em carniceiro. O pobre homem, assim como os pobres de espírito a quem se ajudou, passa a odiá-lo... porque eles desejam esquecer o passado, a humilhação, a dor e o fato de terem conseguido algo com a ajuda de alguém, por causa da piedade de alguém, e não por si mesmos... Como escapar à dor e à humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor. Ou encontrar outra pessoa, mais fraca, para triunfar sobre ela. (Bauman, 2004: 107)

Não gostamos de dever favor quando não temos como pagá-lo. Muitas vezes, desconfiamos de quem deseja fazer um favor não justificado pelo tipo de relação existente. O nosso desconforto perante o presente recebido revela o nosso medo de, no futuro, estarmos atrelados a uma convivência indesejada. Como já argumentei em várias passagens da monografia, a dádiva, como qualquer outro fenômeno social, não é movida apenas por interesses, funções ou estruturas de ordem econômica; as doações estão imbricadas em complexos sistemas culturais. Em A dívida divina, Lanna descreve as relações e os interesses envolvidos no acordo das dádivas entre os pescadores, os pequenos proprietários de barcos e terras e os patrões. Ele atesta: (...) essas alianças [a troca de dádivas] não são nunca puramente econômicas, ou políticas, ou religiosas, mas sim ―fatos sociais totais‖, ao mesmo tempo econômicos, políticos e religiosos. Entretanto, numa relação de aliança, há sempre uma precedência de um desses aspectos [...]. Em qualquer caso, como esse trabalho tenta mostrar, a lógica da dádiva e da aliança implica inevitavelmente assimetria. (Lanna, 1995: 35)

Como vimos na primeira parte, ―Caridade x Solidariedade: abrindo veredas

entre

as

palavras

e

as

coisas‖,

as

práticas

de

caridade,

necessariamente, estão presentes em sociedades com grandes disparidades

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sociais. Dessa forma, a assimetria (tomando emprestado o termo usado por Lanna) na relação caridoso x carente chega a transbordar dentro do caldo de interesses envolvidos no jogo entre as partes. Dissertando sobre a ―obrigação de retribuir‖, analisada por Mauss (1974), Lanna afirma: Mauss nos mostra que há na dádiva sempre a imposição da retribuição; para Mauss, quando não se retribui um presente, a sociedade impõe uma sanção, o que não deixaria de ser uma forma de retribuição. No caso polinésio, por exemplo, perde-se o mana. No caso do compadrio, a dádiva da graça não pode realmente nunca ser retribuída por completo, mas isso não significa que ela exclua a reciprocidade. Muito pelo contrário, a graça é a dádiva por excelência, exatamente porque ela é aquilo que, por seu caráter life-giver [...] deve ser retribuído antes de mais nada e acima de qualquer outra coisa. (Idem, p. 201)

No caso das práticas de caridade, a obrigação de retribuir assemelha-se mais ao compadrio analisado por Lanna (1995), pois a reciprocidade do ritual do apadrinhamento se dá através da graça divina alcançada pelos dois casais, os pais e os padrinhos, e o filho apadrinhado, por estarem em conformidade com ―a vontade de Deus‖. Com as doações, os carismáticos também estão, de certa maneira, em conformidade com ―a vontade de Deus‖, recebendo a clemência divina por estarem ―ajudando‖ os ―preferidos da Igreja‖ e por estarem atuando por meio do Espírito Santo, seguindo os preceitos do livro sagrado. Além disso, os indigentes, ao receberem humildemente as esmolas, estão também recebendo a graça divina, aceitando os desígnios de Deus na ordem celestial das desigualdades mundanas. É interessante notar, porém, o ―desequilíbrio‖ existente tanto no compadrio como nas práticas de filantropia na Renovação Carismática. Pois, segundo Lanna, a graça seria o oposto de um free gift, ―já que recebê-la é colocar-se numa posição de permanente endividamento‖ (1995: 201). Então, a

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situação dos pais e dos afilhados em relação aos padrinhos é de quase total resignação. Como já se disse, isso não resulta em uma impossibilidade da reciprocidade, e sim ―que a sua busca passa a ser uma constante na vida do afilhado e de seus pais‖. Dessa forma, o ―desequilíbrio‖ na relação entre padrinhos e afilhados e entre caridosos e carentes não cancela a reciprocidade obrigatória (simbólica ou material), mas produz novas desigualdades. Quando indagados sobre as conseqüências das práticas de filantropia para quem recebe as doações e sobre o que essas pessoas pobres esperariam para o futuro, os informantes, que representam a opinião dos caridosos da Renovação Carismática, responderam geralmente com afirmações otimistas: A filantropia não é um meio de sobrevivência, mas uma ajuda para sobreviver. Eu penso que a questão do que elas sentem, ou esperam para o futuro depois de receberem as doações é relativa. Umas pessoas se sentem felizes, satisfeitas, outras, já se acham humilhadas naquela situação, outras, já acham que é uma obrigação que a gente tem que doar. (Maria de Lourdes)

Isso é muito relativo. Eu acho que a grande maioria melhora as suas vidas. Quer dizer, não chegam a se tornar independente dessas práticas de doações, porque não existe estrutura suficiente para libertá-los da exclusão, sabe. Eu acho que elas sentem muita alegria, embora não demonstrem muito. Elas gostam mais quando a gente dar atenção a eles, conversa. Se a gente não levar uma palavra de esperança, eles ficam pessimistas em relação às suas vidas. Por isso que eles roubam, por falta de esperança. Mas, eu também sei que ali influi toda uma questão cultural por trás também. Eu acho que existem conseqüências boas e más [em relação à prática das doações]. As boas: primeiro, elas vão ter uma esperança para melhorar, vai diminuir o número da violência. Elas vão perceber que não é só o mundo delas que existe, pois existem também pessoas boas que as confortam. Também, essas ajudas diminuem o número de pessoas doentes. As más: se não for um trabalho bem feito, pode acontecer coisas ruins, como ficarem conformados com a situação, sempre esperando. Mas, a finalidade daqueles atos não é para ficar só naquilo; é para servir de alavanca pra elas se tornarem independentes. (Manoel Roberto)

Recebendo as doações, as pessoas podem ser movidas por um espírito de gratidão, como também elas podem achar que eu não estou fazendo mais

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do que a minha obrigação. Se eu estou ajudando é porque eu tenho mais do que ela. Umas podem ser movidas por um sentimento de dependência, ou até gerar aquilo que a gente chama de ―clientelismo‖. Isso também pode ser uma prática assistencialista, onde eu sempre ajudo a pessoa dando aquilo que lhe falta, mas eu nunca dou a ela possibilidades para que ela desenvolva um potencial para ela mesma ir atrás do que ela precisa. Então, eu acho que isso pode gerar dependência nesse contexto da pessoa está sempre esperando pela minha ajuda e nunca desenvolver nela um potencial para que ela possa ser uma ajuda para ela mesma. (Amanda Duarte) Emanuel: O que você acha que essas pessoas sentem quando recebem as doações? Fátima Bertini: Elas se sentem protegidas, se sentem vitimadas, sentem

o desprezo de uma sociedade, se sentem ―despontencializadas‖ porque não conseguiram por suas próprias forças ter aquele alimento.

