O homem nu compreenderá

May 23, 2017 | Autor: E. Viveiros de Ca... | Categoria: Fotografia, Etnologia Indígena, Antropologia
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O homem nu compreenderá Eduardo Viveiros de Castro

As fotografias xinguanas de Maureen Bisilliat propõem uma proximidade quase tátil entre o espectador e essa verdade cabal da cultura indígena: a onipresença do corpo como horizonte do sensível. Singular e múltiplo, matéria e instrumento, suporte e contorno, massa e movimento, espessura e textura, colorido e escuridão – ao mesmo tempo objeto primordial da ação humana e seu sujeito consubstancial, o corpo ali se dá, ou antes, se constrói como limite íntimo de toda forma e imagem última de todo conteúdo. O corpo humano como viés pelo qual a cultura índia não apenas exprime a posteriori, mas imagina a priori a experiência. O corpo como esquema dominante, enfim (como metaesquema?), do que costuma ser chamado o “espírito” de uma cultura, o espírito dessa cultura. Oswald de Andrade afirmava1 que o Novo Mundo apresentou ao europeu, homem filosoficamente vestido, a verdade filosófica do “homem nu”, entenda-se, a possibilidade de uma relação nua do homem com a verdade. Uma das declinações desta verdade já se lia na frase lapidar do Manifesto antropófago de 1929: “o espírito se recusa a conceber o espírito sem o corpo”. Mas o verbo conceber, quando se aplica a fórmula à concepção indígena do humano, precisaria ser tomado em seu duplo sentido, espiritual e corporal, uma vez que se trata ali tanto do conceito do corpo em geral quanto do conceito em geral como corpo: é inconcebível uma incorpórea concepção. O corpo índio é ao mesmo tempo a imaginação primordial do espírito, e a principal imagem em que consiste o espírito – o espírito é a ideia do corpo, diria Spinoza. E se “o mais profundo é a pele”, para evocarmos outra fórmula célebre, esta de Valéry, seria então o caso de sustentar que, para os índios, o mais espiritual é o corpo? Talvez, mas também, e talvez melhor, o contrário: o mais corporal é o espírito. Pois hesitemos antes de imaginar, nós, o corpo indígena como mais outro avatar da milenar antropotecnia cristológica da “encarnação”, que persiste hoje, por exemplo, na neofenomenologia do embodiment, a qual, em última análise, celebra o corpo enquanto ele é redimido pelo espírito, na medida em que assume as funções transcendentes do espírito. Na antropologia indígena, ao contrário, a distinção entre o corporal e o espiritual é recursiva, relativa e perspectiva, não absoluta e valorativa: o espírito do espírito é o corpo, assim como o corpo do corpo é o espírito. Um Nambiquara explicava à etnóloga 1

“Mensagem ao antropófago desconhecido (da França Antártica)” [1946]. In Estética e política. 2a. ed. São Paulo: Globo, 2011, pp. 447-449.

Joana Miller: “o espírito é a parte do corpo que a gente não vê”.2 Figure-se então como as coisas se passam com aqueles seres cujo corpo a gente não vê, como os inumeráveis espíritos que se revelam/ocultam (que transparecem) sob corpos outros que os humanos. Assim, por exemplo, a etnologia recente nos ensina que a elaboradíssima aparência desse corpo enganadoramente nu dos povos do Alto Xingu (esses mesmos que Maureen Bisilliat nos traz aos olhos), desde a doutrina das substâncias que o ameaçam e das disciplinas que o fortalecem até as pinturas, os óleos, a joalheria plumária e as máscaras que o cobrem nas cerimônias, é uma imagem dos espíritos que povoam o cosmos xinguano. Os homens se pintam e adornam como os espíritos; não como os espíritos são, mas como os espíritos fazem: as máscaras que os primeiros portam não reproduzem o rosto e o corpo nus dos segundos, mas sim as máscaras – e pinturas etc. – que estes, os espíritos eles mesmos, usam.3 A verdade é a máscara da máscara; o homem nu é o homem que sabe se vestir. Esse homem “nu” de Oswald de Andrade não é um homem meramente despido, mas aquele que se veste como quem se instrumenta, não como quem se esconde. É aquele que leva a corporalidade filosoficamente a sério, não negando a matéria em nome do espírito. O homem nu é aquele que está em relação corpo a corpo com a verdade. Ora, a primeira verdade do “homem nu” ameríndio é a evidência do espírito, a apreensão do real como um tecido de vontades, um campo vibratório de intencionalidades, um labirinto de suscetibilidades. Essa é a verdade cósmica, logo humana, e reciprocamente. O que se costuma chamar de animismo dos povos ditos selvagens (isto é, outramente civilizados) é a pressuposição de que sob toda coisa transparece uma pessoa; a universal “recusa de conceber o espírito sem o corpo” replica-se ali pela decisão de conceber todo corpo, humano ou não humano, como índice virtual de um espírito. O corpo propriamente humano — o corpo etnicamente singularizado — então se torna uma verdade a inventar, não simplesmente a descobrir (a desnudar). As sociedades indígenas dedicam por isso uma atenção dispendiosa, minuciosa, cruel mesmo, aos corpos, em um esforço incessante de suscitar e conduzir favoravelmente o poder intrínseco da corporalidade, o poder de determinar e particularizar o genérico e indiferenciado substrato anímico universal. O animismo teórico do pensamento indígena impõe um somatismo metódico, e a consequente elaboração de uma sofisticada tecnologia do corpo. Como este livro atesta, o nu se conquista.

