O Império na memória do cinema. Uma permanência sem abril (1940 – 2015)

May 30, 2017 | Autor: Jorge Seabra | Categoria: Postcolonial Studies, Colonialism, Cinema and History, Colonialism and Postcolonialism
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O Império na memória do cinema
Uma permanência sem abril
(1940 – 2015)
Jorge Seabra
Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX
Universidade de Coimbra

1. O cinema e o tempo
É conhecida a utilização que o cinema faz do passado como matéria filmável, tendo sido na fase pioneira um dos principais recursos para a afirmação estética da imagem em movimento, mas à qual acresceram também razões económicas derivadas da constatação do interesse que as temáticas históricas sucitavam no público espetador. Hoje, apesar de o cinema já não precisar da história para se afirmar como arte, continua a ser válida a importância temática e económica que o tempo pretérito tem na generalidade das cinematografias, sendo por isso comum encontrarmos obras deste tipo no currículo dos realizadores.
Um dos aspetos caraterísticos destas narrativas é a sua relação com o tempo em que são produzidas, através de elementos formais e temáticos, marcas que acrescentam à faceta estética e económica dos filmes uma outra perspetiva sobre os usos do passado, que diz respeito à dimensão subjetiva com que os temas são abordados, podendo abrir-se, agora do ponto de vista do investigador, novos e interessantes motivos de pesquisa sobre a forma como o passado têm sido cinematograficamente percecionado ao longo do tempo.
Intimamente relacionado com a sobredeterminação que a contemporaneidade exerce neste ato criativo, está também o dinamismo com que o passado é interpretado, onde nem sempre os exercícios miméticos são os mais frequentes, pelo contrário, é regular a utilização pretextual do passado para discursar sobre o presente, a propósito de paralelismos existentes entre o tempo da história e o tempo em que a obra é concebida.
Por outro lado, a recorrência à evocação histórica nas narrativas fílmicas, e nestas, a insistência em determinados assuntos, como que revela uma necessidade de interrogar o passado, ideias que não se situam no âmbito do discurso científico, mas no campo estrito que compete ao cineasta que, como cidadão e intelectual, produz criativamente sobre inquietações pessoais ou sociais. Nesse exercício, do qual resultam obras que transportam uma memória do tempo em que foram concebidas, com a particularidade de serem reflexões pessoais deixadas por pessoas com visibilidade social e cultural, é possível pesquisar a evolução das perceções sobre o destino coletivo.
Finalmente, este uso regular do passado pelo cinema, é uma evidência da importância que tem nos coletivos sociais, porque as escolhas temáticas não obedecem apenas a critérios económicos ou estéticos, mas também a necessidades de outra ordem, onde a subjetividade da criação artística é preponderante. O encontro com o passado serve para as sociedades se situarem dentro de uma globalidade temporal e referencial, proporcionando um permanente futuro ao passado, cujos contornos vão sendo definidos pelas caraterísticas que a diacronia da evolução social vai desenvolvendo, completando assim, um círculo essencial para a dinâmica das identidades através do cruzamento destas várias dimensões temporais.
Deste modo, o uso cinematográfico do passado deve ser cruzado com os domínios da produção de memória, que é aquilo que o cineasta faz ao realizar uma obra de evocação histórica, e esta, por sua vez, inserida no conjunto dos filmes produzidos sobre o mesmo assunto, permite-nos efetuar aproximações à memória coletiva existente sobre o tema, sendo ainda possível deduzir elementos e relações sobre a evolução da consciência coletiva e da identidade nacional. Ou seja, memória fílmica e coletiva são conceitos que podem ser cruzados simultaneamente, numa equação onde passado, presente e futuro convivem, porque o fundamental é termos como critério orientador a atribuição de importância àquilo que dura no tempo.
O tema do império colonial português (1415-1974), desde que foi cinematograficamente concebido pela primeira vez em 1940, através de O feitiço do império (António Lopes Ribeiro), é um exemplo flagrante deste uso criativo do passado pelo cinema português. Tem sido um dos assuntos mais insistentemente abordados pela ficção nacional, apresentando uma média estatística que supera uma obra por ano, desde aquela data inicial até aos tempos atuais, numa permanência que apresenta mais obras depois da revolução de 25 de abril de 1974, tema a que estão associados realizadores como António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Paulo Rocha, Manoel de Oliveira, João Botelho, Margarida Cardoso, Joaquim Leitão ou Miguel Gomes, para citar apenas alguns dos mais conhecidos.