Emanuel: E o que elas podem, então, esperar para depois, no futuro? Fátima: Isso é relativo porque existem pessoas e pessoas. Existem

aquelas que recebem a caridade e se viciam naquele ato, mas também existem aquelas em que o ato de caridade é apenas uma fase da vida delas. Acho que essa é uma questão psíquico-social. Existem pessoas que agravam essa coisa do assistencialismo e existem pessoas que vão mais além, que recebem a doação mas que têm capacidade para algo mais. Emanuel: Na maioria dos casos, você acha que acontece mais o quê? Fátima: Na maioria das vezes, elas se acostumam com a situação.

Como pudemos ver, a maioria dos informantes fala da existência de dois tipos de pessoas carentes (que recebem doações): enquanto umas recebem os donativos e continuam na mesma situação, por comodismo ou pela condição de extrema indigência, outras tendem a usar as doações como uma ―alavanca‖, um pequeno ―capital de investimento‖, e podem conseguir sair da situação de miséria em que se encontram. Pelo o que pude perceber na observação participante, fazendo a distribuição do ―sopão‖ com o pessoal do Projeto São Francisco, as mesmas pessoas estão recebendo as mesmas doações há anos e a situação não tem mudado muito no que diz respeito a um melhoramento do ―estado de bem estar social‖. E isso acontece menos por um sentimento conformista do que por uma falta de possibilidades de se autogerirem. Vivem em condições sub-humanas, sofrem de inanição, dormem nas ruas, e, por tudo isso, não têm como usar a sopa, as roupas, os remédios e os poucos trocados que

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ganham como ―alavanca‖ para uma ascensão social. Fato que é confirmado pelos próprios doadores. A obrigação de fazer a doação citada pelos informantes Maria de

Lourdes, da Deus Conosco e de Manoel Roberto e Amanda, membros da COT, não é novidade dentro do imaginário dos grupos sociais que sobrevivem da ajuda alheia. Lanna, ao dissertar sobre as representações sociais dos pescadores e dos donos de barcos do município de São Bento, afirma: Assim como os pescadores reclamam dos donos de barcos, estes reclamam dos comerciantes ―que não ajudam‖, isto é, que se recusam a estabelecer uma relação mais personalizada e a fazer empréstimos. No caso dos donos dos barcos, os adiantamentos que estes pedem aos comerciantes geralmente são para fazer reparos nos barcos, que acabam indo para o mar em condições precárias. (Lanna, 1995: 149)

Os pescadores e os donos de barcos ―exigem‖ uma maior generosidade por parte dos seus ―superiores imediatos‖, para tornar suas relações mais ―afetivas‖ e menos pragmáticas. No caso dos filantropos da Renovação Carismática, existe esse tipo de exigência quando, por exemplo, o esmoléu considera avarento aquele que não o ajudou ou, mesmo, ―deu pouco dinheiro‖. No cotidiano das classes mais pobres da cidade de Fortaleza, podemos presenciar o fato de alguns mendigos, durante os discursos para pedir esmolas, terem se acostumado a usar sutis ameaças, em forma de ―pragas‖, maus presságios, para coagir às pessoas a fazerem a doação. Eles falam, por exemplo: ―espero que vocês nunca passem por esse problema que eu estou passando‖, ou então, quando são pedintes cegos, usam desse artifício: ―muita saúde para os olhos de vocês‖. Se forem aleijados, proferem: ―espero que nunca precisem usar muletas. Muita saúde para todos vocês‖. Todas essas artimanhas retóricas são características de uma astúcia das pessoas desafortunadas para sobreviverem ao ambiente hostil em que vivem. As práticas de ―malandragem‖ podem ser

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apreendidas em vários momentos da pesquisa. Os mendigos que esperam o ―sopão‖, muitas vezes, pedem mais de um copo de sopa dizendo que vão levar para outros amigos ou familiares, e isso, na maioria das vezes, não acontece. Eles se afastam um pouco do local das doações e bebem sozinhos as duas refeições. Outros, usando de outro tipo de esperteza, já esperam os carros do ―sopão‖ com uma vasilha maior para poder caber mais sopa. Além de outras práticas que mostram a tentativa de ―vencer a competição da vida‖ por meio da ―ilegalidade‖: furam a fila para receber a doação, ou pegam a fila duas vezes, conversam com os samaritanos de maneira humilde, aceitam as orações feitas por eles, os aconselhamentos, etc. É importante salientar que em nenhum momento os samaritanos recusam-se a dar mais sopa, ou pão (apenas quando acaba o alimento). Os carentes podem repetir os copos de sopa à vontade. Entretanto, mesmo assim eles preferem agir usando da ―malandragem‖, preferem burlar as ―regras‖. Parecem ter sempre uma espécie de medo contra algum tipo de recusa por parte dos carismáticos e, por isso, parecem aproveitar ao máximo aquele momento para saciar a fome, usando da esperteza, que para eles é mais confiável. No Ensaio sobre a dádiva, Mauss descreve vários costumes das ilhas da Polinésia, da Melanésia e da Nova Zelândia indicando regras de conduta sobre a obrigação de dar, do ―dever de não deixar de repartir‖ e de como os homens mesquinhos não são vistos com bons olhos em diversos tipos de sociedades. Sendo assim, os homens de melhor estima, tanto no exemplo potiguar como no caso dos caridosos fortalezenses, são os homens generosos, que criam vínculos ―afetivos‖, que fazem empréstimos, que não se mostram avaros, em suma, são os ―homens de bem‖. Lanna também comenta as mudanças ocorridas nas relações entre pescadores e donos de barco ao longo dos anos. Os proprietários das embarcações, afirma o autor, passaram a se organizar de modo mais intenso com o objetivo de colocar rédeas na falta de ―bom senso‖ de alguns trabalhadores. Pois, muitas vezes, os pescadores abandonavam os barcos e