 MILLER, J. “Things as Persons: Body Ornaments and Alterity among the Mamaindê (Nambikwara)”. In:

2

SANTOS-

F. (org.). The Occult Life of Things. Native Amazonian Theories of Materiality and Personhood. Tucson: The University of Arizona Press, 2009. GRANERO,

 Ver BARCELOS NETO, A. Apapaaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo: Fapesp, 2008.

3

A fórmula do Manifesto oswaldiano resume, sem dúvida, um dos gestos decisivos da filosofia da época em que ele foi escrito, o grande século de Nietzsche e de Marx, da psicanálise e da fenomenologia: o movimento de descida corpórea da razão humana, seu enraizamento nas profundezas do orgânico e do material. Mas seu autor fazia remontar a mais alguns séculos esse gesto, até o primeiro confronto do pensamento europeu com a “Weltanschauung antropofágica” dos índios brasileiros. Oswald via ali a inspiração originária do processo de demolição, pela demoníaca trindade Marx-Nietzsche-Freud e além, de uma das antinomias fundadoras da cultura ocidental, aquela entre o corpo, plano infernal do desejo e da necessidade, e o espírito, plano etéreo da razão e da liberdade. A antropofagia oswaldiana, conceito que indistingue deliberadamente os sentidos literal e figurado de uma prática supostamente típica dos povos de Pindorama, é a generalização ética, estética e sobretudo política dessa antropologia inaudita com que a Europa se defrontou ao invadir a América, e que deu o impulso inicial à “marcha das utopias”, à insaciável vontade de recriação do humano que marca a história ocidental desde o século

XVI.

Nesta outra figura do anthropos

com que a América indígena acenava à velha Europa, o lógico se via universalmente determinado pelo fágico, a predicação aparecia como um caso da manducação; a fala era um momento da fome, a logofagia branca (“o homem europeu falou demais”) era respondida por uma fagologia índia, o antropofalocentrismo europeu devorado por um antropofagomorfismo americano. A antropofagia oswaldiana, essa fulgurante equivocidade entre uma cosmopraxis indígena milenar e o turbilhão revolucionário da modernidade tardia, revela-se assim uma das primeiras “políticas do corpo” e umas das mais originais “biopolíticas” elaboradas no século XX.4

*** Rever as imagens de Maureen Bisilliat me transporta ao Alto Xingu. Estive algumas vezes na região entre 1975 e 1977, mais ou menos na mesma época em que estas fotografias foram feitas. Muitos dos rostos que aqui aparecem me são familiares, como os de Aritana, Paru e Sariruá, este último retratado esplendidamente em primeiríssimo plano, majestoso como uma cabeça olmeca, imagem colossal da grandeza pré-colombiana (p. 89). A importância do corpo na cultura xinguana foi o assunto de meus primeiros trabalhos; por isso, eu talvez esteja contemplando estas fotos com o olhar do etnólogo iniciante, apegado a uma intuição temática

