O homem de Vargas na corte de Roosevelt

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O HOMEM DE VARGAS NA CORTE DE ROOSEVELT

Amigo do presidente, embaixador Carlos Martins foi seus olhos e ouvidos em Washington no período em que os Estados Unidos se transformaram na superpotência do século 20
 
CLAUDIA ANTUNES
 
"Tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossa Excelência que o Office of Price Administration, de acordo com o War Production Board, estabeleceu o racionamento de calçados para toda a população civil dos Estados Unidos da América, limitando a três pares por ano a aquisição por habitante. (...) O número de cores passará de seis a quatro: branca, preta, castanha e a cor amarelada de que se compõem os calçados adotados pelo Exército. As cores dourada e prateada são proibidas, assim como os calçados de duas cores."
Se não fosse pelo antiquado "vossa excelência", o informe acima poderia ser tomado por trecho de um romance futurista, num mundo anárquico e de recursos naturais escassos. Foi redigido, no entanto, em fevereiro de 1943, no auge do esforço militar que transformou os Estados Unidos na maior superpotência da segunda metade do século 20. Apesar do fascínio duradouro pela Segunda Guerra Mundial, as vicissitudes da época foram em geral esquecidas pelas novas gerações americanas, habituadas a conflitos externos sem reflexo direto em seu cotidiano.
A medida de racionamento - mais uma, que somou às de tecidos, açúcar, gasolina, manteiga, peixe, carne e até vitamina A, destinada preferencialmente a manter focada a vista dos pilotos de ataque - é descrita num ofício de três páginas endereçado pelo embaixador do Brasil em Washington, Carlos Martins Pereira e Sousa, ao chanceler Oswaldo Aranha. Gaúcho e colega do presidente Getúlio Vargas na Faculdade de Direito de Porto Alegre, Martins (1884-1965) assumiu a embaixada em 1939 e lá ficou até 1948 - um recorde para o posto. No período, a guerra veio resgatar o New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-45) da encruzilhada econômica e do contra-ataque conservador. O Brasil gradualmente pôs fim à ambiguidade no confronto – declarou guerra à Alemanha há pouco mais de 70 anos, em agosto de 1942 - e estabeleceu com os EUA uma parceria como nunca houve antes nem se repetiria depois.
Embaixador em Washington de 1934 a 1937 e chanceler de 1938 a 1944, Aranha foi o mentor dessa aliança. Martins, porém, foi os ouvidos e os olhos de Vargas em Washington, o negociador direto dos acordos de financiamento da siderurgia, de fornecimento de minerais estratégicos e de compras de armamentos. "Vargas estabeleceu um canal direto de comunicação com o embaixador, por meio do qual ele exerceu uma influência significativa nos rumos da diplomacia desenvolvimentista do período", diz Pérola de Abreu Pereira, sobrinha-neta de Martins (tio de seu avô paterno) e que pesquisa o período para seu mestrado em relações internacionais na UnB.
Concentrados em resultados concretos, os estudos sobre a relação bilateral na época se detiveram pouco no ponto de vista brasileiro sobre o governo Roosevelt e a economia de guerra nos Estados Unidos. É a esse aspecto, no entanto, que está dedicada a maior parte dos ofícios de Martins e de sua equipe na embaixada, guardados no Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio. Enviados por correio diplomático, os ofícios eram extensos e analíticos, diferentemente dos telegramas – usados para mensagens urgentes e/ou secretas.
 