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subitamente passavam a trabalhar para outras pessoas, dependendo da melhor conveniência. Ou, então, usavam de outro tipo de malandragem: Estes [os pescadores] estavam realmente, cada vez mais, praticando o ―pinto‖, que consiste em esconder parte do que é pescado, evitando assim que seja dividido com o dono do barco. Um dos motivos pelo qual pescadores inexperientes passaram a ser contratados é o fato de eles não terem a mesma capacidade de enganar os donos de barco. (Idem, p. 159)

Tal tipo de esperteza ganha espaço em várias práticas sociais no Brasil (das quais incluo obrigatoriamente os contratos empregatícios), pois a presença da pessoalidade, do personalismo, na expressão de Sérgio Buarque de Holanda, não cria vínculos legais, ou seja, não existem documentos manifestando os direitos e os deveres no acordo entre patrões e empregados; não há a legitimidade de lei qualquer e não há, por exemplo, a pressão de instituições policiais para coibir a quebra de contrato por uma das partes. Todo o acordo funciona por meio da pura confiança, do respeito e dos interesses pessoais dos contratantes. Como não existe essa ―racionalização‖ na maioria das nossas relações sociais, que o exemplo das práticas de caridade mostra-se emblemático, os mendigos costumam usar da malandragem para conseguir maiores bocados na hora das doações. Historicamente, as práticas filantrópicas foram movidas tanto por sentimentos da caridade religiosa como também buscavam solucionar, disciplinar e regenerar a miséria, higienizando os ambientes insalubres de uma sociedade desigual. Conforme a interpretação dos entrevistados na pesquisa, o que impulsiona as pessoas a praticarem caridade são principalmente três fatores: a disposição em ―ajudar o próximo‖ adquirida por uma formação religiosa ou por ―instintos humanitários‖; o desejo de contribuir de alguma forma para o desenvolvimento social, eliminando, ou pelo menos, amenizando o sofrimento

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dos indigentes; e, em menor número, o medo de assaltos e de todas as outras formas de violência urbana geradas, segundo os informantes, pela revolta dos miseráveis que não recebem o ―apoio‖ moral, espiritual e material da sociedade. Emanuel: O que, na sua opinião, impulsiona as pessoas a praticarem caridade aqui em Fortaleza? Que motivos contribuem pra que essas pessoas se desvencilhem de parte de suas propriedades privadas e doem para outras pessoas ou instituições de filantropia, muitas vezes desconhecidas, sem esperar ―aparentemente‖ nada em troca aqui no ―mundo material‖? Pode ser mais de um fator. Roberto: Eu penso que é a comoção que elas sentem pelas pessoas mais

pobres. Porque, na realidade, as pessoas têm dificuldade de fazer caridade por si mesmas. Por isso, elas acham mais fácil doar para instituições de filantropia, porque, muitas vezes eles têm medo de dar diretamente para os mendigos, que podem até gastar com bobagens. E elas têm razão de não acreditar naqueles que pedem nas portas. E, eu também acho que o amor é uma coisa inerente ao ser humano. A religião apenas desperta o amor nas pessoas. Elas doam por isso. Joanita: Algumas pessoas fazem por obrigação, escrúpulo, outras fazem

por amor, para se sentirem bem. Algumas contribuem movidas por um espírito de caridade mesmo. Algumas... outras também contribuem movidas por esse espírito, mas esperam alguma retribuição, algum retorno, reconhecimento. Acho que alguns contribuem esperando a reparação de erros que acham que são cometidos. Um grande empresário que faz uma caridade dessas para promover o nome de sua empresa é só o que a gente vê. Fátima: Eu acho que, no geral, o que fazem as pessoas terem atos de

caridade é delas contemplarem, assim, visivelmente, a questão da miséria social, é verem a desigualdade social e se sensibilizarem com isso. Emanuel: E também existe influência religiosa nesses atos? Fátima: Aqueles que já têm uma caminhada religiosa, talvez, eles se

sintam mais obrigados a fazer esse tipo de caridade. Porque eles vivenciam uma vida em Deus e eles se acham no dever de contribuir para o bem. Emanuel: E o medo da violência também contribui para que as pessoas pratiquem caridade? Fátima: Acho que não diretamente. Emanuel: Vocês costumam dizer que a pessoa caridosa ―sente-se bem‖ quando está em volta dos indigentes fazendo suas doações? Por que isso acontece?

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Germano: Emanuel, eu penso que isso é algo inerente ao ser humano,

sabe, a bondade. Acho que fazer o bem tem também haver com instinto. Apesar de hoje em dia, isso está se perdendo mais. Eu acho que a gente se sente bem porque a gente, de certa forma, está facilitando as relações entre os seres humanos. Amanda: Se ela faz caridade porque ela quer ganhar a salvação dela, ela

se sente bem porque ela acha que está ganhando a salvação dela; se ela quer compensar os pecados, ela se sente bem porque está compensando os pecados; se ela faz por uma intenção livre, ela se sente bem porque ela está realizando aquilo por uma livre vontade dela. Então, eu acho que de qualquer forma, a caridade em si, ela faz bem a quem pratica.

Roberto: Ela se sente bem porque se sente realizada, ela se sente feliz; a

pessoa que faz isso por caridade mesmo, ela se sente a pessoa mais feliz do mundo porque ela está realizando aquele ato que o próprio Deus quer realizar. O caridoso fica mais feliz do que quem está recebendo as doações. Porque a finalidade nossa é ser feliz. E a gente só é feliz verdadeiramente quando a gente faz o outro feliz.

Essas últimas afirmações demonstram de modo satisfatório quais as motivações envolvidas na ação de doar algo a outrem de condição social inferior. O ―sentir-se bem‖ dos beneficentes que estão em volta dos indigentes fazendo doações põe em xeque a concepção da ―caridade sacrificial‖. Segundo Lanna, inspirado no legado maussiano, ―o sacrifício é o retorno apropriado a um milagre feito por um santo, ou a uma ajuda dada por ele‖ (1995: 38). No entanto,

devemos

primeiramente

saber

se

esse

sacrifício

implica

necessariamente na obrigação de ―fazer-se algo de que não se gosta‖ ou, o conceito também abarca a idéia de ―sacrificar-se por prazer‖. Pois, ao que parece, não existe ―mau-gosto‖ entre os católicos carismáticos, quando esses saem pelas madrugadas à procura de miséria. Mauss (1969), no seu ensaio sobre o sacrifício, define a ação sacrificial66 como sendo o meio pelo qual o profano pode se comunicar com o sagrado por intermédio de uma vítima (que podem ser os próprios sacrificantes ou os objetos do sacrifício). Quando 66

Para Mauss, a definição mais completa de sacrifício é a seguinte: “le sacrifice est un acte religieux qui, par la consécration d‟une victime, modifie l‟état de la personne morale qui l‟accompli ou de certains objets auxquels elle s‟intéresse” (“Essai sur la nature e la fonction du sacrifice” in Oeuvres, vol. 1, p. 205). Tradução: o sacrifício é um ato religioso que, para consagração de uma vítima, modifica o estado da pessoa moral que o realiza ou de certos objetos pelos quais ele se interessa.

