O Ideal Moralizante em Christine de Pizan: Uma análise da Cidade das Damas

June 3, 2017 | Autor: Anna Esser | Categoria: Medieval Women, Christine de Pizan
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IX Semana de História Política

Política, Conflitos e Identidades na Modernidade

VI Seminário Nacional de História Política, Cultura e Sociedade

ISSN 2175-831X

2014

Anais 2014 Programa de Pós-Graduação em História da UERJ

ISSN 2175-831X

IX Semana de História Política Política, Conflitos e Identidades na Modernidade

VI Seminário Nacional de História Política, Cultura e Sociedade

ANAIS

Rio de Janeiro 2014

Semana de História Política | Seminário Nacional de História: política, cultura e sociedade (x:2014:Rio de Janeiro) Anais/IX Semana de História Política/VI Seminário Nacional de História: Cultura & Sociedade; organização: Eduardo Nunes Alvares Pavão, Layli Oliveira Rosado, Mariana Albuquerque Gomes, Oscar José de Paula Neto e Rafael Cupello Peixoto – Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2014. 4083p. Texto em português ISSN – 2175-831X 1. História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3.Relações Internacionais.

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"OUÇA TODO MUNDO E CONCLUA A SEU FAVOR": A TEATROCRACIA NASSOVIANA E A CONVOCAÇÃO DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE 1640 André Ricardo de Oliveira Barbosa

358

OS ESCRAVOS E A BUSCA POR ESPAÇOS DE AUTONOMIA E LIBERDADE NO VALE DO PARAÍBA FLUMINENSE André Rocha Carneiro

367

BIOGRAFIA E HISTÓRIA: VIOLETA CAMPORIFIORITO E O MATERNALISMO CIENTÍFICO (NITERÓI, ESTADO DO RIO DE JANEIRO: ANOS 1945/1966) Andrea Ledig de Carvalho Pereira

377

UMA HISTÓRIA DA TV PÚBLICA BRASILEIRA Ângela Maria Carrato Diniz

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O IDEAL MORALIZANTE EM CHRISTINE DE PIZÁN: UMA ANÁLISE DA CIDADE DAS DAMAS Anna Beatriz Esser Dos Santos

397

MEDIAÇÕES POLÍTICAS EM OCUPAÇÕES NO NORDESTE MINEIRO (1985-1995) Arnaldo José Zangelmi

406

ESTADO, NAÇÃO E FÉ: DIMENSÕES DO ESTADO NOVO BRASILEIRO A PARTIR DA CINEMATOGRAFIA NACIONAL Arthur Gustavo Lira do Nascimento

416

NA PASSARELA DA TRADIÇÃO: MEMÓRIAS E REPRESENTAÇÕES DA FORMAÇÃO DOCENTE DO CURSO NORMAL DO COLÉGIO DOM FELICIANO – GRAVATAÍ (1970 – 1990) Artur Diego da Silva Alexandrino

426

A UTILIZAÇÃO DO PANDEIRO NAS IGREJAS PROTESTANTES: UM DEBATE CONTRADITÓRIO Artur Costa Lopes

436

PARA O ALTO E AVANTE! - SUPERMAN E A IDENTIDADE NORTE-AMERICANA PÓS-11 DE SETEMBRO Artur de Almeida Malheiro

446

POLÍTICA E HISTÓRIA EM OSWALD SPENGLER: O FENÔMENO POLÍTICO-INTELECTUAL DO "PRUSSIANISMO E SOCIALISMO" NA ALEMANHA (1920) Augusto Patrini Menna Barreto Gomes

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O Ideal Moralizante em Christine de Pizan: Uma análise da Cidade das Damas Anna Beatriz Esser dos Santos Doutoranda bolsista (Capes/CNPq) Programa de Pós Graduação em História Comparada (PPGHC/IH/UFRJ) Orientador: Prof. Dr. Álvaro Bragança Coorientadora: Profª Drª Gracilda Alves Email: [email protected]