ALDEIA
 
Quando Carlos Martins chegou a Washington, a cidade era uma "aldeia", define sua filha Nora Martins Lobo, com 11 anos na época. "Não tinha restaurantes bons, não tinha teatro, só tinha a sala daquelas Daughters of the American Revolution [o Constitutional Hall], que eram umas conservadoras terríveis, não permitiram que a Marian Anderson, uma negra, cantasse lá. As pessoas iam para Nova York para ter um pouco de civilização", diz Nora.
Com boa parte da África e da Ásia ainda sob colonização europeia, havia na capital americana menos de 50 embaixadas (a ONU foi fundada em 1945 por 51 países). A do Brasil, que funcionava desde 1905, tinha importância considerável. Por ela passavam não apenas grandes questões de Estado, mas tarefas prosaicas como a aprovação do roteiro do filme "Uma Noite no Rio", estrelado por Carmem Miranda. A embaixada sugeriu modificações "necessárias à melhor aceitação do filme", como a supressão de uma "cena de dança de negros" e de "passagens de música espanhola".
Martins se estabeleceu com a mulher, a escultora surrealista Maria Martins (1894-1973), e as filhas do casal, Nora e Anna Maria. Nos últimos anos, a figura morena e exuberante da artista eclipsou a memória do marido. Foram lançados dois livros sobre sua arte - "Maria Martins, Escultora dos Trópicos", de Graça Ramos (Artviva), e "Maria", da Cosac Naify –, além da biografia "Maria Martins" (Gryphus), de Anna Maria Callado.
O embaixador alugou um estúdio na Park Avenue, para passar temporadas em Nova York. Lá, Maria recebia europeus expatriados como André Breton, Piet Mondrian e Marcel Duchamp, que se apaixonou por ela e se tornaria seu amante durante anos. Em "Duchamp: Uma Biografia", o americano Calvin Tomkins destaca a influência da embaixatriz na obra do vanguardista francês. "Minha mãe não era um passarinho a botar numa gaiola, e meu pai era sábio", diz Nora, que hoje mora em São Paulo. E eles tinham personalidade forte? "Ah, discutiam sim. Minha mãe, se estava perdendo a disputa, abria aqueles olhos imensos e vinham umas lágrimas cristalinas. Quando conseguia o que queria, as lágrimas desapareciam na hora. Eles se davam muito bem."
Martins era um homem vistoso e também "tinha seus casos", diz o neto Carlos Ceglia, diplomata e filho de Nora. Alto, corpulento sem ser obeso, "ele tinha quase uma fidalguia real", define o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, que conheceu o embaixador no início dos anos 1960, quando frequentava seu apartamento no bairro carioca do Flamengo, de frente para a Baía de Guanabara. Amigo de Maria, Pitanguy conta que Martins "se impunha" e "atraía simpatia", mas abria espaço para a mulher. "A grande condição da superioridade masculina é deixar a mulher brilhar."
O embaixador era um renomado gourmet, amante de vinhos, numa época em que as comunicações eram mais lentas e a boa mesa era essencial à diplomacia. "O Antonio Gallotti, que era presidente da Light, dizia que ele já tinha tomado um Amazonas de champanhe", lembra o cirurgião plástico. O neto Ceglia diz que o avô, recebendo uma garrafa sem rótulo, reconhecia o vinho, o ano e a safra. "Certa vez, no Maxim´s, ele tomou com os amigos um vinho xis e depois pediu outra garrafa. Trouxeram o mesmo vinho com uma safra de um ano depois e ele disse, 'não pedi esse'. Os franceses ficaram 'mas como, monsieur?' Na hora da conta, não tinha conta."
Não admira, portanto, que o casal Martins tenha feito da embaixada um dos pontos mais festivos de Washington. Em 1939, jornais locais davam conta de duas grandes recepções: em abril, para a apresentação dos novos moradores da missão, e em novembro, nos 50 anos da República. "A senhora Martins dá sinais de ser das mais amáveis e hospitaleiras anfitriãs diplomáticas. Ela adora pessoas e festas, mas também tem interesses sérios. Escultura é um deles, e, não importando se ficou fora até tarde na noite anterior, se levanta cedo para trabalhar em seu ateliê", escreveu Dudley Harmon, colunista social do "Washington Post". O ateliê funcionava no sótão da embaixada.
Martins renovou o jardim e reformou o casarão de três andares em estilo neoclássico, projetado pelo arquiteto John Russell Pope e comprado pelo governo brasileiro em 1934. Ele encontrou o imóvel em mau estado, com os lambris infestados de cupins. Em 1941, um curto-circuito no elevador causou um princípio de incêndio durante uma recepção em homenagem a Ernani do Amaral Peixoto, interventor no Estado do Rio e marido de Alzira, a filha favorita de Vargas. Estavam na festa o vice-presidente americano, Henry Wallace, o ministro do Comércio, Jesse Jones, juízes da Suprema Corte, deputados e senadores. "Um acidente fatal seria profundamente desagradável e danoso para o Brasil", escreve Martins ao Itamaraty.
No ano seguinte, em carta ao embaixador sobre a siderúrgica de Volta Redonda – "menina dos olhos" de Vargas -, Alzirinha faz troça da situação: "Esperamos que o prédio da embaixada não caia até o fim do mês. Até lá vamos ver o que se pode fazer. O Patrão vai mandar examinar o caso", diz ela na mensagem datilografada guardada no arquivo pessoal de Getúlio Vargas, em poder do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil) da FGV do Rio. Mais tarde, o Itamaraty autorizaria Martins a comprar o terreno ao lado da missão diplomática para a construção de uma chancelaria separada da residência do embaixador - o edifício foi inaugurado somente nos anos 70.
 