178

acompanhei as viagens do ―sopão‖ do Projeto São Francisco da COT, não pude perceber, em momento algum, a figura da ―vítima sacrificial‖, nem entre os doadores (sujeito) e nem entre os objetos da caridade (sopa, água, pão, roupas). Não existe sacrifício por parte dos carismáticos no momento das doações. Eles estão exercendo a ―função do Espírito Santo‖. Ali, eles atuam como verdadeiros heróis, representam homens extraordinários, não pelo fato de estarem oferecendo um sacrifício a Deus, mas por estarem realizando a vontade Dele, agindo por meio Dele. O sacrifício requer uma abnegação de algo do mundo profano por parte do sacrificante, da mesma forma em que o sacrificante ―recueille ainsi les bénéfices du sacrifices ou en subit les effets‖ (Mauss, 1969: 201). No entanto, o filantropo carismático não abdica de suas coisas profanas para fazer a caridade. Ou, dito de outra forma, não há, para ele, ―programa‖ melhor do que está ali, no meio dos indigentes. Aquele momento das doações representa um espaço lúdico que ele faz questão de reviver todas as semanas. Na Introdução do Ensaio sobre a dádiva, Mauss afirma que: Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, não constatamos nunca, por assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas ou de produtos no decurso de um mercado entre indivíduos. Em primeiro lugar, não são indivíduos, e sim coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as pessoas presentes ao contrato são pessoas morais — clãs, tribos, famílias — que se enfrentam e se opõem, seja em grupos, face a face, seja por intermédio dos seus chefes, ou seja ainda das duas formas ao mesmo tempo. (Mauss, 1974: 44)

A partir dessa observação do antropólogo francês, nós podemos dividir as ações caritativas em duas: as ações individuais, feitas aleatoriamente, em qualquer lugar ou situação em que as pessoas se sintam motivadas a fazerem as doações, sem o compartilhamento, sem o olhar daqueles que se identificam com a ―causa‖ grupal; e as ações coletivas, feitas com divisão de tarefas, com

179

dissimuladas ―hierarquias‖, diferenciação e busca de status, ou seja, através do compartilhamento dos que criaram uma identidade naquela coletividade. Ainda na parte introdutória do seu mais famoso ensaio, Mauss etnografa: ―os tlinkit e os haida, duas tribos do noroeste americano, exprimem muito bem a natureza dessas práticas [prestações sociais totais] dizendo que ‗as duas fratrias demonstram respeito mútuo‘‖ (1974: 45). Fica evidente, nesse ponto, que as sociedades estudadas por Mauss estabelecem (estabeleceram) trocas materiais e trocas simbólicas solidariamente: umas precisam das outras para existir uma distribuição mais ou menos homogênea dos bens produzidos por ambas. No caso da relação entre os grupos religiosos filantrópicos e os grupos de desafortunados a coisa é um pouco diferente: os dois lados realmente parecem ter um respeito mútuo, mas ao mesmo tempo sabem que estão em posições sociais bem diferentes. As desigualdades sociais os colocaram em situações diversas: de um lado, os carismáticos têm duas coisas a oferecer: no campo material eles oferecem o alimento, as roupas, um lar; no campo simbólico oferecem: o ―amor de doação‖, as ―mensagens de paz‖ e a ―palavra de Deus‖. Do outro lado, os carentes, sem condições econômicas nem para o auto-sustento, só possuem ―bens simbólicos‖ a oferecer: o agradecimento pela bondade daqueles que se lembraram deles e a aceitação em compartilhar a oração com os filantropos. Os carismáticos, nesse caso, estão muito mais voltados ao ―dar‖ e ―receber‖ e os mendigos estão mais voltados para o ―receber‖ e o ―retribuir simbolicamente‖. Com essa observação, podemos inferir a diferença entre a

solidariedade da maioria das sociedades tribais analisadas por Mauss e a caridade existente numa sociedade de extrema desigualdade social como a brasileira67. Não estou dizendo que essas sociedades descritas por Mauss sejam perfeitamente homogêneas economicamente. Ele mesmo fala que existem certas hierarquias e diferenças

de status,

mas elas não equivalem

67

Sobre a problemática dos significados e das exegeses das palavras “caridade” e “solidariedade”, ver Capítulo I da monografia: “Caridade x Solidariedade: abrindo veredas entre as palavras e as coisas”.

180

estruturalmente aos diversos ―matizes‖ de classes sociais encontrados nos países subdesenvolvidos do Ocidente Tecnologicamente ―Sofisticado‖. Fazendo a conceituação do fenômeno social do potlatch, Mauss afirma: (...) os dois elementos essenciais do potlatch propriamente dito estão claramente atestados: o elemento da honra, do prestígio, de mana que confere a riqueza e o da obrigação absoluta de retribuir essas dádivas sob pena de perder esse mana, esta autoridade, esse talismã e esta fonte de riqueza que é a própria autoridade. (Idem, p. 49)

Ora,

levando-se

esse

argumento

para

as

práticas

filantrópicas

carismáticas, veremos que a quem coube o papel da retribuição dos ―presentes‖, os carentes, não se possui o aparato material para uma reposta aos regalos, uma contraposição. Vimos anteriormente que os mendigos só possuem ―bens simbólicos‖ a oferecer: o agradecimento pela bondade daqueles que se lembram

deles e a aceitação em compartilhar a oração com os filantropos. A caridade não é uma relação de trocas igualitárias, como acontece na solidariedade. Talvez, até se possa dizer que, em última instância, os dois grupos (caridosos e carentes) sejam recompensados por suas ações num ―plano extraterreno‖, porém, na materialidade da relação social, existe uma unilateralidade da ação caritativa. Dessa forma, não podemos entender as relações de trocas entre os carismáticos e os mendigos com o conceito de mercado econômico em si mesmo, pelo menos não nos termos maussianos, que já é bem amplo. As trocas e os contratos efetivados entre esses grupos são de ordem simbólica: existe uma reciprocidade nos agradecimentos, uma reciprocidade nos desejos de ―sentir-se bem‖, e até uma certa reciprocidade nas trocas de afeto, do ―estar preocupado‖, do ―aconselhar‖ e ―querer ser aconselhado‖, mas definitivamente não existe, entre eles (pelo menos), um mercado de trocas materiais. E também não há potlatch entre eles porque falta nessas práticas o tema da rivalidade, do combate, da destruição entre os grupos que pactuam a dádiva.

