O humano e o inumano nos cavaleiros de Cervantes e Calvino: uma análise comparada.

September 23, 2017 | Autor: Giordana Medeiros | Categoria: Literature
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O humano e o inumano nos cavaleiros de Cervantes e Calvino: uma análise
comparada.

Giordana Maria Bonifácio Medeiros
Graduanda de Letras Português
da Universidade de Brasília/UNB




A presente obra pretende analisar as similitudes e discrepâncias
das obras de Cevantes e Calvino, com enfoque especial em suas
personagens singulares: Dom Quixote e Agilulfo. O caráter humano
e inumano de cada um. A razão e a fantasia que se contrapõem
nessas obras satíricas que levam ao riso. Os dois paladinos
procuravam reconhecimento pelos seus feitos. E nessa semelhança
de objetivos diversa foi sua forma de encontrá-los. É esse
diálogo entre essa e aquela obra que ora se pretende fazer. A
busca do inumano e do humano nas linhas destas maravilhosas
obras-de-arte.

Palavras-chave: Ítalo Calvino, O cavaleiro inexistente, Miguel
de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha, Intertextualidade.

A obra de Cervantes há pouco tempo foi eleita o romance de maior
importância da cultura mundial. É uma crítica satírica aos romances de
cavalaria. E Cervantes segue nos mínimos detalhes a fórmula consagrada
deste tipo de obra. Ou seja: apresar de Dom Quixote partir em busca de
aventuras essas ocorrem ao acaso, nas palavras de Bakhtin, "ele é um
aventureiro, mas um aventureiro desinteressado e por sua própria natureza,
ele só pode viver nesse mundo de coincidências maravilhosas e nelas
conservar sua identidade". Continua mencionando que "o próprio "código" (ao
qual Dom Quixote se refere várias vezes no decorrer da história), pelo qual
se mede a identidade do cavaleiro, é concebido justamente para esse mundo
de coincidências maravilhosas." (BAKHTIN, 2010, p. 269).
A história de um cômico cavaleiro que roda a Espanha em busca de
aventuras e de ser reconhecido por seus feitos, além de divertir é uma arma
de crítica social. O simples retrato antagônico do cavaleiro, Dom Quixote,
um fidalgo como bem diz, com seu escudeiro, Sancho Pança, um homem sem
instrução e pobre, já salienta as condições de desigualdades que já existem
desde tempos imemoriais. Sancho era a ponte de seu amo com a realidade. Dom
Quixote, que detém a fidelidade de seu escudeiro com promessas de presenteá-
lo com uma ínsula, era o sonhador. Romântico, tornou-se símbolo do amor
platônico e sua história é amplamente estudada e parodiada. Nesse seu mundo
fantasioso, que é aquele que ele aprendeu nos livros, pretende realizar
fatos heroicos que lhe glorifiquem "e pelos quais ele glorifique também os
outros (os suseranos, a dama)" (BAKHTIN, 2010, p. 269). Não é por menos que
destina aos que salva a prestar glórias a Dulcinéia Del Tolboso. E também
por isso, que promete riquezas e amplo reconhecimento ao seu ingênuo
escudeiro, Sancho Pança.
Dom Quixote, ao contrário de Agilulfo é o homem sob a armadura. Ser
imperfeito e dotado de sentimentos e cheio de sonhos, como alcançar a
notoriedade que seus prestimosos livros de cavalaria prometiam. Agilulfo
era o cavaleiro perfeito, com sua alva armadura, esgrima imponente e
conhecimento técnico da ordem de cavalaria, representava a impossibilidade
da perfeição humana. Enquanto o escudeiro do Cavaleiro da Triste Figura era
a âncora de seu amo com a realidade, o escudeiro de Agilulfo era o louco,
sem identidade certa, regido por seus instintos primevos. Era o contraponto
da racionalidade do Cavaleiro inexistente. Na verdade aquele fazia o papel
do bobo, tanto quanto Sancho, aos quais não devemos considerar sem
importância na obra em si. Segundo Bakhtin: "não se pode entendê-los (os
bobos) literalmente, eles não são o que parecem ser; a existência deles é o
reflexo de alguma outra existência, reflexo indireto por sinal." (BAKHTIN,
2010, p. 276). Não é para menos que ambos os bobos (Sancho e Gurdulu) que
assumem o papel coadjuvante destas peças são tão diversos de seus amos.
Gurdulu não tinha morada nem destino, seguia as armadas de Carlos
Magno simplesmente para conseguir alimento. Foi destinado a tornar-se
escudeiro de Agilulfo como uma pequena vingança dos companheiros deste
último que tanto o invejavam. Sancho entra na história contratado por Dom
Quixote para auxiliar-lhe em suas aventuras. Mas ambos os escudeiros
assumem o mesmo comportamento na trama, o de contrapor o Cavaleiro a quem
servem. Conforme Bakhtin:
"O autor utiliza da figura do bufão e do bobo (que não
compreendem a convenção deplorável da ingenuidade), na
luta contra o convencionalismo e da inadequação das formas
de vida existentes (...) Eles se dão o direito de não
compreender de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a
vida e o direito de falar parodiando, de não ser literal,
de não ser o próprio indivíduo, (...) de representar a
vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito
de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o direito
de tornar pública a vida privada com todos os seus
segredos íntimos." (BAKHTIN, 2010, p. 278)