Resumo Este texto objetiva analisar e discutir os papéis femininos à luz da obra “A Cidade das Damas” escrita no século XV por Christine de Pizan. Este livro é feito em forma alegórica e conta com o auxílio de diálogos entre as três personagens femininas, a Razão, a Retidão e a Justiça, que conversam com Christine em um sonho diurno e propõem a construção de uma cidade reservada às mulheres através da escrita. Palavras Chave: Medieval – Mulher – Christine de Pizan

Abstract This text aims to analyze and discuss the female roles based on "The City of Ladies" written in the fifteenth century by Christine de Pizan. This book is wrtten in allegorical form and relies on the help of dialogues between the three female characters, Reason, Righteousness and Justice, who have a conversation with Christine in a daydream and propose to her the construction of a city reserved for women through writing . Keywords: Medieval - Women - Christine de Pizan

Introdução Por volta do período de produção de Christine, no século XV, a mulher tinha sua construção imagética definida pelo olhar masculino que a colocava como uma figura frágil, inconstante e sedutora, que precisava ter sempre um homem para guiá-la, para ser a “cabeça”. No tocante ao ideal de conduta feminina, os clérigos transmitiam suas ideias através de pregações, especialmente com o surgimento das ordens mendicantes. No século XIII, enfatizavam-se os exempla, pequenas histórias baseadas em lendas ou no cotidiano, que serviam de base para a pregação. Estes pregadores empenhavam-se em atacar a vaidade feminina e a infidelidade, pondo em oposição virtudes necessárias, como a castidade e a obediência,1 em um tipo de mulher concebido com base no modelo bíblico de Eva. Com a ascensão da burguesia, surgem tratados voltados para assuntos bastante práticos, ensinando a mulher a ser submissa ao marido e saber governar a casa. Ao longo dos

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dois últimos séculos da Idade Média, o pensamento da burguesia ascendente caracterizou boa parte da literatura desse período, com extremas críticas à personalidade da mulher 2. Sentimentos como a vaidade, a ambição e a ingratidão caracterizavam diversas personagens de obras de autores da época. Muitas produções foram elaboradas com o intento de ilustrar os infortúnios que assinalavam a vida de um homem casado com um tipo de mulher concebido como “megera”. Estes ataques à mulher estão amplamente vinculados a um questionamento do sacramento do matrimônio.3 Todavia, essa construção tinha diversas ramificações, pois a figura da mulher poderia também seguir o modelo de Maria Madalena, que é a pecadora arrependida, a que se redime. Vemos que as atitudes de Jesus no Novo Testamento para com a mulher estrangeira (samaritana) e a adúltera (depois associada à Maria Madalena) condenada ao apedrejamento, eram de igualdade e compaixão. Além desses modelos do feminino, temos a figura que exemplifica a representação máxima de virtude: Maria, Mãe de Jesus, que se mostrou um exemplo de resignação, boa conduta e amor a Deus ao enfrentar todas as adversidades para dar à luz e criar o Salvador, aquele que guiaria os homens – resgatando, assim, os pecados cometidos por Eva: “Dessa forma, a mulher não será, portanto, mais o instrumento material através do qual se exerce a tentação de Satanás: a Virgem resgatou o pecado original de Eva, a primeira tentadora, e a mulher já não é considerada perigosa como tal”.4 O período entre o final do século XIV e o século XV foi um período de diversas mudanças, desde o fortalecimento político das cidades até as novas movimentações sociais5. Em alguns momentos, as mulheres chegaram a dividir com os homens desde as tarefas domésticas até os trabalhos no cotidiano, no caso das camadas mais populares. Trabalharam no ofício de pedreiras, comerciantes, sapateiras e, algumas vezes, sem o amparo masculino. As mulheres também poderiam tentar exercer sua autonomia nos conventos, onde as religiosas poderiam aprender a ler e escrever.

Aportes teóricos e metodológicos Nossa reflexão permeia o papel da mulher na sociedade medieval, verificando as condutas esperadas pela mulher e os elementos que constituem um comportamento que era idealizado e o que era condenado pelo pensamento corrente do período. Analisamos assim, as representações a respeito da construção da imagem dessas mulheres.

