O humano indizível e os museus

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REVISTA MUSEU ISSN 1981-6332 18/5/2017 https://www.revistamuseu.com.br/site/br/artigos/18-de-maio/1722017.html?start=10 O humano indizível e os museus

Pedro Paulo A. Funari [1]

Os museus e as narrativas contrapostas, esse o tema de 2017, da Semana de Museus. Antes de tratar da especificidade dos museus, convém debruçar-se sobre a questão mais geral das narrativas controversas. De fato, as sociedades são caracterizadas pela diversidade de grupos e interesses, tanto mais nas modernas e complexas. Desde a maior antiguidade, nos milhões de anos da pré-história, desde os primeiros hominídeos, há evidências de hierarquias e de complexidade, indutora de divergência e contraposição. Os nossos antecessores diretos, da mesma espécie, o homo sapiens, produziram abundantes evidência de conflito intergrupais, naquilo que viria a ser denominado de guerra, mas também de dissenções internas, chamadas depois de guerras civis.

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Há, pois, um cerne de dissenção no ser humano. Heráclito (535475 a.C.), o pensador grego, viria a dizer que πόλεμος πάντων μὲν πατήρ ἐστι, o conflito é o pai de tudo. Sigmund Freud, em tempos modernos, ligaria a vida em sociedade (Kultur) e a insatisfação (Unbehagen), causada por conflitos (Konflikten) interiores. No meio tempo, pensadores como Karl Marx viriam a colocar a luta de classes no centro da História e a mesma luta estaria no título e no ideário de Hitler, no Mein Kampf (Minha Luta). Há, pois, pouca dúvida, que a luta, o conflito e a guerra estão com o ser humano desde sempre.

Isso não significa que tenhamos que nos resignar a essa constatação. Nem mesmo Hobbes e sua observação de que vivemos Bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos) levou à resignação, pois ele propunha a convivência pacífica. Isso esteve no centro de muitas ideologias e esperanças humanas, no passado. Os casos mais conhecidos, na tradição ocidental, são os pacifismos do judaísmo profético, com a sua convivência do leão e do cordeiro, e do cristianismo, ambas ao compartilhar do lema do amor ao próximo como a si mesmo. Mas esses anseios surgiram também em outras partes e culturas, como no darma budista ou mesmo em divinizações da paz (Εἰρήνη, eirene, em grego, Pax, em latim).

Em certo sentido, pode dizer-se que a própria violência, agressividade e conflito, inerentes nos seres humanos, geram o anseio de um estado de convívio pacífico e amistoso. São, em certo sentido, sentimentos tanto antitéticos como complementares, ou até mais: quanto mais prevalece a agressão, tanto mais se anseia pela concórdia.

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Tudo isso conduz-nos aos museus e aos conflitos na sociedade contemporânea. Os museus são instituições filhas do iluminismo e da modernidade e, portanto, incluem uma dose de violência subconsciente e involuntária. Muito de seu acervo é fruto da violência, da morte e da expropriação. Uma peça egípcia em um museu europeu resultou disso, no passado. Mais ainda, muitas sociedades sofreram com conflitos intestinos, de guerras civis a regimes autoritários que enfrentaram renitentes. Os museus, a bom tempo, têm se debruçado sobre essas contradições. As grandes instituições imperiais e nacionais, do Louvre ao British, do Museu Nacional do Rio de Janeiro ao Hermitage, buscam responder a tais desafios, já faz um tempo. As instituições mais recentes, têm se esforçado em particular, aquelas dedicadas à memória de conflitos recentes. Este é o caso de diversos países ibero-americanos e de outros que saíram de ditaduras e guerras civis. São todos muito complexos e contraditórios, pois guerras civis, conflitos armados ou velados e disputas levam a embates de narrativas que são duradouras e de difícil conciliação.

Os recentes acontecimentos têm ressaltado esse conflito de narrativas, com o resultado de sociedades mais divididas, como nos casos notáveis dos Estados Unidos após eleição de Donald Trump (2016) ou o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (2016). As implicações disso tudo para os museus são muitas, a começar pela proposta da conciliação e da paz, mesmo quando se possa argumentar que o ser humano é, por essência, agressivo e que tratar o outro como a si mesmo é um beco sem saída, em tempos de reconhecimento do sadomasoquismo. De fato, como dito no início, as tendências

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agressivas podem ser inerentes e potentes, mas nem por isso, ou até mesmo por isso, as forças pela conciliação, concórdia e paz deixam de ser tão fortes. Os museus não podem resolver as aporias e contradições humanas, mas podem contribuir para práticas mais amistosas e conciliatórias, como já têm sido tantos os casos a nos inspirar, pelo mundo afora.

[1] Professor Titular do Departamento de História, Unicamp.

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