181

Existe sim uma certa rivalidade, um competitivismo, mas é entre os próprios membros dos grupos de carismáticos e entre os próprios carentes. É importante lembrar que todas as argumentações feitas nos últimos parágrafos referem-se às ações caritativas coletivas. A análise de Mauss sobre a dádiva, de modo geral, diferentemente dos seus predecessores, busca definir qual ―força de direito‖, simbólica, cria uma obrigação de retribuir os objetos ou favores dados entre os grupos humanos. Nesse intento, ele vai dizer: O que, no presente recebido e trocado, cria uma obrigação, é o fato de que a coisa recebida não é inerte. Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda é algo dele. Por meio dela, o doador tem uma ascendência sobre o beneficiário, assim como o proprietário tem, por meio da coisa, uma ascendência sobre o ladrão. (...) o hau persegue todo detentor. (Idem, p.52)

No caso do doador carismático, nós podemos dizer que, quando ele faz a ação caritativa, ele também deixa uma espécie de ―espírito da coisa dada‖, um

hau, na sua intencionalidade de fazer uma boa ação e no seu temor a Deus que ―tudo sabe e tudo vê‖ e por isso sabe da intenção de cada um no momento da doação. Usando os próprios termos empregados pelos informantes: ―o Espírito Santo está agindo por meio de nós‖. Sendo assim, os mendigos não estão recebendo somente aqueles alimentos, estão recebendo também uma ―força divina‖ por meio daqueles homens que trazem as doações. Só que existe um detalhe: nos estudos de Mauss sobre o grupo maori, ―o

hau persegue todo o detentor‖ e a coisa dada deve voltar para seu lugar de origem, pois ela é parte do detentor. Então, como se processaria esse retorno do ―espírito da coisa dada‖ para o carismático, já que o receptor, o carente, não tem condições materiais de retribuir a doação? Na Bíblia, o livro sagrado dos cristãos, em Primeira Carta do missionário Paulo aos Coríntios, é dito que a caridade deve ser sofredora, não deve ser invejosa, não deve buscar interesses e 182

que haverá uma recompensa para quem praticar esses atos dessa forma. Os agradecimentos dos mendigos, quando muitas vezes dizem: ―Deus abençoe ao senhor também‖, os sentimentos de ―bem estar‖, de ―conforto espiritual‖, da ―certeza de que se está fazendo o bem‖, de que ―se está realizando a vontade de Deus‖, experimentados pelos carismáticos quando fazem as doações, tudo isso faz parte de um retorno do ―espírito da coisa dada‖ (guardadas as devidas proporções); pois como eles dizem: ―Deus tudo sabe e tudo vê‖. Dessa forma, é a figura do Espírito Santo a responsável por realizar essa troca no campo simbólico. Deus é quem terá o papel de retribuir a dádiva dos ―homens de bem‖. Enquanto no universo calvinista, o rico podia, na prestação de contas, entrar no reino dos céus se preservasse sua fortuna, vivendo uma vida frugal, no universo católico, o fiel abastado poderia reconciliar-se com seu deus por meio da liberalidade, por meio da oferta de bens aos pobres. No caso da troca de dádivas entre os habitantes do município de São Bento no Rio Grande do Norte, Lanna mostra que os sentimentos dos moradores dos bairros mais pobres também revelam a vontade de doar, como retribuição ao santo, nas comissões para as tradicionais festas da cidade. Os moradores chegaram a ―bater de frente‖ com o pároco da região que queria proibir suas contribuições para o santo: Os moradores dessas casas [dos bairros mais humildes], porém, sentiram-se humilhados com essa atitude discriminatória do padre e

recusaram-se a não participar das comissões, dando pelo menos um ovo para as comissões de várias festas. Soiffer (1981: 352) notou que também as pessoas mais pobres da região de Juazeiro, Ceará, fazem questão de

contribuir para as comissões. Vê-se então que estas geram não a separação, mas o seu contrário, a união. (Lanna, 1995: 184)

Nos exemplos acima, evidencia-se a necessidade das pessoas de doar e também de retribuir, já que os ―presentes‖ por elas ofertados (―pelo menos um

183

ovo‖) são para as festas do santo, são oferendas religiosas de agradecimento às graças alcançadas durante o ano todo. Além disso, mesmo pobres, elas não querem se sentir ―fora da comunidade‖ de São Bento. Como já é sabido, dar presentes

é

uma

das

principais

formas

de

se

estabelecer

vínculos

comunitários68. A esmola consiste em uma dádiva sem o pensamento do retorno

imediato, assim como a palavra aloha entre os havaianos indica a compaixão que temos por nossos semelhantes69. Porém, tal prática também protesta uma retribuição, realizada através de uma troca simbólica. Para Weber, a quem nós seguimos de perto, toda ação social tem uma certa reciprocidade70: ―(...) há reciprocidade, na medida em que o agente pressupõe determinada atitude do parceiro

perante

a

própria

pessoa

(pressuposto

talvez

completa

ou

parcialmente errôneo) e orienta por essa expectativa sua ação, o que pode ter, e na maioria das vezes terá, conseqüências para o curso da ação e a forma da relação‖ (1994: 17). É importante saber, no entanto, que não existe um ―parceiro‖ na relação entre o doador e donatário, pois não haverá contraprestação daquilo que foi dado pela pessoa que recebeu. A expectativa da ação do beneficente dirige-se a uma entidade divina (Deus, o Espírito Santo, etc.). Por isso, a retribuição é puramente simbólica; ela está no ―acreditar que haverá recompensa no futuro‖. Como já afirmou Clifford Geertz, ―a caridade torna-se caridade cristã quando englobada numa concepção dos propósitos de Deus‖ (1989: 72). Assim como o mundo das coisas palpáveis interfere na construção das ideologias, das maneiras de pensar, de ―encarar a vida‖; os sistemas simbólicos também influenciam nossa práxis, nossa materialidade. Ao mesmo tempo em que a distribuição do ―sopão‖ desvenda todo um universo ideológico, revertendo de símbolos a maneira de ofertar o alimento, de abençoá-lo, o modo como oram 68