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Quando nos referimos à construção, em especial de gêneros, estamos nos referindo a algo que se opõe a ideias deterministas, e pensamos sobre a produção social dos sentidos (do que é masculino e feminino), a um processo que vem sendo construído ao longo do tempo. Neste sentido, trabalharemos com as proposições teóricas elaboradas pela historiadora norte-americana Joan Wallach Scott. A autora afirma que gênero é o saber a respeito das diferenças sexuais. Scott utiliza o conceito aplicando-o de acordo com Michel Foucault, como “a compreensão produzida pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas”.6 Essa produção do saber encontra-se no social e envolve escolhas, interesses e relações de poder. Logo, consideramos que gênero e suas implicações possuem visão marcadamente politizada. Para a autora, discutir gênero é abordar algo social. O conceito de gêneros sexuais apresenta-se para desconstruir a representação tradicional do feminino e do masculino, ao entender que homens e mulheres são socialmente produzidos pelo discurso dominante e também por crenças, imagens e símbolos presentes nas diferentes culturas. Podemos então, com nossa fonte, observar e verificar novos modelos, novas representações de como entendemos as mulheres medievais. Quando utilizamos o conceito Representação, referimo-nos ao conceito desenvolvido por Roger Chartier7, que define tipos de “práticas” capazes de articular e dar sentido a tudo que permeia o campo da cultura. Este conceito alia-se ao de Apropriação, entendida por Chartier como práticas de produção de sentido, dependentes das relações entre texto, impressão e modalidades de leitura, sempre diferenciadas por determinações sociais 8. As representações, apropriações e práticas fornecem sentido ao conjunto das práticas sociais, mas se diferenciam a partir do grupo que as veicula e elas não são discursos neutros, pois produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade e mesmo a legitimar escolhas. Coexiste uma gama de representações que são diferentes e também divergentes entre si, em uma luta constante, que servem a interesses de grupos particulares dentro da sociedade. Tais dão-se no nível simbólico e, muitas vezes, não são facilmente identificáveis. A escolha do termo representação contribui inclusive para desconstruir essa visão tradicional de como são pensadas as mulheres do período medieval. Nossa fonte trata de um texto literário que contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença, cuja reprodução e transformações (possíveis) cabem às práticas discursivas de que a literatura é um veículo. Neste sentido, podem representar e/ou reproduzir ideologias, que entendemos como, significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das

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práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação 9

Como nessa construção textual o aspecto da língua é essencial, esta pode ser entendida, por um lado, a partir de sua função na sociedade, como um meio de comunicação nos quais mensagens e informações são elaboradas e passadas; mas também se pode compreender a linguagem como a própria comunicação, que é constituída na sociedade, reflete e é representada pela própria. A respeito do papel da linguagem e sua importância para pensar as relações de poder no campo discursivo, as considerações de Bordieu são úteis para a análise de nossa fonte. Ele explica que se pode conferir uma eficiência propriamente simbólica de construção da realidade, isto porque aquela estrutura a noção que os agentes sociais têm do mundo e como se operam as relações nesse mundo. Assim, a língua pode ser compreendida como um sistema simbólico que constitui instrumentos de conhecimento e de comunicação, de visões de mundo e de percepção do mundo social. E afirma: A percepção do mundo social é produto de uma dupla estruturação social: do lado objetivo, ela está socialmente estruturada porque as autoridades ligadas aos agentes ou às instituições não oferecem a percepção de maneira independente, mas em combinações de probabilidade muito desigual (...); do lado subjetivo, ela está estruturada porque os esquemas de percepção e de apreciação, (...) são produtos das lutas simbólicas anteriores e exprimem, de forma mais ou menos transformada, o estado das relações de força simbólica10