Não é por menos que as frases mais dignas de crítica social vêm dos
lábios de Sancho e não de Dom Quixote. Ao cavaleiro, não é dado reclamar da
sorte do povo. Mas eis que o escudeiro, o bobo, é livre para discursar,
mesmo que indiretamente, contra a terrível estrutura social. Por tal razão
os autores das obras em epígrafe não se desfizeram da possibilidade de
conferir escudeiros tão singulares aos seus cavaleiros.
Enquanto a figura do Cavaleiro da Triste Figura era o do humano; na
sobremedida das coisas, do cavaleiro atrapalhado e desajeitado a quem a
sorte presenteou com pedras e desacato; Agilulfo era o inumano que
procurava a perfeição do homem. O objetivo do de Dom Quixote era estar
perto de figuras de sua fantasia. O de Agilulfo, a proximidade de uma
condição que é inalcançável. Um é a impossibilidade outro a possibilidade
cômica da representação do cavaleiro. Porém, ambos foram perseguidos, um
por sua satírica personagem, outro por sua perfeição inigualável. Rimos de
Dom Quixote por sua situação de alucinado, de sua busca infrutífera de
reconhecimento, e de Agilulfo por sua severidade que nos induz a reafirmar
sua inexistência. Quixote está mais próximo de nós. Tão suscetível quanto
desajeitado e fraco como nós somos.
Alfredo Bosi considera que "o humor de Cervantes não
somente nos faz rir "do Quixote que se lança aos moinhos",
mas refletir sobre "[...] o nosso riso diante deste
Cavaleiro da Triste Figura, obstinado em seu sonho de
justiça, em perene desencontro com a substância mesma da
sociedade humana, compromisso onde ideal e loucura acabam
compondo a mesma face." Afinal, Dom Quixote não apenas
desconstruiu o arquétipo tradicional do cavaleiro andante,
mas revelou dele uma face desconhecida, que o mostra na
fragilidade da sua loucura e da sua fantástica e
extraordinária imaginação. Além disso, possuindo uma
nobreza ímpar de ideias, palavras, ações e sentimentos, o
Cavaleiro da Triste Figura revela a grandeza de caráter
dos heroicos cavaleiros dos livros que lera, os quais não
mais existem na realidade concreta do seu tempo, o que
provoca a ironia e o sorriso sarcástico do narrador,
criando o clima de humor da narrativa, que nos convida a
refletir sobre a verdadeira natureza humana." (BOSI apud
MICALI, pag.3 )