VARGAS E ROOSEVELT
 
Vargas tinha interesse na política americana. Considerava-se amigo de Roosevelt, e ao menos em público era correspondido. Os dois tinham se encontrado em 1936, quando o americano visitou o Rio, a caminho de um encontro da União Panamericana na Argentina. Em discurso no palácio do Catete, Roosevelt disse que duas pessoas, ele e Vargas, "inventaram o New Deal".
A lisonja pode ser creditada à Política da Boa Vizinhança, que prometia substituir o intervencionismo militar pelo "soft power" e pretendia ampliar os mercados regionais para os produtos americanos por meio de acordos de comércio. Mas a diferença mais flagrante entre os dois líderes - Vargas impôs a ditadura do Estado Novo, enquanto Roosevelt centralizou o poder sem romper com a democracia — não exclui as analogias. Ambos ascenderam em consequência da crise de 1929, fortaleceram o Estado e sancionaram legislações sociais. Deram seus nomes a eras que parte de seus sucessores, décadas depois, ainda se propunha a enterrar.
Escrevendo em junho de 1939, Martins fala a Vargas das perspectivas para a segunda reeleição de Roosevelt, no ano seguinte. Afirma confiar em que será derrotada a corrente oposta a um terceiro mandato presidencial (que só em 1947 seria legalmente proibido nos Estados Unidos). "Para nós é o melhor que pode suceder. Os republicanos são afetos a uma política de isolamento egoísta e de desinteresse quase hostil à América Latina. E, no Partido Democrata, não vejo quem mais simpatias haja mostrado pela nossa vida política, nossas possibilidades, do que o atual presidente."
O embaixador e sua equipe - na qual o diplomata Fernando Sabóia de Medeiros se destaca como analista -, acompanhavam a política americana com essa motivação em vista. Os ofícios mostram simpatia pela "figura superior" de Roosevelt diante dos "interesses estreitos" de opositores no Congresso, na imprensa, nos negócios. Sua habilidade em negociar com os trabalhadores e sua "imparcialidade entre ricos e pobres" são elogiados. Dias antes da eleição de 1940, a embaixada resume assim as realizações do New Deal, tal como apregoadas pelo ocupante da Casa Branca: "É a expansão das oportunidades a todas as camadas da sociedade, numa generalização civilizadora, uma política partidária da propriedade e da iniciativa privada, mas inimiga da concentração injusta do capital e da exploração do trabalho pela produção".
Nos ofícios, a política social de Roosevelt é comparada à do governo brasileiro. "O simples enunciado das características gerais do plano, num país de legislação profundamente avançada, dá uma ideia dos benefícios que há muito vêm sendo concedidos ao operariado brasileiro pela legislação trabalhista instituída pelo presidente Getúlio Vargas", escreve Martins em janeiro de 1943, quando a secretária do Trabalho Frances Perkins, que foi a primeira mulher no gabinete americano, envia ao Congresso um projeto de ampliação dos direitos previdenciários.
Em 1942, quando o Legislativo dos Estados Unidos queria aprovar medida de repressão às greves na indústria bélica, revertendo lei de 1935 que garantiu liberdade de organização sindical, os ofícios brasileiros revelam admiração pela posição de Roosevelt, que opta pela negociação e consegue obter dos sindicalistas garantias de moderação. "Política essencialmente rooseveltiana, essa atitude admite as indignações do Capitólio, as recriminações de Wall Street, antes de qualquer ação penosa por parte do próprio Roosevelt. Indignações e recriminações servem para provar ao operário a sinceridade e o espírito de compreensão do chefe de governo e seu desejo de só recorrer a medidas extremas em caso de absoluta necessidade", analisa Martins.