Neste texto, necessariamente sintético, propomo-nos apresentar algumas ideias globais sobre a abordagem que a ficção cinematográfica tem feito ao tema, baseando-nos em investigação já concluída ou em curso, e que, pela argumentação apresentada, entendemos definir como O Império na memória do cinema.

2. O Império entre a luz e a sombra
Como tema cinematográfico, o império colonial português tem sido representado através de duas grandes perspetivas, duravelmente permanentes desde 1940, que poderão ser designadas através da antinomia luz-sombra, aparentemente correspondentes a impérios antagónicos. Por vezes, temos usado a metáfora Uma África, dois impérios, acrescentando o continente africano à referida dualidade luz-sombra, porque a esmagadora maioria das narrativas tem África como espaço diegético ou como referente condicionador da ação. É sobre estes dois tipos de império, o luminoso e o sombrio, que gostaríamos de centrar a nossa atenção, devido à pertinência simbólica que os conceitos apresentam na ficção até agora produzida. Pela perspetiva globalizante que possibilitam, relativamente ao que tem sido produzido, deteta-se uma transversalidade comum à filmografia, identifica-se um olhar que procura estabelecer uma linha condutora em todo o conjunto e, dessa forma, apresenta-se uma perspetiva que não tem por centro o que distingue as obras, mas o que as aproxima. Este caráter luminoso ou sombrio será por sua vez aferido através de três conceitos analíticos, os heróis das narrativas, as colónias e o regresso do império, instrumentos que serão aplicados a um conjunto de ficções pertencentes duas às tipologias, de forma a que sejam produzidas conclusões baseadas num critério de sistematicidade e constância.

3. O Império luminoso
Conceptualmente, este tipo de Império apresenta-se como um desiderato nobre, algo pelo qual vale a pena lutar, eventualmente dar a vida, onde colonizar significa ser proativo no desenvolvimento do território e dos seus habitantes e, quando o regresso do império se verifica, os retornados vêm mais fortes e instruídos que aquando da sua partida para o Ultramar.
Essa luminosidade poderá ser observada através do perfil de heroicidade de alguns protagonistas, que apresentam caraterísticas de raiz épico-trágica, segundo a terminologia desenvolvida por Marc Augé. A tipologia épica define-se em personagens que lutam em nome da lei, da ordem, personificam o destino coletivo e o gosto pelas viagens e vida de aventuras. Por sua vez, a faceta trágica apresenta duas caraterísticas de conduta essenciais, que são a menorização dos riscos e a impulsividade na tomada de decisões.
São muitos os exemplos onde podemos encontrar esta caraterização. Jorge Brum do Canto realizou em 1953 uma obra icónica para o Estado Novo, Chaimite, a queda do império vátua, na qual o perfil de duas personagens militares personificam exemplarmente esta dupla caraterização, no caso, Mouzinho de Albuquerque (Jacinto Ramos) e Paiva Couceiro (Jorge Brum do Canto), apresentando-se sempre indiferentes ao perigo que correm, são impulsivos na tomada de decisões, orientam-se sempre pelo cumprimento da lei colonial instituída, personificando em simultâneo o destino coletivo colonial em vigor durante a Monarquia Constitucional e particularmente no Estado Novo. Em Camões (Leitão de Barros, 1946) Luís Vaz (António Vilar) perde uma das vistas em nome da bandeira pela qual está a lutar, significando com o ato que o corpo é menos importante que o símbolo pátrio que consegue erguer; em Vinte e nove irmãos (Augusto Fraga, 1965) Ilídio (José de Castro) relata, depois da chegada da sua comissão militar na guerra colonial, a ascensão gloriosa ao Monte da Pedra Verde para nele colocar a bandeira depois do dever cumprido; em Brandos costumes (Alberto Seixas Santos, 1974), existe um episódio durante o qual assistimos à leitura de uma carta pela irmã mais velha (Isabel de Castro), enviada pelo namorado na guerra colonial, onde este lhe relata o prazer da vida de aventura; em Non, ou a vã glória de mandar (Manoel de Oliveira, 1990) o soldado Salvador (Miguel Guilherme) assume estar na guerra colonial em nome do patriotismo. No mesmo sentido dos perfis anteriores, podemos ainda referir Forza Leal (Adriano Luz), em A costa dos murmúrios (Margarida Cardoso, 2004) que, por entre a sua frieza e violência sádica, age epicamente em nome de uma lei instituída que não questiona e que pretende fazer cumprir sem hesitações.