Ver Mauss, Ensaio sobre a dádiva, p. 43 – 48. Ver Sahlins, Ilhas de história, p. 24 – 25. 70 Segundo Mauss (respaldando a assertiva weberiana), a reciprocidade pode ser presenciada na maioria das relações sociais em todas as culturas, c’est une “fonction sociale essentielle” (Ver Karady, “Présentation de l‟édition” in Les fonctions sociales du sacré – Oeuvres, p. xlvi). 69

184

para receber e atuar pelo Espírito Santo; ela também retrata o lado concreto da ação. A sopa, em primeira instância, vai saciar a fome física dos mendigos, vai contribuir para o funcionamento fisiológico daqueles indivíduos, para que eles possam continuar a existir. Além disso, as doações servem, no discurso dos informantes, para amenizar as desigualdades sociais produzidas pelo mercado. Como vimos, muitos autores (Ricardo, Marx, Oliveira) atestam que a prática assistencialista cria uma contradição entre o objetivo e a realidade, pois, em último caso, acabam por intensificar a situação de miséria das classes mais pobres.

185

CONCLUSÃO: A INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA ―As forças mágicas e religiosas e as idéias éticas de dever nelas baseadas têm estado sempre entre as mais importantes influências formativas de conduta.‖ Max Weber

O presente estudo representa uma análise interpretativa das doações realizadas pelos adeptos da Renovação Carismática em três grupos religiosos de Fortaleza. Sendo um estudo interpretativo, apresenta apenas uma visão parcial das relações sociais envolvidas na abordagem. O que fiz foi comentar e discutir as interpretações dos agentes sociais verdadeiramente imersos no mundo social pesquisado. Como diria Pierre Bourdieu, ―o sociólogo deve ter sempre em mente o fato de que é próprio de seu ponto de vista ser um ponto de vista sobre um ponto de vista‖ (1989: 57). A pesquisa se revela um tanto desbravadora da temática abordada: a dádiva de cunho religioso entre pessoas de nível sócio-econômico desigual. Pouca coisa se produziu no sentido de avaliar a troca simbólica e material de benfeitorias entre os homens e os deuses, ou mesmo de avaliar as implicações, no plano secular, das práticas de beneficência, o assistencialismo privado. Existem muitas críticas econômicas quanto ao chamado ―assistencialismo gratuito‖ e Mauss conseguiu, com grande êxito, enveredar por fenômenos religiosos complexos como a prece, o sacrifício e as oferendas aos deuses, mas não houve uma maior preocupação filosófica e antropológica do mundo acadêmico em relação à prática da caridade, laica ou religiosa. A dádiva consiste em um conjunto de práticas assaz complexas que vão desde as associações inter-tribais (inter-grupais), envolvendo grande número de prestações sociais (troca de favores, regalias, circulação de mercadorias), 186

passando pelas organizações cooperativistas no interior de ―grupos fechados‖ (comunidades tribais, associação de bairros, cooperativas de produção, etc.), até o ato individual de um fiel católico que doa oitenta centavos para um mendigo que lhe aborda em um sinal de trânsito. Os ―homens de bem‖, os indivíduos voltados para atitudes benevolentes, são, de certo modo, produções ainda ―em acabamento‖ de um processo histórico de condicionamento dos modos de conduta hostil. Não estou defendendo, com isso, um behaviorismo radical; apenas confirmo um posicionamento analítico de Weber, Foucault e Elias, entre tantos, que salientam o fato de que os seres humanos já nascem presos às teias sociais confeccionadas pelo acúmulo de conhecimento dos seus ancestrais. Somos livres somente na medida do espaço em que podemos nos mover nesse emaranhado de relações prontamente preestabelecidas por nossa história. No universo das produções culturais, os lampejos de criatividade constituem exceções. Conduto, não podemos deixar de lembrar a observação do antropólogo Marshall Sahlins, em seu clássico trabalho teórico-etnográfico Ilhas de história: ―os significados são, em última instância, submetidos a riscos subjetivos, quando as pessoas, à medida que se tornam socialmente capazes, deixam de ser escravas de seus conceitos para se tornarem seus senhores‖ (1990: 11). Em aversão ao habitus voltado para atitudes de violência do ―homem bárbaro‖, do ―mau selvagem‖, dos indivíduos que usavam a força física para constranger os outros e, assim, conseguir o que queriam, é que se estabeleceu toda uma gama de discursos e de normas, principalmente inspiradas em mitologias religiosas. A prática da filantropia, a vontade de ajudar o próximo, surge para frear a disposição para a agressividade dos grandes impérios da Antigüidade. Porém, não imaginem, caros leitores, que tomo aqui o partido hobbesiano

da

inexorabilidade

maligna

da

―natureza

humana‖

em

contraposição à crença rousseauniana dos ―impulsos naturalmente bons‖ da humanidade.

O hábito de resolver as coisas por meio da violência é tão

histórico-cultural quanto o desejo de ―fazer o bem‖ e promover a paz. Nietzsche,

187

por exemplo, defende que a submissão, a humildade e o ―amor de doação‖, resultantes do conjunto de discursos e de regras religiosas do cristianismo, são, na verdade, um mecanismo de defesa encontrado por grupos sociais fragilizados para poderem sobreviver à ideologia da força e da vontade de potência das ―grandes culturas‖71. Para conter e concorrer com o conjunto de discursos e práticas voltadas para animosidade e para a indiferença em relação à existência do ―outro‖, foi de fundamental importância a construção de diversas ideologias da generosidade e de valores sociais que exaltassem a preocupação com a alteridade. Foi preciso também que tais valores fossem traduzidos na práxis social, o que possibilitava a renovação e a legitimação da generosidade. As ações benevolentes, então, puderam se revestir de uma representação social positiva. Muitas macro-instituições e micro-poderes, no sentido foucaultiano do termo, foram e são responsáveis pela criação de afinidade identitária das sociedades ocidentais em relação a determinados tipos de ações classificadas como ―honrosas‖. Uma dessas macro-instituições que influenciaram todo um modo de ver e sentir o mundo, principalmente no Ocidente Tecnologicamente ―Sofisticado‖, é o cristianismo, que tem como um dos preceitos básicos, o ato de ―ajudar o próximo‖, de dar bens materiais a quem não os possui. Esse preceito é chamado, pelos próprios cristãos, de ―amor de doação‖. Como Marcel Mauss pôde demonstrar através de suas análises sobre a troca de regalias de tribos do noroeste americano, entre os eskimós, os indianos, os haida e os tlingit, a dádiva representa um fenômeno social universal nas relações humanas. Desde épocas remotas, as trocas de favores e de donativos estiveram presentes na organização social de vários povos. A necessidade de retribuir uma coisa dada, um favor prestado, não está em poder do nosso livre-arbítrio. Quando recebemos algo de alguém ―gratuitamente‖, sentimo-nos impulsionados por uma força maior, impõe-se um sentimento de dever de tal maneira, que não podemos mais nada fazer além de 71

Ver Nietzsche, Genealogia da moral e O anticristo.