ANTICOMUNISMO

De outro lado, o anticomunismo do Estado Novo produz desconfiança em relação à ala esquerda da Casa Branca, sobretudo quando Roosevelt e Josef Stálin tornam-se aliados depois da invasão alemã da União Soviética, em junho de 1941. Vários ofícios da embaixada criticam os "arremedos soviéticos" do vice-presidente Henry Wallace, defensor de "um meio termo entre a democracia econômica soviética e a democracia política americana", um regime que incluiria "não só a declaração dos direitos do homem, mas também a democracia econômico-étnica-educativa e dos sexos".
Na família e entre as hoje raras pessoas que conheceram Martins, volta e meia é mencionada a história de um namorico dele com uma das filhas do czar em São Petersburgo, onde o diplomata viveu de 1906 a 1912. "Ele chegou cedo para uma festa, ficou percorrendo o palácio e foi parar no quarto em que ela estava se vestindo. Depois foi seu par de dança", conta o neto Luiz Philippe Neiva, filho de Anna Maria.
Fato é que o embaixador não tinha a mínima simpatia pelos comunistas que tomaram o poder na Rússia em 1917. Se as filhas faziam alguma coisa errada, as chamava de bolcheviques. Em Washington, Martins conversava frequentemente com Clare Boothe Luce, mulher de Henry Luce, dono das revistas "Time", "Life" e "Fortune". A loura e jovem deputada republicana estava sempre pronta atacar a "ausência de realismo" de Roosevelt em relação à URSS.
No entanto, quando Adolf Hitler invadiu a Rússia, Martins deu à filha Nora um exemplar de "Guerra e Paz", de Tolstói, cujo pano de fundo é a invasão do país por Napoleão e a derrota da França, no século 19. Depois, os ofícios do embaixador sobre o assunto elogiam a surpreendente – para os americanos — resistência soviética aos alemães e o "magnífico" esforço bélico de Moscou.
"A contribuição russa ao enfraquecimento da Alemanha nazista permanecerá como um dado objetivo e essencial da história da presente guerra. Contém recursos diplomáticos que a Rússia não abandonará", escreveu ele em maio de 1943 - quase dois anos antes de a Conferência de Yalta ceder ao pleito de Stálin de uma área de influência no leste europeu. Isso não significava, porém, que, findo o conflito, Washington admitiria a presença soviética no hemisfério. "Neste continente, a Rússia e os Estados Unidos são potências antagônicas", disse Martins em janeiro de 1944. (O governo Vargas só estabeleceria relações diplomáticas com a URSS, por insistência dos americanos, no início de 1945, às vésperas da conferência de fundação da ONU).
 
ROCKEFELLER, WELLES
 
Fora das ocasiões festivas, os frequentadores mais assíduos da embaixada eram o bilionário e filantropo Nelson Rockefeller, diretor do MoMA (Museu de Arte Moderna), o senador democrata Harry Truman, que viria a suceder Roosevelt na Presidência, e o subsecretário de Estado Sumner Welles, mentor da Boa Vizinhança, principal conselheiro presidencial em política externa e interlocutor de Martins na Casa Branca.
Welles – um diplomata de carreira que, como Roosevelt, vinha de família tradicional e rica da Costa Leste dos Estados Unidos - era conhecido pela defesa pública da aliança com o Brasil. Em setembro de 1940, o embaixador brasileiro dá razão ao subsecretário quando este julga inadequada uma queixa do chanceler Oswaldo Aranha a respeito de um artigo desfavorável a Vargas publicado na imprensa local. "O sr. Sumner Welles não pôde deixar de estranhar os dizeres por virem de um antigo embaixador neste país, que conhece a imprensa norte-americana e a independência de que goza. (...) De ataques malévolos, grosseiros e ultrajantes nem as autoridades deste país escapam, com espantosa frequência", escreve Martins ao chanceler.
Mesmo depois de sair do governo em setembro de 1943, Welles continua influenciando os rumos da diplomacia. Os ofícios brasileiros acompanham seus discursos e artigos esboçando a arquitetura institucional do mundo pós-guerra. Em janeiro de 1944, Welles escreve no "New York Herald Tribune" que a lei, não o poder, deveria ser a base da organização que substituiria a fracassada Liga das Nações. "Sumner Welles teve em mente, segundo me disse pessoalmente, referir-se ao meu discurso de 14 de outubro, pronunciado no Instituto Carnegie em Pittsburgo", afirma Martins. No discurso, o embaixador discorrera sobre a "necessidade de uma paz na base da igualdade e universalidade da representação das nações (...) e não na base da hegemonia das grandes potências".
Rockefeller, por sua vez, era amigo íntimo do casal Martins. Em 1941, ele comprou uma escultura de Maria, um "Cristo" em jacarandá, para o MoMA. Depois, a escultora comprou por US$ 800 e doou ao museu o "Broadway Boogie-Woogie", hoje um dos mais valiosos quadros de Mondrian. Mário Gibson Barbosa, que serviu em Washington de 1943 a 1949 e viria a ser chanceler no governo Médici, afirmou que Martins influenciou a nomeação de Rockefeller, um republicano moderado, como coordenador e depois secretário de Roosevelt para Assuntos Interamericanos. "Nelson Rockefeller usou o pistolão de Carlos Martins", disse Barbosa, morto em 2007, a Ana Arruda Callado, autora da biografia "Maria Martins".
O senador Truman – que, ao contrário de Roosevelt, fez carreira projetando a imagem de um homem comum - tocava piano na missão do Brasil e jogava pôquer com Martins. O hábito continuou quando ele, eleito vice-presidente em 1944, assumiu a Presidência com a morte de Roosevelt. Um dia, relata o neto Ceglia, o embaixador virou-se para o jovem diplomata Roberto Campos: "Você sabe jogar pôquer, meu filho?". E levou-o para o carteado na Casa Branca. Campos, delegado do Brasil na Conferência de Bretton Woods, em 1944, seria depois embaixador em Washington e Londres e ministro do Planejamento no governo Castello Branco.