 A teoria do “homem nu” do genial paulista não deixa de antecipar, por exemplo – ao mesmo tempo em que a subverte de múltiplas maneiras – a noção de “vida nua” de Giorgio Agamben, hoje tão em voga. Um dia o século 4

será oswaldiano.

simplificadora e ultrapassada.5 Mesmo assim, parece-me ainda hoje que o que vi então – minha primeira visão de um mundo indígena foi esse mundo indígena da visão que é o Alto Xingu – reaparece aqui com toda a força evocativa: essa atmosfera ao mesmo tempo dramática e hierática, a mistura de sobriedade e exuberância, o jogo entre a plasticidade dinâmica dos corpos em combate e a simetria hipergeométrica dos artefatos (o quadrilhado parabólico das casas, a espiral galáctica do beiju), o contraste marcado de luzes altas e de sombras profundas, a paleta completa das cores quentes (interrompida ocasionalmente por um súbito azul) centrada no marrom-avermelhado do urucum, a sensação de que a pele humana se confunde com a superfície de tudo. As fotografias escolhidas para este livro ressaltam ao máximo tal dramaticidade. Há relativamente poucas imagens da faina cotidiana e cenas da intimidade familiar – ou melhor, as aqui mostradas se revestem, em razão da iluminação violentamente caravaggiana da casa xinguana, de um mistério inquietante (p. 23, por exemplo). Não vejo quase nenhum registro da presença invasiva da sociedade dos brancos, que já então era mais do que avassaladora, sem ter ainda – como fica óbvio – corroído e dissolvido a fisionomia da cultura xinguana.6 O trabalho de Maureen vai, quanto a isso, na contramão do documentalismo e da reportagem de denúncia que marcaram a fotografia a partir, digamos, dos anos 30 do século passado. Há um único momento de fotojornalismo neste ensaio, uma única alusão, de forte impacto, é verdade, à história recente do Alto Xingu, com a imagem de Orlando Villas Bôas deixando o Parque, como se pela última vez (p. 11). Em troca, Maureen Bisilliat nos oferece uma visão completamente materialista do mundo indígena. Talvez seja essa a caracterização mais apropriada de seu trabalho. Como nota Pedro Cesarino em seu estudo ao fim deste volume, se o trabalho da outra grande fotógrafa dos índios contemporâneos, Claudia Andujar, busca o espírito dos Yanomami, apontando sua câmera para dentro, para a aura diáfana que envolve o visível, Maureen Bisilliat calibra nosso olhar para pousá-lo na exterioridade material pura, nesta evidência supremamente visível que é o corpo xinguano. (Talvez não por acaso, os Yanomami são uma gente grácil e delgada, enquanto os índios do Alto Xingu, uma raça maciça e imponente.) A série memorável dos torsos pintados, os retratos, as silhuetas em claro-escuro, a sequência da monumental andromaquia (pp. 84-94) que é o ápice plástico do livro – as fotos de Maureen Bisilliat fizeram da cultura visual, e sobretudo corporal, xinguana um ícone de

 Esses escritos foram condensados em “Esboço de cosmologia yawalapíti”, capítulo I de A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify 2002. 5

 O que, salvo engano, continua a ser o caso.

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nossa paisagem mental. Suas fotos são imediatamente identificáveis; seu estilo e o estilo visual xinguano ficaram impressos na memória brasileira. Sobre esse(s) estilo(s). Considere-se a imagem da página 3 (detalhe da p. 91), com seu duplo diálogo nariz-pênis e braço-cinto (a foto completa inclui o jogo das mãos). Considere-se a panorâmica da aldeia (p. 13) na estação seca, a fria manhã toldada pela fumaça das roças, o tamanho desconforme de um céu que apequena o sol. Considere-se ainda a delicada paisagem “japonesa” da p. 71, em que tudo evoca as estampas do gênero Ukyio-e. Destaco essas três imagens em preto e branco, pois o trabalho de Maureen no Xingu era sobretudo conhecido pelas fotos coloridas, que aqui se completam por uma magnífica série monocromática. As cenas de interior. A iluminação muito peculiar das imensas casas coletivas xinguanas – chamá-las “malocas”, como se costuma fazer, quando elas se parecem muito mais com catedrais, é de uma impropriedade linguística suspeita – dá às imagens tomadas no interior, quase sempre nas proximidades das portas, um tom teatral e barroco. A luz do sol entrando pela porta estreita e baixa, batendo no chão arenoso, cinza-claro de fuligem, incide sobre as cenas e os corpos de maneira violentamente lateral ou se reflete de baixo para cima, impondo dramaticidade e tensão mesmo a cenas do cotidiano mais banal (vejam-se as fotos “azuis” da p. 22). O contraste entre a luz tropical do pátio, que cai verticalmente sobre tudo, e essa luz duplamente invertida da casa grande, com seu predomínio de sombras e volumes escuros, exprime a mudança drástica de atmosfera que se experimenta ao passar de um pátio xinguano para dentro de uma casa e vice-versa. O pequeno espaço à volta da porta, dentro da casa, lugar de predileção para os trabalhos manuais e a preparação cosmética do corpo, mostra-se assim um frágil equilíbrio entre a luz absoluta do fora e a escuridão crescente do dentro. Os primeiros planos de rostos ou de corpos de muito perto – do plano americano à invasão total do quadro pela superfície das costas ou do peito – pontuam o livro com sua dramaticidade. Talvez não seja descabido sugerir que esses retratos e closes de Maureen Bisilliat são uma antítese do retrato tipológico do século