E Agilulfo, por sua vez, nos leva ao riso em razão do exagerado rigor.
É um personagem de comportamento tão nobre e escorreito que só pode
provocar a pilhéria de seus companheiros. Era um paladino exemplar, que se
destacava por seus feitos e também pelo fato de ser tão somente uma
armadura oca e sem vida. Recusa os amores da grande guerreira Bradamante e
mantém-se incólume em sua honestidade. É o cavaleiro perfeito, contudo, tem
uma falta que não pode suprimir: ele não vive. Em uma parte do livro ao
recolher os corpos dos vencidos em batalhas Agilulfo arrasta o morto e
pensa:
"Ó morto, você tem aquilo que jamais tive nem terei: esta
carcaça. Ou seja, você não tem: você é essa carcaça, isto
é, aquilo que às vezes, nos momentos de melancolia, me
surpreendo a invejar nos homens existentes. Grande coisa!
Posso bem considerar-me privilegiado, eu que posso passar
sem ela e fazer de tudo. –Tudo se entende – aquilo que me
parece mais importante; e muitas coisas consigo fazer
melhor que aqueles que existem, sem seus habituais
defeitos de grosseria, aproximação, incoerência, fedor. É
verdade que quem existe põe sempre alguma coisa de seu no
que faz, um sinal particular, que não conseguirei jamais
imprimir. Mas, se o segredo deles está aqui, neste saco de
tripas, muito obrigado, não me faz falta. Este vale de
corpos nus que se desagregam não me provoca mais arrepios
que o açougue do gênero humano." (Calvino, 1993, p. 55-
56).


A personagem de Agilulfo resta nessa contradição de invejar e ojerizar
os vivos. É o cavaleiro inexistente que não pode se gabar nem da Triste
Figura que tem Dom Quixote tão logo perde os dentes, (por tal razão, assim
sendo nomeado por Sancho). Ocorre que o paladino de Calvino tem feitos a
contar e fama dentre seus iguais. Dom Quixote quer ser reconhecido
cavaleiro, numa fantasiosa ideia que necessitaria tão somente de ser
nomeado e pelejar contra inimigos imaginários, como a célebre passagem dos
moinhos de vento. (Gigantes em sua errônea concepção). Tem como elmo uma
bacia de barbeiro, uma armadura de lata e um rocim velho e magro que foi
rejeitado até pelo vilão que furta o jumento de Sancho. O desumano herói
oco recebe as glórias por seus feitos, o humano e cômico da Triste Figura é
recompensado com pedradas pelos que tenta salvar das Galés.
Na paródia Quixotiana, a sátira está em fazer de fábula o real e a de
Calvino está de fazer o real de fábula. A última foi escrita por uma freira
(no final revelada a linda e valente guerreira Bradamante) a de Dom
Quixote, por inúmeros escritores que contaram os feitos "heroicos" desse
desastrado cavaleiro. Agilulfo não tinha um amor por quem suspirar,
enquanto Dom Quixote criou para si uma donzela a quem dedicar seus feitos:
a Dona Dulcinéia del Tolboso, informando mais tarde tratar-se de Aldonza
Lorenzo uma simples camponesa de El Toboso. O amor é um sentimento que
humaniza Dom Quixote, muito embora esse venha a ser inventado. Enquanto o
fato de não poder amar separa o Cavaleiro Inexistente do gênero humano. O
burlesco está representado pela união de dois cavaleiros não convencionais
como o são, cada um de sua maneira, Dom Quixote e Agilulfo, a escudeiros
tão pitorescos como Sancho Pança e Gurdulu. Afirma Micali:
"Semelhante a D. Quixote e Sancho, Agilulfo e Gurdulu
formam um par cômico (carnavalesco) na história narrada, o
que se deve, em grande parte, ao contraste físico e
comportamental entre um e outro. Especialmente o
personagem Gurdulu, por não ter consciência da própria
existência, age de maneira extravagante, uma vez que
desfruta de liberdade total, não obedecendo a quaisquer
regras ou convenções sociais, justamente em oposição ao
seu amo, Agilulfo, que vive estritamente de acordo com os
preceitos éticos da cavalaria." (MICALI, 2008, p. 05).