A luminosidade do império também é visível em obras que expressam uma visão paradisíaca sobre os territórios ultramarinos, onde a harmonia entre colonos e colonizados, ou o enaltecimento do desenvolvimento da terra, são ideias veiculadas em várias narrativas. O feitiço do império (Ribeiro, 1940) deve naturalmente ser aqui referido, pelo enaltecimento que lhe está subjacente, nomeadamente a obra civilizacional realizada e a evolução daí decorrente para todos os agentes envolvidos. Chaimite. A queda do império vátua (Canto, 1953) aponta no mesmo sentido, enaltecendo o poder transformador e construtor dos portugueses, valorizando a terra agricultada em benefício de todos.
Refira-se igualmente o exemplo de O Zé do burro (Eurico Ferreira, 1971), que constitui uma obra interessante a vários níveis. Produzida em plena fase da guerra colonial por uma produtora moçambicana, constitui, num momento de aparente declínio do desígnio colonial, uma defesa dos valores do colonialismo, expressão que surge da comunidade então residente na província. O paraíso rural é uma das ideias fortes da narrativa. Zé (José Bandeira) vem da Metrópole tomar posse de umas terras que adquiriu no norte de Moçambique, quando percebe que a propriedade se confronta com uma zona onde está sediado um foco da guerrilha. Persistentemente não desiste e, através do trabalho agrícola e do ensino do cultivo da terra aos naturais que ali residem, consegue desmobilizar todos os guerrilheiros que veem na sua proposta uma via mais rápida para os seus problemas de sobrevivência que solução defendida pelo líder da guerrilha, que acaba também por se converter, no final, às ideias do protagonista.
No mesmo sentido podem ainda ser apontados três exemplos, todos surgidos depois de 1974. Primeiro, Amor e dedinhos de pé (Luís Filipe Rocha, 1992) onde o realizador nos apresenta uma história amorosa que se situa em Macau nos inícios do século XX, entre Victorina Vidal (Ana Torrent) e Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida), através da qual podemos verificar, nomeadamente na reconstituição epocal da sociedade macaense dos inícios do século, a coexistência pacífica entre a comunidade portuguesa e oriental. Expressando a mesma ideia da obra anterior, podemos referir Ilhéu de Contenda (Leão Lopes, 1995), agora recriando a convivência pacífica entre portugueses e caboverdianos em 1964, já em pleno período da guerra colonial, obra que tem ainda a curiosidade de ter sido realizada por um cabo verdiano. O último exemplo que gostaríamos de referir é Tabu (Miguel Gomes, 2012), uma narrativa que gira em torno de uma história amorosa vivida por uma idosa durante a juventude em Moçambique no Monte Tabu. O tempo da narrativa é organizado de forma regressiva, partindo da atualidade lisboeta, depressiva e triste de Aurora (Laura Soveral) para, depois da sua morte, irmos à descoberta da sua vida sentimental no passado em África. Deste percurso temporal, aquilo que verificamos é a identificação de dois períodos distintos, um infeliz, atual, com ligações ao Portugal contemporâneo, e outro feliz, passado, e vivido no tempo colonial.
Por outro lado, podemos identificar nos filmes sobre o regresso referências que se enquadram na perspetiva luminosa do império. No período anterior a 1974, ao contrário do que seria expectável, encontramos apenas uma obra que apresenta um regresso feliz, facto estranho tendo em conta a importância ideológica que o Império tinha para o Estado Novo. Trata-se de Vinte e nove irmãos (Augusto Fraga, 1965), no qual podemos acompanhar o regresso de Ilídio da guerra colonial, e onde aparece um episódio no qual fica subjacente a evolução adquirida pela experiência de guerra. Estando toda a comunidade perante a eminência da morte por afogamento de uma menina que caíra num tanque, Ilídio é o único que reage contra a passividade geral, tentando reanimar a pequena e conseguindo-o ao fim de algum tempo, depois de usar algumas técnicas que aprendera na guerra. Ou seja, não fora a sua saída da aldeia e a experiência de guerra, e a sua reação seria igualmente passiva, igual à dos restantes elementos, como se nada houvesse a fazer senão aceitar a fatalidade. O padre da aldeia, agradece-lhe incisivamente, abraçando-o, dizendo-lhe que valera a pena tudo quanto passara, ao que Ilídio responde que fora uma coisa que aprendera e que às vezes valia a pena.