XIX,

marcado por uma ênfase

“científica” na despersonalização e na busca dos traços típicos, fisicos ou culturais. Os closes de Maureen seriam como nomes próprios fotográficos, em contraposição aos etnônimos fotográficos da prática novecentista, com suas fotos que eram como nomes genéricos, nomes de povos – nomes que, como se sabe, raramente são usados pelos assim designados. O estilo da autora, entretanto, representa no meu entender uma antítese sui generis, pois também está nas antípodas do fotojornalismo. As fotos de Maureen indicam o caminho de uma outra estilização, um outro formalismo – um formalismo radicalmente materialista, como disse acima

– que se afasta tanto do conteudismo formalista da fotografia museográfica do século

XIX

quanto do materialismo conteudista do fotojornalismo sociológico do século XX. *** Nunca mais voltei ao Alto Xingu, depois de 1977. Pergunto-me se as imagens que Maureen Bisilliat nos mostra seriam hoje possíveis, ou se elas pertencem já a uma outra época, que em breve será tão distante como as de Frisch, Ferrez ou Manzon. Essa questão diz respeito tanto à persistência do “visual” (da atmosfera e da fisionomia, da anatomia e do vestuário) do Alto Xingu nos mesmos termos de 35 anos atrás, como à pertinência mesma da atividade que gerou estas imagens – um ensaio fotográfico sobre povos que, naquela época, definiam-se pela ocupação inequívoca e não reversível da posição de objetos da contemplação imagética por parte dos brancos. Já há algum tempo os índios se apropriaram dos instrumentos de produção e criação de imagens; a fotografia e o cinema feitos por brancos, sobre índios, para brancos não são mais uma atividade autoevidente. No caso do Alto Xingu, o que mudou terá sido menos, talvez, a “ecologia” visual que a “economia” visual – as relações de produção imagética. Remeto o leitor à coluna de meu amigo José Ribamar Bessa Freire, a imperdível Taqui pra ti (http://www.taquiprati.com.br), de 27 de maio de 2012, intitulada “Os índios do século

XXI”.

Ela começa assim (lembro que os Kamayurá são um dos povos do Alto Xingu): “Índio quer tecnologia” – berra O Globo, em chamada de primeira página (25/05). Lá está a foto de um guerreiro Kamayurá, que usa um iPhone para fotografar o terreno da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde será construída a aldeia Kari-Oca que vai sediar eventos paralelos da Conferência Rio + 20. Ele viajou de barco e de ônibus, durante três dias, com mais vinte índios do Alto Xingu, de quatro nações diferentes. Chegaram na última quinta-feira, para construir a aldeia Kari-Oca.

Bessa, naturalmente, demole o preconceito etnocêntrico e o desprezo folclorizante que a mídia do Brasil volta aos índios que insistem em passar para o outro lado da objetiva. O homem vestido insiste, realmente, em não entender. “Xingu”, hoje, é palavra que nos remete às obras da hidrelétrica de Belo Monte, que começam a destruir o rio da diversidade nacional, mais do que aos índios de Maureen Bisilliat. Mas eles continuam lá. E agora, cá. O homem nu compreenderá. O Kamayurá.

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