E essa contraposição entre personagens faz de ambas, obras satíricas
que ironizam a realidade e as histórias de cavalaria em que se baseiam. Mas
há sempre o contraponto, a âncora com a realidade que surge dos personagens
do padre e do barbeiro que tentam trazer lucidez para o desvairado
Cavaleiro da Triste Figura, e também de Torrismundo que duvida dos feitos
do Cavaleiro inexistente, conforme fica claro no seguinte trecho: "Que
nada. É tudo história... Não existe ele nem as coisas que faz e nem aquelas
que ele diz, nada, nada."(CALVINO, 1993, p.66). O padre e o barbeiro
promovem a queima dos livros que enlouqueceram seu amigo. Torrismundo, o
fim de Agilulfo. São esses personagens que tentam subjugar a fantasia
nessas duas obras. O homem que existe, se dá conta de sua sandice e o que
não existe, que jamais existiu. Esse é o fim dos cavaleiros, dois paladinos
da justiça destruídos pelo peso da realidade.
Micali tece uma comparação entre os dois cavaleiros realçando as
divergências aqui relatadas:

"Uma comparação entre Quixote e Agilulfo revela uma
oposição frontal entre ambos, uma vez que o primeiro é
tido como um cavaleiro de carne e osso, i.e., "real" –
mesmo considerando o fato dele, estando no plano da
realidade, viver mais no mundo da imaginação, ou melhor,
no "mundo da lua" –, enquanto o segundo "vive" somente no
mundo das coisas concretas, exatas, palpáveis, do mundo
real e histórico, embora ele próprio seja pura ficção, uma
vez que não existe de fato. Mas, enquanto D. Quixote
acredita em bruxas, feiticeiros e nigromantes com seus
encantamentos traiçoeiros, Agilulfo é movido apenas por
raciocínios lógicos, exatos e imparciais, mostrando-se um
cavaleiro objetivo, preso à mais pura realidade."(MICALI,
2008, p. 07)


O humano e o inumano se antagonizam. Um vive na fantasia e se perde no
mundo das coisas impalpáveis, enquanto o outro, que não vive sequer, está
preso à realidade e exatidão da razão. Também seus escudeiros se rivalizam.
Um finge acreditar nas loucuras de seu amo em função da ínsula que pretende
receber enquanto o outro nem sabe se está a seguir Agilulfo, tão insano o
é. Muitas vezes se afasta de seu amo, pois com frequência perde o caminho,
devido às distrações de sua mente inconsequente. Somente se igualam estes
dois singulares escudeiros no tamanho de sua barriga e apetite. Essas
discrepâncias e semelhanças contribuem para o diálogo entre as duas obras.
Há uma intertextualidade veemente, é certo que uma obra reporta a outra.
Talvez tão somente por culpa de Calvino, tendo em vista que Cervantes não
poderia conhecer O cavaleiro inexistente do italiano.
O fato é que atualmente não há como ler um desses livros sem se
reportar automaticamente a outro. A racionalidade e a loucura, a fantasia e
o real. São estes os contrapontos que restam após a leitura e a reflexão
dessas obras. Ocorre que não se consegue separar essas características tão
discrepantes, que se fundem no decorrer dessas histórias. Não há como
discernir entre elas e fica patente que essa era mesmo a intenção dos
autores. Conforme a narradora do Cavaleiro inexistente inventada por
Calvino ressalta: "[...] ao que relatam cronistas e contadores de histórias
se sabe que é preciso fazer ressalvas [...]" (CALVINO, 1993, p.74). O
inumano e o humano se contrapõem, pois um está preso à racionalidade dos
fatos históricos e outro lançado ao devaneio de uma vida de fantasias.
Ocorre que, muito embora se divirjam nesses aspectos, a semelhança de sua
busca deixa claro o necessário exame comparado das duas obras: ambos
queriam a glória por seus feitos como cavaleiros. Cada um procurava isto a
sua maneira. É certo que conseguiram, como comprova o presente estudo, que
debate a similitude das desventuras destes grandes heróis literários.




Bibliografia:
BAKHTIN, Mikail, Questões de literatura e de estética, São Paulo: Hucitec,
2010.

CALVINO, Ítalo, O cavaleiro inexistente, São Paulo: Companhia das letras,
1993.

CERVANTES, Miguel de, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha, livro
I, São Paulo: Editora 34, 2010.

MICALI, Danilo Luiz Carlos, O diálogo entre Calvino e Cervantes no romance
O Cavaleiro Inexistente. Disponível em
http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/003/DANIL
O_MICALI.pdf


SILVA, Flávio Alves, A metamorfose paródica dos cavaleiros: um breve estudo
comparativo. Disponível em:
http://flaviodasilva.blogspot.com.br/2008/03/metamorfose-pardica-dos-
cavaleiros-um.html
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