Concluindo, o império luminoso apresenta-se como força mobilizadora da ação, ganhando preponderância personagens de raiz épico-trágica, que entendem o Ultramar como causa vital, onde a vida assume um caráter irrelevante, constituindo-se como um espaço de oportunidades e desenvolvimento, tanto para colonos como colonizados, em que a tónica dominante é o convívio pacífico e harmonioso. O espaço ultramarino contribui assim para o desenvolvimento pessoal daqueles que para ele partiram, permitindo-lhes aprendizagens que os tornam mais competentes na luta pela vida.

4. O império sombrio
Ao lado das narrativas luminosas, surgem outras onde o império se apresenta sombrio, com caraterísticas estruturalmente diferentes daquele, nas quais os territórios de além-mar deixam de funcionar como força mobilizadora ou como causa pela qual vale a pena lutar, para se apresentar como motivo profundo e longínquo de infortúnios vários.
No lugar do herói épico-trágico vai surgir o romanesco, cujo perfil, também na esteira de Marc Augé, apresenta caraterísticas que o identificam com o comum dos mortais. Com as suas angústias pessoais, sente o peso da separação e da mobilização para a guerra, é herói pela capacidade em assumir as suas fragilidades humanas, não se distinguindo pela coragem incomum ou pela irrelevância da vida e é precisamente a sua natureza comum e humana que o particulariza.
Antes de 1974, este perfil começa a emergir em Chaimite (Canto, 1953), através de Caldas Xavier (Augusto de Figueiredo) quando sente que a vida lhe começa a fugir e emergem as preocupações com a família que deixa desamparada. Este é o perfil que se torna dominante com a implantação da guerra colonial, onde as angústias perante a eventual mobilização são regulares, como João (João Mota) apresenta em O mal amado (Fernando Matos Silva, 1973), e que Ilídio relata em Vinte e nove irmãos (Fraga, 1965), demonstrando o stress de guerra que sentiu nos combates. Esta abordagem vai continuar a ser explorada na ficção que surge depois de 1974. Em Um adeus português (João Botelho, 1985), uma das temáticas centrais é a narrativa do furriel Augusto sobre a perda e a reflexão da família sobre a dor a ela associada, que começa com o próprio, quando, longe dos seus, mas ainda vivo, como que se vai despedindo e esperando pelo momento em que a guerra irá consumar a separação definitiva. Outro caso, será o do alferes Cabrita (Luís Miguel Cintra), em Non, ou a vã glória de mandar (Oliveira, 1992), que expressa a insensatez que constitui a guerra quando aliada à luta pelo poder ou, mais recentemente, o alferes Gaio (Marco D'Almeida), em 20,13 (Joaquim Leitão, 2006), porque, não obstante o cumprimento integral, corajoso e digno dos seus deveres de militar em situação de combate, é uma personagem que transporta angústias motivadas pela separação dos que mais quer, e de estar a cumprir o serviço militar sem convicção.
Ao contrário da visão paradisíaca anteriormente referida sobre os territórios ultramarinos, as narrativas do império sombrio apresentam novas perspetivas sobre os agentes coloniais, onde globalmente emerge a incomodidade e o remorso, situações que em alguns casos anunciam o discurso pós-colonial ainda durante a fase colonial. Primeiro, no lugar do colono proativo, interessado no desenvolvimento dos territórios, que aspira à melhoria da sua condição e dos que o rodeiam, emergem perfis onde é dominante a regressão civilizacional justificada pelo contacto com os africanos, caso de Bernardo Costa (Vasco Santana), em O Costa de África (João Mendes, 1954), que se apresenta numa visita temporária à Metrópole com hábitos pouco civilizados, a rondar a boçalidade, concebendo a mulher como um bem material descartável. Na mesma linha, temos também a emergência do colono corrupto, como Pais dos Santos (Pedro Pinheiro), em Malteses, burgueses e às vezes… (Artur Semedo, 1973) que aproveita a posição privilegiada que usufrui através das suas empresas angolanas, para se dedicar a negócios ilícitos, ao mesmo tempo que desenvolve hipocritamente uma imagem social de benfeitor, atos que pratica perante a inconsciência dos naturais da terra.