188

pensar como vamos retribuir àquela regalia dada por outrem. O presente recebido produz no receptor uma espécie de dependência em relação ao doador. Eis porque o benfeitor angaria as vantagens sociais e sobrenaturais de sua doação e eis a sua teima em não abdicar de sua condição de ―homem de bem‖.

189

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Revista de Ciências Sociais. v. 16/17. Fortaleza (CE): Edições UFC, 1985. POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro (RJ): Campus, 1980. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle epoque: reformas urbanas e controle social 1860 – 1930. Fortaleza (CE): Edições UFC, 1993. RAMOS, Graciliano. Angústia. Rio de Janeiro (RJ): Record, 1996. RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. A democracia liberal segundo Aléxis de Tocqueville. São Paulo (SP): Mandarim, 1998. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Col. Os Pensadores. São Paulo (SP): Nova Cultural, 1999. SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar, 1990. SENA, Jorge de. ―Shakespeare‖ in A literatura inglesa. São Paulo (SP): Cultrix, 1980. 194

SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo (SP): Fundação Perseu Abramo, 2002. SOUZA, Simone (Coord.). História do Ceará. Fortaleza (CE): Fundação Demócrito Rocha, 1994. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Col. A obra prima de cada autor. São Paulo (SP): Martin Claret, 2001. __________ . Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília (DF): Editora Universidade de Brasília, 1994. ZALUAR, Alba. Os homens de Deus. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar, 1983.

PERIÓDICOS: - A Dimensão Social da Renovação Carismática Católica: conclusões do primeiro Fórum Nacional em Aparecida (SP). Col. Paulo Apóstolo, n. 24. Centro Popular de Cultura. Brasília (DF): Editora Santuário, 1999. - VASCONCELOS, Yuri. O triunfo da cruz. Aventuras na História – Super Interessante. São Paulo (SP), p. 30-39, Ed. Abril, edição 16 de dezembro de 2004. - Informativo COT (Comunidade Católica Obreiros da Tardinha). N. 31, Fortaleza (CE), setembro de 2002. ___________ . N. 50, Fortaleza (CE), abril de 2004. - O Domingo – Semanário Litúrgico-catequético. Ano LXXI – Remessa XIV, n. 50, São Paulo (SP): Editora Paulus, outubro de 2003. - Jornais On Line: Diário do Nordeste On line - Fortaleza (CE); O Povo No olhar Fortaleza (CE); Folha On Line - São Paulo (SP).

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DOCUMENTOS: - Relatório apresentado ao Império do Brasil pelo exmo. Sr. Dr. José Martiniano de Alencar, presidente da Província do Ceará. Fortaleza – Ceará, Typographia Brasileira, 1838. - Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial do Ceará pelo exmo. Sr. Dr. Francisco Ignácio Homem de Mello na 1ª sessão da 22ª legislatura em 1º de julho de 1866. Fortaleza – Ceará, Typographia Brasileira, 1866. - Relatório de passagem de cargo de presidente da Província do Ceará do exmo. Sr. Dr. Antônio Joaquim Rodrigues Jr. ao exmo. Sr. Dr. Gonçalo Batista. Fortaleza – Ceará, Typographia Brasileira, 1868. LOCAL DA PESQUISA: BIBLIOTECA PÚBLICA GOVERNADOR MENEZES PIMENTEL

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ÍNDICE ONOMÁSTICO

Abraão. – 118; Acusilau. – 29, 31; Agatão. – 31; Alencar, José Martiniano de. – 157; Aristófanes. – 29; Baró, Martim. – 36; Bauman, Zygmunt. – 77, 84, 85, 139, 161, 162; Bellers. – 143; Bentham, Jeremy. – 143, 145, 146, 148; Boas, Franz. – 133; Bourdieu, Pierre. – 6, 178; Buda. – 120; Burke, Edmond. – 142, 145, 148; Calvino, João. – 137; Candido, Antonio. – 64, 65, 66, 110, 116; Cardoso, Fernando Henrique. – 10, 88; Cartaxo, Ana Maria B. – 159; Couto, Ribeiro. – 113; DaMatta, Roberto. – 7, 12, 113; De Brosses. – 47; Defoe, Daniel. – 53, 142, 143, 144; Diotima. – 32, 33; Dostoievski, Fiódor. – 141; Dumont, Louis. – 79, 80, 110, 111 ; Duret, Claude. – 43;

197

Durkheim, Émile. – 21, 59, 60, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 89, 91, 105, 106, 107, 108 ; Elias, Norbert. – 51, 91, 92, 98, 99, 129, 179; Evans-Pritchard, Edward. – 81; Faoro, Raymundo. – 111; Fedro. – 29; Foucault, Michel. – 8, 20, 41, 42, 43, 46, 47, 48, 49, 57, 58, 59, 61, 82, 83, 158, 179, 180; Freud, Sigmund. – 77, 89, 90; Freyre, Gilberto. – 110; Geertz, Clifford. – 6, 78, 91, 93, 107, 108, 121, 176; Giddens, Anthony. – 84, 85, 109; Gutierrez, Gustavo. – 38; Henrique XVIII. – 160; Hertz, Robert. – 95; Hobbes, Thomas. – 89, 179; Holanda, Sérgio Buarque de. – 7, 18, 24, 87, 88, 89, 93, 97, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 117, 125, 168; Huberman, Leo. – 63; Jesus Cristo. – 14, 16, 17, 26, 40, 55, 94, 95, 96, 102, 131, 135; João Paulo II. – 17; João XXIII. – 38; Kafka, Franz. – 145; Karady, Victor. – 73, 176; Kardec, Alan. – 120; Lanna, Marcos. – 7, 79, 86, 110, 111, 128, 129, 162, 163, 165, 166, 167, 170, 175; Leão XIII. – 134; Locke, John. – 80, 143; Logstrup. – 85;