DESCONFIANÇAS

Apesar das amizades e de sua reputação nos EUA – recebeu dois títulos de doutor honoris causa, das universidades de Rutgers (Nova Jersey) e de Siracusa (Nova York) -, Martins vez por outra apontava limites na aliança com Washington. Num ofício de maio de 1939, logo depois de assumir a embaixada, ele retratou em termos pragmáticos o dilema de Vargas entre a Alemanha e os EUA. Disse que Berlim, então compradora de um quarto das exportações brasileiras, oferecia condições privilegiadas de comércio, enquanto a agricultura americana competia com produtos do Brasil (o sempre poderoso lobby americano do algodão, por exemplo, restringia a entrada do similar brasileiro).
"Creio na sinceridade do presidente Roosevelt, nos esforços de Cordell Hull [secretário de Estado] e Sumner Welles, quando tentam entendimentos que eliminem essas divergências econômicas. Mas os centros financeiros de Nova York permanecem surdos diante de qualquer argumento político e só divisam o interesse financeiro imediato, enquanto os senadores adstritos ao interesse regional dos estados (...) impugnam qualquer medida que possa resultar em sacrifício de seus distritos mesmo quando daí possa advir um benefício nacional", escreveu.
Esses setores, prosseguiu Martins, "esquecem que toda ascensão isolada é aparente e passageira e que o desenvolvimento de um povo se liga ao de seus congêneres". A prosperidade do Brasil, concluiu, "só trará vantagens para os Estados Unidos, que ali terão um grande mercado para sua possante indústria".
O doutor em relações internacionais Ricardo Seitenfus pesquisou arquivos americanos, alemães e italianos para seu livro "O Brasil vai à Guerra" (Manole). Ele diz que Martins era "da total confiança de Vargas e Aranha", mas, diferentemente do chanceler, não nutria admiração incondicional pelos EUA. "Tinha simpatias pelos americanos, mas era um negociador duro e menos impressionável que Aranha", afirma Seitenfus, hoje representante na Nicarágua do secretário-geral da OEA (Organização dos Estados Americanos).
O pesquisador defende que Vargas se decidiu pelo alinhamento com os EUA já em 1938, apesar de ter mantido um jogo de barganha entre Washington e Berlim até setembro de 1940, quando foi assinado o acordo para o financiamento americano da siderurgia brasileira. Segundo ele, a promessa da Alemanha de apoiar a industrialização do Brasil perdeu apelo para o presidente com a tentativa de golpe integralista e com as evidências de que Hitler planejou nazificar o sul do Brasil. "Em março de 1938, Vargas chama Aranha, de conhecida posição pró-americana, de volta ao governo. Em abril, decreta a nacionalização do ensino. O nacionalismo fez Getúlio se afastar de seus padrinhos ideológicos", argumenta Seitenfus.
A conclusão é semelhante à do brasilianista americano Frank D. McCann, autor de "Soldados da Pátria" (Companhia das Letras). No artigo "O Aliado Esquecido", de 1995, McCann observa que já em 1939 o Brasil acenou a Washington com a utilização de bases no Nordeste, e que, quatro dias antes do acordo sobre Volta Redonda, "o governo Vargas decidiu que, em caso de agressão alemã, colocaria todos os recursos do Brasil no lado americano". O acerto final sobre a siderurgia e as bases veio quando tanto o Brasil quanto os Estados Unidos ainda eram formalmente neutros no conflito bélico desencadeado pelas potências do Eixo. Washington só declararia guerra ao Japão e à Alemanha depois do ataque japonês a Pearl Harbor, em dezembro de 1941.
Nos ofícios da embaixada, o nazifascismo leva, ao menos desde 1939, os selos de "racista" e "totalitário". Em 1941, ao comentar uma entrevista de Hitler ao jornal "The New York Times", Martins diz que a maioria dos americanos já estava "imunizada" contra a retórica dele e do italiano Benito Mussolini. "Essas declarações só servem de pasto aos propagandistas tendenciosos como [o aviador pró-Alemanha] Charles Lindbergh."
Uma carta de dezembro de 1940, no entanto, indica que até então Vargas considerava o comunismo soviético uma ameaça maior do que o expansionismo alemão. Nela, o embaixador relata ao presidente ter cumprido a instrução de transmitir à Casa Branca a sugestão de que Roosevelt mediasse um acordo entre Reino Unido e Alemanha, a fim de evitar que "o perigo russo" tirasse proveito da guerra na Europa (em março daquele ano, Welles havia fracassado em mediar um acordo entre Berlim e Londres).
Na mesma mensagem, Martins mostra que a proposta de Vargas chegara atrasada e já havia sido descartada na prática pelo líder americano, para quem negociar não faria sentido enquanto as "nações agressoras" não abandonassem a "ideia de dominar" o mundo. "Como vê, caro presidente, os EUA vão tomando posição precisa no conflito, e creio não errar ao divisar a eventualidade de uma entrada na guerra ao lado da Inglaterra em futuro próximo."
 