Em paralelo com esta faceta negra com que algumas narrativas caraterizam os colonos e a colonização, emergem outras que anunciam novas perspetivas sobre a relação colonial, mas onde a visão crítica e sombria continua presente, defendendo uma genuína multirracialidade sem finalidades político-ideológicas, como é o caso da afirmação feita por um estudante em Nojo aos cães, na obra experimental que António de Macedo realizou em 1970, ou ainda, na mesma linha de assunção de um discurso pós-colonial, Índia (António Faria, 1972) encena situações de relacionamento amoroso que vão para além do discurso meramente político e inconsequente sobre a multirracialidade defendido pelo Estado Novo.
Finalmente, as narrativas sombrias sobre o regresso criam situações onde o retorno não é um ato gerador de felicidade, o que se verifica em vários filmes anteriores à revolução de 1974, nomeadamente Vinte e nove irmãos e Brandos costumes, mas particularmente em Mudar de vida (Paulo Rocha, 1966). Adelino (Geraldo Del Rey) regressado de Angola e da guerra colonial, vê-se obrigado a mudar de profissão porque vem com uma incapacidade física que o torna incapaz para a dura faina das companhas da pesca marítima e, em simultâneo, tem de desistir do amor de Júlia (Maria Barroso), que deixou antes de partir, apesar da manutenção do laço afetivo entre ambos. Ou seja, o que a narrativa veicula no seu lastro mais profundo é o condicionamento que o império exerceu sobre a vida individual das personagens, que não existiria se não se tivesse verificado a imposição da partida de um dos elementos para lutar por um desígnio que não sentia como seu, verificando-se uma acusação latente que recai sobre o império e as opções relativamente a ele tomadas pelo poder dominante, que têm como resultado a desestruturação pessoal e familiar.
Depois do 25 de abril esta tendência mantém-se, sendo particularmente significativo referir dois filmes, Inferno (Joaquim Leitão, 1999) e Os imortais (António-Pedro Vasconcelos, 2003), em ambos os casos abordando situações do regresso de militares que cumpriram o serviço militar na guerra colonial, tendo como tema fundamental os desequilíbrios psicológicos gerados em consequência de situações de stress pós-traumático, derivando em comportamentos suicidários e violentos.
Deste modo, a visão que as narrativas do império sombrio nos deixam, apresentam globalmente uma ideia latente de acusação sobre o império, sendo este apontado como razão profunda de angústias pessoais e familiares, em relação ao qual as personagens sentem um peso perante o qual têm deveres a cumprir, não se vislumbrando já a motivação dos protagonistas do império luminoso. O espaço ultramarino é também o território da aquisição de hábitos pouco polidos, violentos e próximos da rudeza ou, por outro lado, são regiões onde grassa o oportunismo e a corrupção. Finalmente, quando o regresso se verifica, encontramos o desequilíbrio psicológico, a desestruturação pessoal e social, como se as personagens se encontrassem perdidas, ficando latente em muitos casos uma acusação sobre as opções políticas desenvolvidas pelo Estado Novo.

5. Por um novo discurso sobre o império na memória do cinema
A finalizar, deixamos algumas notas que nos parecem importantes no sentido de proporcionar um novo tipo de abordagem à memória que a ficção cinematográfica produziu entre 1940 e 2015 sobre o império colonial, atendendo ao confronto aqui efetuado entre narrativas luminosas e sombrias.
Em primeiro lugar, verifica-se uma coexistência temporal entre as duas visões sobre o império. Aprioristicamente admitir-se-ia o raciocício de que o império luminoso seria dominante até ao início da guerra colonial (1961), verificando-se, por razões justificadas pelo conflito, o seu declínio desde então. Porém, este raciocínio não é validado pela ficção produzida. Se a primeira ficção surge logo em 1940 com O feitiço do Império (Ribeiro, 1940), Vinte e nove irmãos (1965) e O Zé do burro (1971), situam-se já depois do início do conflito e, mais significativo ainda, a existência de narrativas do género persiste para além de 1974, como vimos através dos casos Amor e dedinhos de pé (Luís Filipe Rocha, 1992), Ilhéu de Contenda (Leão Lopes, 1964) e Tabu (Miguel Gomes, 2012).