As considerações de Bourdieu são pertinentes para essa discussão, pois através delas pode-se precisar de que forma a linguagem exerce um poder e se constitui em um instrumento que age sobre o mundo. É através deste poder simbólico percebido na linguagem que o caráter social desta é reafirmado. A força das palavras se exerce na sua ação comunicativa, pois elas propagam valores, significados, ideologias que perpassam os agentes sociais e se configuram como formas de dominação e exercício de poder. A questão da linguagem e das relações de poder tornam-se ricas em nosso trabalho, porque a aproximação entre História e Literatura se dá na medida em que ambas são formas de representar o mundo, as questões e indagações dos homens em determinada época. Ao pensar sobre a utilização de literatura como fonte para a história, Sandra Jatay Pesavento afirma que “a Literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima da época; o modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos,quais os preconceitos,medos e sonhos”. 11 Chartier vai mais além e chega inclusive a afirmar que quando textos literários são usados pelos historiadores “perdem a sua natureza literária para serem reconduzidos ao estatuto de documento, válidos porque mostrando, de um outro modo, o que a análise social

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estabeleceu pelos seus próprios processos”.12 Entendemos que o uso da literatura como fonte irá oferecer ao historiador a possibilidade de encontrar prováveis respostas do porquê da existência de diferentes representações que indivíduos ou seus grupos faziam de sua sociedade numa época. Como método, utilizaremos principalmente a Análise de Discurso. Ela busca entender a língua em seu processo de significação, como trabalho simbólico inserido no contexto social. Esse estudo vê a linguagem como mediadora entre o homem e a realidade, natural e social. Tem por pressuposto básico que a linguagem é opaca, ou seja, não é possível ver através dela. A pergunta que a Análise do Discurso pretende responder é: como o texto significa?13 Para a Análise do Discurso, a língua, embora tenha sua própria ordem, é apenas relativamente autônoma. Os fatos não são dados, e sim significados. O sujeito de linguagem, aquele que fala, é afetado por seu contexto histórico, isto é, não tem controle sobre o modo pelo qual este o afeta. Por isso, podemos entender discurso também como “efeito de sentido entre os locutores”.14

A construção da moral feminina Christine de Pizan (1364-1430) viveu e recebeu educação na corte de Carlos V e mantinha a amizade e a proteção de Isabel da Bavária, esposa de Carlos VI15. Tornou-se uma escritora que conseguiu, entre os séculos XIV e XV, manter sua família através de suas obras, pois tinha encomendas na corte, por onde circulava livremente e mostrava sua erudição. Com a morte de seu marido, ela precisou sustentar sua família e passou a escrever, dedicando-se a literatura através de encomendas das esposas dos príncipes. Foi considerada a primeira escritora profissional da literatura francesa que reivindica o “estudo" como um espaço íntimo e como lugar de criação literária e instrução pessoal16. Christine de Pizan escreveu A Cidade das Damas17 em 1405, com o propósito de intervir nas disputas dos homens de letras acerca da natureza feminina, a chamada “Querela das Mulheres”18. Suas representações da mulher são uma defesa ao pensamento majoritariamente misógino de sua época. Ela constrói uma argumentação com as damas chamadas Razão, Retidão e Justiça e questiona a autoridade masculina dos grandes pensadores e poetas que contribuíram para sua formação19. Também mostra através da retórica e nas referências que faz às obras reconhecidas de Ovídio, Cícero, Petrarca, Cesco d´Ascoli como a subordinação feminina e a “má fama” das mulheres haviam sido construídas20.