JUDEUS E JAPONESES
 
Carlos Martins já era um diplomata experiente em 1939. Ele havia ingressado na carreira em 1906, quando não havia concurso para o Itamaraty. Promotor público em Pelotas, foi a Petrópolis entrevistar-se com o Barão do Rio Branco, trazendo uma carta de recomendação de Joaquim Francisco de Assis Brasil, líder republicano e ex-governador gaúcho. (Décadas depois, o embaixador compraria a casa do barão na cidade serrana do Estado do Rio, onde foi assinado o tratado que em 1903 garantiu ao Brasil a posse do Acre).
Enviado por Rio Branco a Berlim, Martins serviu depois em São Petersburgo e Viena, onde passou a Primeira Guerra Mundial. Estava em Londres quando Maria largou o primeiro marido, um escândalo na época, e foi para Paris em 1925. O pai da escultora, o jurista mineiro João Luís Alves, figurão da República Velha (foi senador e ministro da Justiça de Arthur Bernardes), teria então pedido ao embaixador para assisti-la na capital francesa. Lá os dois, que já haviam se conhecido no Brasil, passaram a viver juntos.
Nomeado para Quito no final dos anos 20, no governo de Washington Luís, Martins desertou do posto e voltou a Paris, com Maria grávida. Virou cônsul-geral em Amsterdã, função menor porque na época a carreira consular era separada da diplomática. Acabou reabilitado depois da Revolução de 1930, quando foi nomeado embaixador em Tóquio e em Bruxelas.
Ainda na República Velha, porém, ele foi encarregado pelo Itamaraty de estudar legislações migratórias e as descreveu em um livro, "Uma Política de Imigração", publicado em 1929. Na época, com o acirramento da disputa intraimperialista, vários governos haviam passado a controlar o ingresso de estrangeiros. Os EUA criaram um sistema de cotas que restringiu a quase zero a imigração de asiáticos. O Estado Novo, influenciado por setores antissemitas, adotaria restrições semelhantes. Nessa questão, Martins mostrou empatia com os refugiados do nazismo, mas não com os japoneses – no livro, ele endossa a percepção, então corrente nos países anglo-saxões, de que imigrantes asiáticos resistiam a se integrar às sociedades ocidentais.
De Washington, o embaixador encaminhou ao Brasil inúmeros pedidos de vistos para refugiados judeus do nazismo feitos por associações nos EUA, um deles assinado por Albert Einstein. Também transmitiu duas vezes a petição de um senador em favor de Arthur Ewert, comunista alemão preso na Intentona de 1935 e só libertado em 1947 (Ewert passou os anos seguintes em um hospital psiquiátrico na Alemanha). Em 1941, Martins "rogou" a Vargas uma solução para o caso de 95 judeus com visto vencido que haviam chegado ao Brasil no vapor Cabo de Horn. Dias depois, a polícia do Distrito Federal, dirigida por Filinto Müller, informou que 60 deles tinha sido impedidos de desembarcar pela Diretoria Nacional de Imigrações.
A professora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro, autora de "Cidadão do Mundo" (Edusp) e outros livros sobre antissemitismo no Brasil nos anos 30 e 40, acredita que Martins teve uma "interferência positiva" em favor dos refugiados europeus, sem chegar ao ativismo pró-imigrantes judeus de Luiz Martins de Souza Dantas, embaixador brasileiro em Paris durante o governo colaboracionista de Vichy. "A postura de Martins difere da dos antissemitas ferrenhos. Ele aparece em vários momentos tentando achar solução [para a questão dos refugiados], embora não esteja claro até que ponto desafiou a posição oficial na concessão de vistos."
No caso dos japoneses, foi diferente. Em ofício de março de 1942, Martins sugeriu que o Brasil deveria "limitar e fixar participações estranhas no seu desenvolvimento nacional, já que não lhe seria possível libertar-se, radicalmente, de suas ligações presentes com povos de tão difícil assimilação".
A correspondência era a propósito de reportagens do jornal americano "Evening Star" sobre a quinta coluna do Japão no Brasil. Os artigos sugeriam que Vargas iria adotar medida semelhante à de Roosevelt, que mandou retirar japoneses e seus descendentes da Costa Oeste americana e interná-los em campos longe do litoral, onde 120 mil pessoas foram mantidas até o fim da guerra. Martins achava que essa solução "passageira" não era a mais indicada para o Brasil, e sugeriu restrições de longo prazo à imigração asiática: "Parece tratar-se de um problema que deve ser encarado de forma mais ampla e definitiva; pois está provado (...) que existem nações sem o mínimo respeito pelos interesses e pela soberania de outras nações".
Milhares de imigrantes e brasileiros descendentes de cidadãos de países do Eixo acabaram detidos durante a guerra. Parte deles teve propriedades confiscadas. Outros tantos foram presos, em regime fechado ou semiaberto – a historiadora Priscila Ferreira Perazzo trata do tema em "Prisioneiros da Guerra: os Súditos do Eixo nos Campos de Concentração Brasileiros" (Humanitas).