Por outro lado, o mesmo raciocínio deverá ser aplicado às narrativas sobre o império sombrio que surgem antes da deflagração da guerra colonial, como vimos através dos casos Chaimite (JBC, 1953) e O Costa de África (Mendes, 1954), perdurando e intensificando-se depois do início do conflito armado, sendo depois de 25 de abril de 1974 o tema que mais narrativas proporcionou.
Em segundo lugar, tendo em conta apenas o regime de Salazar e Caetano, é simplista efetuarmos uma dicotomização entre ficções favoráveis e contrárias ao Estado Novo. Ou seja, não é linear que as "obras luminosas" apresentem uma perspetiva positiva sobre o Estado Novo e, por sua vez, que as de sentido oposto funcionem como opositoras à política colonial do regime. O que é frequente é apresentarem-se polissémicas na significação, não obstante poderem ser dominantemente favoráveis ou contrárias ao regime. Exemplifiquemos. Chaimite e O Costa de África não são obras opositoras ao regime, pelo contrário, no entanto, ambas integram caraterísticas sombrias. Em sentido oposto, apesar de Brandos costumes ser uma obra crítica em relação ao regime, tem elementos onde está subjacente o otimismo sobre o Império. Ou seja, sem negar a tendência global que cada obra sugere, em muitas delas verifica-se alguma preocupação em recriar a realidade de forma plural. Porém, o que já não oferece dúvidas, é que a existência desta dupla visão sobre o império demonstra que os cineastas, não obstante os instrumentos de propaganda utilizados pelo regime, produziram visões diferentes daquela que o poder instituído gostaria, sobre as quais impediu a sua exibição através das autoridades inspetivas, facto que também não abrangeu todas as situações contrárias à linha política dominante, cujo exemplo mais flagrante é Mudar de vida, que foi aceite pelas autoridades para maiores de 18 anos sem qualquer corte.
A última nota que gostaríamos de salientar é a persistência temporal desta visão sobre o império, antes e depois de 1974, e o facto de a revolução que ditou a queda do regime de Salazar e Caetano não ter efetuado qualquer tipo de interrupção na produção ficcional sobre o assunto. A média estatística de uma obra por ano desde 1940, é nesse aspeto um facto incontornavelmente significativo, revelador de uma "persistência sem abril", ou seja, abril de 1974, ao contrário de significar uma rutura com o passado, representou a necessidade de continuar a refletir sobre o significado do império na nossa memória coletiva.
Concluindo, esta dupla interpretação que propusemos como processo de reflexão global sobre a memória do cinema acerca do império, demonstra também aquilo que dissemos inicialmente. Sendo um assunto que é tratado pela ficção cinematográfica há 75 anos (1940-2015), com a regularidade produtiva e temática que evidenciámos, parece-nos que o que deve ser relevado é que o tema tem interessado insistentemente um conjunto de realizadores bastante significativo, o que parece ser uma evidência da importância coletiva que tem, independentemente das opiniões veiculadas, dos tempos e contextos político-culturais. Ou seja, o Império integrou o território português entre 1415 e 1974, perdura no cinema de ficção desde 1940, com a média estatística de uma obra anual, permanência que nos permite concluir ser um passado que continua presente, e que terá futuro, a avaliar pela tendência anterior. Essa longevidade, se é demonstrativa de que o "tema império" não tem sido indiferente para as várias gerações que sobre ele têm debruçado um olhar criativo, que por isso mesmo é parte integrante das nossas caraterísticas coletivas, a permanência da dupla visão luminosa e sombria deverá também significar que a análise do investigador não poderá ser feita por reação, nomeadamente em relação aos 48 anos de vida coletiva impostos pelo Estado Novo, mas tendo em conta a realidade e a importância multissecular que constituem 600 anos (1415-2015) de convívio com a ideia de império na nossa memória e consciência coletivas.

Referências:

Filmográficas
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