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As mulheres dA Cidade das Damas de Pizan estão metaforizadas em pedras sólidas ali construídas para caracterizar uma defesa moral para todas as mulheres com suas histórias de vida21. As três damas tem seus papéis definidos já no início do Livro: Razão é a responsável por fazer as fundações e os muros, demonstrando claramente que a principal defesa desta cidade habitada por mulheres é a argumentação racional; Retidão constrói as casas, palácios e templos, usando como pedras para essas construções as vidas exemplares de mulheres de diferentes épocas e Justiça termina a cidade, fazendo o acabamento e convocando as primeiras moradoras, as mulheres que foram constantes em seu amor. A primeira parte de seu livro é a construção, sob o comando da Razão, que a ajuda a marcar o terreno. Este terreno é o mesmo do campo literário, necessário às respostas às argumentações masculinas, o que ela faz dialogando com Razão e defendendo as mulheres, demonstrando com exemplos porque elas mereciam ser defendidas. Dentre esses assuntos está o acesso a uma cultura intelectual refinada para as mulheres e grandes senhoras. Minha Senhora, daquilo que me dissestes, posso deduzir que a mulher é uma criatura muito nobre. Contudo não foi Cícero que afirmou que um homem nunca deveria servir uma mulher porque estaria a servir um ser inferior a ele? A Razão respondeu, o mais virtuoso dos dois é o ser superior. A excelência ou a inferioridade não é determinada pela diferença sexual, mas pelo grau de virtudes e perfeição moral que cada um atinge.22

Destaca também as mulheres instruídas e mulheres prudentes. Entre as que executaram atividades políticas e militares, destacamos a Imperatriz Nicaula da Etiópia, também conhecida como A Rainha de Sabá, que foi muito poderosa; Fredegunda da França, que por astúcia, tirou seu filho dos braços dos inimigos; e a rainha Blanche, que governou a França na menoridade do filho e depois ocupou um lugar principal no grupo de conselheiros dele. A intenção de Christine era mostrar que as mulheres têm capacidade de governar tão bem quanto qualquer homem, mostrando-as com prudência e com mentes esclarecidas para a política e para a justiça. A seguir, a autora é guiada pela Retidão que a convoca: “agora venha comigo, pegue suas ferramentas e siga em frente. Misture a argamassa no seu pote de tinta, e então você poderá fortificar a cidade com sua caneta”.23 Iniciou-se a construção das torres, dos palácios reais e das nobres habitações. As mulheres que foram convocadas para traçar essas primeiras edificações foram as sibilas e profetisas, que com sua linguagem irão construir o refúgio das mulheres. Há o destaque para Christine e Retidão, quando debatem sobre os homens que prefeririam ter filhos ao invés de filhas. Retidão afirmou que isso acontece devido à simplicidade e ignorância dessas pessoas. Ela cita que os pais têm medo do custo que pagarão

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no casamento dessas filhas, ou seja, preferiam os filhos por motivo de vantagens financeiras. Ela ainda ressaltou que geralmente os filhos homens, quando ficam ricos, desprezam os pais pobres, e se os pais são ricos, eles esperam a morte destes para adquirir a herança. Nesta parte, também é debatida a relação com o casamento. Como uma cristã, Christine acreditava que a união entre homem e mulher no casamento era apreciada por Deus. Através de Retidão, passou a mostrar exemplos de amor conjugal representados por mulheres ilustres. Estas amavam tanto seus maridos que os seguiam a vida inteira. Algumas, como Artemísia, chegaram a construir imensos túmulos para que sepultassem seus companheiros. Outras, como Argia, foram até os campos de batalha para procurarem pelos corpos de seus amados; cuidaram dos maridos quando estes estavam doentes. Christine citou mulheres que fizeram de tudo por seus cônjuges, até morrer24. Christine não pretendia que as mulheres tomassem o lugar dos homens, ela queria que não fossem mais vistas como criaturas detentoras do mal. Para Christine, a mulher deveria ser cristã, bondosa, amorosa, delicada, sendo ela casta ou virgem. Não pretendia travar uma guerra diretamente contra a figura masculina, mas intentava buscar o reconhecimento da honra e da moral feminina. Com esses argumentos, Christine volta à defesa da educação e do ensino para as mulheres, partindo do seu próprio exemplo, uma mulher que adquiriu tanto conhecimento e sabedoria que chegava a igualar-se aos homens. Ela acreditava na capacidade feminina de aprendizagem e reprovava uma sociedade que a elas negava a oportunidade dada por Deus a todos os seres humanos de adquirir o saber. Como continuação da questão das virtudes femininas, o diálogo entre Retidão e Christine tratou daquelas mulheres que conservaram a castidade e também homenageava aquelas que guardavam a virgindade, atribuindo suma importância a esse bem corporal e simbólico. Nossa autora citou diversos exemplos de mulheres que se mantiveram castas e puras, mesmo após a morte de seus companheiros. Diante da defesa da moral feminina, Christine tinha um estilo próprio quando argumentava a favor da castidade, diferentemente de seus opositores, os quais colocam a castidade como única qualidade pertinente a uma mulher.25 Christine demonstrou outra visão da castidade: manter-se virgem ou casta, fechando-se em seu próprio corpo sem ter relações sexuais com seu marido ou amante era um estilo de vida que seria capaz de trazer para as mulheres um encontro com elas mesmas, um único modo de libertar as mulheres das amarras dos deveres conjugais e de tudo que a vida tinha para lhe oferecer sob forma de prisão, como os sofrimentos recorrentes da gravidez e dos partos, além