REELEIÇÕES E ONU

Em 1939, quando Martins chegou aos EUA, o presidente Franklin Roosevelt estava desgastado com o desaquecimento da economia, fruto de uma tentativa de reduzir o déficit público logo depois de sua primeira reeleição, em 1936. O Partido Democrata havia mantido ampla maioria no Congresso nas eleições legislativas de 1938, mas muitos dos deputados governistas eram conservadores sulistas, desconfiados do New Deal e que frequentemente votavam com a oposição republicana.
O Congresso ameaçava cortar verbas das agências oficiais de emprego. Principal conselheiro de Roosevelt, Harry Hopkins era acusado de ter transformado esses programas em "órgãos de arregimentação eleitoral". Também era tachado de "comunista" pela Comissão Dies da Câmara, que investigava atividades antiamericanas e foi precursora do macarthismo. Em abril de 1939, a embaixada brasileira registra uma "greve do capital", precipitada pela nomeação de Hopkins para a pasta do Comércio. Em maio de 1940, Martins fala de um "ataque sistemático do Legislativo contra o New Deal, pelo temor de que o rooseveltianismo se perpetue no poder".
À medida que a situação na Europa se agrava, no entanto, o presidente americano recupera a iniciativa e vai dobrando os isolacionistas, para transformar os EUA no que chamou de "arsenal das democracias". "A popularidade de Roosevelt voltou a um novo auge e a campanha presidencial ficou submersa sob assuntos mais prementes [a guerra] e sob a torrente de adesão do país à liderança do presidente", relata o embaixador. Quando Roosevelt, enfim, obtém o terceiro mandato, a missão brasileira atribui a vitória às "habilidade insuperável e superioridade humana" dele. Em 1943, Martins prevê uma "transformação radical dos conceitos prévios do american way of life": "a esmola é abolida para dar lugar à assistência social do Estado".
Os ofícios também detalham as mudanças que a guerra engendrava na sociedade americana, contribuindo, por exemplo, para minar a segregação. "A escassez de mão de obra está tendo grande repercussão no problema da separação racial neste país. As uniões trabalhistas se recusavam a admitir empregados de cor em certas indústrias pela recusa do elemento branco de trabalhar em conjunto. Atualmente, embora aos empregados de cor sejam dadas, de preferência, ocupações braçais, já se nota uma tendência de abandono dessa prática discriminatória", conta Martins.
A emancipação feminina era outro efeito vislumbrado, à medida que o alistamento militar e a conversão da indústria à produção bélica reduziam o desemprego aos incapacitados, obrigando à importação de mexicanos para trabalhar na lavoura. "As mulheres povoam as fábricas de munição, de aeroplanos; dirigem tratores, semeiam os campos; nos grandes centros, dirigem automóveis de aluguel, bondes", descreve o embaixador.
Em novembro de 1944, quando o líder americano conquista o quarto mandato, a embaixada volta a comemorar. "Na decisiva vitória de Roosevelt, a opinião pública divisa o repúdio ao isolamento republicano e o apoio à política de cooperação internacional, amparada por assistência efetiva de elementos trabalhistas organizados", escreve Martins a Vargas.
Roosevelt, porém, morreria logo depois, em abril de 1945, em meio à organização da conferência que fundou a ONU em São Francisco. O embaixador comenta as diferenças entre o dirigente falecido e seu sucessor: "O presidente Truman será sensível à opinião pública americana, tendo por isso menos probabilidade de realizar compromissos com os outros dois líderes [o soviético Josef Stálin e o britânico Winston Churchill], orientação diferente da do presidente Roosevelt, que trabalhava ele próprio a opinião pública quando assim julgava necessário".
Em contexto diferente, o fato de o novo ocupante da Casa Branca ser mais suscetível aos humores do eleitorado – e menos confiante em seu poder de influenciá-lo - teve impacto para o Brasil. Em "O Sexto Membro Permanente – o Brasil e a Criação da ONU" (Contraponto), o diplomata e historiador Eugênio Vargas Garcia diz que a morte do presidente do New Deal "assinalou o fim de uma era" na relação bilateral. Primeiro, enterrou de vez a possibilidade de o país obter uma cadeira no Conselho de Segurança, hipótese levantada por Roosevelt em 1944. Depois, deixou o Brasil de fora da divisão dos despojos dos derrotados na Segunda Guerra.
Em junho de 1945, registra Eugênio Garcia, Martins revela frustração com o tratamento dado ao Brasil pela nova administração: "Desde São Francisco, procurei, por intermédio de amigos que gozam da intimidade do presidente Truman, fazer-lhe sentir que esperávamos, agora que terminara a guerra na Europa, que se efetuasse o prometido fornecimento de materiais e auxílio indispensável ao desenvolvimento da economia nacional. Manifestei-lhes mesmo certo descontentamento com o modo pelo qual o assunto vem sendo tratado pelo Departamento de Estado", diz o embaixador em carta a Getúlio Vargas. Com a Guerra Fria no horizonte, afirma Eugênio Garcia, "o novo governo americano perdeu o interesse no desejo brasileiro por uma parceria que deslanchasse a industrialização do país, com volumosos aportes de capitais externos".