198

Lucas. – 26; Machado de Assis, Joaquim M. – 4; Malinowski, Bronislaw. – 11, 71, 72, 81, 132; Malthus, Thomas. – 148; Mandeville. – 53, 142, 144; Mantoux, P. L. – 142, 147; Marx, Karl H. – 53, 63, 159, 177; Matos, Olgária. – 89, 90; Mauss, Marcel. – 11, 19, 21, 27, 33, 34, 64, 69, 70, 72, 73, 76, 83, 86, 97, 102, 103, 119, 130, 131, 132, 133, 134, 137, 138, 141, 156, 162, 163, 167, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 178, 180; Montaigne, Miguel E. de. – 46, 47; Nietzsche, Friedrich. – 108, 179, 180; Oliveira, Francisco de. – 146, 160, 177; Owen, Robert. – 159; Paulo VI. – 38; Pausânias. – 29, 31; Pessanha, José Américo M. – 101; Petter, Margarida. – 43; Platão. – 29, 31, 32; Polanyi, Karl. – 21, 50, 53, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 86, 142, 143, 144, 145, 146, 148, 152, 153, 155; Ponte, Sebastião Rogério. – 8, 9, 155, 156; Ramos, Graciliano. – 141, 142; Ramus, P. – 43; Ricardo, Cassiano. – 114; Ricardo, David. – 53, 142, 148, 177; Rodrigues, Martins. – 110; Rodríguez, Ricardo Vélez. – 149, 150, 151, 152; Rousseau, Jean-Jacques. – 80, 179;

199

Sahlins, Marshall. – 21, 176, 179; Santo Agostinho. – 33, 101; São Francisco de Assis. – 98; São Vicente de Paulo. – 17; Saramago, José. – 25; Saulo de Tarso - São Paulo. – 4, 27, 174; Shakespeare, William. – 29, 30, 62; Singer, Paul. – 117, 159; Smith, Adam. – 63, 144, 154, 159; Sócrates. – 29, 31, 32, 33; Soiffer. – 175; Souza, Joaquim Martins de. – 157; Spilberg, Steven. – 139; Thurnwald. – 72; Tocqueville, Aléxis de. – 53, 142, 149, 150, 151, 152; Tomás de Aquino. – 33, 100, 111; Townsend. – 53, 142, 144, 145, 146, 147, 148; Van Ossenbruggen. – 131; Weber, Max. – 7, 11, 21, 27, 59, 79, 91, 99, 104, 110, 121, 175, 176, 178, 179; Zhelazkova, Antonina. – 161;

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200

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

O ―HOMEM DE BEM‖: UMA INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA EM TRÊS GRUPOS CATÓLICOS DE FORTALEZA (CE)

201

EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

FORTALEZA – CE 2005 EMANUEL OLIVEIRA BRAGA

O ―HOMEM DE BEM‖: UMA INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA EM TRÊS GRUPOS CATÓLICOS DE FORTALEZA (CE)

Monografia apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, como

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requisito para obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Simone Simões Ferreira Soares

FORTALEZA – CE 2005

O ―HOMEM DE BEM‖: UMA INTERPRETAÇÃO DA DÁDIVA EM TRÊS GRUPOS CATÓLICOS DE FORTALEZA (CE)

Emanuel Oliveira Braga

Monografia defendida e aprovada em 14 de junho de 2005

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________ Profª. Drª. Simone Simões Ferreira Soares – Orientadora Universidade Federal do Ceará – Fortaleza - CE ____________________________________________ Prof. Dr. Carlos S. Versiani dos Anjos Jr.

203

Universidade Federal do Ceará – Fortaleza - CE ____________________________________________ Profª. Drª. Peregrina Fátima Capelo Cavalcante Universidade Federal do Ceará – Fortaleza - CE

Universidade Federal do Ceará 2005

A memória de meu pai, Manoel Braga, homem de bem AGRADECIMENTOS

204

♦ Em primeiro lugar, quero agradecer à minha mãe, por seu amor e dedicação, por ser essa amiga incondicional nos momentos mais difíceis da vida. ♦ Quero fazer um agradecimento a todos os membros da Comunidade Católica Obreiros da Tardinha, da Casa de Orações Deus Conosco e da Legião de Maria, em especial a Manoel Roberto, Maria de Lourdes, Germano, Joanita, Amanda, Fátima, Nazareno, Josinete, Sérgio e Rosinha, pelo ―amor de doação‖. Sem o apoio de vocês este trabalho não teria sido possível. ♦ Agradeço também ao meu irmão Tiago, pelo companheiro fiel que é e pelas correções ortográficas e gramaticais que tornaram este trabalho legível. ♦ Às minhas queridas irmãs: Euricléia, Euzene e Eurisene, segundas mães. ♦ A memória de meu avô, Francisco Xavier, poeta e trovador de Viçosa do Ceará. ♦ À minha avó, Francisca Maria, por seu carinho e dedicação. ♦ Às minhas adoráveis tias: Mazé, Assunção, Conceição e Ana. ♦ Às minhas inseparáveis amigas Diana e Adriana, que estão sempre presentes na minha vida, ajudando como podem e compartilhando minhas alegrias. ♦ Aos meus queridos sobrinhos: Luzardo, Regina, Herval Jr., Adriana, Leonardo e Rafael. ♦ Ao meu amigo Eduardo, com quem posso debater minhas idéias, expor minhas aflições, sem, contudo, abdicar do bom humor e da alegria de viver. ♦ À minha mestra, orientadora e amiga, Simone Simões, pela paciência que teve em discutir as argumentações do trabalho, os rumos da pesquisa de campo e as teorias abordadas no texto. Quero agradecer pela maravilhosa pessoa que você é, sempre dedicada, inteligente e atenciosa. ♦ Aos companheiros de turma e de curso das Ciências Sociais e das Letras. ♦ Ao professor Carlos Versiani, pelo apoio intelectual dado na disciplina de Estágio Supervisionado. ♦ Aos professores(as) Fátima Souza (Literatura), Simone Simões (Antropologia), Domingos Abreu (Metodologia Científica), André Haguette (Sociologia), Amilton César (Francês) e Aline Bussons (Didática), grandes educadores, parabéns! ♦ À Dra. Rita, profissional exemplar, ―mulher de bem‖, a minha sincera gratidão.

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