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da submissão que se esperava de uma mulher, mesmo quando o marido fosse violento. Ela também recomendava que as mulheres casadas não se sentissem menos dignas que as virgens, por estarem submetidas aos seus maridos, “pois ser livre não é um bem assim tão grande”.26 Ao final da segunda parte do livro, Christine deteve-se a descrever o imenso amor que as mulheres carregam consigo.27 Mencionou o amor de Dido, de Medea, Thisbe, Hero, Ghismonda, Lisabetta, mulheres que sofreram, choraram e morreram por amor. Ela confirmou também a generosidade nata como mais uma virtude feminina. Na sequência de seu texto, Christine convocou as damas de seu tempo para que povoassem a mais nova cidade recém fundada, a Cidade das Damas: convidou Isabel da Bavária, a rainha da França; a Duquesa de Berry; Valentina Visconti, a duquesa de Órleans; a Condessa de Clermont, entre outras personalidades de sua época. Christine pretendia confirmar o sucesso de seu trabalho de construção de um novo pensamento sobre a mulher e para isso ela pedia auxilio das personagens femininas mais importantes de seu tempo, como citado anteriormente, suas comitentes que são louvadas e colocadas como mulheres de vida exemplar. Ao fim da segunda parte do livro, Christine declarou que a Cidade das Damas estava finalizada e pronta para ser povoada. Dirigindo-se às mulheres de todas as condições, que amaram, amam ou amarão a virtude e a sabedoria, sua cidade não se situou em um tempo ou um lugar, ela era eterna, existiria enquanto houvesse pessoas que tivessem acesso ao seu livro. Finalmente, na última parte de seu livro, Justiça, que fortificou a cidade, guiou Christine. Como já citamos, Maria, Mãe de Jesus Cristo, foi coroada como rainha e as escolhidas para figurarem como imperatrizes foram as irmãs de Maria e Maria Madalena. Neste momento também foram escolhidas as intercessoras que seriam as santas mártires. Dedicada à vida contemplativa, nesta última parte do livro Christine apresentou as santas como mulheres independentes e autossuficientes, mulheres que só se casaram com Deus rejeitando a submissão ao sexo masculino. Ela não queria que as mulheres de sua Cidade se vestissem ou se portassem como homens, e sim que elas aparentassem o que eram realmente: “A mulher deveria se apropriar deste mundo sem deixar de ser mulher, só assim teria mérito. Essa é uma das extraordinárias lições de nossa autora”.28 Embora ela também tenha feito referências às mulheres que amavam e auxiliavam seus maridos, era a castidade que dava força e independência para as habitantes da Cidade das Damas. A virgindade era uma marca de fama e autorrealização das mulheres que fora do jugo matrimonial renunciaram aos papéis tradicionais de esposas e mães, para que vivessem segundo suas próprias vontades e julgamentos balizados pelo pensamento cristão.