DESPEDIDA

O entusiasmo popular pelos Aliados, compartilhado por comunistas e liberais, catalisou a pressão pela democratização do Brasil e precipitou a queda de Getúlio Vargas. Sem o amigo no Catete, Martins chegou a oferecer seu cargo ao governo interino, mas acabou mantido em Washington até 1948, quando, a contragosto, foi transferido para Paris. De volta ao Brasil no fim do ano seguinte, ao atingir a idade da aposentadora compulsória – 65 anos -, ele e Maria davam jantares no apartamento do Flamengo, servindo o estoque de champanhe trazido da França. Enturmado com a alta sociedade da época, incluindo empresários que prosperaram sob o varguismo, o embaixador acabou no conselho de empresas, como a Belgo Mineira, e do jornal getulista "Última Hora".
Em maio de 1954, de volta à Presidência e dois meses antes do seu suicídio, Vargas indicou Martins para chefiar a delegação que representou o país num congresso da União Latina em Madri. De lá, Maria mandou ao "muito querido amigo" presidente uma longa carta, em que o cumprimentava pelo discurso de 1º de Maio: "O senhor conhece a minha inclinação pelo governo forte, dependendo de quem é governo, e, como trabalhista, grande prazer causou-me o salário mínimo".
Em plena Guerra Fria, a artista descreve uma Europa "apavorada e dividida" entre a União Soviética "forte, mas receosa do desconhecido" e os Estados Unidos "místico e como todo místico, histérico". "Sem o menor vislumbre de dúvida na América do Norte reside a grande força e a grande fraqueza", diz ela, sendo a primeira o "potencial material e individual do povo" e a segunda, a "histeria coletiva desencadeada pelos McCarthy, levada ao extremo e armada de poderes sem limites e de armas de destruição em massa".
Irreverente, Maria ironiza a delegação brasileira, dividida entre simpatizantes da França gaullista e da Espanha franquista, os dois países que disputavam a liderança da União Latina: "Se não fosse pelo senso do chefe da delegação [Martins], que busca contornar qualquer exagero, assistiríamos diariamente aos mais divertidos espetáculos. A comédia aqui é igual em toda parte, meu caro presidente".




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