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Nossa autora convocou a todos e todas que encarassem sua cidade como um refúgio, uma fortaleza e, principalmente, como um exemplo de virtudes. Em seguida ela se dirigiu a todas as mulheres segundo seu estado civil, casadas, solteira e viúvas, e vai além desta categorização, estendendo seu discurso a todos os estamentos sociais, pedindo-lhes que tomassem cuidado com as armadilhas que pudessem vir a seduzi-las.

Conclusão Sua cidade-refúgio era seu próprio livro que fazia com que mulheres de diferentes religiões, épocas e condições pudessem se encontrar. Seu pensamento não estava no passado ou no futuro longínquo. A realidade de seu sonho e utopia consistia na grande verdade de que enquanto houvesse pessoas com acesso ao seu livro a Cidade das Damas serviria novamente de abrigo, pois ela continha os exemplos perfeitos para que todos tivessem como modelo a conduta daquelas que serviram como pedras de construção e das suas nobres habitantes. Como a obra foi balizada pela moral cristã, Christine propôs a obediência feminina como uma virtude, embora tenha realizado uma ruptura dentro dessa relação de submissão ao insistir no direito da mulher ter a mesma educação dos homens, pois argumentou favoravelmente à capacidade feminina. Ela não defendia que homens e mulheres fossem iguais, reconhecendo que Deus os fez para diferentes funções, mas defendeu a honra feminina, pois nada que Deus poderia ter feito seria assim tão mal, afinal como Christine questionou, “ela não foi criada do melhor material criado por Deus? O corpo do homem”.29 Defendendo também o direito das mulheres à palavra, a autora procurou restabelecer o sentimento de confiança no sexo feminino e combater ideias correntes na época, dirigindo-se mais uma vez a todas as mulheres: Respeitáveis damas, louvado seja o Senhor: a construção de nossa cidade chegou finalmente ao fim. Todas vós que apreciais a virtude, a glória e uma boa reputação, podem agora ser alojadas com grande esplendor, no interior das suas paredes, não só as mulheres do passado como as do presente e também as do futuro, pois esta cidade foi criada para acomodar todas as que são merecedoras.30

Ela deixou claro o seu objetivo de incluir todas as mulheres no seu projeto de valoração e na sequência escreveu outro livro, O Tesouro da Cidade das Damas, no qual propôs um espelho para que todas as mulheres aprendessem a ser merecedoras de habitar em sua cidadela. A construção da Cidade das Damas tinha definido o papel da mulher verdadeiramente ilustre. Aquelas que fazem parte da cidade têm o direito de estar ali, não por seu poder, riqueza ou nobreza. A Cidade das Damas reservava-se àquelas mulheres que se ilustravam pela sabedoria, pelo discernimento e pela justiça.31 Assim, qualquer mulher poderia se

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habilitar independentemente de sua condição social, bastando apenas que cada uma conhecesse o reto caminho a partir da condição social em que vivia. Em resumo, todas vós mulheres, tanto das classes médias, altas, como baixas, deveis estar especialmente alerta e em guarda contra todos aqueles que procuram atacar a vossa honra ou a vossa virtude. Minhas damas, vede como estes homens vos criticam e vos acusam de todos os vícios imagináveis. Provai que estão errados, mostrando-lhes a vossa moral e refutando as críticas através do vosso comportamento honrado. Agi de forma a poderdes dizer como, tal como os Psalmistas: „A iniquidade do perverso recairá sobre sua própria cabeça‟32 1

LEITE, M.M.S.B. Representações femininas na idade média: o olhar de Georges Duby. Sitientibus, Feira de Santana, n.1, jul/dez 1999, p. 43. 2 VAUCHEZ, A. A espiritualidade na Idade Média Ocidental. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p.149. 3 MACEDO, J. R. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1999, p.57. 4 PILOSU, M. A mulher, a luxúria e a Igreja na Idade Média. Lisboa: Estampa, 1995, p.32. 5 MISKIMIN, H. A Economia do Renascimento Europeu (1300-1600). Lisboa: Estampa, 1998, p. 256. 6 SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, pp. 71-99. 7 CHARTIER, R. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio. de Janeiro: Difel, 1993, p.62-63. 8 CARVALHO, Francismar A.L. O Conceito de Representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1, p. 143-165, 2005. 9 FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Trad. Izabel Magalhães et al. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2001, p.117. 10 BORDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p.139-140. 11 PESAVENTO, S. J. Relação entre História e Literatura e Representação das identidades Urbanas no Brasil (século XIX e XX). Revista Anos 90, Porto Alegre,n°4, 1995, p.82. 12 CHARTIER, R. Op. Cit., p.62. 13 ORLANDI, Eni. P.Análise de Discurso. São Paulo: Pontes, 2005, p.17. 14 Ibdem, p.21. 15 LAIGLE, Mathilde. Le livre des trois vertus de Christine de Pisan et son milieu historique et littéraire. Paris: Honoré Champion, 1912, p.4. 16 LEMARCHAND, Marie José. “Introducción”. In: PIZÁN, Christine. La ciudad de las damas. Madrid: Siruela, 2001, p. 20-26. 17 Edição fac-símile digitalizada pela Bibliotheque Nationale. PIZAN, Christine. Le livre de La cité des dames. Paris: Bibliotheque Nationale, 1516. Versão em português moderno: PIZÁN, Christine. A Cidade das Mulheres. Tradução de Ana Nereu. Lisboa: Coisas de ler, 2007. 18 Debate intelectual em torno das ideias escritas na segunda parte do Roman de La Rose por Jean de Meug, que tratava como inferior a posição da mulher e se posicionava contra a educação intelectual feminina, delegando o saber ao domínio masculino. In: DUBY, Georges (org.); PERROT, Michelle (org.). História das Mulheres no Ocidente: A Idade Média. Coimbra: Afrontamento, 1990, p. 530. 19 GABRIEL, Astrik L. The Educational Ideas of Christine De Pisan. Journal of the History of Ideas, Vol. 16, No. 1 (Jan., 1955), p.5. 20 FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Christine de Pizan e Le Livre de La cite dês Dames: Pontos de releitura da memória misógina da visão tradicional da mulher. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura, s/d, p.4. 21 BROWN-GRANT, Rosalind. Christine de Pizan and the Moral Defence of Women: Reading beyond Gender. Speculum, Vol. 77, No. 3 (Jul., 2002), p. 885. 22 PISAN, Op. Cit., p.24 23 PIZÁN, Op. Cit., p.155. 24 Nesta parte, as histórias apresentam uma estrutura narrativa diferente, empregando uma linguagem cortês para contar essas histórias de amor.

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IX Semana de História Política: Política, Conflitos e Identidades na Modernidade VI Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade ISSN 2175-831X – PPGH/UERJ, 2014

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L. VIVES, Formación (1089) apud. ______________________, A educação feminina. Entre as funções conjugais, o governo da casa e as práticas espirituais. Disponível em: Acesso em 10/09/2014. Luis Vives em 1322, no livro intitulado Os Deveres do Marido, reflete acerca do pensamento com o qual Christine de Pizán conviveu e que a levou a escrever “A Cidade das Damas” mais tarde. A castidade era a base de todas as virtudes femininas e a ela ligavam-se outras duas virtudes femininas muito importantes: honestidade e vergonha. Por sua vez, estas virtudes estavam intimamente dependentes da piedade, já que “es en el sexo feminino preferente virtud la de la piedad, y por su propia naturaleza más inclinado a la devoción que el sexo masculino...” 26 PISAN, Op. Cit., p.138. 27 Ibid, p. 225-240 28 LEMARCHAND, Op. Cit., p.48-50. 29 PISAN, Op. Cit., p.24 30 PISAN. Ibid. p.137 31 CRISPIN, Maria de Lourdes. Introdução in: PIZAN, Christine. O livro das três virtudes. Lisboa: Editorial Caminho, 2002, p. 20 32 PISAN, Op. Cit., p.141.

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